sábado, 22 de maio de 2010



22 de maio de 2010 | N° 16343
NILSON SOUZA


Prazer, Geada!

Engajo-me irrestritamente neste exército antibullying que parece estar se formando em nosso Estado para combater, com a arma da conscientização, todas as formas de violência, maus-tratos e humilhações contra pessoas fragilizadas física ou emocionalmente. Não se trata de sair pelas ruas, praças e pátios de escolas caçando adolescentes agressivos.

Para isso existem as autoridades e os responsáveis pelas instituições de ensino. O que nos cabe, como voluntários de uma cultura de paz, é contribuir com exemplos, com a educação familiar e com atitudes que possam inspirar outros cidadãos a refletir sobre o tema – e a evitar o clima propício ao deboche, ao achincalhe e ao espezinhamento.

Apelidos, por exemplo.

Passei a vida toda sendo tratado por apelidos e nunca me importei com isso. Quando cursei Educação Física, no tempo em que ainda tinha cabelos brancos, era chamado de Geada pelos colegas e até mesmo por professores. Se algum dia parei para pensar no assunto, devo ter concluído que era um apelido simpático, poético até. Luiz Coronel que o diga: “Geada vestiu de noiva/ os galhos da pitangueira...”

Mas nem todos são assim: há apelidos preconceituosos, degradantes e excludentes. Por que dar trânsito a eles? Sabemos todos que há pessoas mais sensíveis a determinados rótulos, especialmente aos que se referem à sua aparência física, origem ou raça. O que custa perder uma piada para preservar o respeito pelo outro? Para saber se um apelido é ofensivo ou não, basta nos colocarmos no lugar de quem não está sendo tratado por seu verdadeiro nome.

Você gostaria de ser chamado de, digamos, Dunga? Do jeito que ele reage às perguntas quando é entrevistado, às vezes fica a impressão de que também não gosta. Mas o treinador da Seleção é, obviamente, um caso especial: um dia ele até pode ter rejeitado a comparação com o personagem da história infantil. Agora, com a fama internacional, o apelido passou a fazer parte de sua identidade.

Contam-se nos dedos, porém, os alcunhados que conseguem virar o jogo e transformar nomes depreciativos em identificação positiva. Apelido, na maioria das vezes, é uma marca infamante. Claro que existe um lado engraçado nisso.

Não há como ignorar a criatividade de algumas pessoas que se especializam em apelidar colegas de trabalho e de escola, ou mesmo desconhecidos. Porém, a coisa perde a graça quando causa constrangimento e deriva para a humilhação. Aí se torna inaceitável.

Vamos pensar seriamente nisso?

quarta-feira, 19 de maio de 2010



19 de maio de 2010 | N° 16340
MARTHA MEDEIROS


Doe palavras

Houve um tempo em que ser in era ser moderno, significava que você estava dentro, sabia das coisas. Os outros estavam out, por fora.

Usei menos de 140 caracteres para escrever as duas frases acima. Os famosos 140 caracteres que limitam as mensagens enviadas pelo Twitter, essa febre que tomou conta do mundo, para meu espanto. A troco de que as pessoas precisam anunciar, várias vezes ao dia, o que estão pensando ou fazendo?

Sei que estou na contramão de certos costumes, mas o fato de ficar de fora dessa ansiedade generalizada não me faz sentir antiga, ao contrário, me faz sentir avançada, e não estou falando de idade avançada, não aproveite a bola picando.

O fato é que a única ferramenta da qual deveríamos ser dependentes é a própria cabeça, que é quem determina se somos livres ou não. Podemos contar com diversas engenhocas eletrônicas, mas não a ponto de nos tornarmos reféns delas.

Vale pra tudo. Pessoas vestem roupas que não combinam com seu peso, altura, estilo, mas, como são peças da moda, é o que basta para instalar a obrigatoriedade de usá-las. O comércio é que mais lucra com essa necessidade descontrolada de consumir o que nos apresentam como novo, e que deprime os que não conseguem fazer parte da tribo dos descolados. Mas descolados de quê? Estamos cada vez mais aderentes, grudados, embolados na vida uns dos outros, iguais a todos. Sou de uma época em que a diferença é que nos destacava.

Mas não chego a ser um caso perdido, a tia aqui sabe que Twitter e outras parafernálias podem ser úteis. Tem gente que já encontrou carro roubado e filho sumido na noite graças a alguns torpedos. Nem todos os sucintos 140 caracteres com que andamos resumindo nossos pensamentos são descartáveis.

Um exemplo disso é a iniciativa tomada pelo Instituto Mário Penna, de Belo Horizonte, que trata de pacientes com câncer. Não revoluciona nada, mas ao menos dá um sentido a esse impulso de distribuir palavras.

O projeto é justamente esse: Doe Palavras. Você escreve uma mensagem de apoio aos doentes e ela é veiculada nos monitores internos do hospital, para que todos possam ler. Dei uma olhada no teor dessas mensagens e, a despeito de toda a boa intenção, elas me pareceram monótonas. Criatividade não dá em árvore, sabemos.

Os textos dizem sempre a mesma coisa: tenha fé, Deus está com você e blablablás que, repetidos à exaustão, perdem o efeito.

Mas se você é um twitteiro criativo, entre nessa campanha enviando frases divertidas, empolgantes, inteligentes, que façam a criatura que está lá, sofrendo em cima de uma cama, sentir-se viva, dar uma risada, ter ainda mais vontade de recuperar a saúde. Ânimo não cura, mas ajuda. Frases que fujam do marasmo, versos bons, refrões de música, pensamentos filosóficos, aforismos que façam pensar. Quando o cérebro é provocado, todo o corpo responde junto.

Se o prezado leitor também é um alienígena sem twitter, pode fazer isso através do site www.doepalavras.com.br. Você estará enviando as melhores vibrações para quem realmente precisa delas. Não que a gente não queira saber o que você jantou ontem e a quantas anda a gravidez da Juliana Paes, óbvio.

Uma gostosa quarta-feira para vc. Aproveite o dia.

terça-feira, 18 de maio de 2010



18 de maio de 2010 | N° 16339
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A balança e eu

Tem pessoas que, ao despertar, seu primeiro encontro é com os sonhos em que mergulharam. Há outras que pedem ao relógio mais alguns minutos de sono.

Já eu, me dirijo em disciplinada marcha batida em direção à balança. Em alguns segundos, acompanhando o rumo do ponteiro principal, descubro se emagreci ou se engordei.

Não é uma prática muito louvável. Existem maneiras mais diversas e mais recomendáveis para acordar. Você pode, por exemplo, fixar-se no canto dos pássaros, acompanhar a sinfonia com que um sabiá saúda a manhã. Você pode penetrar em pensamento na neblina que abraça a cidade e imaginar o sol que ela ciumentamente oculta. Você pode concentrar-se nos navios que singram nosso rio que é chamado de lago e devanear com seus incertos destinos pela rosa dos ventos.

Mas chega a hora em que, antes do banho, você lança um olhar ao dial da balança. É como um juiz de sua forma física.

A mim, ele tem poupado de condenações. Com um metro e 74 de altura, não vou além dos 67 quilos. Isso quer dizer que estou razoavelmente esbelto e deixei para trás as épocas em que me defrontava com 78 ou 82 quilos no mesmo exercício matinal.

Já é uma conquista de alguns anos. A que devo ela?

Acho que primeiro a um ritual que cultivei com toda a paciência e espírito esportivo. Trata-se de caminhar, a cada dia, não importa se esteja esplêndido ou apronte uma reprise do Dilúvio Universal, por estas calçadas de Porto Alegre.

Mas não é tudo. Tem ainda o departamento da alimentação. Meu desjejum é um copo de café com leite, guarnecido de duas fatias de pão light, levemente decoradas de requeijão também light. Ao almoço, encaro um prato reforçado de salada mista, uma quantidade comportada de arroz com feijão e um peito de frango grelhado ou um bife na chapa.

Há ainda outras incursões de livre escolha pelo território do trivial variado. Já pela metade da tarde, me presenteio com um sanduíche, de novo light, ou com uma salada de frutas. À noite me contento com um consomé, mas não dispenso dois cálices de vinho.

É pouco? Guardo minhas compensações. Os fins de semana são livres, como são igualmente as festas a que compareço, embora não esqueça nunca de que em meu dicionário consta a palavra moderação. O prêmio? Me sentir em minha idade com a alma tranquila e o coração leve.

Ainda que com chuva uma linda terça-feira para vc

sábado, 15 de maio de 2010


Claudio de Moura Castro

O parto do livro digital

"A canibalização do livro em papel dá calafrios nas editoras, embora as gravadoras tenham sido salvas pela venda digital"
Ilustração Atômica Studio

Não há razão alguma para uma pessoa possuir um computador em sua casa." Isso foi dito, em 1977, por K. Olsen, fundador da Digital. De fato, os computadores eram apenas máquinas de fazer contas, pesadas e caras.

Mas, com os avanços, passaram também a guardar palavras. Aparece então a era dos bancos de dados. Tal como a enciclopédia de Diderot – que se propunha a armazenar todos os conhecimentos da humanidade –, tudo iria para as suas memórias. Mas não deu certo, pois a ambição era incompatível com a tecnologia da época.

Os primeiros processadores de texto foram recebidos com nariz torcido pelos programadores. Um engenho tão nobre e poderoso, fingindo ser uma reles máquina de escrever?

Não obstante, afora os usos comerciais e científicos, o PC virou máquina de guardar, arrumar e recuperar textos, pois lidamos mais com palavras do que com números. Como a tecnologia não parou de avançar, acelerou a migração de dados para as suas entranhas. Por que não os livros? O cerco foi se apertando, pois quase tudo já é digital.

Para os livreiros, cruz-credo!, uma assombração. Guardaram na gaveta os projetos de livros digitais. Mesmo perdendo rios de dinheiro em fotocópias não autorizadas, a retranca persistiu. Havia lógica. Quem tinha dinheiro para ter computador preferia comprar o livro. Quem não tinha dinheiro para livro tampouco o tinha para computador. Mas o mundo não parou. Hoje os computadores são mais baratos é há mais universitários de poucas rendas.

O enredo se parece com o das gravadoras de música, invadidas pela pirataria, mas salvas pelos 10 bilhões de músicas vendidas pela Apple Store. Nos livros, a pirataria também é fácil. Por 10 dólares se escaneia um livro na China, e é incontrolável a venda de cópias digitais piratas, já instalada confortavelmente na Rússia.

Nesse panorama lúgubre para os donos de editora, entram em cena dois gigantes com vasta experiência em vender pela internet. A Amazon lança o Kindle (que permite ler no claro, mas não no escuro), oferecendo por 10 dólares qualquer um dos seus 500 000 títulos digitais e mais 1,8 milhão de graça (de domínio público). Metade das suas vendas já é na versão digital.

A Apple lançou o iPad (que faz mais gracinhas e permite ler no escuro, mas não no claro), vendendo 1 milhão de unidades no primeiro mês do lançamento. Outros leitores já estão no mercado. É questão de tempo para pipocarem nos camelôs as cópias chinesas. E, já sabemos, os modelos caboclos estão por aparecer. Quem já está usando – com o aval dos oftalmologistas – garante que não é sacrifício ler um livro nessas engenhocas. As tripas do Kindle engolem mais de 1 000, substituindo vários caixotes de livros.

Nesse cenário ainda indefinido, desponta uma circunstância imprevista. Com a crise, os estados americanos estão mal de finanças e a Califórnia quebrada, levando a tenebrosos cortes orçamentários. Para quem gasta 600 dólares anuais (por aluno) em livros didáticos, migrar para o livro digital é uma decisão fácil. Basta tomar os livros existentes e colocar na web. Custo zero? Quase. Um Kindle para cada aluno sai pela metade do custo.

O governador da Califórnia é o exterminador do livro em papel. Texas, Flórida e Maine embarcam na mesma empreitada, economizando papel, permitindo atualizações frequentes e tornando o livro uma porta de entrada para todas as diabruras informáticas. E nós, cá embaixo nos trópicos?

Na teoria, a solução pública é fácil, encaixa-se como uma luva nos livros didáticos, pode reduzir a cartelização e democratizar o acesso. Basta o governo comprar os direitos autorais e publicar o livro na web. Com os clássicos é ainda mais fácil, pois não há direitos autorais.

No setor privado, as perplexidades abundam. Alugar o livro, como já está sendo feito? Não deu certo vender caro a versão digital. Vender baratinho? A canibalização do livro em papel dá calafrios nas editoras, embora as gravadoras tenham sido salvas pela venda digital. Muda a lógica da distribuição. Tiragens ínfimas passam a ser viáveis.

O contraponto é o temível risco de pirataria. Não há trava que não seja divertimento para um bom hacker. Na contramão desses temores, Paulo Coelho se deu bem, lançando seu último livro gratuitamente na internet, junto com o lançamento em papel. Cava-se um túmulo para as editoras e livrarias? Vão-se os anéis e ficam os dedos? Ou abre-se uma caixa de Pandora fascinante? Só uma coisa é certa: o consumidor ganha.

Claudio de moura castro é economista


Nas barbas da justiça



O PT descobriu que o crime eleitoral compensa e que pode continuar usando impunemente a máquina e Lula na propaganda da candidatura oficial

Milhões de brasileiros assistiram na semana passada ao programa do PT. Durante dez minutos, foram apresentados detalhes da biografia da ex-ministra Dilma Rousseff, algumas de suas ideias e opiniões. Entremeado com números sobre as realizações do governo Lula, o programa mostrou também o presidente narrando a emoção que sentiu no dia em que conheceu a ministra.

"E um belo dia, em 2002, entra na minha sala uma mulher com um laptop na mão (...). Quando terminou a reunião, me veio na cabeça a certeza de que eu tinha encontrado a pessoa certa pro lugar certo."

Em uma daquelas inacreditáveis coincidências, minutos antes de o programa ir ao ar, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) colocou em julgamento uma reclamação contra outro programa do PT, exibido em dezembro, que teria usado o espaço para promover ilegalmente a candidatura de Dilma Rousseff.

O resultado é que o partido perdeu o direito de veicular seu próximo programa nacional e terá de pagar multa de 20 000 reais. Dilma também foi multada em 5 000 reais. A sentença, no papel, foi dura. Mas seu efeito prático é um deboche.

O anúncio da condenação, na noite de quinta-feira, ocorreu uma hora e meia depois de o partido exibir um novo programa que, não fosse a demora da decisão judicial, nem poderia ter ido ao ar. A Justiça tarda mas não falha, certo? Errado. A decisão só vai ter impacto no ano que vem, quando a eleição presidencial estará decidida. A Justiça Eleitoral tardou e falhou.

A demora do tribunal em analisar o caso adiou a punição para 2011 e permitiu que o PT exibisse cenas eleitorais ainda mais explícitas que as condenadas pelo TSE. Ao lado de Dilma, Lula apontou sua candidata como a responsável pelo sucesso do governo e sugeriu que ela é a única capaz de continuar sua obra.

O programa foi visto por mais da metade dos brasileiros que estavam com a televisão ligada. "A relação custo-benefício do desrespeito à lei foi totalmente favorável ao PT", diz Alberto Rollo, especialista em legislação eleitoral. O desprezo que se vê às regras eleitorais não pode ser creditado apenas à notória lentidão da Justiça.

Pela legislação em vigor, as campanhas começam somente em julho, depois das convenções partidárias que oficializam os candidatos. Antes disso, como não há candidato, também não há punição para quem infringir a lei, como Lula e a campanha de Dilma vêm fazendo. Ou seja, além de lenta, a Justiça é frouxa na hora de punir. A maior pena já aplicada por campanha antecipada, de 20 000 reais, é irrisória se comparada ao que está em jogo em uma campanha presidencial.

A prova de que crime eleitoral compensa pode ser vista no comportamento do presidente da República. Nos últimos dois anos, Lula participou de mais de 400 eventos públicos. Dez resultaram em investigação do TSE. Cinco já foram arquivados, três ainda não foram analisados e dois levaram o tribunal a multar o presidente. Nesse período, porém, Dilma deixou de ser uma desconhecida do eleitorado para se tornar uma candidata viável, com quase 30% das intenções de voto.

Ou seja, a antecipação da campanha, apesar de criminosa, foi vital para a candidata de Lula. Na semana passada, um dia antes de o TSE condenar o PT a uma pena sem efeito, o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos e o advogado-geral da União Luís Adams se reuniram para avaliar os riscos da associação entre o presidente e a campanha do PT. Concluíram que, por enquanto, não há problema incontornável.

A preocupação deve aumentar apenas depois de a candidatura de Dilma ser lançada oficialmente, em junho.

Ao se levar a avaliação dos advogados ao pé da letra, tudo indica, portanto, que Lula seguirá usando o cargo em benefício de sua candidata. As próximas pesquisas de intenção de voto é que vão dizer se a lei será mais ou menos respeitada.

O ministro do TSE Marco Aurélio Mello é um dos mais incomodados com as ilegalidades. Ao votar pela punição ao PT na semana passada, ele anotou: "Confesso que, tendo pisado neste tribunal em 1991 e tendo assumido a presidência em duas eleições, jamais me defrontei com algo tão escancarado".

Ruth de Aquino

Os homens, o amor e a fidelidade

Não existe homem fiel. Uma afirmação tão categórica desperta reação indignada. “Ah, o meu marido é fiel, tenho certeza.” “Nunca traí minha mulher, eu a amo.” Entre essas convicções, existe um oceano de nuances. Como definir a infidelidade?

Frequência dos casos, envolvimento sentimental, distância geográfica e o nome da amante – tudo conta? Segundo uma psicóloga francesa, a fidelidade masculina é tão rara que a mulher deveria parar de se preocupar: “O homem costuma trair também quando ama”.

Autora de Les hommes, l’amour, la fidélité, livro recente ainda não editado no Brasil, Maryse Vaillant não se baseou em estatísticas, mas em dezenas de entrevistas. Sua preocupação não foi quantificar infiéis ou traídas. Mas entender por que os homens têm muito mais aventuras – e o que isso tem a ver com amor ou desamor. Seriam eles eternos meninos, pulando a cerca sempre que a cerca fosse irresistível?

“Eu gostaria sobretudo que as mulheres parassem de pensar que a culpa é delas quando seu homem as trai. As mulheres não são responsáveis pela libido dos homens”, me disse Maryse numa conversa em Paris. “Não sugiro que elas devam ser mais tolerantes com as pequenas infidelidades do marido. Cada mulher é de um jeito e sabe o que é essencial com o homem ou os homens de sua vida. Não existe uma norma.”

No livro, conhecemos Ben, “o monogâmico infiel e mentiroso que só ama sua mulher oficial”. É um perfil bem comum. Adora a mulher e os filhos, idolatra a família, valoriza o trabalho. Mas não se imagina abdicando de seus casos sexuais, nunca amorosos. Nada que ameace a família ou magoe a mulher. É discretíssimo, mais cuidadoso ainda nestes tempos de internet. Ele se casou para toda a vida. As outras só importam porque o fazem se sentir atraente e vivo. Ben não se considera infiel.

Outros perfis de homens: o polígamo ansioso, que quer ir para a cama com todas. Liberdade sim, casamento nunca. “Esse homem imaturo é cada vez mais frequente, mas especialmente na juventude”, diz Maryse. Só que alguns jamais passam desse estágio. Ou passam, mas voltam sôfregos à ativa muito depois, com a ajuda de medicamentos e a ingenuidade da velhice.

Para uma psicóloga francesa, os homens fiéis são tão raros que a mulher nem deveria se preocupar

Há os infiéis crônicos, que se apaixonam também pelas amantes. “Esses continuam a aumentar – junto com os divórcios. Associam casamento à paixão e vão buscando outras eternamente. São homens meio perdidos que acham que só as mulheres podem ajudá-los a crescer e amadurecer.”

Existem os fiéis cativos e obsessivos, mas “esses têm ciúme até do passado da mulher e podem se tornar violentos”. Por fim, o espécime raro e sonhado por tantas mulheres: “o fiel por alegria e convicção”. Seria um perfil mais comum entre casais de meia-idade, que começam uma relação madura e plena após alguns insucessos.

Não há novidade no fato de que homens traem mais que mulheres – e mais por sexo que por amor. É um traço cultural, mas eles também se sentem mais livres por não engravidar nem dar à luz. Isso tudo nós já sabemos, e alguns de nós já enfrentamos com mais ou menos inteligência, valentia e sofrimento.

O livro é mais provocador ao admitir a infidelidade breve e discreta como experiência salutar e até necessária ao sucesso de alguns casamentos. “Neste caso, a infidelidade não é uma prova de amor ou desamor, mas uma prova de liberdade.”

E para a mulher? “Para algumas mulheres, que conseguem separar sexo de sentimento, o mesmo ocorre. Mas a maioria delas tem outras prioridades, como o casal e a família”.

Perguntei a dois amigos casados se um homem pode ser fiel por longos anos a uma única mulher. “É possível, mas dói”, respondeu um. “Não existe homem mais fiel do que eu”, disse o outro. “Ahn, aquele caso? Aquilo só foi uma escorregadela.”

Maryse queria que as mulheres sofressem menos depois de ler o livro. Que soubessem que nunca poderão impedir uma traição se tiver de acontecer. Que jamais terão controle sobre a libido de seus homens, por mais que os fiscalizem. Que, se forem traídas, não significará que não são amadas. Será que serve de consolo? Melhor relaxar... e – quem sabe? – experimentar.


15 de maio de 2010 | N° 16336
NILSON SOUZA


Nunca é tarde

A Alice do filme é bem diferente da menininha da história original de Lewis Carrol, que encantou muitas infâncias. Da minha, lembro-me bem de ter visto num livro antigo a gravura do coelho branco, com um relógio maior do que ele, repetindo incessantemente na legenda:

– É tarde! É tarde!

Pois agora encontrei na tela do cinema uma Alice saindo da adolescência, quase mulher, fugindo do casamento arranjado para o subsolo desconhecido dos desafios humanos – onde ocorrem a aventura e a transformação. Gostei do filme. Sei que os críticos andam torcendo o nariz para a fantasia do diretor Tim Burton, que teria transformado os personagens do escritor britânico em manequins coloridos, mas sem alma.

Não vi assim. E nem as crianças que estavam na mesma sessão, pois várias delas largaram os sacões de pipoca para aplaudir a dança do Chapeleiro Maluco. Quando as crianças aplaudem espontaneamente um lance, o jogo está ganho. E elas voltaram a aplaudir no final, num atestado sonoro e definitivo do encanto do espetáculo.

Gostei, principalmente, porque Alice espalha mensagens orientadoras em três dimensões, desde a chave esquecida sobre a mesa na hora em que a personagem encolhe até a simbólica mutação da garota atormentada por um sonho em mulher independente e decidida. Influenciado pelo aplauso das crianças, dei nota 9 para o filme quando a menina-dos-meus-olhos me questionou ao final.

Também ela já começa a deixar a adolescência para trás. Depois, em outro momento de nosso cotidiano, aproveitei o conhecimento recíproco para adverti-la amavelmente num momento de distração:

– Cuidado para não esquecer a chave em cima da mesa!

Metaforicamente, Alice e o seu país de maravilhas subterrâneas também nos fazem encolher e crescer a cada cena. O cinema tem esse poder envolvente de nos transportar para outros mundos, para outras épocas e para outras formas de ver a vida. A sala escura é um pouco como a toca do coelho, imaginada pelo reverendo escritor há quase 150 anos: nunca se sai dela o mesmo.

Saí de Alice pensando no tempo que a gente perde na vida quando deixa de lado coisas simples como levar a criançada ao cinema numa tarde de sábado. Quase sempre temos coisas mais importantes a fazer, trabalhos, compromissos sociais, tarefas inadiáveis.

Quando nos damos conta, estamos transformados em coelhos apressados, consultando o relógio nervosamente e correndo para chegar a lugar nenhum. Mas sempre dá para encontrar o caminho de volta.

E, se mantivermos um resquício de fantasia no coração, nunca é tarde.

quarta-feira, 12 de maio de 2010



12 de maio de 2010 | N° 16333
MARTHA MEDEIROS


A dificuldade em ser original

Com tanta coisa acontecendo no mundo, deve ser moleza arranjar assunto fresquinho para escrever. Foi o que me disseram outro dia, e me flagrei pensando: quem dera.

Recebemos uma overdose de informação, mas isso não significa que os acontecimentos sejam surpreendentes a ponto de fazer a festa dos colunistas. É leite tirado de pedra diariamente. Como ser original quando tudo se repete e repete e repete?

O Brasil inteiro está comentando a lista de convocados pelo Dunga, uns o criticando, outros o absolvendo, e daqui a um mês uma nova Copa começará em que nossa seleção terá boa chance de vencer, e alguma de perder. Já não passamos por isso antes, igualzinho?

Questões envolvendo a extradição de um criminoso, ataques sangrentos no Iraque, crise nas Bolsas de Valores, barreiras comerciais afetando a relação entre países, alerta para chuva forte, violência nas estradas. Mais do mesmo.

Atos insanos surgem aqui e ali, nos escandalizando por alguns dias, fazendo com que discutamos sobre mentes doentias e a necessidade que tantos têm de espetacularizar a própria história, e então, passado o susto, viramos a página.

Crises econômicas, conflitos religiosos, garotos matando colegas de aula, veteranos do esporte tentando se manter na ativa, casamentos e separações de celebridades, campanhas eleitorais, denúncias de corrupção, tendências da moda outono-inverno, cantores adolescentes que viram ídolos instantâneos, últimos capítulos de novela. O que ainda suspende a nossa respiração?

Tivemos recentemente a eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos, que foi um acontecimento histórico. Depois esfriou. O que temos de quente, pra hoje, são as preocupantes ameaças ambientais ao planeta, em especial o vazamento de óleo no Golfo do México e um vulcão ativo que tem causado transtornos no Hemisfério Norte, mas isso já não é notícia de ontem?

Cada vez que sento diante do computador, nada me parece moleza. O que é que ainda falta dizer? O que ainda nos deixa perplexos? Como ofertar um pouco de originalidade ao leitor? Que pretensão. Desde o 11 de setembro de 2001 que o mundo não tem sido original. Não que eu deseje que atentados dessa magnitude se repitam: já bastam os homens-bomba, que viraram rotina.

É só um desabafo: hoje, os absurdos se sucedem em escala industrial e os fatos novos são como mariposas, nascem e morrem no mesmo dia.

Por essas e outras, persevero no trivial, que, contrariando sua natureza, passou a ser o inusitado da vida.

Uma ótima quarta-feira. Ainda que com chuva tenha um lindo dia. Aproveite.

terça-feira, 11 de maio de 2010



11 de maio de 2010 | N° 16332
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Manhã de domingo

Tem alguns que preferem um feriado ou um sábado, mas para mim não há mais perfeito sinônimo de serenidade do que uma manhã de domingo. Tu lês os jornais do dia, as revistas da semana, pensas vagamente onde irás almoçar, escutas músicas de tua particular estima e consideração.

Da rua te soam o canto dos pássaros, a tranquila conversação de pessoas que não têm pressa, o latir amigo desses pequenos cães que saem a passear seus donos. Das redondezas chegam vozes e um aroma de churrasco bem temperado.

Se é um princípio de outono, o dia se desnuda cedo de uns traços de neblina e abre caminho a uma paisagem feita da claridade de um céu civilizado. O ar torna-se límpido e a atmosfera, transparente. É como se vivesses em latitudes europeias, com quatro estações bem demarcadas.

De algum andar incógnito te alcançam os tons e as harmonias de um piano e te inspiram pensamentos de paz. E te recordas de um outro piano, de uma das casas em que moraste, e dos acordes que dele recolhiam pessoas que partiram ou que o carrossel da vida extraviou.

São estranhas as múltiplas vidas contidas em tua própria vida. Sentes falta delas, mas não há remédio conhecido para a saudade. Mas saudade é uma palavra revestida de ternura e em sua síntese se parece com as órbitas de astros dispersos e no entanto ordenados em sua intrínseca harmonia.

Pegas um livro e, à medida que o folheias, sentes que fala de ti. Fala de teus sonhos e de teus desejos e de tuas recordações e de teus anseios e de certas pessoas que prezas e que gostarias de rever. Fala de teus projetos, não os irrealizados, mas aqueles que vais simplesmente adiando, pelo simples gosto de tê-los.

Ligas o computador e vais digitando as teclas e as telas, até chegar no capítulo dos e-mails. E ali está à tua espera uma branda mensagem, a que ainda não sabes como responder. Escreves algumas linhas de improviso, receoso de que não é isso que querem ouvir de ti.

É quando pousa em uma das sacadas o pássaro azul ao qual não aprendeste a dar um nome. É um pássaro incerto, pois vem sem data e sem aviso e jamais apresenta sua carteira de identidade. Cumprimenta-te brevemente e ganha os espaços de sua circunstância.

É aí que toca pela primeira vez o som de um celular.

Uma ótma terça-feira para vc ainda que com chuva como continua por aqui.

sábado, 8 de maio de 2010



09 de maio de 2010 | N° 16330
MARTHA MEDEIROS


Duas histórias sobre mães

Nem todas as mães nascem com o dom da abnegação, e nem por isso são pessoas más, apenas não alcançaram a dimensão da entrega necessária para criar outro ser humano

Essa semana, duas leitoras me mandaram depoimentos pessoais que dividirei com vocês, mas com nomes fictícios. Um foi assinado por Anita, que me contou que, numa loja, foi atendida por uma balconista jovem e humilde que comentou ter quatro filhos, e que pretendia partir para o quinto.

Anita, mesmo correndo o risco de ser indiscreta, perguntou se o salário dela comportava o sustento de cinco crianças, no que a balconista respondeu: Ora, elas têm pai. Anita não se conteve e declarou: Acho que uma mulher pode ter tantos filhos quantos ela conseguir sustentar sozinha.

Diz Anita que a balconista ficou perplexa, e talvez muitas outras mães também fiquem, mas foi corajosa e realista a sua observação. Marido não é seguro-desemprego, não vale por uma previdência privada. No caso de uma separação, claro que ele terá obrigação de dividir as despesas relacionadas aos filhos, mas, infelizmente, sabemos que nem sempre a coisa se dá com essa civilidade.

Alguns pais não podem ou não querem arcar com seus deveres e transferem a responsabilidade para quem manteve a guarda. Enquanto a briga é decidida na justiça, as crianças ficam desassistidas. A questão é que podemos ter quantos filhos desejarmos, desde que não transformemos o sonho romântico de ser mãe numa dívida impagável com nossos filhos e com a sociedade.

O segundo depoimento veio de uma senhora chamada Vânia que me contou que passou a vida escutando sobre como as mães são amorosas e perfeitas, mas a dela não foi nada disso. Era uma mãe desatenta, egoísta e sem o menor talento para o ofício. Vânia deve ter motivo para tanta mágoa, já que hoje sua mãe está com 95 anos, tem câncer no cérebro, e nem assim Vânia consegue perdoá-la. E se culpa, porque reconhece que já deveria ter virado essa página.

Se sua mãe não lhe causou nenhum dano concreto, se apenas não foi a mãe sacralizada que você dava como certo que teria, tente mesmo perdoá-la, Vânia. É provável que você mesma já seja mãe e saiba que há sobre todas nós uma cobrança descabida.

Se o erro dela foi ter pensado mais em sua própria carreira, em seus próprios amores, em sua própria felicidade, ainda assim, antes de ser condenada, merece ser compreendida, porque é preciso reconhecer que nem todas nascem com o dom da abnegação, e nem por isso são pessoas más, apenas não alcançaram a dimensão da entrega necessária para uma tarefa desse porte: criar outro ser humano.

Entre os cinco filhos da balconista que atendeu Anita pode haver algum que irá julgar a mãe uma inconsequente, caso ela não consiga bancar as necessidades básicas de todos os irmãos, e os filhos de Vânia talvez um dia a cobrem por ter passado a vida amargurada com a avó deles.

Por trás das cortinas desse espetáculo chamado maternidade, há muito desajuste e muito rancor por conta de uma idealização excessiva. Mãe não tem superpoderes. Se tiver juízo, já está bom demais.

Lindo domingo, especialmente para você que é mãe ou será um dia.


Parece até ficção

A série policial Millennium, criada pelo sueco Stieg Larsson, é um legítimo evento cultural. Mas seu autor morreu antes de vê-lo acontecer

Isabela Boscov
Fotos Divulgação e Jan Colsioo/AP
DOIS HOMENS EM UMA MISSÃO


Michael Nyqvist, em cena do filme, no papel do jornalista engajado Blomkvist, e o autor Larsson, que dedicou a carreira a patrulhar a ultradireita: expor o que os outros não querem ver é dever do ofício


Stieg Larsson não era sujeito de fazer nada pela metade. Quando o jornalista sueco decidiu virar romancista, primeiramen-te elaborou sinopses detalhadas para cada um dos dez livros de uma série policial – todos protagonizados pelo jornalista Mikael Blomkvist e pela investigadora particular Lisbeth Salander. Então escreveu até o fim os dois volumes iniciais.

Só aí pensou em publicá-los: Larsson escrevia depois dos longos expedientes na redação da Expo, a revista que fundou e que mal conseguia sustentar, e de início não estava seguro de que a obra teria pernas para ir longe. Mas, à medida que a série foi tomando forma, constatou que ela poderia ser a porta para uma vida diferente. Estava certo.

Assim que o primeiro livro, Os Homens que Não Amavam as Mulheres, foi lançado na Suécia, um pequeno culto começou a se formar em torno dele – e em particular em torno da antissocial, tatuada, lacônica, magérrima, perturbada e ocasionalmente violenta Lisbeth Salander, uma moça de 24 anos e inteligência brilhante, mas que a maioria das pessoas julga ser retardada, tal a carapaça com que ela se protege.

Larsson, porém, não conheceu a popularidade de sua personagem. Em 9 de novembro de 2004, antes que o primeiro volume tivesse chegado às livrarias, o autor viu que o elevador do prédio de Estocolmo onde funcionava a Expo estava quebrado. Pegou as escadas – e, na subida, sofreu um infarto. Morreu aos 50 anos, morando de aluguel e quase sem dinheiro. Havia acabado de entregar as provas do terceiro volume à editora e ia pela metade do quarto episódio.

Conhecida como Millennium, em referência à revista da qual o personagem Mikael Blomkvist é editor, a decalogia que a morte prematura de Larsson reduziu a trilogia já vendeu cerca de 28 milhões de exemplares em mais de quarenta países – números que qualificam a série como um legítimo fenômeno editorial. (No Brasil, o trio completado por A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar e publicado pela Companhia das Letras soma até aqui 280 000 cópias vendidas, um colosso para o padrão nacional.)

Os proventos desse êxito vêm se expandindo velozmente em outro território ainda: o do cinema. Nesta sexta-feira, estreia no Brasil o filme baseado no primeiro volume, Os Homens que Não Amavam as Mulheres (Män som Hatar Kvinorr, Suécia/Dinamarca/Noruega/Alemanha, 2009), com uma recomendação expressiva dos europeus: 90 milhões de dólares de bilheteria no continente.

O suspense é uma reprodução fiel do enredo de Larsson. Fidelíssima, aliás. Muitos dos diálogos entre Blomkvist e Lisbeth (os suecos Michael Nyqvist e Noomi Rapace) são reproduzidos tal e qual aparecem na página. A excisão de pequenas passagens que não caberiam nas duas horas e meia de projeção foi feita com bisturi – é palpável o receio do diretor dinamarquês Niels Arden Oplev de desagradar aos fãs.

Nos três enredos deixados por Larsson, assim como na maioria dos romances policiais publicados hoje em dia – o gênero vem passando por uma forte revitalização criativa –, o "quem fez" é quase um pretexto. As revelações de fato perturbadoras são de outra ordem: estão na venalidade, na brutalidade e na imoralidade que se encontram logo abaixo até das superfícies mais lustrosas.

Revirar esses monturos que a maioria preferiria ignorar é o trabalho do jornalista, por dever e convicção (e Blomkvist é sem dúvida o alter ego de Larsson); e é a missão da investigadora, porque ela própria é uma vítima da indiferença do sistema.

Declarada legalmente incompetente, em razão de sua presumida instabilidade psíquica, Lisbeth a certa altura é seviciada pelo tutor que deveria protegê-la. Como sua palavra não vale, resolve a questão por meios próprios, e chocantes.

Larsson, assim, é um dos muitos autores contemporâneos que vêm levando o policial em uma volta completa até o seu ponto de partida, na era vitoriana, como uma expressão de mal-estar em face de um mundo que se transfigurava muito rapidamente, de perplexidade diante do mal que as pessoas ocultam e de fascínio com aqueles que têm a habilidade de ver o que os outros não enxergam – os detetives, como Blomkvist e Lisbeth.

A série Millennium desperta paixões. O crítico Mark Lawson, do jornal inglês The Guardian, observou que, na praia, no verão europeu, quase todos os turistas tinham um dos livros em mãos, tornando a leitura algo próximo de uma experiência coletiva.

A trilogia tem ingredientes poderosos para atrair assim: não só a maneira como repercute com seu tempo e a figura tão solitária de Lisbeth, como a aura de um escritor quixotesco que foi vingado postumamente pelo sucesso – mais as teorias conspiratórias segundo as quais ele teria sido assassinado por uma das organizações neonazistas que patrulhava.

Em uma coincidência infeliz, porém, também abaixo dessa superfície sedutora se desenrolam intrigas amargas. Comunista de terceira geração que nunca abandonou suas convicções e que, com a revista Expo, se dedicava a desmascarar as ações da ultradireita, Larsson tinha ganhos modestíssimos e jamais viu motivo para deixar um testamento.

Na década de 70, fez um documento sem valor legal que parece ser fruto de um impulso simbólico, já que nele legava todas as suas posses a uma entidade de esquerda. Como essas posses eram então inexistentes, é compreensível que o documento não contemplasse Eva Gabrielsson, com quem Larsson morou durante mais de trinta anos, até sua morte.

Eva e o escritor não se casaram, por temor de que seu endereço viesse assim a constar de arquivos públicos e facilitar as ameaças de morte que sofriam por parte dos alvos de Larsson.

Quando ele sucumbiu aos dois maços diários de cigarros, ao sedentarismo e ao stress crônico, deixou Eva a descoberto: a lei sueca não reconhece uniões informais. Sem testamento, seu espólio foi transmitido para seu pai e seu irmão. E, ao mesmo tempo em que o culto à série se iniciava, começou também uma batalha feia nos tribunais pelos direitos sobre as obras.

Eva finca os calcanhares, com um argumento de força: um laptop com cerca de 200 páginas prontas do quarto livro, o que Larsson deixou inacabado, e que poderia vir a ser completado e publicado. Como Lisbeth Salander, a viúva do escritor foi trapaceada pelas regras – mas tenta se defender com os meios que tem à mão.
Divulgação


À PRÓPRIA SORTE
A perturbada e estranha Lisbeth, que é seviciada por seu tutor (Peter Andersson): uma personagem obrigada a se defender das regras que deveriam servir para protegê-la.

Lya Luft

A canção de qualquer mãe

"Filhos, vocês terão sempre me dado muito mais do que esperei ou mereci ou imaginei ter"

Ilustração Atômica Studio


Que nossa vida, meus filhos, tecida de encontros e desencontros, como a de todo mundo, tenha por baixo um rio de águas generosas, um entendimento acima das palavras e um afeto além dos gestos – algo que só pode nascer entre nós.

Que quando eu me aproxime, meu filho, você não se encolha nem um milímetro com medo de voltar a ser menino, você que já é um homem. Que quando eu a olhe, minha filha, você não se sinta criticada ou avaliada, mas simplesmente adorada, como desde o primeiro instante.

Que, quando se lembrarem de sua infância, não recordem os dias difíceis (vocês nem sabiam), o trabalho cansativo, a saúde não tão boa, o casamento numa pequena ou grande crise, os nervos à flor da pele – aqueles dias em que, até hoje arrependida, dei um tapa que ainda agora dói em mim, ou disse uma palavra injusta. Lembrem-se dos deliciosos momentos em família, das risadas, das histórias na hora de dormir, do bolo que embatumou, mas que vocês, pequenos, comeram dizendo que estava maravilhoso.

Que pensando em sua adolescência não recordem minhas distrações, minhas imperfeições e impropriedades, mas as caminhadas pela praia, o sorvete na esquina, a lição de casa na mesa de jantar, a sensação de aconchego, sentados na sala cada um com sua ocupação.

Que quando precisarem de mim, meus filhos, vocês nunca hesitem em chamar: mãe! Seja para prender um botão de camisa, ficar com uma criança, segurar a mão, tentar fazer baixar a febre, socorrer com qualquer tipo de recurso, ou apenas escutar alguma queixa ou preocupação.

Não é preciso constrangerem-se de ser filhos querendo mãe, só porque vocês também já estão grisalhos, ou com filhos crescidos, com suas alegrias e dores, como eu tenho e tive as minhas. Que, independendo da hora e do lugar, a gente se sinta bem pensando no outro. Que essa consciência faça expandir-se a vida e o coração, na certeza de que aquela pessoa, seja onde for, vai saber entender; o que não entender vai absorver; e o que não absorver vai enfeitar e tornar bom.

Que quando nos afastarmos isso seja sem dilaceramento, ainda que com passageira tristeza, porque todos devem seguir seu caminho, mesmo que isso signifique alguma distância: e que todo reencontro seja de grandes abraços e boas risadas.

Esse é um tipo de amor que independe de presença e tempo. Que quando estivermos juntos vocês encarem com algum bom humor e muita naturalidade se houver raízes grisalhas no meu cabelo, se eu começar a repetir histórias, e se tantas vezes só de olhar para vocês meus olhos se encherem de lágrimas: serão apenas de alegria porque vocês estão aí.

Que quando pareço mais cansada vocês não tenham receio de que eu precise de mais ajuda do que vocês podem me dar: provavelmente não precisarei de mais apoio do que do seu carinho, da sua atenção natural e jamais forçada. E, se precisar de mais que isso, não se culpem se por vezes for difícil, ou trabalhoso ou tedioso, se lhes causar susto ou dor: as coisas são assim.

Que, se um dia eu começar a me confundir, esse eventual efeito de um longo tempo de vida não os assuste: tentem entrar no meu novo mundo, sem drama nem culpa, mesmo quando se impacientarem. Toda a transformação do nascimento à morte é um dom da natureza, e uma forma de crescimento.

Que em qualquer momento, meus filhos, sendo eu qualquer mãe, de qualquer raça, credo, idade ou instrução, vocês possam perceber em mim, ainda que numa cintilação breve, a inapagável sensação de quando vocês foram colocados pela primeira vez nos meus braços: misto de susto, plenitude e ternura, maior e mais importante do que todas as glórias da arte e da ciência, mais sério do que as tentativas dos filósofos de explicar os enigmas da existência.

A sensação que vinha do seu cheiro, da sua pele, de seu rostinho, e da consciência de que ali havia, a partir de mim e desse amor, uma nova pessoa, com seu destino e sua vida, nesta bela e complicada terra. E assim sendo, meus filhos, vocês terão sempre me dado muito mais do que esperei ou mereci ou imaginei ter.


O fascínio do estupro

O que leva o cinema a investir na violência sexual
Luís Antônio Giron

Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV

O cinema tem conjugado sexo e crueldade como nunca. Não me refiro à pornografia, mas aos filmes de autor, aqueles que transportam o espectador a um outro plano, exigindo-lhe reflexão e atitude sobre o que se passa diante de seus olhos. Sequências “autorais” envolvendo sexo, perversão e violência sexual andam ganhando mais adeptos, tanto de quem está atrás das câmeras, como da plateia.

A tolerância do público a certas modalidades de tabus parece maior, talvez porque os espectadores as vivenciem no cotidiano. Os cineastas não fazem mais que espelhar – e não raro refratar – a imagem que têm do mundo.

Não há inocentes em tal jogo. Há um desejo das audiências e outro de agradar a estas. Assuntos que soavam insuportáveis cinquenta anos atrás hoje são vistos como rotineiros. É preciso então avançar e forçar limites. Que razão há para tamanha obsessão transgressiva? Responder que talvez seja porque não haja mais a figura da transgressão é errado. Não fosse ainda um tabu, não chamaria atenção, não lotaria as salas e não resultaria em grandes bilheterias.

Todo mundo sabe que basta estampar a palavra “sexo” em um anúncio, que aparece gente interessada. E o cinema é, entre as artes, o maior campo de testes dos instintos mais básicos do espectador. Então lanço uma questão constrangedora: será que se avançaram os limites até o ponto de sexo e violência se acoplarem e assim fazer com que hoje o estupro no cinema passe por atração erótica?

Mas é preciso responder à pergunta de modo lento, para não ferir suscetibilidades. Comecemos pela história. Desde que surgiu, a arte da imagem em movimento tem mostrado cenas fortes. Vamos lembrar cenas de exibicionismo e luxúria de Intolerância (1916), do pioneiro W.D. Griffiths; corpos nus de nativos dos mares do sul em Tabu (1931), do expressionista alemão WF Murnau, e assim por diante. A quantidade de ousadia só fez aumentar em variedade, intensidade e fusão com a brutalidade.

O sexo explícito ganhou status de excelência estética partir de O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, lançado em 1976. O filme retrata a obsessão de um casal por sexo, que culmina com uma cena de castração. A novidade estava em que os próprios atores faziam sexo diante das câmeras. Depois veio o canadense David Cronenberg e sua extensa galeria de tarados.

Em Crash (1996), um conto sobre pessoas que atingem orgasmos em acidentes de carro, o diretor chegou a colocar a atriz cult Holly Hunter em cenas cruas e repugnantes. Agora são incontáveis os diretores que lançam mão do recurso. Nos anos 90, os diretores dinamarqueses do grupo Dogma abusaram dele. Mesmo em produções pós-Dogma isso acontece.

O longa-metragem do diretor dinamarquês (e fundador do Dogma) Lars von Trier, Anticristo, de 2009, contém episódios de mutilação do clitóris da personagem principal, interpretada pela atriz e cantora Charlotte Gainsbourgh, e as habituais sequências “líricas” de cópulas reais – no caso desempenhadas por dublês.

Se o sexo explícito teve seu tempo (que pode voltar, obviamente), a moda atual é o estupro. Até aí nenhuma novidade. Fiz uma busca no site IMDB com a palavra “rape” (estupro em inglês) e o resultado foi 2711 títulos.

O número de filmes com cenas de estupro (inclusive pornôs) começa a se multiplicar a partir dos primeiros anos da liberação sexual, na primeira metade da década de 60. Houve uma mudança de mentalidade a partir de então. Não vou arrolar dezenas de longas-metragens de arte que investem em cenas do tipo. Os estupradores começam até a ganhar certa simpatia na filmografia recente.

No ano passado, a história da violação de uma adolescente foi às telas na adaptação do diretor Peter Jackson do best-seller Uma vida interrompida (Lovely Bones), de Alice Sebold – e quase rendeu ao ator que fez o estuprador, Stanley Tucci, o Oscar de coadjuvante.

A peculiaridade da trama está na forma como ela é contada, pela própria vítima, diretamente do limbo. O que significa que a audiência tem acesso a detalhes ainda mais escabrosos do crime. E as pulsões de amor e morte são tocadas por eles.

Vou repetir o argumento de Walter Benjamin: no escuro, cada espectador se projeta na imagem projetada na tela. Assim, o processo de identificação é incontornável. Por isso, Benjamin definiu o cinema como “arte psicanalítica”. Na situação simulada do estupro, somos a um tempo vítima e agressor. Ocupamos os corpos e as almas dos dois lados do ato.

Ultimamente, o gênero estupro seguido por morte tem merecido maior atenção dos diretores. Quero mencionar dois filmes de suspense. Um faz boa carreira nos cinemas e outro entra em cartaz na semana que vem: o argentino

O segredo de seus olhos, de Juan José Campanella, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, e a produção dinamarquesa Os homens que não amavam as mulheres, do diretor Niels Arden Oplev, suspense baseado no romance homônimo do sueco Stieg Larrson, best-seller mundial.

São produções aparentemente díspares. Apesar de uma ser sul-americana e outra nórdica, ambas guardam pelo menos quatro aspectos em comum, além de abordar o estupro de uma forma intrigante.

O argentino O segredo de seus olhos ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009

Em primeiro lugar, são enredos de casos criminais arquivados há mais de 25 anos. No filme argentino, a cena se passa em Buenos Aires no ano 2000.

O investigador aposentado Benjamin Esposito (Ricardo Darín) se encontra com sua antiga chefe (e paixão), a juíza Irene Hastings (Soledad Villamil) para tentar reabrir um caso acontecido em 1974: a morte de Liliana Colotto (Carla Quevedo), uma jovem de 23 anos seviciada, violada e morta em sua casa.

O filme dinamarquês, ambientado em Estocolmo em 2006, conta as peripécias de um jornalista investigativo de esquerda, Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist), é chamado por um rico empresário Henry Vanger (Sven-Bertil Taube) para investigar o desaparecimento de sua sobrinha Cecilia Vanger (Marika Lagercrantz), de 16 anos, durante uma parada de Dias dos Namorados numa ilha sueca em 1966.

Blomkvist se une à hacker punk Lisbeth Salander (Noomi Rapace) e descobre que a desaparição da menina é relacionada com uma série de estupros ocorridos nas redondezas num período de 20 anos.

O pano de fundo político responde pelo segundo aspecto convergente. Ambos os casos são acobertados e se relacionam a regimes ditatoriais. Melhor não entrar em detalhes para não estragar a surpresa. Mas basta dizer que os estupros estão ligados à impunidade de criminosos vinculados a determinada conjuntura de poder.

A política será determinante para a resolução dos casos. Campanella usa o caso policial para elaborar uma metáfora da Argentina, um país que só depois de muitos anos conseguiu superar o trauma da guerra suja, que levou milhares de inocentes à morte. Já Niels Arden Oplev se vale dos crimes seriais acobertados para mostrar que um país supostamente resolvido como a Suécia oculta uma sociedade doentia, capaz dos atos mais atrozes.

A terceira coincidência repousa na crise da meia-idade e de carreira por que passam os dois protagonista: tanto Esposito como Blomkvist se encontram em fim de carreira e, mesmo assim, continuam obcecados pelo desvendamento de seus respectivos mistérios.

Tanto um como outro anseiam pela redenção que a resolução de um enigma pode conter. E os dois são apaixonados por mulheres problemáticas.

A juíza é rica e está comprometida com um empresário, e deixa Esposito partir, numa cena melodramática, passada em uma estação de trem. Blomkvyst é praticamente estuprado na cama por Lisbeth, e se encanta por ela – que, aliás, já havia sido estuprada pelo padrasto e pelo tutor, e se vingou ateando fogo ao carro daquele e torturando este.

Finalmente, os dois roteiros são unidos pelo tema do estupro seguido por morte. Em O segredo de seus olhos, o foco está na beleza de Liliana, apesar dos ferimentos profundos deixados pelo assassino.

A câmera passeia com volúpia pelo corpo nu violado e ensanguentado, até dar um close up nos olhos vidrados da morta, olhos enormes e... sonhadores. São os olhos do cadáver e do possível criminoso que levam Esposito, fascinado pela beldade morta, a começar a investigação.

Em Os homens que não amavam as mulheres, os olhos abertos dos cadáveres colecionados pelos criminosos também são mostrados em detalhe. O filme dinamarquês é pródigo nos requintes sádicos. Os assassinatos são cometidos como rituais satânicos, repletos de símbolos e citações bíblicas. Na trama sueca, não há espaço para sentimentalismo.

Na trama sueca Os homens que não amavam as mulheres, não há espaço para sentimentalismo.

Por fim, os filmes dramatizam os comportamentos macabros e perturbadores. Os estupros que são confessados pelos criminosos como momentos de iluminação e triunfo. Como se obrigar alguém a fazer sexo e depois matar representasse a realização de antigos anseios.

O assassino de Liliana confessa o crime diante do investigador e da juíza de uma forma inusitada: exibindo o pênis, ele diz que obteve o maior prazer de sua vida ao fazer sexo e assassinar Liliana Colotto.

Uma experiência de suprema transgressão, que também encanta o estuprador do filme sueco. “Estuprar é uma experiência fantástica”, diz ele, enquanto começa a enforcar Blomqvyst. “Não existe nada igual a matá-las. O que mais gosto é o olhar delas no momento em que se decepcionam, ao saber que não vou salvá-las, que elas vão morrer. É um instante maravilhoso.”

Por mais que resista por saber que se trata de ficções, o espectador acaba se deixando levar pelo enredo e, talvez, involuntariamente, conduzido a uma situação-limite que poderia ser real. É o que Aristóteles denomina catarse, de purgação dos desejos por meio de um mecanismo de transferência, para usar um termo mais moderno. Durante o processo, sacrificamos, somos sacrificados e, por último, atingimos a purificação.

A operação teria um fundamento pedagógico, e resultaria em bom comportamento social. Não estou tão certo disso. Entre o mistério que se apresenta e a possível remissão dos pecados, o caminho me parece tempestuoso. Entre um e outra, existe o apelo da transgressão. O cinema atual induz o espectador a fantasias proibidas, e entre elas tem enfatizado a do estupro.

Ora, o estupro como atração erótica é uma distorção. Para mim, estupro é sexo ruim, mesmo em fantasia. Não há tema vedado à arte, se ela é grande. Agora, porém, os diretores têm confundido a exploração do interdito com excelência estética. O resultado só pode ser o rebaixamento dos sentidos – e da reflexão.

Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras


8 de maio de 2010 | N° 16329
NILSON SOUZA


Dia dos filhos

Num distante dia – um dia que durou meses –, ela te carregou num lugar muito próximo do seu coração e usou o próprio corpo para te alimentar e para te proteger dos riscos do mundo.

Num outro dia – um dia encantado chamado infância –, ela te carregou no colo, te cobriu de beijos, te colocou para dormir e te aqueceu no calor de sua inesgotável ternura.

Num inesquecível dia – um dia colorido de aventura –, ela te deu a mão, te ensinou a andar com tuas próprias pernas, preparou a mochila da tua adolescência e escondeu as lágrimas de preocupação enquanto te afastavas de casa pela primeira vez.

Num enigmático dia – um dia de sol e sombras –, ela te deu um longo abraço de despedida e ficou observando, apreensiva, enquanto partias acompanhado de todas as certezas da juventude em busca de outros afetos e do teu próprio destino.

Num interminável dia – um dia feito de esperas eternas –, ela preparou a tua sobremesa preferida, arrumou a mesa da sala e rezou em silêncio para a Nossa Senhora dos Filhos Distraídos, pedindo, primeiro, que a santa te proteja de todos os perigos e, só então, que te ajude a lembrar que amanhã é um dia muito especial.

É o dia das mulheres que amam demais, sem esperar qualquer retorno para este amor incondicional, inegociável, infinito.

É o dia das mulheres que renunciam à própria vida para cuidar das vidas que geraram.

É, também, o dia das mulheres que cuidam das vidas que não geraram, porque faz parte da sua natureza abrigar, proteger, orientar, educar.

É, ainda, o dia das mulheres que cuidam de suas próprias vidas, repassando à humanidade seus exemplos de coragem, autonomia e determinação.

É, portanto, o dia de todas as mulheres, porque elas carregam no recôndito de suas almas o mais sublime dos sentimentos humanos, que é o amor maternal.

Mas é, acima de tudo, o dia dos filhos – porque devemos nossa existência a elas.

quarta-feira, 5 de maio de 2010



05 de maio de 2010 | N° 16326
MARTHA MEDEIROS


Tudo pode dar certo

Uns acharam bom, outros acharam ruim, e assim é a vida, todos opinam aqui e ali, e eu serei apenas mais uma a palpitar sobre o recente filme de Woody Allen. É possível que você concorde comigo e estaremos em sintonia, ou você irá discordar, engrossando a turma dos que acham que Woody Allen não é mais o mesmo, ou você talvez sempre tenha considerado Woody Allen um chato de galochas, ou vai ver nem sabe quem é esse tal de Woody Allen, e nada disso mudará uma única fagulha no curso do universo.

O monólogo de abertura de Tudo Pode Dar Certo, com Larry David no papel do mal-humorado Boris, traz esse espírito fatalista. Segundo ele, nada tem muito sentido, a sorte é que manda no jogo, e se ao menos facilitássemos as coisas para tornar nossos dias mais suportáveis, mas fazemos justamente o contrário. “As pessoas tornam a vida pior do que é preciso”, reclama o protagonista.

Na contramão da crítica especializada, pra mim Woody Allen está cada vez melhor, se não como cineasta, ao menos como filósofo. Tem se revelado mais debochado e mais leve, como convém a um homem inteligente que está chegando aos 75 anos e que aprendeu que só o que nos cabe na vida é não fazer mal aos outros e usufruir da melhor maneira a honra de ter nascido.

Desta vez, Woody Allen foi fundo na caricatura. Mostra um personagem ranzinza que fracassa em suas duas tentativas de suicídio, uma loirinha desmiolada, uma senhora careta que reavalia seus conceitos e “se reinventa”, um príncipe encantado cujo único atrativo é ser bonitão e um pai de família temente a Deus que descobre que é um gay enrustido. “Às vezes, os clichês são a melhor forma de dizer as coisas”, alerta Boris ainda no início do filme.

Quando assisti, em 2003, a Igual a Tudo na Vida, lembro de ter comentado que Woody Allen havia se dado alta. E sigo com a mesma impressão. Em seus filmes anteriores, mais ricos e consistentes em questionamentos existenciais, o diretor parecia dizer: “Não há cura”.

Em sua resignada fase atual, ele parece dizer: “Não há doença”. O diretor está apenas confirmando que não temos nenhum domínio sobre os mistérios que nos rondam e sobre as experiências nunca testadas.

Então, não importa o que façamos, o risco de dar certo é o mesmo de dar errado, e, até quando parece que dá errado, funciona. Qualquer coisa funciona. Até um Woody Allen clichê.

Uma gostosa quarta-feira para você. Aproveite o dia.

terça-feira, 4 de maio de 2010



04 de maio de 2010 | N° 16325
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Sonhos e desejos

Leio que as portas austeras do Victoria and Albert Museum, em Londres, acabam de dar passagem para uma exposição de roupas, acessórios e fotos de Grace Kelly. Nenhum outro tema poderia ser mais belo. O visual clássico, etéreo e loiro da mais linda das princesas de Mônaco há muito reina soberano em milhões de corações do mundo inteiro.

Nunca esqueço a tarde de setembro de 1982 em que, ao atravessar a Kürfürstendam – eu estudava Jornalismo Avançado em Berlim – dei com a manchete de página inteira do Bild: Morreu Grace Kelly. Era como se a curta frase, em enormes letras negras, ao lado da grande foto, dissesse respeito a alguém muito próximo de mim.

Me explico melhor. Quando a oscarizada atriz de Hollywood casou com o príncipe Rainier em 1956, todos nós que a amávamos em segredo – aí incluído eu, que tinha 11 anos – ficamos um pouco viúvos.

O Cruzeiro e Manchete – então as principais revistas que circulavam no Brasil – reservavam dezenas de páginas para as bodas em Mônaco, torrentes de parágrafos eram dedicados à biografia da noiva, rios de tinta descreviam as cerimônias, mas cada letra e imagem parecia apenas dizer que a tínhamos perdido para sempre.

Não foi bem assim. Com extraordinária classe e porte, a Princesa Grace desempenhou o melhor papel de sua carreira.

Já não era mais a esplêndida atriz de Janela Indiscreta (Rear Window), dirigida pelo mestre Alfred Hitchcock.

Era a alteza, a esposa e a mãe. Não me surpreende que o Victoria and Albert Museum esteja revisitando agora seus vestidos. Durante décadas, Grace Kelly foi trajada por todos os maiores costureiros da Europa. Mais do que isso – pois um manequim não faz um vestido –, foi um sinônimo de elegância no agir e no viver.

Sua vida no paradisíaco principado, com cujas paisagens e atmosfera me encantei mais de uma vez, foi a senha de uma era de charme, de glamour e de encantamento.

Dizem que teve affairs, antes e depois de se transformar em soberana de Mônaco. São hipóteses maltraçadas, simples suposições, caprichosos exercícios de imaginação. Mas se os teve, isso confirma apenas que viveu segundo sua circunstância e sua época. Longe de ser uma deusa enigmática como a pintaram, era uma mulher com sonhos e desejos.

Linda terça-feira ainda que com chuva. Aproveite o dia.

sábado, 1 de maio de 2010



02 de maio de 2010 | N° 16323
MARTHA MEDEIROS


Feliz por nada

Geralmente, quando uma pessoa exclama Estou tão feliz!, é porque engatou um novo amor, conseguiu uma promoção, ganhou uma bolsa de estudos, perdeu os quilos que precisava ou algo do tipo.

Há sempre um porquê. Eu costumo torcer para que essa felicidade dure um bom tempo, mas sei que as novidades envelhecem e que não é seguro se sentir feliz apenas por atingimento de metas. Muito melhor é ser feliz por nada.

Digamos: feliz porque maio recém começou e temos longos oito meses para fazer de 2010 um ano memorável. Feliz por estar com as dívidas pagas. Feliz porque alguém o elogiou. Feliz porque existe uma perspectiva de viagem daqui a alguns meses. Feliz porque você não magoou ninguém hoje. Feliz porque daqui a pouco será hora de dormir e não há lugar no mundo mais acolhedor do que sua cama.

Esquece. Mesmo sendo motivos prosaicos, isso ainda é ser feliz por muito.

Feliz por nada, nada mesmo?

Talvez passe pela total despreocupação com essa busca. Essa tal de felicidade inferniza. “Faça isso, faça aquilo”. A troco? Quem garante que todos chegam lá pelo mesmo caminho?

Particularmente, gosto de quem tem compromisso com a alegria, que procura relativizar as chatices diárias e se concentrar no que importa pra valer, e assim alivia o seu cotidiano e não atormenta o dos outros. Mas não estando alegre, é possível ser feliz também.

Não estando “realizado”, também. Estando triste, felicíssimo igual. Porque felicidade é calma. Consciência. É ter talento para aturar o inevitável, é tirar algum proveito do imprevisto, é ficar debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é que foi acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo.

Benditos os que conseguem se deixar em paz. Os que não se cobram por não terem cumprido suas resoluções, que não se culpam por terem falhado, não se torturam por terem sido contraditórios, não se punem por não terem sido perfeitos. Apenas fazem o melhor que podem.

Se é para ser mestre em alguma coisa, então que sejamos mestres em nos libertar da patrulha do pensamento. De querer se adequar à sociedade e ao mesmo tempo ser livre. Adequação e liberdade simultaneamente? É uma senhora ambição. Demanda a energia de uma usina. Para que se consumir tanto?

A vida não é um questionário de Proust. Você não precisa ter que responder ao mundo quais são suas qualidades, sua cor preferida, seu prato favorito, que bicho seria. Que mania de se autoconhecer. Chega de se autoconhecer. Você é o que é, um imperfeito bem-intencionado e que muda de opinião sem a menor culpa.

Ser feliz por nada talvez seja isso.

Diogo Mainardi

O Lanzetta da "Laranza

"Luiz Lanzetta comanda a assessoria de imprensa de Dilma Rousseff, mas nenhum dos assessores de imprensa de Dilma Rousseff é comandado por Luiz Lanzetta. De fato,
ele só contratou quem o PT mandou contratar"

O PT contratou Luiz Lanzetta para comandar a assessoria de imprensa de Dilma Rousseff. Isso mesmo: Luiz Lanzetta. Ninguém sabe quem ele é. Ninguém sabe por que ele foi contratado. Está na hora de tentar saber.

Luiz Lanzetta comanda a assessoria de imprensa de Dilma Rousseff, mas nenhum dos assessores de imprensa de Dilma Rousseff é comandado por Luiz Lanzetta. De fato, ele só contratou quem o PT mandou contratar.

De Helena Chagas, apadrinhada por Franklin Martins, a Oswaldo Buarim, que pertence à quota da própria Dilma Rousseff. Luiz Lanzetta simplesmente assinou seus contratos de trabalho e passou a pagar seus salários. A empresa usada por ele para contratar e para pagar os assessores de imprensa do PT chama-se Lanza. No meio jornalístico brasiliense, ela já ganhou o apelido de "Laranza".

Em 2002, Marcos Valério pagou um monte de profissionais escolhidos pelo PT para cuidar da campanha presidencial de Lula. Agora, em 2010, Luiz Lanzetta paga um monte de profissionais escolhidos pelo PT para cuidar da campanha de Dilma Rousseff. De lá para cá, tudo melhorou. O tesoureiro do PT, em 2002, era Delúbio Soares. O tesoureiro do PT, em 2010, é o homem da Bancoop. Ufa.

Luiz Lanzetta tem um jornalzinho e um site na internet: brasiliaconfidencial.inf.br. Nas páginas do site, o nome de seu autor é mantido em segredo. A rigor, o site inteiro é mantido em segredo, considerando que praticamente ninguém o conhece. Mas seus artigos costumam ser reproduzidos por blogueiros pagos pelo lulismo. Uma de suas manchetes: "Pesquisa aponta disparada de Dilma". Outra manchete: "Tropa tucana agride professores". Outra manchete: "Serra comanda baixaria na internet".

A campanha de Dilma Rousseff está ruindo. Fernando Pimentel, seu coordenador, é conhecido por suas patetices. Quando era terrorista, ele tentou sequestrar um diplomata americano cinco vezes, e fracassou em todas elas. Mesmo baleado pelas costas, o diplomata americano conseguiu fugir.

Na sede da campanha, dois assessores de imprensa pagos por Luiz Lanzetta já pegaram dengue: Helena Chagas e Giles Azevedo. No Rio de Janeiro, um apaniguado da Petrobras, Wagner Tiso, tentou organizar um encontro de artistas com Dilma Rousseff. Só compareceram oito deles, e o de maior prestígio era o cartunista Aroeira.

Lula, alarmado com o desempenho de sua candidata, ordenou que Dilma Rousseff tomasse umas aulas para aprender a falar em público. Sua professora, Olga Curado, treinou também Roger Abdelmassih, aquele médico acusado de ter estuprado dezenas de pacientes. Quem contratou a professora de Dilma Rousseff foi Luiz Lanzetta. Quem pagou a conta foi o homem da Bancoop.

terça-feira, 27 de abril de 2010



7 de abril de 2010 | N° 16318
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Anos Dourados

No dia 21 de abril de 1960, repicaram os sinos de todas as igrejas de Viena. É que naquele dia nascia Brasília, a mais jovem capital do mundo. Cinquenta anos depois, uma sombra de corrupção e de escândalo paira sobre a belíssima cidade do Planalto Central, mas mesmo ela não pode apagar a aura de esplendor que a cerca.

Brasília não é um capítulo solitário de nossa História. É a culminação de uma soma de fatores sociológicos e políticos que levaram uma nação a compreender a própria grandeza. De repente, pela visão e a ousadia de um presidente da República, a civilização litorânea de tantos séculos venceu o continente das terras altas e além, para identificar sua própria magnitude.

Planalto e Amazônia deixavam de ser territórios, ou abandonados, ou interditos, para se converterem em parcelas de um país com a vocação do desenvolvimento.

Em paralelo, ocorriam extraordinárias mudanças no cotidiano da nação. Não era apenas uma metrópole que surgia no áspero Cerrado. Enquanto se erguiam palácios, templos, conjuntos funcionais, no outrora esquecido centro do Brasil, o país descobria seu destino.

Um grupo de jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro, entre eles um gênio chamado Antônio Carlos Jobim, inventava a Bossa Nova, que logo iria conquistar o mundo. O Cinema Novo iluminava as telas com um modo inaugural de contar o homem e o universo. Éramos campeões mundiais do futebol à pesca submarina.

Grandes estradas rasgavam as selvas, como artérias de um corpo gigantesco que se redescobria. Hidrelétricas domavam rios, levando luz e força ao que antes era treva. Um enorme número de fábricas lançava nas ruas os produtos da jovem indústria automobilística nacional.

Pelas avenidas, podiam-se ver Romi-Isettas, Volkswagens, DKWs, Dauphines, Gordinis, Simca-Chambords, Aero-Willys, JKs, jipes e lambretas.

Tudo isso era o efeito Brasília. Quanto mais subiam as torres do Congresso, quanto mais Juscelino Kubitschek se fixava no Palácio da Alvorada, quanto mais o Brasil alargava o seu desenvolvimento, mais a cidade se afirmava como capital de todos os brasileiros. Vivi tudo isso. Sei do que falo. Conheci de perto os Anos Dourados.

Uma linda terça-feira pra você. Aproveite o dia.

sábado, 24 de abril de 2010



25 de abril de 2010 | N° 16316
MARTHA MEDEIROS


Terapia do joelhaço

Extra, extra, só existe o seu desejo. Esse troço que você tem aí dentro da cachola só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo

Sentado em sua poltrona de couro marrom, ele me ouviu com a mão apoiada no queixo por 10 minutos, talvez 12 minutos, até que me interrompeu e disse: Tu estás enlouquecendo.

Não é exatamente isso que se sonha ouvir de um psiquiatra. Se você vem de uma família conservadora que acredita que terapia é pra gente maluca, pode acabar levando o diagnóstico a sério. Mas eu não venho de uma família conservadora, ao menos não tanto.

Comecei a gargalhar e em segundos estava chorando. “Como assim, enlouquecendo??”

Ele riu. Deixou a cabeça pender para um lado e me deu o olhar mais afetuoso do mundo, antes de dizer: “Querida, só existe duas coisas no mundo: o que a gente quer e o que a gente não quer”.

Quase levantei da minha poltrona de couro marrom (também tinha uma) para esbravejar: “Então é simples desse jeito? O que a gente quer e o que a gente não quer?

Olhe aqui, dr. Freud (um pseudônimo para preservar sua identidade), tem gente que faz análise durante 14 anos, às vezes mais ainda, 20 anos, e você me diz nos meus primeiros 15 minutos de consulta que a vida se resume ao nossos desejos e nada mais? Não vou lhe pagar um tostão!”

Ele jogou a cabeça pra trás e sorriu de um jeito ainda mais doce. Eu joguei a cabeça pra frente, escondi os olhos com as mãos e chorei um pouquinho mais. Não é fácil ouvir uma verdade à queima-roupa.

“Tem gente que precisa de muitos anos para entender isso, minha cara”. Suspirei e deduzi que era uma homenagem: ele me julgava capaz daquela verdade sem precisar frequentar seu consultório até ficar velhinha. Além disso, fiz as contas e percebi que ele estava me poupando de gastar uma grana preta.

Tá, e agora, o que eu faço com essa batata quente nas mãos, com essa revelação perturbadora?

Passo adiante, ora. Extra, extra, só existe o seu desejo. É o desejo que manda. Esse troço que você tem aí dentro da cachola, essa massa cinzenta, parecendo um quebra-cabeças, ela só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo.

O rei, o soberano, o infalível, é ele, o desejo. Você pode silenciá-lo à força, pode até matá-lo, caso não tenha forças para enfrentá-lo, mas vai sobrar o que de você? Vai restar sua carcaça, seu zumbi, seu avatar caminhando pelas ruas desertas de uma cidade qualquer. Você tem coragem de desprezar a essência do que faz você existir de fato?

É tão simples que nem seria preciso terapia. Ou nem seria preciso mais do que meia dúzia de consultas. Mas quem disse que, sendo complicados como somos, o simples nos contenta? Por essas e outras, estamos todos enlouquecendo.