quarta-feira, 17 de março de 2010



17 de março de 2010 | N° 16277
MARTHA MEDEIROS


Guns N’ Roses atiram o pau no gato

Achei que a discussão em torno da mudança das letras de cantigas infantis estivesse encerrada, mas, segundo matéria de ZH, algumas escolas seguem insistindo nessa bobagem, ensinando seus alunos a cantarem “Não atirei o pau no ga-tô-tô”, como se isso fosse fazer diferença nas estatísticas sobre violência.

Hoje crianças bem criadas gostam de funk, hip hop e rock’n’roll. As letras são umas porcarias, mas ajudam a extravasar, a divertir e servem como catarse para uma rebeldia que elas naturalmente trazem dentro, e que soltam nas pistas de dança e nas plateias dos shows.

Quando eram menores ainda, ouviam canções sobre cravos que brigavam com rosas e sobre um amor que era pouco e se acabou, e quando anoitecia, fechavam os olhinhos e dormiam feito anjos.

Simplesmente porque não prestavam atenção nessas letras, e sim no que diziam seus pais. Se a música tinha uma melodia agradável, bastava. O que estava sendo cantado podia ser qualquer coisa. Como, aliás, era.

Isso me faz lembrar da minha música predileta do Guns N’ Roses, I Used to Love Her, que não entrou no setlist do show de ontem (me corrijam se eu estiver enganada, não estava lá). Gosto da música não só pelo seu ritmo dançante, mas porque a letra é de um humor negro compatível com o politicamente incorreto que sempre norteou o velho rock. Hoje está tudo muito emo, o rock aderiu à dor de cotovelo e parece música sertaneja tocada em guitarra, baixo e bateria.

O Guns ainda mantém aquela certa “sujeira” que caracteriza o gênero, sem falar que Axl Rose tem o atrevimento de cantar coisas como “I used to love her/ But I had to kill her”. A letra conta a história de um cara que não aguentava mais a mulher, só lhe restou matá-la. Ela o deixava louco, que outra solução? A letra conclui: estamos mais felizes desse jeito.

Quem não tem, às vezes, vontade de esganar o marido, estrangular a esposa? Sorriam, seus pensamentos secretos não estão sendo filmados. No máximo, viram músicas, viram filmes, viram quadros e viram piada.

No entanto, este tem sido dos crimes mais recorrentes e hediondos: homens seguem matando suas ex-esposas e ex-namoradas na vida real, porque elas tiveram a audácia de se separarem deles. “Se não for minha, não será de mais ninguém.” Bang!

Será que são as letras de música que formam assassinos? Eu apostaria numa educação bruta ou inexistente, na falta de aprendizado para lidar com frustrações e rejeições, na patética valorização do machismo (aliado ao mais alto grau de ignorância), e, por que não especular, apostaria também na burrice de alguns em não saber aproveitar as purgações que as manifestações artísticas proporcionam e que ajudam a desenvolver o humor, que é o único salva-vidas quando nosso mundo cai.

Logo, deixe que atirem o pau no gato. Eu passei a vida escutando isso e nunca atirei nem uma casca de amendoim num gato. Por que nunca fiz isso? Porque nunca vi meus pais fazendo. E neles eu prestava atenção.

Uma linda quarta-feira pra você. aproveite o Dia Internacional do sofá. Namore muito

terça-feira, 16 de março de 2010



16 de março de 2010 | N° 16276
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Cenário desigual

Assisti ontem a um duplo ato de tortura. Ante a circunstância indiferente, uma mulher puxava um carro de lixo, que devia ter três vezes o seu peso. Ao seu lado corria uma menina de uns quatro anos, tentando acompanhá-la.

Caía no mundo um calor de trinta e poucos graus, mas ninguém se importava com elas. Eram como uma parte indispensável da paisagem, ainda que marcada de crueldade. A menina chorava e a mulher lhe dirigia umas palavras entrecortadas de cansaço.

Por que chorava a menina?

Chorava porque seus pés descalços tocavam no asfalto quente. Chorava porque estava exausta e tinha fome. Chorava porque sua mãe, bem ali ao seu lado, não lhe dava uma atenção senão distante.

E por que sua mãe se mostrava distante?

Talvez porque não tivesse mais força para carregar o peso que seus pobres músculos suportavam. Talvez, tanto quanto a menina, tivesse fome e sede. Talvez porque a assombravam outras preocupações ancoradas em casa.

A mim, transeunte da cena, dentro de um táxi, o que mais impressionava era a indiferença geral. Era uma insensibilidade refinada, como se não houvesse nem mãe nem filha prisioneiras de seu suplício. Pedestres distraídos, um policial, carros de fino trato revelavam-se alheios ao espetáculo de impiedade.

E por que ocorria esse espetáculo?

Ocorria porque este é um país desigual e cenas como a que descrevi fazem parte do nosso cotidiano. A escravidão não foi ainda abolida e há uma classe eternamente prisioneira de sua desesperança.

Não é difícil identificá-la. Mora em ruas e praças, pontes e viadutos. Vive em frágeis barracos sitiados de miséria, desamor, promiscuidade, órfãos de água, luz, esgotos, cuidados de saúde, paz, segurança, transportes, pródigos em violência, drogas, desarmonia, fome, doença.

Mas se alguém me perguntasse o que aprofunda tamanho abismo, o que torna mãe e filha reféns sem culpa da própria fragilidade, eu não hesitaria em apontar a grande chaga que alarga a exclusão e a injustiça. Em pleno ano de 2010, um em cada 10 brasileiros jamais frequentou uma escola.

Uma gostosa tereça-feira para você. Aproveite o dia

sábado, 13 de março de 2010



14 de março de 2010 | N° 16274
MARTHA MEDEIROS


Virei gente por causa de um bicho

Para uma classe específica de leitores, antes de adotar um gato, eu era uma gélida colunista sem alma

Serei fanática por algo? Por alguém? Adoro os filmes do Woody Allen, mas compreendo quem não goste, o que me exclui da tribo dos xiitas. Considero que passar a vida sem ter um filho é abrir mão de viver uma experiência intensa, mas quem nunca teve pode ser feliz da mesma forma, ou mais.

E quase não aceito que alguém não goste de vinho, mas há quem prefira cerveja, e há os abstêmios, e todos convivem bem, então está tudo em paz. Concluo que não sou fanática por coisa alguma.

Nada me decepciona de forma irreversível ou me encanta de forma abobalhada, não mudo de opinião sobre as pessoas por causa de seus gostos ou hábitos, não sou defensora inconteste nem de mim mesma.

Posto isso, me declaro estarrecida diante dos absolutamente obcecados por bichos. Escrevi dia desses que havia adotado um gatinho e que estava muito satisfeita com ele, logo eu que nunca tinha pensado em ter gato, nem cachorro, nem jaguatirica, agora tenho um gato, e isso é tudo, tenho um gato, a vida segue.

Não, a vida não segue.

Diante da minha revelação, recebi alguns e-mails me cumprimentando pela aquisição, ok, e algumas pessoas me deram conselhos de como cuidar bem dele, ok, e alguns outros me mandaram fotos e vídeos de seus próprios bichanos, ok. Gentilezas muito bem-vindas.

Mas para uma classe específica de leitores, uma profunda mudança aconteceu. Segundo eles, houve um divisor de águas na minha vida: eu era uma antes do gato, e agora sou esta, depois do gato. Sendo que esta é a que conta. Antes eu não vivi. Antes eu era uma gélida colunista sem alma. Antes eu tinha apenas uma família e uma profissão, ou seja, nada. Agora sim, virei gente.

Pareço estar brincando? Estou e não estou. Estou porque tento descrever meu assombro com alguma graça, mas também não estou, porque meu assombro não é fictício, ele é real.

Havia muitas pessoas que desconfiavam da minha integridade por ainda não ser dona de um mascote, que não confiavam em mim por eu não ter um animalzinho de estimação, e que agora se declaram aliviadas por descobrir, finalmente, que sou um ser humano.

Você, que não tem gato, nem hamster, nem iguana, nem passarinho, nem peixe, nem tartaruga, você, meu caro, está morto e não sabe.

Se Fernandinho Beira Mar espalhar que adotou três cachorros órfãos e dois gatos, sendo um siamês cego e um persa com três patas, haverá piquete em frente à penitenciária exigindo sua libertação.

Se o Arruda pedir permissão para que seu porquinho-da-índia vá visitá-lo, será reeleito. Se Mahmoud Ahmadinejad discursar a favor das chinchilas, é capaz de conseguir convencer a humanidade de que não houve o Holocausto.

Descobri que quem gosta de bicho merece abrandamento de pena, não importa a folha corrida de seus crimes, e quem adota um, ou vários, está imunizado daqui até a eternidade. Já quem gosta apenas de gente terá que continuar se explicando.


O barraco armado pelo Imperador

Palavrões, tapas e até carros depredados são alguns dos ingredientes da briga de Adriano com a noiva - episódio que expõe, outra vez, o drama do jogador com o álcool

Ronaldo Soares - Marcelo Régua/AE

Uma relação turbulenta

Adriano e a noiva, Joana, reatados depois do arranca-rabo na favela: família desaprova



Com uma biografia turbulenta, pontuada pelo consumo excessivo de álcool, crises de depressão e até a deserção da Inter de Milão, em 2009, com o contrato ainda em vigor, o atacante Adriano, hoje no Flamengo, envolveu-se, na semana passada, em novo escândalo - desta vez, com cenas de ciúme, alguma violência e muita baixaria.

O episódio foi precipitado pela fúria de sua noiva, a ex-garota-propaganda e atual personal trainer Joana Machado, 29 anos, que, ao flagrar Adriano em meio a uma balada funk repleta de mulheres e regada a álcool, pôs-se a estapear o jogador, até ser repelida por ele com um empurrão.

Ainda descontrolada, a moça muniu-se de uma pedra solta na calçada, com a qual provocou estragos na lataria de um Hilux e de um BMW, respectivamente dos jogadores Dênis Marques e Álvaro, do Flamengo, que ali estavam em companhia de Adriano.

Tudo se passou na favela Vila Cruzeiro, na Zona Norte do Rio de Janeiro, onde Adriano nasceu e que continua a frequentar.

Por lá, mantém amizade de infância com o chefe do tráfico, Paulo Rogério de Souza, mais conhecido como Mica, que também participava da farra e, no auge da confusão, esbravejou: "Mulher não tem de ir atrás de homem na birosca". Por ordem do próprio Adriano, Joana acabou expulsa da favela pelos traficantes.

O jogador, que permaneceu na festa, chegou a dizer: "Se ela resistir, amarra numa árvore, até se acalmar".
Fabio Motta/AE

A frase infeliz

O goleiro Bruno, que presenciou a briga, saiu em socorro de Adriano: "Quem nunca saiu na mão com a mulher?"

O episódio não apenas expôs a relação intempestiva de Adriano com a noiva - com quem, entre idas e vindas, está há dois anos - como trouxe à tona questões que sempre rondam sua trajetória. Uma delas diz respeito à flagrante instabilidade emocional do jogador.

Resume o médico Marco Aurélio Cunha, superintendente do São Paulo, que teve forte convívio com Adriano em sua passagem pelo clube, em 2008: "Ele alterna os períodos de euforia com os de arrependimento pelos excessos e os de depressão".

Por trás dos constantes altos e baixos, pesa um histórico de consumo abusivo de álcool, hábito que se intensificou depois da morte de seu pai, em 2004, seguida da separação da mulher, Daniele Carvalho, mãe de seus dois filhos.

Àquela época, Adriano chegou a revelar à imprensa italiana: "Bebo para conseguir dormir". Em entrevista a VEJA, a mãe do jogador, Rosilda Ribeiro, expressou sua preocupação: "Para meu filho, a bebida é uma fuga.

Se não está feliz, acaba extrapolando". Na semana passada, o assunto voltou à cena, já que, no dia do arranca-rabo, Adriano bebeu à vontade.

"O problema dele com álcool é notório", disse, sem rodeios, o vice-presidente de futebol do Flamengo, Marcos Braz. Na primeira vez em que falou sobre o episódio na favela, na última sexta, Adriano reagiu: "Se eu bebesse tanto como dizem, não conseguiria nem jogar".

Lya Luft

Quando a natureza mata

"A natureza não mata apenas com enchentes, deslizamentos, terremotos e tsunamis. Mata também pelas mãos do homem, o que é bem mais preocupante"

Menina do interior, tive a natureza como presença enorme em torno da casa e por toda a pequena cidade: paisagem, abrigo, fascinação, surpresa, escola de permanência e também de transitoriedade.

Mantive um laço estreito com esse universo, e quando posso durmo de janelas e cortinas abertas, para sentir a respiração do mundo. Porém, cedo também aprendi que a mãe natureza pode ser cruel. Granizo perfurando folhas e arrasando a horta, geada castigando flores, raios matando gente. De longe, ouvia falar em terremoto, quando o vasto mundo ainda era distante.

Agora que o mundo ficou minúsculo, porque o Haiti arrasado, o Chile destruído e a Europa nevada estão ao alcance do meu dedo no computador ou no controle da televisão, a velha mãe se manifesta em estertores que podem ser apenas normais (o clima da Terra sempre mudou, às vezes radicalmente, antes de virmos povoar este planeta), mas também podem ser rosnados de protesto, "ei, o que estão fazendo comigo essas pequenas cracas que se instalaram sobre minha pele?".
Ilustração Atômica Studio

Mas a natureza não mata apenas com enchentes, deslizamentos, terremotos e tsunamis. Mata pela mão dos humanos, o que pode parecer um fato em escala menor, mas é bem mais preocupante.

Homens, mulheres e meninos-bomba quase diariamente se explodem levando consigo dezenas de vidas inocentes: pais de família, mães ou crianças, mulheres fazendo a feira, jovens indo para a escola. Bandidos incendeiam um ônibus com passageiros dentro: dois morrem logo, outros vários curtem em hospitais o grave sofrimento dos queimados.

Não tinham nada a ver com a bandidagem, estavam apenas indo para o trabalho, ou vindo dele. Assaltantes explodem bancos em cidades do interior antes tranquilas. Criminosos sequestram casais ou famílias inteiras e os submetem aos maiores vexames e terror. Como está virando costume, a gente agradece por escapar com vida.

Duas mães deixam num barraco imundo cinco crianças, algumas com menos de 6 anos. Sem comida, sem força, sem presença, sem a menor higiene. O policial que as encontra leva duas menorzinhas para casa, onde sua mulher lhes dá banho e comida. As crianças, de tão fracas, mal conseguem se alimentar. O homem chora: tem três filhos pequenos, e há algum tempo perdeu uma filhinha. A maldade humana agride até esse homem que com ela deve ter frequente contato.

A natureza, da qual fazemos parte, mata com muito mais crueldade através de nós do que através do clima ou de movimentos da terra, e de maneira bem mais assustadora: pois nós pensamos enquanto prejudicamos o nosso semelhante.

Temos a intenção de atormentar, torturar, matar, mesmo que em vários casos seja uma consciência em delírio – estamos tão drogados que achamos graça de tudo. Mas somos responsáveis por nos termos drogado.

De modo que, como me dizia um amigo, o ser humano não tem jeito, não. Ou: esse é o nosso jeito, a nossa parte na natureza. De um lado, os cuidadores, que vão de pais e mães até médicos e enfermeiras; do outro lado, os destruidores, que são os bandidos, mas também (que tristeza) eventualmente pais e parentes.

E contra eles, tanto ou mais do que contra a natureza não humana, somos impotentes. O que faz a criança diante do abandono materno? Em relação ao pai, tio ou irmão estuprador?

O que fazem passageiros de um ônibus, pacíficos e cansados, diante do terror imposto por bandidos? Nada. Migalhas humanas soterradas por maldade e frieza, como num terremoto ou tsunami somos soterrados pela lama, pelos destroços, pelas águas.

Resta filosofar um pouco: de que vale a vida, quanto vale a minha, e como a usamos, se é que pensamos nisso? Pensar pode ser meio chato, e ainda por cima traz alguma inquietação.

A natureza poderosa, encantadora e cruel também somos nós: que a gente não fique do lado dos animais assassinos, como a orca, que depois de matar três pessoas continua, como foi anunciado, "fazendo parte do time", no parque americano.

Antes de usar um adesivo "salve as baleias", eu quero um adesivo "salve as pessoas, que são parte da natureza".

Lya Luft é escritora


Eike, o homem dos US$ 27,5 bilhões

A vida, os negócios e os conselhos do primeiro brasileiro a entrar na lista dos dez mais ricos do mundo
José Fucs. Com Marcos Coronato, Nelito Fernandes e Thiago Cid
Ernani D´Almeida


No início de 2008, o empresário Eike Batista afirmou que seu maior sonho era se tornar o homem mais rico do mundo, dentro de cinco anos.

Quase ninguém o levou a sério.

Ele era rico, muito rico, conhecido por sua capacidade extraordinária de multiplicar o patrimônio.

Mas estava longe dos ícones do capitalismo dos dias de hoje: o megainvestidor americano Warren Buffett, o criador do império da Microsoft, Bill Gates, o magnata mexicano das telecomunicações, Carlos Slim, entre outros.

Dois anos depois, seu projeto já não parece galhofa.

Eike foi o bilionário que mais ganhou dinheiro no ano passado – sua fortuna aumentou em US$ 19,5 bilhões, segundo a revista americana Forbes, que anualmente publica a lista dos mais ricos do mundo.



O MAIS RICO



Eike Batista em sua casa, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro.

Ele expandiu suas atividades para novos setores, foi à Bolsa e tornou-se o maior bilionário do país



13 de março de 2010 | N° 16273,
NILSON SOUZA


Notas azuis

Vem aí uma mudança significativa no sistema educacional do país, com o fim da reprovação nos primeiros três anos do Ensino Fundamental. Não chega a ser novidade, algumas secretarias estaduais e municipais já adotam há décadas a chamada progressão continuada como estratégia para reduzir a evasão e a repetência.

O debate em torno desse assunto quase sempre se transforma em Gre-Nal, com críticos e defensores apaixonados de ambos os lados. Não me meto nessa discussão, até mesmo por falta de conhecimento. Mas me comovo com a ideia que está por trás desta mudança: proteger a autoestima das crianças dos danos de uma reprovação formal.

Uma nota vermelha, quando o indivíduo ainda não está preparado para os tropeços da vida, pode se transformar em rótulo infamante e irrecuperável. Muitas vezes funciona como profecia autorrealizadora negativa – o sinal de que aquela criança está destinada a fracassar. E a própria criança acaba acreditando nisso.

O aluno que é levado a acreditar em sua capacidade de conseguir boas notas tende a estudar mais e a alcançar mesmo os melhores resultados. Já aquele que é rotulado de incapaz perde o estímulo para se esforçar. Evidentemente, existem as exceções.

Lembro-me de ter editado neste jornal o artigo do psicólogo espanhol Emílio Ruiz, especializado em síndrome de Down, sobre os “disbicicléticos”. Ele relata o caso de um menino que não sabia andar de bicicleta como as outras crianças de sua idade. Foi chamado um especialista que examinou o garoto, fez vários testes e concluiu que ele tinha uma dificuldade natural para se equilibrar sobre duas rodas.

Estava feito o diagnóstico: ele era um disbiciclético e o problema estava resolvido. Ninguém se preocupou em saber se ele tinha recebido estímulo dos pais para aprender a andar de bike, se havia espaço na sua residência para isso, se alguma vez ganhara uma bicicleta de presente, ou se os próprios pais, prevendo que o menino teria esta dificuldade, jamais lhe ofereceram a oportunidade de bicicletar.

Ruiz faz uma analogia com os portadores da síndrome de Down, que muitas vezes são diagnosticados como incapazes e, por isso, sentenciados à incapacidade.

Na escola, como na vida, também pode acontecer algo parecido. Por isso, pais, professores, treinadores, tios, avós e adultos em geral devem investir no sucesso das crianças e não na impossibilidade.

Se acreditarmos que elas podem ser bem-sucedidas, elas certamente serão. Mas não basta adiar a nota vermelha por três anos. É preciso aproveitar este período para estimulá-las e ensiná-las a conquistar suas próprias notas azuis.

quarta-feira, 10 de março de 2010



10 de março de 2010 | N° 16270
MARTHA MEDEIROS


Fiéis e inteligentes

As mulheres acabam de ganhar um belo argumento contra os don juans: segundo uma pesquisa divulgada recentemente, homens fiéis são mais inteligentes que os infiéis.

Dito assim, parece conversa pra boi dormir, mas há uma informação importante por trás desse resultado. Satoshi Kanazawa, especialista em psicologia evolutiva da London Schools of Economics, descobriu que há uma mudança de mentalidade em curso, e essa é a grande notícia.

Todos sabem a força da cultura herdada. De geração em geração, homens lidam com sexo de uma maneira menos romântica que as mulheres. Realizam suas fantasias e desejos à revelia de seu estado civil, amparados pela teoria ancestral de que nasceram para espalhar o maior número de sementinhas e assim garantir a permanência da espécie.

Com um álibi bom desses, a infidelidade masculina acabou sendo considerada apenas uma travessura, e, se a traição magoava as parceiras fixas, azar das parceiras fixas. Perde-se um ônibus, logo vem outro, não é o que dizem?

O que o sr. Kanazawa revelou ao mundo é que os homens começaram a perceber que esse rodízio pode ter um alto custo emocional. O sexo clandestino é muito divertido e o risco de ser descoberto pode deixá-lo ainda mais saboroso, mas se for realmente descoberto, surpresa: já não haverá uma Amélia para perdoar.

Antigamente, as mulheres faziam olho branco não só porque “homem é assim mesmo”, mas porque a sociedade não recebia de braços abertos as desquitadas, e, além de sozinhas, elas teriam que viver de pensão e reduzir seu padrão de consumo, sem falar no trauma causado aos filhos. Uma derrocada familiar que era facilmente evitada: bastava fingir que nada estava acontecendo.

Hoje, independentes financeiramente, com a sociedade as reverenciando e conhecedoras de truques para não envelhecer jamais, as mulheres já não têm por que ficar aturando desaforo. Se a linha de ônibus deles é frequente, a nossa também, basta fazer um sinal. Mas não é a variedade que costuma nos dar uma bela história de vida pra contar.

Afora as imutáveis diferenças hormonais que determinam o comportamento sexual de machos e fêmeas, o aspecto cultural pode realmente estar passando por uma evolução.

Os homens mais inteligentes (cuja pesquisa inclui também os ateus e os politicamente liberais, mas nisso ninguém se ateve) são aqueles que estão atentos às transformações sociais e que se deram conta de que mais vale ter uma mulher incrível ao lado do que uma coleção de biscates, e resolveram reduzir a farta distribuição de sementinhas.

Sendo homens seguros, não precisam copiar o padrão machista de seus pais e avós. Captaram, com mais rapidez que os neurologicamente desfavorecidos, que o risco de perder a mulher amada é grande e que a fidelidade pode ser um bom investimento a longo prazo. Como é que ficaram tão espertos?

Precisaram ficar. Suas mães e avós, também muito inteligentes, pavimentaram essa mudança antes deles.

Uma linda quarta-feira para você - Aproveite o dia

terça-feira, 9 de março de 2010



09 de março de 2010 | N° 16269
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma simples matéria

Sou vizinho do Palácio, da Catedral, da Assembleia (da nova e da antiga, que renasce), do torreão do Ministério Público, do Theatro São Pedro, do Solar dos Câmara, mas nada me orgulha mais do que a proximidade das árvores que me cercam. Só aqui destas sacadas vejo três parques: o da Praça da Matriz, o do Visconde e o dos Chaves Barcellos.

Sucede que, nesta antevéspera de outono, nenhum deles começou a desnudar-se. Mesmo esta paineira, que me faz companhia ao norte, nunca esteve mais exuberante do que neste março. E os jacarandás da Rua João Manoel surgem no esplendor de sua idade adulta.

É tudo que sei, mas pouco. Pego a enciclopédia mais próxima e ela me explica que árvore é um vegetal lenhoso de grande porte, cujos ramos inferiores logo caem, vindo a formar-se um caule simples, também chamado de tronco, que se ramifica na parte superior, formando uma copa. É o mesmo livro que me informa que a disciplina biológica que estuda as árvores, ou melhor, que se ocupa de seu cultivo, é a dendrologia.

Dendrologia? Não preciso dessa palavra difícil e algo pretensiosa para admirar as árvores que sempre me cercaram. Quando viajava pelos Estados Unidos e pelo Canadá, me encantava com os álamos brancos, com os olmos americanos, com o carvalho, com o bordo doce. Quando os caminhos me levavam por estes Brasis, me fixava nas seringueiras, nos buritis, nos babaçus, nos jeribás.

Parece muito? Não é nada. No primeiro domingo deste mês visitei uma dessas florestas urbanas que povoam Porto Alegre. E sabem o que mais? Não sabia nem sombra dos nomes das árvores que me cercavam.

Eram belas, eram esplêndidas, mas eram desconhecidas.

Foi aí que me surgiu uma ideia, que deixo aqui de graça para as autoridades imperantes.

Por que não incluir nos currículos das escolas fundamentais e médias uma simples, modesta matéria que ensine aos estudantes os nomes das árvores que os rodeiam? Por que não ensinar a identidade dos pássaros que as frequentam? Por que não transmitir a carteira de identidade das flores que as enfeitam?

Pois esse é o tipo de sabedoria que gera sombra e distribui beleza.

Uma excelente terça-feira para vc. Aproveite o dia.

domingo, 7 de março de 2010


DANUZA LEÃO

A felicidade dura pouco

Com alguém ao lado falando num celular, lendo os e-mails, não se pode nem ao menos pensar. É a solidão total

HÁ MUITOS, muitos anos, havia uma musica de Zé Rodrix que nos emocionava. Os primeiros versos diziam "eu quero uma casa no campo, onde eu possa compor muitos rocks rurais"; e continuava dizendo coisas lindas, como "eu quero a esperança de óculos e um filho de cuca legal, eu quero plantar e colher com as mãos a pimenta e o sal". Era com isso que sonhávamos, mesmo sem saber, ou era o que gostaríamos de querer; belos tempos.

Os anos passaram, e os sonhos, no lugar de se ampliarem, encolheram.

O que é que se quer hoje em dia? Menos, acredite, pois querer um celular novo que faz coisas que até Deus duvida é querer pouco da vida. Meu maior sonho é bem modesto.

Nada me daria mais felicidade do que um celular que não fizesse nada, além de receber e fazer ligações. Os gênios dessa indústria ainda não perceberam que existe um imenso nicho a ser explorado: o das pessoas que, apesar de conseguirem sobreviver no mundo da tecnologia, têm uma alma simples.

As duas mais dramáticas novidades trazidas pelos celular foram as odiosas maquininhas fotográficas e a impossibilidade de uma conversa a dois. Quando duas pessoas saem para jantar, é inevitável: um deles põe o celular -às vezes dois- em cima da mesa. O outro só tem uma solução: engolir, mesmo sem água, um tranquilizante tarja preta.

No meio de uma conversa palpitante, o telefone toca, e a pessoa faz um gesto de "é só um minuto". Não é, claro. Vira um grande bate-papo, e não existe solidão maior do que estar ao lado de alguém que te larga -abandona, a bem dizer- para conversar com outra pessoa.

No meio de um deserto, inteiramente sós, estamos acompanhados por nossos pensamentos. Com alguém ao lado falando num celular, lendo os e-mails ou checando as mensagens, não se pode nem ao menos pensar.

É a solidão total, pois nem se está só nem se está acompanhado. Tão trágico quanto, é estar falando com alguém que tem um telefone com duas linhas; no meio do maior papo, ele diz "aguenta aí que vou atender a outra linha" e frequentemente volta e diz "te ligo já" -e aí você não pode usar seu próprio telefone, já que ele vai ligar já (e às vezes não liga). Não dá.

Raros são os que atendem e dizem "estou com uma amiga, depois te ligo" -nem precisavam atender, já que o número de quem chama aparece no visor, e as pessoas têm todos eles de cor na cabeça, como eu não sei.

Eu juro que tentei, já troquei de celular três vezes, mas desisti. Recebia contas que não entendia, entrei, de idiota, num "plano", e quase enlouqueci quando quis sair.

Hoje tenho um que praticamente não uso, mas é pré-pago, e só umas quatro pessoas conhecem; ponho 20 reais de crédito, se não usar não vou à falência, mas pelo menos não recebo aquelas contas falando de torpedos e SMS, coisas que prefiro nem saber que existem. Ah, e meus telefones fixos são com fio.

Do carro já me livrei: há cinco anos não procuro vaga, não faço vistoria, não pago IPVA, nem seguro, e sou louca por um táxi. Até ontem me considerava uma mulher feliz, mas sempre soube que a felicidade dura pouco: hoje ganhei um iPod. Uma quase tragédia, eu diria.

PS - Lula não resistiu e foi fazer campanha no Chile. Michelle Bachelet teve que largar o que estava fazendo para recebê-lo no aeroporto, e como se fosse pouco, ainda ouvir um discurso.

Nele, Lula disse essa pérola: "graças a Deus, não houve vítimas entre os brasileiros". A presidente, com a expressão devastada pelos 800 mortos perdidos no terremoto, só fez olhar para o chão.
danuza.leao@uol.com.br


07 de março de 2010 | N° 16267
MARTHA MEDEIROS


Sisters

Sempre que chega o Dia Internacional da Mulher, procuro fugir do discurso de vitimização que a data invoca. Não que estejamos com a vida ganha, mas creio que as mulheres já mostraram a que vieram e as dificuldades pelas quais passamos não são privilégio nosso: injustiça e violência são para todos.

Temos, ainda, o grande desafio de conciliar as atividades domésticas com a realização profissional, e precisamos, naturalmente, da parceria do Estado e da parceria dos parceiros: ser feliz é um trabalho de equipe.

Mas não vou utilizar o 8 de Março para colocar mais água no chororô habitual. Prefiro aproveitar a data, este ano, para fazer um brinde à nossa importância não para a sociedade e nem para a família, mas umas para as outras.

Assistindo em DVD ao delicado filme Caramelo, produção franco-libanesa do ano passado, tive a sensação boa de confirmar que o tempo passa, os filhos crescem, os corações se partem, mas as amigas ficam.

Como todos os filmes que abordam a amizade e a solidão intrínseca de toda mulher, Caramelo nos consola valorizando o que temos de melhor: a nossa paixão, a nossa bravura (“sou mais macho que muito homem”) e o bom humor permanente, mesmo diante de tristezas profundas.

No filme, elas são cinco: a amante de um homem casado, a que tem pavor de envelhecer e por conta disso se submete a situações humilhantes, a garota muçulmana com casamento marcado que precisa esconder do noivo que não é mais virgem, a enrustida que se sente atraída por outras mulheres, e a senhora que desistiu de investir no amor para cuidar da irmã mais velha, que é mentalmente perturbada.

Todas diferentes entre si e todas iguais a nós: mulheres conflituadas, mas que podem contar umas com as outras em qualquer circunstância.

Recentemente recebi por e-mail um texto anônimo, em inglês, que falava justamente sobre isso: precisamos de mulheres a nossa volta. Amigas, filhas, avós, netas, irmãs, cunhadas, tias, primas.

Somos mais chatas do que os homens, porém, entre uma chatice e outra, somos extremamente solidárias e companheiras de farras e roubadas. Esquecemos com facilidade as alfinetadas da vida e temos sempre uma boa dica para passar adiante, seja a de um filme imperdível, de uma loja barateira ou de uma receita para esquecer da dieta.

Competitivas? Talvez, mas isso não corrompe em nada a nossa predisposição para o afeto, a nossa compreensão dos medos que são comuns a todas, a longevidade dos nossos pactos, o nosso abraço na hora da dor, a nossa delicadeza em momentos difíceis, a nossa humildade para reconhecer quando erramos e a nossa natureza de leoas, capazes de defender não só nossos filhotes, mas os filhotes de todo o bando.

Aprendemos a compartilhar nossas virtudes e pecados e temos uma capacidade infinita para o perdão. Somos meigas e enérgicas ao mesmo tempo, o que perturba e fascina os que nos rodeiam. Brigamos muito, é verdade: temos unhas compridas não por acaso.

Em compensação, nascemos com o dom de detectar o sagrado das pequenas coisas, e é por isso que uma amizade iniciada na escola pode completar bodas de ouro e uma empatia inesperada pode estimular confidências nunca feitas. Amamos os homens, mas casadas, mesmo, somos umas com as outras.

Lindo domingo para vc. E para as mulheres, na véspera do seu Dia os Parabéns já antecipados.

sábado, 6 de março de 2010


Roberto Pompeu de Toledo

No terremoto, e fora de casa

"Funcionários do hotel aconselham a entrar. Há rumores de arrastões na rua. Tensão no grupo. Que é pior, numa hora dessas: assalto ou um teto sobre a cabeça?"

O terremoto começa dentro da gente. Sensação de tremor, náusea. "Que estará ocorrendo comigo?", perguntava-se a professora e crítica literária Marisa Lajolo, uma das integrantes da delegação brasileira no congresso de literatura infantil que ocorria em Santiago do Chile.

Era a noite de sexta para sábado. Da cama Marisa via o campanário da Igreja de Santo Antonio, enquadrada na janela do hotel em que se hospedava. De repente, as luzes do campanário se apagaram. Foi um dos primeiros sinais de que... Não, não é comigo. Alguma coisa está acontecendo no mundo exterior.

O relato de Marisa Lajolo ao colunista mostra como vão se sucedendo os dados até construir na mente sonolenta a consciência do terremoto. Barulhos estranhos no teto. Na parede. Como pode um barulho na parede? Barulho de vidro se quebrando, será um copo?

Um barulhão enorme no banheiro. Marisa abre a porta e vê os hóspedes descendo pelas escadas. O hotel possui sistema próprio de geração de energia e as luzes estão acesas. Isso contribui para que a retirada se dê sem pânico. Ela veste uma roupa e enrola um lençol por cima. O barulhão no banheiro, saberá depois, era dos azulejos descolando-se das paredes e despencando no chão.

Os neófitos em terremotos pagam pela inexperiência. Marisa aprenderá que demorou a sair da cama. Enquanto ainda não é possível abandonar o prédio, deve-se procurar abrigo sob o batente de uma porta. No próximo terremoto, ela será mais expedita. Enfim na rua, abraços emocionados. Ao se reverem, o grupo brasileiro e os demais conhecidos do congresso sentem o alívio de se saberem vivos e bem.

A terra ainda treme, são os repiques secundários do terremoto. Mas o que agora chama mais atenção são as contínuas trombadas de automóveis. Os semáforos não funcionam, e os motoristas estão nervosos e apressados. Os barulhos das trombadas, somados aos outros barulhos ouvidos durante a noite, consolidarão em Marisa a impressão de que, da experiência de ter vivido um terremoto, lhe ficará sobretudo a memória auditiva.

Na rua, e, pelo sim, pelo não, a boa distância do prédio, muitas pessoas ainda vestem pijama. Marisa não, mas guarda como resquício da cama o lençol enrolado no corpo. Transcorre um tempo e os funcionários do hotel, sempre gentis, sempre prestativos, aconselham a passar para dentro. Há rumores de arrastões ocorrendo nas ruas. Tensão no grupo. Que é pior, numa hora dessas: assalto ou um teto sobre a cabeça? Acaba-se acatando o conselho dos funcionários.

Eles devem saber o que fazem. No saguão do hotel aglomera-se uma pequena multidão, grande parte de pijama. Aos poucos as pessoas vão criando coragem para subir, rápido, e pegar suas coisas. O prédio parece firme e a terra, mais calma.

O hotel vai mais tarde acomodar os hóspedes nos andares mais baixos. Não é a normalidade ainda, longe disso, mas é um começo de.

No Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, os chilenos espalham-se pelas poltronas, pelo chão, sobre as esteiras ociosas dos guichês de check-in. Eles esperam a reabertura do aeroporto de Santiago. A foto publicada na Folha de S.Paulo mostra os bilhetes que colaram na parede: "Tenemos hambre y frío", "Help", "Lula, ayúdanos", "Piñera, llévanos a Chile".

Eles se constituem num paradoxal tipo de vítima do terremoto: o dos apanhados fora dele. Nenhum teto lhes caiu em cima, mas encontram-se sob o peso de ter sido surpreendidos em lugar distinto do exigido pela hora. A preocupação central são os parentes, os amigos, mas não é só. A pátria como um todo, nessa circunstância, dói e faz falta.

Os brasileiros no Chile, igualmente impedidos de fazer a viagem de volta, viviam a situação inversa de ser apanhados em apuros longe de casa. Os professores do congresso de literatura são pessoas acostumadas às viagens, vários já viveram no exterior, mas essa não é situação para padecer em plaga estrangeira.

A terra já não treme, estão bem tratados no hotel, não falta comida, até banho não falta, mas as horas passam devagar e vazias. Enfim, na noite de segunda para terça-feira, um avião da FAB os resgata, a eles e outros brasileiros. A alegria da repatriação domina o grupo.

Marisa, cujos ouvidos ainda ecoavam os sons da noite do terremoto, é recompensada pela "voz brasileira e tranquila" do comandante que os recebeu a bordo. Mais um pouco, e a alegria vira euforia. Até a Embraer é aplaudida, pela fabricação da aeronave que os transporta. Belos aviões tem fabricado essa tal de Embraer.


Gorjeta

Quando e quanto dar

A versão mais comum para a origem da gorjeta remete à Inglaterra do século XVII: tip, em inglês, seria a sigla para a expressão "to insure promptitude", ou "para garantir prontidão".

Anna Paula Buchalla- Ilustrações Paladino



Todo mundo quer um serviço rápido e atencioso. Quando ele é oferecido, é natural que haja uma retribuição. A prática da gorjeta varia de país para país. Nos Estados Unidos e na França, por exemplo, ela é uma obrigação social: negar-se a dá-la num restaurante, por exemplo, é um ato de grosseria extrema. Já no Japão, oferecer gratificação em dinheiro a garçons ou taxistas é uma ofensa.

No Brasil, não existe obrigação implícita – mas a gorjeta é com frequência esperada. Há duas regras básicas. Primeiro, a bonificação depende da satisfação do cliente; se o serviço não agradou, não há por que gratificar.

Regra número 2: "Com exceção dos hotéis, caixinha antecipada não é gorjeta, é suborno", diz a consultora de etiqueta Elisabeth Guirao. Com a ajuda de entidades de classe e consultores de etiqueta, VEJA chegou a situações e valores que bonificam sem exagero – ou sem ofender quem prestou o serviço

NO RESTAURANTE

A quem dar: aos garçons

Quando dar: a maioria dos restaurantes inclui na conta a taxa de serviço, que, por falta de regulamentação, pode ser até maior do que os tradicionais 10% – o valor fica a critério do estabelecimento. Recentemente, criou-se uma polêmica sobre o destino da gorjeta nos bares e restaurantes. Há mais de 7 000 ações em todo o país propostas por funcionários que alegam que o dinheiro não seria repassado integralmente a eles.

Os donos dos estabelecimentos argumentam que parte da gorjeta serve para cobrir gastos de manutenção da casa, como louças quebradas. Outros afirmam que incorporam o valor no contracheque, o que os exoneraria do repasse direto. Enquanto a controvérsia não se resolve, a recomendação a quem quer ter certeza de que uma quantia extra vai para o bolso de garçons, cozinheiros e ajudantes é entregá-la, em dinheiro, a quem atendeu à mesa

Quanto dar: 10%

O que dizem as consultoras de etiqueta: o cúmulo da deselegância? Em festas de casamento, dar dinheiro ao garçom logo na chegada para garantir que não vai faltar nada à mesa

NO SALÃO DE BELEZA

A quem dar: a cabeleireiros, assistentes, manicures, depiladores, maquiadores. Caixinha para

os donos de salão, jamais. Nesse caso, o cliente pode optar por um presente em uma data especial, como aniversário ou Natal

Quando dar: sempre que for ao salão. Mas quem frequenta o mesmo salão toda semana pode substituir a gorjeta por um presentinho de vez em quando. Por exemplo, quando fizer uma viagem ao exterior, traga um esmalte ou uma escova diferente para o profissional. "Além do presente, ele se sentirá feliz por ter sido lembrado durante a viagem", diz a esteticista Maria Hellmeister, presidente do Sindebeleza, o sindicato da categoria em São Paulo

Quanto dar: 10% do serviço

O que dizem as consultoras de etiqueta: em vez de dar dinheiro a cada profissional que o atende, o cliente pode acrescentar os 10% à conta e especificar à recepcionista ou ao gerente como a gorjeta deve ser distribuída, sem constrangimento

NO HOTEL

A quem dar: a carregadores de malas e camareiras

Quando dar: sempre, no caso dos carregadores de malas. O valor deve ser proporcional ao esforço, considerando a quantidade de malas e a distância percorrida (uma mala pequena de rodinhas puxada da recepção para o elevador e dali para o quarto não é exatamente uma prova de resistência). Para as camareiras, deixe principalmente se permanecer por mais de uma semana hospedado

Quanto dar: em hotéis médios, 5 reais, e, nos luxuosos, entre 10 e 20 reais, tanto para carregadores quanto para camareiras. Para o concierge, a gorjeta pode partir de 10 reais e aumentar proporcionalmente ao favor que ele prestou

O que dizem as consultoras de etiqueta: no exterior, os funcionários de hotéis consideram uma obrigação dos hóspedes dar gorjeta. E não aceitam trocados. "Um carregador de malas de um hotel em Nova York ficou irritado e não aceitou os 3 dólares que ofereci", conta Ligia Marques

NO POSTO DE COMBUSTÍVEL

A quem dar: a frentistas e lavadores de carro

Quando dar: aos lavadores, sempre. O dinheiro extra vai para uma caixinha e é dividido entre eles no fim do dia. Quanto aos frentistas, dar ou não gorjeta depende do que é solicitado. Se o serviço for completo, com calibragem de pneus, limpeza do para-brisa e checagem do nível de óleo, ela é obrigatória e tem de ser mais polpuda.

Se o frentista só abastecer o tanque, o valor fica a critério do motorista. Em geral, se é um posto que se frequenta e o funcionário é conhecido do cliente, vale arredondar a conta. Em vez de deixar a caixinha no total pago no cartão, prefira dá-la em dinheiro. Nem sempre a gratificação é repassada ao funcionário

Quanto dar: 2 reais para abastecimento e até 10 reais quando o serviço é maior

O que dizem as consultoras de etiqueta: quem abastece sempre no mesmo estabelecimento não precisa deixar gorjeta todas as vezes que entra no posto. O cliente pode dar um valor menor de vez em quando e caprichar na caixinha de Natal

NO TÁXI

Quando dar: no Brasil, não é obrigatória. Se a conversa alongada do taxista não agradou, não há por que deixar-lhe um agrado. "É mais lucrativo o cliente voltar a pedir o mesmo táxi do que deixar uma gorjeta", diz Natalício Bezerra, presidente do Sindicato dos Taxistas de São Paulo

Quanto dar: arredondar o valor da corrida para cima agrada duas vezes: facilita o troco e engorda a caixinha

O que dizem as consultoras de etiqueta: embora a gorjeta aos taxistas brasileiros não seja comum, em muitos países ela é quase obrigatória. O valor gira em torno de 10%. "Nos Estados Unidos, taxistas de Nova York esperam receber entre 15% e 20% do valor da corrida", diz Claudia Matarazzo

EM CASA

A quem dar: a entregadores de pizza e outras refeições

Quando dar: sempre. Além do salário baixo, o entregador embolsa apenas 50% da taxa de entrega quando ela é cobrada. A outra metade fica com a empresa ou cooperativa de motoboys contratada pela pizzaria ou pelo restaurante

Quanto dar: entre 2 e 5 reais

O que dizem as consultoras de etiqueta: não convém economizar em gorjetas a motoboys. É um trabalho eficiente – difícil, corrido e arriscado. Segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Motociclistas da Cidade de São Paulo (Sindimoto), Aldemir Martins de Freitas, moradores da periferia dão mais gorjetas do que os de bairros nobres. "Eles são mais solidários", afirma

NO SUPERMERCADO

A quem dar: aos empacotadores

Quando dar: sempre, a não ser que a compra seja pequena, com menos de dez produtos. Se o volume é maior e o empacotador leva as compras para o carro ou para casa, retribua a ajuda

Quanto dar: entre 2 e 10 reais

O que dizem as consultoras de etiqueta: algumas redes de supermercados contratam idosos para empacotar as compras e ajudar o cliente a levá-las para o carro. Nesse caso, não economize na gorjeta

NO ESTACIONAMENTO

A quem dar: a manobristas de estacionamentos e serviços de valet

Quando dar: os manobristas não costumam esperar gorjetas, portanto o agrado sempre é bem recebido. "Quando o manobrista é gentil e atencioso, é simpático retribuir com uma gorjeta mais generosa", diz Ligia Marques

Quanto dar: de 1 a 2 reais nos estacionamentos pagos e entre 3 e 5 reais nos serviços gratuitos

O que dizem as consultoras de etiqueta: a gorjeta pode ser uma forma de ser sempre bem atendido naqueles lugares em que o cliente é reconhecido pela frequência das visitas


A casa caiu

O Ministério Público quebra sigilo da Bancoop e descobre que dirigentes da Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo lesaram milhares de associados, para montar um esquema de desvio de dinheiro que abasteceu a campanha de Lula em 2002 e encheu os bolsos de dirigentes do PT. Eles sacaram ao menos 31 milhões de reais na boca do caixa

Laura Diniz - Montagem sobre foto Jose Meirelles Passos/ Ag. O Globo


NÃO É SÓ A BARBA QUE LEMBRA O ANTECESSOR
João Vaccari, o novo tesoureiro do PT, é o homem por trás do esquema Bancoop, diz o Ministério Público

Depois de quase três anos de investigação, o Ministério Público de São Paulo finalmente conseguiu pôr as mãos na caixa-preta que promete desvendar um dos mais espantosos esquemas de desvio de dinheiro perpetrados pelo núcleo duro do Partido dos Trabalhadores: o esquema Bancoop. Desde 2005, a sigla para Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo virou um pesadelo para milhares de associados.

Criada com a promessa de entregar imóveis 40% mais baratos que os de mercado, ela deixou, no lugar dos apartamentos, um rastro de escombros.

Pelo menos 400 famílias movem processos contra a cooperativa, alegando que, mesmo tendo quitado o valor integral dos imóveis, não só deixaram de recebê-los como passaram a ver as prestações se multiplicar a ponto de levá-las à ruína (veja depoimentos abaixo). Agora, começa-se a entender por quê.

Na semana passada, chegaram às mãos do promotor José Carlos Blat mais de 8 000 páginas de registros de transações bancárias realizadas pela Bancoop entre 2001 e 2008. O que elas revelam é que, nas mãos de dirigentes petistas, a cooperativa se transformou num manancial de dinheiro destinado a encher os bolsos de seus diretores e a abastecer campanhas eleitorais do partido.

"A Bancoop é hoje uma organização criminosa cuja função principal é captar recursos para o caixa dois do PT e que ajudou a financiar inclusive a campanha de Lula à Presidência em 2002."

Na sexta-feira, o promotor pediu à Justiça o bloqueio das contas da Bancoop e a quebra de sigilo bancário daquele que ele considera ser o principal responsável pelo esquema de desvio de dinheiro da cooperativa, seu ex-diretor financeiro e ex-presidente João Vaccari Neto.

Vaccari acaba de ser nomeado o novo tesoureiro do PT e, como tal, deve cuidar das finanças da campanha eleitoral de Dilma Rousseff à Presidência.

Um dos dados mais estarrecedores que emergem dos extratos bancários analisados pelo MP é o milionário volume de saques em dinheiro feitos por meio de cheques emitidos pela Bancoop para ela mesma ou para seu banco: 31 milhões de reais só na pequena amostragem analisada.

O uso de cheques como esses é uma estratégia comum nos casos em que não se quer revelar o destino do dinheiro. Até agora, o MP conseguiu esquadrinhar um terço das ordens de pagamento do lote de trinta volumes recebidos.

Metade desses documentos obedecia ao padrão destinado a permitir saques anônimos. Já outros cheques encontrados, totalizando 10 milhões de reais e compreendidos no período de 2003 a 2005, tiveram destino bem explícito: o bolso de quatro dirigentes da cooperativa, o ex-presidente Luiz Eduardo Malheiro e os ex-diretores Alessandro Robson Bernardino, Marcelo Rinaldo e Tomas Edson Botelho Fraga – os três primeiros mortos em um acidente de carro em 2004 em Petrolina (PE).

Eles eram donos da Germany Empreiteira, cujo único cliente conhecido era a própria Bancoop. Segundo o engenheiro Ricardo Luiz do Carmo, que foi responsável por todas as construções da cooperativa, as notas emitidas pela Germany para a Bancoop eram superfaturadas em 20%.

A favor da empreiteira, no entanto, pode-se dizer que ela ao menos existia de fato. De acordo com a mesma testemunha, não era o caso da empresa de "consultoria contábil" Mizu, por exemplo, pertencente aos mesmos dirigentes da Bancoop e em cuja contabilidade o MP encontrou, até o momento, seis saídas de dinheiro referentes ao ano de 2002 com a rubrica "doação PT", no valor total de 43 200 reais. Até setembro do ano passado, a lei não autorizava cooperativas a fazer doações eleitorais.

Outro frequente agraciado com cheques da Bancoop tornou-se nacionalmente conhecido na esteira de um dos últimos escândalos que envolveram o partido. Freud "Aloprado" Godoy – ex-segurança das campanhas do presidente Lula, homem "da cozinha" do PT e um dos pivôs do caso da compra do falso dossiê contra tucanos na campanha de 2006 – recebeu, por meio da empresa que dirigia até o ano passado, onze cheques totalizando 1,5 milhão de reais, datados entre 2005 e 2006.

Nesse período, a Caso Sistemas de Segurança, nome da sua empresa, funcionava no número 89 da Rua Alberto Frediani, em Santana do Parnaíba, segundo registro da Junta Comercial.

Vizinhos dizem que, além da placa com o nome da firma, nada indicava que houvesse qualquer atividade por lá. O único funcionário visível da Caso era um rapaz que vinha semanalmente recolher as correspondências num carro popular azul. Hoje, a Caso se transferiu para uma casa no município de Santo André, na região do ABC.

Depoimentos colhidos pelo MP ao longo dos últimos dois anos já atestavam que o dinheiro da Bancoop havia servido para abastecer a campanha petista de 2002 que levou Lula à Presidência da República (veja o quadro).

VEJA ouviu uma das testemunhas, Andy Roberto, que trabalhou como segurança da Bancoop e de Luiz Malheiro entre 2001 e 2005. Em depoimento ao MP, Roberto afirmou que Malheiro, o ex-presidente morto da Bancoop, entregava envelopes de dinheiro diretamente a Vaccari, então presidente do Sindicato dos Bancários e indicado como o responsável pelo recolhimento da caixinha de campanha de Lula.

Em entrevista a VEJA, Roberto não repetiu a afirmação categoricamente, mas disse estar convicto de que isso ocorria e relatou como, mesmo depois da eleição de Lula, entre 2003 e 2004, quantias semanais de dinheiro continuaram saindo de uma agência Bradesco do Viaduto do Chá, centro de São Paulo, supostamente para o Sindicato dos Bancários, então presidido por Vaccari.

"A gente ia no banco e buscava pacotes, duas pessoas escoltando uma terceira." Os pacotes, afirmou, eram entregues à secretária de Luiz Malheiro, que os entregava ao chefe. "Quando essas operações aconteciam, com certeza, em algum horário daquele dia, o Malheiro ia até o Sindicato dos Bancários. Ou, então, se encontrava com o Vaccari em algum lugar."

Os depoimentos colhidos pelo MP indicam que o esquema de desvio de dinheiro da Bancoop obedeceu a uma trajetória que já se tornou um clássico petista.

Começou para abastecer campanhas eleitorais do partido e acabou servindo para atender a interesses particulares de petistas. Entre os cheques em poder do MP, por exemplo, está um em que a empresa Mizu, de "consultoria contábil", doa 7 000 reais a um certo Centro Espírita Redenção, em 2003.

Muitas vezes, dirigentes da Bancoop nem se preocuparam em usar as empresas "prestadoras de serviços" que montaram com o objetivo de sugar a coo-perativa para esconder sua ganância. O MP encontrou quatro cheques da Bancoop, totalizando 35 000 reais, para uma ONG de Luiz Malheiro em São Vicente dedicada a deficientes auditivos – curiosamente, o mesmo endereço do centro espírita. Os cheques foram emitidos entre novembro de 2003 e março de 2005.

Tanta lambança, aliada a uma gestão ruinosa, fez com que a Bancoop mergulhasse num estado de pré-liquidação. Em 2004, com Lula já eleito, Luiz Malheiro foi pedir ao "chefe" Berzoini, então ministro do Trabalho, "ajuda" para reerguer a cooperativa.

Quem relatou o episódio ao MP foi seu irmão, Hélio Malheiro. Em 2008, dizendo-se sob ameaça de morte, Hélio Malheiro ingressou no Programa de Proteção à Testemunhas da secretaria estadual de justiça de São Paulo, no qual se encontra até hoje. Em dezembro de 2004, depois que Luiz Malheiro já havia morrido, a "ajuda" chegou à Bancoop.

Com apoio de Berzoini e corretagem da Planner (investigada pela CPI dos Correios sob a acusação de ter causado um prejuízo de 4 milhões de reais ao fundo de pensão da Serpro), a cooperativa associou-se a um Fundo de Investimentos em Direito Creditórios (FIDC), entidade que negocia recebíveis, e captou 43 milhões de reais no mercado – 85% dos papéis foram adquiridos por fundos de pensão de estatais controlados por petistas ligados ao grupo de Berzoini e Vaccari.

O investimento resultou na abertura de um inquérito pela Polícia Federal por suspeita de que os fundos de pensão teriam sido prejudicados para favorecer a Bancoop.

O PROMOTOR BLAT
"A Bancoop virou organização criminosa"

João Vaccari Neto é do tipo que se orgulha de ser chamado de "um petista histórico", o que, no jargão do partido, significa, entre outras coisas, que ganhou boa parte da vida dirigindo entidades de classe e do partido. Aos 19 anos, começou a trabalhar como escriturário do Banespa. Ficou lá apenas dois anos. Depois disso, entrou no sindicato de sua categoria e nunca mais pegou no pesado.

Participou de três diretorias da Central Única dos Trabalhadores (CUT), foi secretário de relações internacionais da entidade e presidiu o Dieese. Atuou sempre como braço de apoio de Berzoini, a quem sucedeu na presidência do Sindicato dos Bancários de São Paulo em 1998. Apesar de não ter a projeção política do amigo, Vaccari conquistou a amizade de Lula, coisa que Berzoini jamais conseguiu obter.

Vaccari, como mostra agora a investigação do MP, tem mais em comum com seu antecessor, Delúbio Soares, do que a barba grisalha. E, como Freud Godoy, está mergulhado até os últimos e ralos fios de cabelo no escândalo dos aloprados (veja o quadro abaixo).

Há duas semanas, um juiz de primeira instância contrariou de-cisão do Tribunal Superior Eleitoral e determinou a cassação do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, por suposto recebimento ilegal de doação de campanha.

A sentença, que colocou em risco a segurança jurídica, foi suspensa. Na semana passada, o TSE divulgou as regras que vão orientar as eleições deste ano. São medidas moralizadoras, que incluem a obrigatoriedade da divulgação de quaisquer processos ou acusações criminais que pesem sobre o candidato e que dificultam manobras de doadores que tenham por finalidade esconder a origem do dinheiro.

Tudo isso mostra quanto o país está interessado em aprimorar seu sistema de financiamento eleitoral e proteger-se dos efeitos tão deletérios como conhecidos que sua distorção pode causar. Ao indicar pessoalmente alguém com o prontuário de João Vaccari para tomar conta das finanças do PT e da campanha eleitoral de Dilma Rousseff, o presidente Lula sinaliza que, ao contrário do resto do Brasil, não está nem um pouco empenhado em colaborar na faxina.

Uma pergunta que continua no ar

Quem deu o dinheiro para o dossiê dos aloprados? Entre os envolvidos, Vaccari era o único sentado numa montanha de reais
Patricia Santos/AE


A TROCO DE QUÊ?

Lacerda (à dir.) ligou para Vaccari uma hora depois de entregar o dinheiro que pagaria o dossiê

João Vaccari Neto e Freud Godoy, envolvidos agora no esquema Bancoop, já atuaram juntos em passado recente. Pelo menos é o que sugere o registro dos telefonemas trocados pela dupla às vésperas do estouro do escândalo dos "aloprados" – como ficaram conhecidos os petistas apontados pela Polícia Federal como integrantes da quadrilha que tentou comprar um dossiê supostamente comprometedor para tucanos durante a campanha presidencial de 2006.

No caso de Vaccari, então presidente da Bancoop, os vestígios de participação no caso guardam cheiro de tinta fresca. Foi para ele que Hamilton Lacerda – na ocasião coordenador de comunicação da campanha do senador Aloizio Mercadante – telefonou uma hora antes de fazer a entrega de parte do 1,7 milhão de reais que seria usado para comprar o dossiê.

O episódio teve início quando a família de Luiz Antônio Vedoin, chefe da máfia dos sanguessugas, ofereceu a petistas documentos que supostamente comprometeriam tucanos.

Deles, faria parte uma entrevista em que os Vedoin acusariam o candidato do PSDB, José Serra, de envolvimento na máfia que distribuía dinheiro a políticos em troca de emendas ao Orçamento para compras de ambulância. Ricardo Berzoini, então presidente do PT, foi acusado de ter dado a autorização para a compra do dossiê.

Valdebran Padilha da Silva, filiado ao PT do Mato Grosso, e Gedimar Pereira Passos, advogado e ex-policial federal, seriam os encarregados de pagar os Vedoin com o dinheiro levado por Hamilton Lacerda.

Valdebran e Gedimar foram presos pela PF num hotel Íbis, em São Paulo, depois de terem recebido o dinheiro de Lacerda e antes de entregá-lo aos Vedoin. Jorge Lorenzetti, churrasqueiro do presidente Lula, e Oswaldo Bargas, ex-secretário de Berzoini no Ministério do Trabalho, também estiveram envolvidos no episódio.

Eles tentaram negociar com a revista Época uma entrevista em que os Vedoin fariam falsas acusações de corrupção contra Serra. A entrevista acabou sendo publicada pela revista Istoé.

Nas investigações que se seguiram à prisão de Valdebran e Gedimar, a PF identificou uma intensa troca de telefonemas entre os envolvidos, incluindo diversas ligações de Berzoini para a empresa Caso Sistemas de Segurança, hoje em nome da mulher de Freud Godoy. Godoy seria o contato de Gedimar no alto escalão do PT.

Quanto a Vaccari, bem, até onde se sabe, era o único dos aloprados que estava sentado sobre uma montanha de dinheiro, a Bancoop. O fato de Hamilton Lacerda ter ligado para ele logo depois de ter cumprido a sua missão faz fervilhar a imaginação dos que até hoje se perguntam: de onde, afinal, veio o dinheiro dos aloprados?


06 de março de 2010 | N° 16266
NILSON SOUZA


Me leia!

Encontro na Redação o doutor Scliar, recém chegado de sua atividade física diária, pois a imortalidade literária não garante longa vida a ninguém – a não ser aos personagens da boa ficção, da qual ele é mestre. Pergunto-lhe como vai o mundo dos livros. Sua resposta é de um realismo desconcertante:

– Os escritores estão vivendo de palestras.

Logo relaciono a observação do nosso acadêmico com a atual crise da leitura, hoje uma das grandes preocupações de quem trabalha em mídia impressa. E imagino em voz alta o que esses escritores-palestrantes devem pensar:

– Já que ninguém nos lê, que pelo menos nos ouçam.

Claro que exagero. Algumas pessoas continuam lendo livros e jornais, sim, embora sem a voracidade de outros tempos. O tempo, exatamente ele, é o grande vilão dessa história de desencanto.

Quem ainda consegue separar uma ou duas horas de seu dia para mergulhar nas páginas de um romance? Descartadas as exceções, que sempre as temos, inclusive aquelas que provavelmente me xingarão por generalizar, são cada vez mais raras as pessoas que trocam o biguebróder ou o computador pela literatura.

Se a televisão já fez muita gente tirar a estante de livros da sala, as novas gerações e suas maquininhas digitais parecem estar preparando o epitáfio do texto impresso. Com um máximo de 140 caracteres, pois mais do que isso já fica cansativo.

O que me preocupa é exatamente isso: a cultura da superficialidade. Outro dia fiquei duplamente triste quando li a notícia da morte de José Mindlin, o mais célebre bibliófilo brasileiro. Bibliófilo, não é preciso googlar, é um apaixonado por livros.

Pois bem, além da consternação pelo desembarque do nosso planeta de um passageiro tão simpático, fiquei pensando na solidão de uma biblioteca com milhares de volumes arrecadados ao longo de uma vida.

Quem irá visitá-los? Quem irá folheá-los, acariciar suas lombadas, percorrer seus índices à procura do capítulo mais interessante ou identificar nas dedicatórias os amores do autor? Talvez os livros de Mindlin, mesmo os doados, tenham ficado irremediavelmente órfãos.

E a seus autores não restará outra alternativa a não ser falar sobre suas obras, exibi-las em palestras, gritá-las em praça pública como se fossem mascates das letras. Alguém haverá de ouvir este grito desesperado:

– Me leia!

Para isso, o mínimo que se exige é uma boa forma física – como ensina o imaginoso autor do Manual da Paixão Solitária, que não é exatamente a literatura.


Renato Stockler

Como se forma um bom aluno

Todo pai quer que seu filho vá bem na escola. Só querer não basta. A seguir, duas lições de crianças que se destacam nos estudos

UMA HISTÓRIA FELIZ


Pedro Manzaro lê um livro na biblioteca do colégio. Ele tinha dificuldades na escola. Recuperou-se graças ao gosto pela leitura

Não há pai ou mãe que não sonhe com isso: que seu filho vá bem na escola, encontre uma vocação e faça sucesso. É por isso que os pais brasileiros, ouvidos em uma pesquisa do Movimento Todos pela Educação, disseram participar com afinco da vida escolar de seus filhos.

Essa participação, porém, tem suas falhas – como mostra um detalhamento da pesquisa de 2009, feito com exclusividade para ÉPOCA. Em alguns casos, há falta de tempo (a queixa mais comum de quem tem filho em escola particular). Em outros, o principal obstáculo é o desconhecimento do conteúdo ensinado (para quem tem filho em escola pública).

A pesquisa também detectou conceitos ultrapassados de como impulsionar o conhecimento. A maioria dos pais presta demasiada atenção às notas e preocupa-se menos em estimular a leitura ou acompanhar se a criança está aprendendo.

Em outras palavras: há mais cobrança que incentivo. É como se os pais considerassem que sua tarefa principal é garantir o acesso à escola – a partir daí, a responsabilidade seria dos professores. Isso é pouco, principalmente num país que não tem avançado satisfatoriamente na área da educação.

O nível de ensino das escolas brasileiras, mesmo as de elite, é baixo, na comparação com os países mais avançados. Um relatório do Ministério da Educação, ainda incompleto, mostra que atingimos apenas um terço das metas do Plano Nacional de Educação, entre 2001 e 2008. A evasão escolar no ensino médio aumentou de 5% para 13%. Só 14% dos jovens estão na universidade. Menos de um quinto das crianças até 3 anos frequenta creches.

E, no entanto, há ilhas de excelência. Há alunos brilhantes, curiosos, esforçados, interessados, capazes. Não estamos falando de superdotados.

São meninos e meninas comuns, de colégios públicos e particulares, pobres ou ricos, que vão para a escola e... aprendem. Mais: formam-se. Estão no caminho de se tornar cidadãos melhores, pessoas melhores, gente de sucesso. Fazer com que uma criança seja assim não está inteiramente ao alcance dos pais.

Pesquisas mundiais mostram que o envolvimento paterno responde por, no máximo, 20% da nota final. O restante seria determinado pela qualidade da escola, a relação com os professores, a influência dos colegas e, claro, seu próprio talento. Mas há, em cada um desses fatores, também uma influência dos pais.

Cabe a eles analisar a escola, monitorar os professores, perceber o ambiente em que seu filho vive, estimular-lhe os talentos naturais. Talvez não seja possível fabricar bons alunos. Mas, como atestam as experiências dos garotos e das garotas desta reportagem, há boas receitas para ajudá-los a descobrir esse caminho.

O PRAZER DE APRENDER

BRINCADEIRA

Guilherme e seus dinos, em uma praça. A paixão ensina a pesquisar e tirar conclusões


Guilherme Ortolan, de 9 anos, tem dificuldade de passar para a próxima fase. Não na escola. Essa ele tira de letra. O problema de Guilherme é que, quando joga um de seus games preferidos com o pai, esquece o objetivo.

“Ele para o jogo para me dizer que a classificação de um dos bichos na tela está errada: aquele dinossauro não pode ser herbívoro e viver naquela parte da floresta se tem dentes tão pontiagudos, típicos dos carnívoros”, diz o pai, também Guilherme. A paixão do menino pelos dinossauros começou cedo. Ele nem era alfabetizado. Os pais souberam estimular seu interesse.

Começaram comprando lagartos de brinquedo. Depois vieram os livros. E as pesquisas na internet. E os recortes de jornais e revistas (muitos deles presenteados pelos professores). A família inteira ficou envolvida pela mania, e Guilherme acabou virando “especialista”. Quando vai brincar com seus dinossauros, ele os organiza por período geológico. Ou por hábitos alimentares.

Esse processo mostra como uma paixão ajuda a estimular a criatividade, ensina a pesquisar por conta própria, tirar conclusões, fazer conexões. Se os pais e professores não sabem reconhecer e estimular as paixões naturais das crianças, se insistem para ela “largar de bobagens e se concentrar no que é sério”, inibem o aprendizado, em vez de promovê-lo.

Com Guilherme, aconteceu o contrário. “O repertório dele é superior ao dos colegas”, diz Maria Isabel Gaspar, coordenadora pedagógica da escola em que ele estuda, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. “Não são raras as vezes em que ele já tem informações sobre o que está sendo ensinado na sala de aula.”

Esse tipo de aluno – capaz de fazer associações e reflexões mais sofisticadas – as melhores universidades do país procuram. Em seus vestibulares, elas evoluíram da cobrança de acúmulo de informações para a capacidade de solucionar problemas. O Enem, a prova unificada de seleção aplicada pelo Ministério da Educação, segue a mesma linha.


06 de março de 2010 | N° 16266
CLÁUDIA LAITANO


Um dia cor-de-rosa

Boa parte das homenageadas sente uma certa gastura quando ouve falar em Dia Internacional das Mulheres. E não sem motivo. Vocês, rapazes, não têm ideia da quantidade de rosas acompanhadas por “pensamentos” que abarrotam nossas caixas de e-mail durante estes dias.

Corações, borboletas, imagens do pôr do sol e todos os matizes de tons que vão do rosa-bebê ao roxo-funeral também costumam ser convocados a fazer cenário para as frases feitas que celebram o fato de que metade da humanidade é de um jeito e não de outro.

Mas nada ameaça o predomínio da rosa, esse clichê botânico do amor, da doçura, da fragilidade – e agora também do Dia das Mulheres. Diante de uma pérola de sabedoria pousada sobre uma rosa vermelha em fundo degradê, não é preciso estar na TPM ou ter um coração de Margaret Thatcher para sair deletando mensagens na velocidade de um beijo-me-liga. (Pronto, falei.)

Mas esse é, literalmente, o lado “perfumaria” da data. Podem me mandar rosas, dentro de corações, dentro de rosas e toda a obra poética de J. G. de Araújo Jorge embrulhada em uma caixa de bombons de licor de cereja que eu não vou achar que a data deveria ser extinta do calendário para efeito de igualdade entre os sexos.

(O que, aliás, é um equívoco, porque existe, sim, um Dia do Homem, comemorado no Brasil em 15 de julho, não me perguntem por que, e no resto do mundo em 19 de novembro. A data, já reconhecida pela ONU, tem como um dos “padrinhos” o ex-líder soviético Mikhail Gorbachev. Que tal essa?)

Mas voltando ao Dia das Mulheres, a data talvez possa, sim, ser encarada como uma xaropice sem tamanho para quem mora na Islândia – país que lidera um ranking mundial de igualdade dos sexos em áreas como educação, política, saúde e trabalho.

Mas quem está na 81ª posição, como o Brasil, ainda não está podendo afetar um ar blasé de quem mora em uma quitinete de marfim. Minha tese é a seguinte: o verdadeiro objetivo do Dia das Mulheres não é obrigar os homens a nos mandar flores e má poesia ou fazer com que mulheres que ralam o dia inteiro para sustentar uma penca de filhos sem um pai por perto se sintam de alguma forma especiais pelo menos uma vez por ano.

O Dia das Mulheres deveria servir para que nós, as que tiveram as mesmas oportunidades que seus irmãos, seus maridos, seus chefes, parássemos para pensar um pouco na desigualdade dentro do nosso próprio gênero.

Temos, aqui, a Islândia e o Chade, a cientista de ponta e a mulher que aborta com uma agulha de tricô e vai sozinha, e com medo, para a fila do hospital público esperar atendimento.

A luta pela descriminalização do aborto (um passo decisivo para tirar o Brasil da indesejável companhia dos países mais atrasados do mundo), o combate à violência doméstica e o esforço para que mulheres e homens recebam salários semelhantes pelas mesmas tarefas não formam uma plataforma “feminina”, mas de direitos humanos.

Qualquer homem lúcido está do nosso lado nessas batalhas. Mas, me perdoem o sexismo, nessa guerra somos nós os generais: mulheres empresárias, mulheres que atuam na política, mulheres que têm espaço na imprensa, mulheres que, de uma forma ou de outra, atuam na sociedade civil e podem fazer alguma diferença.

O Dia das Mulheres serve para que a gente fale, sempre e mais uma vez, exatamente sobre tudo aquilo que não é cor-de-rosa.

quarta-feira, 3 de março de 2010



03 de março de 2010 | N° 16263
MARTHA MEDEIROS


Em memória de José Mindlin

Ainda não vi o filme Preciosa, que concorre ao Oscar, mas li o livro e só não o hiperfestejo porque implico um pouco com textos escritos propositadamente errados – narrado na primeira pessoa, a personagem é analfabeta e é “nóis fumo” e “tô lavando os prato” da primeira à última página, mas entendo que sem esse naturalismo o relato soaria inverossímil e a reação à leitura não teria o mesmo impacto.

Preciosa dói. E, quando o livro acaba, a gente mais uma vez se conscientiza de que não precisaria doer.

Educação segue sendo a melhor terapia para a saúde mental de uma pessoa. A personagem do livro engravidou do próprio pai aos 12 anos, é abusada também pela mãe e aos 16 está grávida de novo, do pai de novo.

Só o que conhece da vida é isso: abuso e violência. Nunca ouviu uma única palavra doce em sua brutal adolescência. É feia, gorda, pobre, negra e sem estudo. Um personagem como os que existem às pencas no Brasil, ainda que Clareece Precious Jones, a Preciosa, seja americana – o que não torna sua desgraça menor.

Pra cada um de nós foi designado um anjo. Cabe a nós reconhecê-lo e permitir que ele nos ajude. O anjo de muitos brasileiros foi José Mindlin, um devoto dos livros e incentivador da cultura que faleceu domingo passado aos 95 anos.

O anjo de Precious foi uma professora sem medo de desafios. O livro não acaba com Precious ganhando o prêmio Nobel de Literatura, mas mostra a porta, a única porta, pela qual todos devem passar caso queiram ser alguém.

O tocante da história é ver uma menina começar a ter acesso a algo absolutamente mágico: a união de duas letras, três letras, quatro letras, e isso se transformar numa palavra, e essa palavra dar sentido ao que ela não sabia até então como identificar.

E então perceber os direitos que lhe roubaram na infância e desejar voltar no tempo pra experimentar a vida como ela deveria ter sido. Só que ninguém pode voltar para onde nunca esteve. Ela terá que carregar para sempre o massacre que sofreu por ter dois brutamontes ignorantes como pais e tentar transformar essa chance de crescer, que está recebendo, em um futuro minimamente decente. É possível?

Se através da autovalorização não for possível, então de nenhum outro jeito será.

Imagino o desespero de alguém que deseja retornar ao ponto de partida, recriar suas experiências, vivenciar o que lhe foi sonegado, mas que não pode. Porém, um dia a gente acorda, os livros nos acordam, um anjo nos acorda, e somos avisados: não adianta mais olhar para trás. É ir em frente ou nada.

Tem um monte de gente preciosa por aí que a gente não enxerga, que não recebe de nós um incentivo. O prólogo do livro traz uma frase que diz: Toda folha de grama tem seu anjo que se curva sobre ela e sussurra: “Cresce, cresce”.

Tivemos a sorte de nascer em famílias que nos ofereceram uma certa estrutura, que nos possibilitaram estudar e crescer – já nascemos arbustos. Poderíamos retribuir sendo, para as folhas de grama, o anjo que sussurra.

terça-feira, 2 de março de 2010



02 de março de 2010 | N° 16262
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O adorno da dama

Uma amiga conta que, tendo levantado de madrugada para tomar um copo d’água, encontrou na porta do quarto uma mulher desconhecida, que a fitava fixamente. Era bem jovem e vestia uma espécie de camisola branca.

A opaca claridade que vinha da rua lhe permitiu notar que tinha feições delicadas, pele muito alva, corpo esguio e portava uma espécie de adorno que lhe pendia sobre o peito. Minha amiga perguntou-lhe quem era e o que fazia ali, mas a única resposta que obteve foi um olhar ainda mais fixo e determinado.

Ergueu então a mão para tocar no adorno, como para certificar-se de que não estava sonhando, mas a mulher simplesmente desapareceu. Acendeu a luz e a única coisa que encontrou foi um suavíssimo perfume, mais intenso no exato lugar onde estivera a visão.

Aí saiu pela casa ligando as outras luzes, já esquecida do copo d’água. Tudo estava na mais perfeita paz. Voltou para o quarto, deitou-se, mas não conseguiu mais adormecer.

O que eu achava disso tudo?

Eu não achava nada. Shakespeare escreveu no Ato I de Hamlet que há no céu e na terra bem mais coisas do que sonhou jamais nossa vã filosofia.

Eu sequer sou filósofo. No máximo não passo de um curioso das coisas do céu e da terra.

Devo confessar por isso mesmo que a estranha história da dama do adorno não foi a única que ouvi. Eu mesmo incluí, no primeiro dos livros que escrevi, uma crônica chamada O Quarto da Escada, que é, da primeira à última linha, todo um testemunho de inteira verdade.

Não pretendo que ninguém acredite nele. Mas ao mesmo tempo me pergunto se o mundo não seria bem mais desgracioso na ausência de causos em torno do sobrenatural.

Até mesmo porque essas narrativas raramente se contêm em si próprias. Foi aliás o que sucedeu com a história com que comecei estas linhas.

Pois ocorrendo que, no dia seguinte ao da aparição, se determinasse a trocar toda a roupa de cama, para afastar cada lembrança do insólito incidente, minha amiga achou sobre o travesseiro vizinho ao seu um visitante inteiramente inesperado.

O adorno da dama que a fitara fixamente e que, como ela, desapareceu em segundos.

Uma gostosa terça-feira. Aproveite o dia

sábado, 27 de fevereiro de 2010



Sorte madrasta

Trinta e oito gaúchos acertaram na Mega-Sena, mas não ganharam nada. A lotérica não registrou a aposta

Igor Paulin - Miro de Souza/Ag. RBS/Ag. O Globo
AZAR NO JOGO

Apostadores protestam na lotérica Esquina da Sorte. Parte deles irá à Justiça para receber o prêmio

Trinta e oito moradores de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, dedicaram a comemorações a noite do sábado 20 de fevereiro. Eles haviam comprado cotas de um bolão feito pela lotérica Esquina da Sorte para a Mega-Sena – e acertaram as dezenas sorteadas.

Depois de conferir o resultado, Roberto Hoffman, um corretor de seguros de 52 anos, beijou a mulher, prometeu dar um imóvel a cada um de seus cinco filhos, quitar sua casa e comprar um carro com ar-condicionado. Como o prêmio total chegava a 53 milhões de reais, Hoffman calculou que receberia 1,3 milhão de reais.

Mesmo com uma aposta alta, de 440 reais, como a feita no bolão, a chance de acerto na Mega-Sena é ínfima: 1 em 758 000. "Acordei milionário no domingo", lembra Hoffman.

Mas então Eliana, sua mulher, resolveu visitar o site da Caixa Econômica Federal. Percebeu que havia algo errado ao constatar que o banco não assinalara acertadores e que o prêmio havia acumulado.

"Fui à lotérica reclamar e encontrei uma cambada de gente na minha situação", disse o corretor. A Esquina da Sorte não havia registrado os bilhetes. O dono do estabelecimento, José Paulo Abend, tornou-se suspeito de estelionato.
Ag. RBS/Ag. O Globo

ESQUINA DA URUCA

O dono da lotérica, José Paulo Abend, comprou três cotas, perdeu o prêmio e é suspeito
de estelionato

A polícia investiga se ele vendia bolões sem inscrevê-los nos computadores da Caixa, para embolsar o dinheiro dos fregueses. Abend diz ter comprado três das cotas do bolão e que, portanto, foi o maior prejudicado. O empresário atribui o erro a sua funcionária Diane Samar da Silva, que teria se esquecido de registrar os bilhetes.

Para provar sua versão, ele entregou à polícia um vídeo feito pela câmera de segurança da loja. O filme mostra Diane, que também entrou no bolão, indo à casa lotérica para conferir o jogo logo depois da realização do sorteio. Lá, ela constatou seu descuido.

Uma parte dos lesados exige que a Caixa lhes pague o prêmio. "Vou à Justiça", avisa Josmari Peixoto, que advoga para 22 apostadores. Ela argumenta que as lotéricas funcionam como extensões do banco, já que nelas é possível fazer operações como depósitos, saques e pagamentos de contas.

Em sua defesa, a Caixa afirma que as lotéricas não estão autorizadas a vender bolões, ainda que essa seja uma prática disseminada. Três dias depois da confusão, a sorte voltou a Novo Hamburgo.

Na quarta-feira, um apostador acertou cinco das seis dezenas da Mega-Sena e recebeu 21 000 reais. Ele comprou o bilhete em outra lotérica. A Esquina da Sorte foi fechada pela Caixa.

Lya Luft

Alegres e ignorantes

"Estar informado e atento é o melhor jeito de ajudar a construir a sociedade que queremos, ainda que sem ações espetaculares"
Ilustração Atômica Studio

Há fases em que, inquieta, eu talvez aponte mais o lado preocupante da vida. Mas jamais esqueço a importância do bom humor, que na verdade me caracteriza no cotidiano, mais do que a melancolia. Meu amado amigo Erico Verissimo certa vez me disse: "Há momentos em que o humor é até mais importante do que o amor".

Eu era muito jovem, na hora não entendi direito, mas a vida me ensinou: nem o amor resiste à eterna insatisfação, à tromba assumida, às reclamações constantes, à insatisfação sem tréguas. Bom humor zero. Desperdício de vida: acredito que, junto com dinheiro, sexo e amor, é a alegria que move o mundo para o lado positivo. Ódio, indignação fácil, rancores e inveja – e nossa natureza predadora – promovem mediocridade e atos cruéis.

Quando, seja na vida pessoal, seja como cidadãos ou habitantes deste planeta, a descrença e o desalento rosnam como animais no escuro no meio do mato, uma faísca de bom humor clareia a paisagem. Mas há coisas que nem todo o bom humor do mundo resolveria num riso forçado. Como senti ao ler, numa dessas pesquisas entre esclarecedoras e assustadoras (quando vêm de fonte confiável), que mais de 30% da nossa chamada elite é de uma desinformação avassaladora.

Aqui o termo "elite" não tem a ver com aristocracia, roupa de grife, apartamento em Paris ou décima recostura do rosto, mas com a gente pensante. A que usa a cabeça para algo além de separar orelhas. Pois, segundo a pesquisa, entre nós a imensa maioria dos ditos pensantes não consegue dizer o nome de um só ministro desta nossa República. Senadores, nem falar.

A turma que completa o 2º grau, que faz faculdade, que tem salário razoável, conta no banco, deveria ser a informada. Essa que não precisa comprar carro em noventa meses e deixar de pagar depois de quatro. A elite que consegue viajar conhece até algo do mundo, e poderia ter uma pequena biblioteca em casa.

Em geral, não tem. Com sorte, lê jornal, assiste a boas entrevistas e noticiosos daqui e de fora, enfim, é gente do seu tempo. Para isso não se precisa de muita grana, acreditem. Mesmo assim, essa elite é pouco interessada numa realidade que afinal é dela.

Resolvi testar a mim mesma: nomes de ministros atuais desta nossa República. Cheguei a meia dúzia. São quase quarenta. Então começo a bater no peito, em público, aliás. Num país onde mais da metade dos habitantes são analfabetos, pois os que assinam o nome não conseguem ler o que estão assinando, ou vivem como analfabetos, pois não leem nem o jornal largado na praça, os que sabem ler deveriam ser duplamente ativos, informados e participantes. Não somos.

Nossos meninos raramente sabem o título de seus livros escolares ou o nome dos professores (sabem o dos jogadores de futebol, dos cantores de bandas, das atrizezinhas semieróticas). Agimos como se nada fora do nosso pequeno círculo pessoal nos atingisse.

Além das desgraças longe e perto, vindas da natureza ou do homem, estamos num ano eleitoral. Inaugurado o circo de manobras, mentiras e traições escrachadas ou subliminares que conhecemos. Precisamos de claridade nas ideias, coragem nos desafios, informação e vontade, e do alimento dos afetos bons.

Num livro interessante (não importa o assunto) alguém verbaliza velhas coisas que a gente só adivinhava; um filme pode nos lembrar a generosidade humana; uma conversa pode nos tirar escamas dos olhos. Estar informado e atento é o melhor jeito de ajudar a construir a sociedade que queremos, ainda que sem ações espetaculares.

Mas, se somos desinformados, somos vulneráveis; se continuarmos alienados, bancaremos os tolos; sendo fúteis, cavamos a própria cova; alegremente ignorantes, podemos estar assinando nossa sentença de atraso, vestindo a mordaça, assumindo a camisa de força que, informados, não aceitaríamos.

Alegria, espírito aberto, curiosidade, coisas boas desta vida, todos as merecemos. Mas me poupem do risinho tolo da burrice ou da desinformação: o vazio por trás dele não promete nada de bom.

Lya Luft é escrito