domingo, 17 de julho de 2011


DANUZA LEÃO

Preferências

Tudo o que é considerado bom dá trabalho. As coisas condenadas são fáceis, e você se habitua logo

VOCÊS JÁ REPARARAM que tudo o que é considerado ruim é absorvido pelas pessoas -por nós- bem mais facilmente do que tudo o que faz bem, seja à saúde, seja à alma? E não é só: é muito mais fácil -e prazeroso- fazer o que é proibido do que o que pregam os governos, as religiões, a família, a medicina. Exemplo: você prefere um suco de beterraba com nabo ou uma caipirinha?

Tudo o que é considerado bom para a saúde e para o espírito costuma ter péssimo paladar, dá trabalho e leva tempo para dar resultado: já as coisas condenadas são fáceis, deliciosas, e você se habitua a elas em poucos dias.

Digamos que você resolva adquirir uma forma física impecável: vai ter que malhar três, quatro horas por dia, durante meses, anos, para poder exibir aquele feixe de músculos que vai deixar todo mundo morrendo de inveja. Mas, se resolver parar tudo, em quatro semanas volta à estaca zero. Dura, a vida.

Capítulo dieta: quanto tempo se leva para perder 15 quilos? Meses, e passando por sacrifícios permanentes, pois nada mais insuportável do que comer legumes no vapor com pouco sal e bebendo água. Insuportável, não: um verdadeiro inferno.

Aí um dia, prestes a cortar os pulsos, você resolve jogar tudo para o alto e cai de boca numa feijoada.

Toma todas as caipirinhas a que tem direito -com açúcar- e quando chega em casa abre aquela caixa de chocolates e vai ver um filme na televisão, fe-li-cís-si-ma. Nesse dia você recupera três quilos, que para perder vai levar pelo menos 40 dias, oh, vida.

Ela, que fumava dois maços de cigarro por dia, resolve deixar o vício. Compra as piteiras milagrosas, usa o tal esparadrapo americano, testa sua força de vontade até o limite máximo, fica de péssimo humor, e vai diminuindo, diminuindo, até chegar a quatro, cinco cigarros por dia -isso depois de seis meses com os nervos à flor da pele.

Do alto de sua superioridade, começa a fazer o discurso habitual, e no qual nem acredito muito: está sentindo mais o cheiro das coisas e o paladar dos alimentos -isso fora a resistência física. Já sobe 12 andares direto, corre dez quilômetros sem cansar e a performance sexual -bem, a modéstia impede de falar.

Com tanta coisa boa acontecendo, só pela cabeça de um louco passaria voltar a esse vício maldito. Mas uma noite sai com uns amigos, se distrai, toma três uísques e resolve botar um cigarro na boca -para nada, só para mostrar que é capaz de fumar um só e não sucumbir.

Acaba fumando um maço inteiro e vai ter que começar da estaca zero, pois o vício já se instalou, igualzinho ao que era antes. Para desviciar, meses de sacrifício: para reviciar, basta uma noite -é possível? É justo?

E com o amor, a mesma coisa; entre um rapaz de bom caráter, trabalhador, aquele que já se sabe que vai ser um marido fiel -teoricamente, o homem certo-, ela costuma preferir um cafajeste, que não tem trabalho fixo (vive de expedientes), aquele que faz com que ela passe noites em claro esperando que ele apareça -ele, que não pode ver um rabo de saia e que apronta sempre.

E, se ele aparecer, ela abandona o rapaz certo e volta para os braços dele quantas vezes ele quiser; por que será que entre o que nos faz bem e o que nos faz mal -e quanto mais mal, melhor-, a gente sempre prefere o pior?

A vida é mesmo complicada: não podia ser ao contrário?

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 16 de julho de 2011



17 de julho de 2011 | N° 16763
MARTHA MEDEIROS


Escrever à mão

Assim como não há mais razão para aprendermos a revelar uma foto, não haverá razão também para que se aprenda a letra cursiva

Não é nenhuma novidade que estamos nos desacostumando a escrever à mão. Quando ainda o fazemos? Ao assinar um documento, ao deixar um bilhete na porta da geladeira, ao organizar a lista de compras para o supermercado. É por isso que o Estado americano de Indiana já estuda a possibilidade de retirar do currículo escolar o ensino da letra cursiva, já que os teclados serão uma extensão de nossos dedos.

Acompanhei a discussão desse assunto na rádio CBN, num programa em que a filósofa e escritora Viviane Mosé contrapôs-se ao jornalista Artur Xexéo.Viviane não acredita que esse projeto vá pegar e pensa que a vida ficaria menos poética e menos livre sem o uso da mão como ferramenta para se comunicar.

Já Xexéo não tem dúvida de que esse é um caminho sem volta: assim como não há mais razão para aprendermos a revelar uma foto – prática que constava do currículo de todas as faculdades de comunicação – não haverá razão também para que se aprenda a letra cursiva.

Quem se perder numa ilha deserta não precisará mais escrever “socorro!” na areia com um pedaço de pau, basta mandar um e-mail. Aliás, quem ainda fica perdido em ilhas desertas, havendo GPS?

Obviamente que meu lado nostálgico pendeu para o lado das argumentações da Viviane. Impossível não lembrar dos nossos primeiros cadernos da escola, da magia de aprender a unir uma letra na outra e de assinar pela primeira vez o próprio nome. A assinatura da gente faz parte da nossa identidade.

Lindo, mas está na hora de acordar: em breve as assinaturas serão todas digitalizadas e ninguém mais usará cadernos, e sim tablets. Canetas, lápis, apontadores, cadernetinhas, irá tudo para o museu, e dê-se por feliz se o livro impresso também não for.

Sei que é bobagem tentar parar o tempo: recusar-se a aceitar os avanços da tecnologia é uma forma de lutar contra a ideia da morte. O problema é que nem tudo considero um avanço: viver sem poesia é evoluir? Aprecio muito a vida prática e funcional, mas às vezes bate saudade das coisas que davam defeito, como o ruído do disco de vinil ou a longa espera da chegada de uma carta. Até a caligrafia enigmática dos médicos há de fazer falta.

Menos mal que, a esta altura do campeonato, não preciso me preocupar em me adaptar a tantas inovações. Estou entrando naquela idade em que a resistência ao futurismo passa a ser perdoada – quem vai bater boca com uma senhora em via de ficar senil?

Então, enquanto pertencer a este mundo, ainda pretendo encontrar bilhetes escritos à mão no travesseiro ao lado do meu e poder deixar um recado escrito com batom no espelho do banheiro. Mas pra já. O direito de sermos deliciosamente cafonas está encurtando.


16 de julho de 2011 | N° 16762
NILSON SOUZA


Arabescos e biscoitos

Meu colega Erni é um consertador de palavras. Todos os dias desabam sobre sua mesa de trabalho textos com defeitos de fabricação, frases com vazamento nas juntas, vocábulos estropiados, com falta de letras ou mesmo de sentido.

Pacientemente, ele abre sua caixa de ferramentas, que contém não apenas as chaves de fenda da gramática, mas também compartimentos com estoques de vírgulas, hifens, crases, circunflexos e, suspeito, até alguns antigos tremas, por puro saudosismo.

Como aqueles carpinteiros que seguram pregos nos lábios enquanto medem, aplainam e parafusam, o nosso faz-tudo das letras revisa títulos, legendas, extensas reportagens, entrevistas, artigos e colunas, operando reparos sem alarde. É o anjo da guarda dos redatores distraídos.

Com a última reforma ortográfica, tornamo-nos ainda mais dependentes do nosso revisor. Invariavelmente, ele é chamado para elucidar as dúvidas sobre acentos que desapareceram e palavras compostas que se uniram de forma promíscua e inexplicável. Quando entra em férias, como ocorre atualmente, ficamos desorientados.

Além do suporte técnico preciso e eficiente que nos proporciona, ele ainda permite que os enjeitados do idioma sirvam-se nos pacotes de biscoitos que mantém sobre a mesa para enfrentar os serões da madrugada na Redação.

Erni é, sempre, o primeiro leitor desta crônica semanal e também uma espécie de termômetro da atratividade do texto. Sem nenhuma combinação prévia, desenvolveu um sistema de avaliação muito particular, mas que invariavelmente bate com a percepção dos leitores.

Quando me devolve a mensagem de confirmação da revisão com arabescos, estrelinhas, cobras, lagartos e outros símbolos gráficos, tirados não sei de que arquivo de fontes, é porque leu alguma coisa interessante. Quando manda uma resposta monossilábica, já sei que estou apenas cumprindo tabela.

Revisores são imprescindíveis, até mesmo para grandes e consagrados escritores. García Márquez confessou certa vez que a ortografia sempre foi o seu calvário, mas que, felizmente para ele, revisores mais benévolos costumavam atribuir seus erros à má caligrafia.

Como não escrevemos mais à mão, nosso bode expiatório passou a ser a digitação – embora o esse e o cê-cedilha sequer sejam vizinhos no teclado. A tecnologia também nos proporcionou um revisor eletrônico, o tal corretor ortográfico automático, que ajuda bastante, mas não é de total confiança. De vez em quando, apronta alguma armadilha. Neste texto mesmo, sugeriu substituir o cê por crê...

Além disso, não distribui biscoitos. Volta, Erni!

RUTH DE AQUINO

Quando a escola é o espaço do inferno

Quase 1.000 alunos são punidos, suspensos ou expulsos por dia nas escolas. Quase 1.000 por dia, alguns com 5 anos de idade! Por abusos verbais e físicos. No ano passado, 44 professores foram internados em hospitais com graves ferimentos. Diante do quadro-negro, o governo decidiu que professores poderão “usar força” para se defender e apartar brigas. E poderão revistar estudantes em busca de pornografia, celulares, câmeras de vídeo, álcool, drogas, material furtado ou armas.

Achou que era no Brasil? É na Grã-Bretanha.

Os dados são de um relatório governamental. “O sistema escolar entrou em colapso”, diz Katharine Birbalsingh, demitida do Departamento de Educação depois de criticar a violência nas escolas públicas inglesas. “Os professores acabam sendo culpados pela indisciplina. A diretoria da escola estimula essa teoria, os alunos a usam como desculpa e até os professores começam a acreditar nisso. Eles não pedem ajuda com medo de parecer incompetentes.”

Os alunos jogam a cadeira no mestre, chutam a perna do mestre, empurram, xingam. Ou furam o mestre com o lápis, fazem comentários obscenos, estupram, ameaçam com facas. Alguns são casos extremos pinçados pela imprensa. Os números na Grã-Bretanha preocupam. Mostram que as escolas precisam restaurar a autoridade perdida. Muitos professores abandonaram a profissão por se sentir impotentes. Educadores mais rigorosos pregam tolerância zero com alunos bagunceiros e que não fazem seu dever de casa.

As reflexões de lá são iguais às de cá. A violência nas escolas seria uma continuação do lado de fora, na rua e nos lares. A hierarquia cai em desuso. Valores e limites, que quer dizer isso mesmo? Crianças e adolescentes não respeitam ninguém. Nem os pais, nem as autoridades, nem os vizinhos, os porteiros, os pedestres, os colegas, as namoradas. Há uma falta de cerimônia, pudor e educação no sentido mais amplo.

E aí a culpa é jogada nos pais. Por não mostrarem o certo e o errado. Não abrirem um tempo de qualidade com os filhos. Esquecê-los em frente a um computador ou televisão. O de sempre. O aluno que peita o professor também xinga os pais. Aric Sigman, da Royal Society of Medicine, em Londres, autor do livro The spoilt generation (A geração mimada) , afirma que, hoje, até criancinhas nas creches jogam objetos e cadeiras umas nas outras.

“Há uma inversão da autoridade. Seus impulsos não são controlados em casa. É uma geração mimada que ataca especialmente as mães”, diz ele. Muitos professores abandonam o ensino por se sentir impotentes diante da violência dos alunos

E o que o governo britânico faz? Manda o professor revidar. Até agora, ele era proibido de tocar no aluno, mesmo ao ensinar um instrumento numa aula de música. A nova cartilha promete superpoderes aos professores. Mestres, usem “força razoável”, vocês agora têm a última palavra para expulsar um aluno agressivo, revistem mochilas suspeitas. Dará certo? Não acredito. Sem diálogo e consenso entre famílias, escolas, educadores e psicólogos, esse pesadelo não tem fim.

No Brasil, a socióloga Miriam Abramovay, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), admite que os professores passaram a ter medo. Numa pesquisa para a Unesco em Brasília, em 2002, um depoimento a chocou: “Um professor me disse que ia armado para a escola.

Como se fosse uma selva. Isso mostra total descrença no sistema”. Ela acha que o Brasil está investindo dinheiro demais em bullying, mas esquece todo o resto: “Nossa escola é de dois séculos atrás”. Os ataques aos professores não se limitam à sala de aula. Carros dos mestres são arranhados, pneus são furados. Eles não têm apoio nem ideia de como reagir. Muitos trocam de escola ou abandonam a profissão.

Quando Cristovam Buarque era ministro de Lula, tinha, com Miriam, um projeto nacional de “mediação escolar” para prevenir conflitos, melhorar o ambiente e estimular o aprendizado. “Paulo Freire dizia que a escola era o espaço da alegria, do prazer, mas assim ela se torna o espaço do inferno”, diz Miriam.

O projeto não vingou. Cristovam abandonou o barco por sentir que Educação não era prioridade nos investimentos. E continua não sendo. Deveria ser nossa obsessão.

quarta-feira, 13 de julho de 2011



13 de julho de 2011 | N° 16759
MARTHA MEDEIROS


Uma tarde com Claude Troisgros

Quando recebi o convite para ser uma das participantes do programa especial de inverno que o chef Claude Troisgros estaria gravando em Gramado, na Pousada La Hacienda, minha primeira reação foi repetir em voz alta o nome do programa:

“Que marravilha!” Gosto do canal GNT, admiro o cozinheiro, sou fã de Gramado e estava doida para conhecer o La Hacienda, que todo mundo dizia ser um lugar encantador – e é. Então respondi que sim, sim, sim e só quando fui colocar a cabeça no travesseiro é que me perguntei: será que deveria ter avisado que sou uma negação na cozinha?

Já escrevi uma crônica intitulada Chata Pra Comer que foi inspirada na adolescente que fui. Hoje já não sou tão abominável, mas ainda guardo características daquela garota que não comia nenhuma verdura, nenhum legume e só uma ou duas frutas.

Que não passava manteiga no pão, tinha medo de molhos e o único tempero que tolerava era o sal. Hoje as coisas mudaram bastante, mas ainda tenho implicância com alimentos cuja textura é viscosa, como o champignon, e tenho verdadeiro horror a ovo.

Quando se aproximava a data da gravação, a produtora me avisou que o prato que Claude prepararia, durante nossa conversa em frente às câmeras, seria ovos pochê. E agora, meu São Benedito? Falo ou não falo? Falo. “Olha, não tenho boa relação com ovos”. Ela foi gentil como eu esperava e disse que não haveria problema algum, que poderia trocar de prato. Eu gostava de croque monsieur? Uau, quem não gosta? Perfeito, então seria croque monsieur com champignons. Hummm... agora sim.

Foi uma tarde adorável. Claude é um homem simpático, divertido e cozinha sem nenhuma afetação, com entrega e prazer genuínos. Um francês típico que mete o dedo dentro da panela e o leva à boca, que pega tudo com as mãos, faz sujeira, derrama, ou seja, quase igual a nós, não fosse pelo resultado sublime.

Na minha lista de 50 coisas a fazer antes de morrer (100 é para quem tem tempo para esbanjar), está aprender a cozinhar. Fazer das refeições uma arte, mas uma arte sem esnobismo, uma arte sem stress, uma arte que nem pareça arte pela facilidade da coisa.

Ficar íntima dos aromas, deixar de ser maníaca e transformar em festa qualquer lanche mais incrementado. E, claro, compartilhar com as pessoas que amo, pois a culinária é uma atividade generosa por natureza – ainda que eu também me excite com a ideia de cozinhar só para mim mesma, pelo menos na etapa dos ensaios.

Está na hora de me aventurar em terreno estranho. Cozinha sempre foi para mim o melhor lugar da casa para conversar, nada além. Daqui para frente, espero que vire meu segundo escritório. Tudo por causa do croque monsieur mais delicioso que comi na vida – apesar do champignon.

terça-feira, 12 de julho de 2011



12 de julho de 2011 | N° 16757
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma garota na neve

Fez frio em Porto Alegre e quando me levantei os termômetros marcavam três graus, sinal de que mais cedo haviam mergulhado em temperaturas bem mais profundas.

Sou um habitante do outono e do inverno. Detesto cordialmente os trinta e tantos graus de nosso verão e guardo amenas recordações de dias e noites em que vivi abaixo de zero. Lembro que certa vez em Munique os meteorologistas anunciavam de manhã menos 17 graus, e ainda assim saí à rua, desafiando os ponteiros glaciais com a cara e a coragem.

Em Hamburgo, na mesma ocasião, abri as cortinas do apartamento de hotel e deparei com uma camada branca , cobrindo telhados, ruas, praças, pessoas, animais e coisas.

Eu próprio senti a neve pousando mansamente em meus cabelos ao desembarcar no aeroporto de Dresden, mas o espetáculo era belo demais para que me importasse com a recepção gélida e imprevista. Depois tomei um trem para Berlim, e os flocos me acompanharam durante toda a viagem pelas janelas panorâmicas da primeira classe.

A maior sensação de frio por que passei não ocorreu no entanto na Europa, mas nos Estados Unidos. Eu estava no topo das Montanhas Rochosas, numa cidadezinha chamada Steamboat Springs, famosa por suas pistas de esqui, e acordei, num sábado, prisioneiro da neve. Parecia que o mundo havia sumido num imenso painel branco. Gente, árvores, casas tinham sido engolidas por um imenso manto alvo, com ares de eternidade. Depois tudo virou uma múltipla escultura de gelo, que durou dias e semanas.

Mas a impressão mais duradoura de neve me ficou mesmo desta nossa Porto Alegre.

Na tarde de 24 de agosto de 1984 assisti da Redação de Zero Hora aos flocos caindo na rua que tem o nome do jornal. Foi um espetáculo lindo, ainda que não tenha durado muito. A lembrança mais impressiva que me restou foi a de uma garota anônima e belíssima que passava lá fora e cujos cabelos loiros foram decorados em momentos por efêmeros ornatos.

Escrevo ainda sem saber se vai nevar de novo em Porto Alegre. O frio permite supor que sim.

Contudo me comove, tantos anos depois, a recordação da garota anônima.

Quem era? Para onde ia? São perguntas de difícil resposta. Mas me agrada pensar que ia para um encontro de amor.


12 de julho de 2011 | N° 16757
CLÁUDIO MORENO


Não dou a mínima

Quando a filha de Clístenes, o tirano de Sícion, chegou à idade de casar, uma proclamação foi divulgada por todos os reinos que compunham a Grécia: todo jovem que se julgasse digno o bastante para desposá-la deveria submeter-se a um ano inteiro de provas e entrevistas, ao cabo do qual seria conhecido o nome do felizardo. Em sessenta dias, a flor da juventude grega estava reunida em Sícion, onde o rei havia destinado um estádio e um ginásio especialmente para a seleção do seu futuro genro.

À medida que iam chegando, Clístenes interrogava-os sobre sua família, sobre a cidade de onde provinham, sobre seus hábitos e sobre sua educação. Para conhecê-los ainda melhor, manteve-se junto deles a maior parte do ano, observando suas conversas, seus exercícios e, sobretudo, o seu comportamento nos festins que ele próprio organizava. Embora todos os pretendentes fossem do mais alto quilate, o mais aquinhoado parecia ser Hipóclides, filho de uma extensa linhagem de heróis atenienses.

No dia fixado para o anúncio, o soberano deu uma grande festa para toda a população. Quase ao final do banquete, Hipóclides, para o qual se voltavam todas as atenções, aproveitou que o flautista tocava uma ária bem compassada e começou a dançar, o que fazia com muito gosto e evidente satisfação.

Entusiasmado, mandou vir uma grande mesa para o meio do salão e sobre ela continuou dançando, primeiro à moda de Esparta, depois à moda de Atenas; finalmente, arrebatado pela música, apoiou a cabeça na mesa, equilibrou-se com as pernas para cima e, com extraordinária maestria, pôs-se a movimentar-se em todas as direções, seguindo o compasso da flauta.

Clístenes, que já estava chocado com as primeiras danças e fazia um grande esforço para ocultar a aversão diante daquele espetáculo, não pôde mais se conter quando viu seu candidato favorito gingando e rodopiando com as pernas para o ar, e exclamou, indignado: “Jovem, perdeste a noiva dançando!” – ao que o ateniense retrucou, alegremente: “Pois Hipóclides não dá a mínima!”.

Heródoto conta que, com o tempo, essa resposta curta e espontânea acabou se tornando uma expressão popular no mundo grego.

Para uns, servia como crítica à irresponsabilidade dos jovens; para outros, no entanto, era uma afirmação de liberdade, de independência diante da opinião dos outros. Não foi por acaso que o discutido T. E. Lawrence, tradutor da Odisseia e agente secreto britânico, mais conhecido como Lawrence da Arábia, entalhou esta frase no alto da porta de sua casa de campo, a indicar que, se não podemos eliminar as preocupações – já que isso é privilégio dos deuses –, devemos lutar para tornar nossa vida mais leve, deixando de levar tão a sério o julgamento que os outros, inevitavelmente, haverão de fazer sobre nós.


12 de julho de 2011 | N° 16757
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma garota na neve

Fez frio em Porto Alegre e quando me levantei os termômetros marcavam três graus, sinal de que mais cedo haviam mergulhado em temperaturas bem mais profundas.

Sou um habitante do outono e do inverno. Detesto cordialmente os trinta e tantos graus de nosso verão e guardo amenas recordações de dias e noites em que vivi abaixo de zero. Lembro que certa vez em Munique os meteorologistas anunciavam de manhã menos 17 graus, e ainda assim saí à rua, desafiando os ponteiros glaciais com a cara e a coragem.

Em Hamburgo, na mesma ocasião, abri as cortinas do apartamento de hotel e deparei com uma camada branca , cobrindo telhados, ruas, praças, pessoas, animais e coisas.

Eu próprio senti a neve pousando mansamente em meus cabelos ao desembarcar no aeroporto de Dresden, mas o espetáculo era belo demais para que me importasse com a recepção gélida e imprevista. Depois tomei um trem para Berlim, e os flocos me acompanharam durante toda a viagem pelas janelas panorâmicas da primeira classe.

A maior sensação de frio por que passei não ocorreu no entanto na Europa, mas nos Estados Unidos. Eu estava no topo das Montanhas Rochosas, numa cidadezinha chamada Steamboat Springs, famosa por suas pistas de esqui, e acordei, num sábado, prisioneiro da neve. Parecia que o mundo havia sumido num imenso painel branco. Gente, árvores, casas tinham sido engolidas por um imenso manto alvo, com ares de eternidade. Depois tudo virou uma múltipla escultura de gelo, que durou dias e semanas.

Mas a impressão mais duradoura de neve me ficou mesmo desta nossa Porto Alegre.

Na tarde de 24 de agosto de 1984 assisti da Redação de Zero Hora aos flocos caindo na rua que tem o nome do jornal. Foi um espetáculo lindo, ainda que não tenha durado muito. A lembrança mais impressiva que me restou foi a de uma garota anônima e belíssima que passava lá fora e cujos cabelos loiros foram decorados em momentos por efêmeros ornatos.

Escrevo ainda sem saber se vai nevar de novo em Porto Alegre. O frio permite supor que sim.

Contudo me comove, tantos anos depois, a recordação da garota anônima.

Quem era? Para onde ia? São perguntas de difícil resposta. Mas me agrada pensar que ia para um encontro de amor.

sábado, 9 de julho de 2011



10 de julho de 2011 | N° 16755
MARTHA MEDEIROS


O amor, um anseio

Recebi de presente de uma querida amiga um livrinho com pensamentos de Carl Jung sobre o amor, esse tema fascinante que nunca se esgota. Pai da psicologia analítica, Jung faz várias considerações, até que em certo momento da leitura me deparei com a seguinte frase: O amor da mulher não é um sentimento isso só ocorre no homem mas um anseio de vida, que às vezes é assustadoramente não sentimental e pode até forçar seu autossacrifício.

Peraí. Isso é sério. O que eu entendi dessa afirmação é que o homem é o único ser capaz de sentir um amor genuíno e desinteressado. O homem só atende ao seu mais puro sentimento – e se esse sentimento não existir, ele não compactua com uma invenção que o substitua. O homem não cria um amor que lhe sirva.

Já para a mulher o amor não é uma reação emocional, é muito mais que isso: aliado a esse sentimento latente, existe um projeto de vida extremamente racional que precisa ser levado a cabo para que ela concretize seu ideal de felicidade.

O amor é uma ponte que a levará a outras realizações mais profundas, o amor é um condutor que a fará chegar a um estado de plenitude e que envolve a satisfação de outras necessidades que não apenas as de caráter romântico.

Ou seja, romântico mesmo é o homem.

A mulher necessita encontrar seu lugar no mundo, a mulher precisa completar sua missão (ter filhos, geralmente a mais prioritária), a mulher deseja responder seus questionamentos internos, a mulher sente-se impelida a formatar um esquema de vida que seja inteiro e não manco, a mulher possui uma voracidade que a faz querer conquistar tudo o que idealizou.

O amor é um caminho para a realização desse projeto que é bem mais audacioso e ambicioso do que simplesmente amar por amar. O amor pode nem ser amor de verdade, mas é através de algum amor, seja ele de que tipo for, que ela confirmará sua condição de mulher. O homem já nasce confirmado em sua condição.

Será isso mesmo ou estou viajando na interpretação que fiz? Se eu estiver certa, então talvez o verdadeiro amor seja o amor da maturidade, o amor que vem depois de a mulher já ter atingido seu anseio original, o amor que surge da serenidade, depois de tanto ter se empenhado, o amor que vem quando não há mais perseguição a nada: o amor maduro e íntegro da mulher pode enfim se conectar com o amor maduro e íntegro que o homem sempre sentiu. Os amores puros de um e de outro finalmente se encaixariam – o amor real dele e o amor dela desprovido de ansiedades secretas. Enfim, juntos?

Indo mais longe, talvez isso explique por que são as mulheres as que mais pedem o divórcio: já atingiram seus propósitos e procuram agora vivenciar um amor que seja unicamente sentimental, sem cota de sacrifício, enquanto que o homem só pede o divórcio quando se apaixona por outra mulher, pois ele sempre foi movido pelo amor desde o começo, deixando as racionalizações fora do âmbito do coração.

Jung, me perdoe se delirei a partir de uma única frase sua, mas me permita realizar esse meu anseio de pensar o amor, além de vivenciá-lo. Que jeito, sou mulher.


10 de julho de 2011 | N° 16755
MARTHA MEDEIROS


O amor, um anseio

Recebi de presente de uma querida amiga um livrinho com pensamentos de Carl Jung sobre o amor, esse tema fascinante que nunca se esgota. Pai da psicologia analítica, Jung faz várias considerações, até que em certo momento da leitura me deparei com a seguinte frase: O amor da mulher não é um sentimento isso só ocorre no homem mas um anseio de vida, que às vezes é assustadoramente não sentimental e pode até forçar seu autossacrifício.

Peraí. Isso é sério. O que eu entendi dessa afirmação é que o homem é o único ser capaz de sentir um amor genuíno e desinteressado. O homem só atende ao seu mais puro sentimento – e se esse sentimento não existir, ele não compactua com uma invenção que o substitua. O homem não cria um amor que lhe sirva.

Já para a mulher o amor não é uma reação emocional, é muito mais que isso: aliado a esse sentimento latente, existe um projeto de vida extremamente racional que precisa ser levado a cabo para que ela concretize seu ideal de felicidade.

O amor é uma ponte que a levará a outras realizações mais profundas, o amor é um condutor que a fará chegar a um estado de plenitude e que envolve a satisfação de outras necessidades que não apenas as de caráter romântico.

Ou seja, romântico mesmo é o homem.

A mulher necessita encontrar seu lugar no mundo, a mulher precisa completar sua missão (ter filhos, geralmente a mais prioritária), a mulher deseja responder seus questionamentos internos, a mulher sente-se impelida a formatar um esquema de vida que seja inteiro e não manco, a mulher possui uma voracidade que a faz querer conquistar tudo o que idealizou.

O amor é um caminho para a realização desse projeto que é bem mais audacioso e ambicioso do que simplesmente amar por amar. O amor pode nem ser amor de verdade, mas é através de algum amor, seja ele de que tipo for, que ela confirmará sua condição de mulher. O homem já nasce confirmado em sua condição.

Será isso mesmo ou estou viajando na interpretação que fiz? Se eu estiver certa, então talvez o verdadeiro amor seja o amor da maturidade, o amor que vem depois de a mulher já ter atingido seu anseio original, o amor que surge da serenidade, depois de tanto ter se empenhado, o amor que vem quando não há mais perseguição a nada: o amor maduro e íntegro da mulher pode enfim se conectar com o amor maduro e íntegro que o homem sempre sentiu. Os amores puros de um e de outro finalmente se encaixariam – o amor real dele e o amor dela desprovido de ansiedades secretas. Enfim, juntos?

Indo mais longe, talvez isso explique por que são as mulheres as que mais pedem o divórcio: já atingiram seus propósitos e procuram agora vivenciar um amor que seja unicamente sentimental, sem cota de sacrifício, enquanto que o homem só pede o divórcio quando se apaixona por outra mulher, pois ele sempre foi movido pelo amor desde o começo, deixando as racionalizações fora do âmbito do coração.

Jung, me perdoe se delirei a partir de uma única frase sua, mas me permita realizar esse meu anseio de pensar o amor, além de vivenciá-lo. Que jeito, sou mulher.


10 de julho de 2011 | N° 16755
MARTHA MEDEIROS


O amor, um anseio

Recebi de presente de uma querida amiga um livrinho com pensamentos de Carl Jung sobre o amor, esse tema fascinante que nunca se esgota. Pai da psicologia analítica, Jung faz várias considerações, até que em certo momento da leitura me deparei com a seguinte frase: O amor da mulher não é um sentimento isso só ocorre no homem mas um anseio de vida, que às vezes é assustadoramente não sentimental e pode até forçar seu autossacrifício.

Peraí. Isso é sério. O que eu entendi dessa afirmação é que o homem é o único ser capaz de sentir um amor genuíno e desinteressado. O homem só atende ao seu mais puro sentimento – e se esse sentimento não existir, ele não compactua com uma invenção que o substitua. O homem não cria um amor que lhe sirva.

Já para a mulher o amor não é uma reação emocional, é muito mais que isso: aliado a esse sentimento latente, existe um projeto de vida extremamente racional que precisa ser levado a cabo para que ela concretize seu ideal de felicidade.

O amor é uma ponte que a levará a outras realizações mais profundas, o amor é um condutor que a fará chegar a um estado de plenitude e que envolve a satisfação de outras necessidades que não apenas as de caráter romântico.

Ou seja, romântico mesmo é o homem.

A mulher necessita encontrar seu lugar no mundo, a mulher precisa completar sua missão (ter filhos, geralmente a mais prioritária), a mulher deseja responder seus questionamentos internos, a mulher sente-se impelida a formatar um esquema de vida que seja inteiro e não manco, a mulher possui uma voracidade que a faz querer conquistar tudo o que idealizou.

O amor é um caminho para a realização desse projeto que é bem mais audacioso e ambicioso do que simplesmente amar por amar. O amor pode nem ser amor de verdade, mas é através de algum amor, seja ele de que tipo for, que ela confirmará sua condição de mulher. O homem já nasce confirmado em sua condição.

Será isso mesmo ou estou viajando na interpretação que fiz? Se eu estiver certa, então talvez o verdadeiro amor seja o amor da maturidade, o amor que vem depois de a mulher já ter atingido seu anseio original, o amor que surge da serenidade, depois de tanto ter se empenhado, o amor que vem quando não há mais perseguição a nada: o amor maduro e íntegro da mulher pode enfim se conectar com o amor maduro e íntegro que o homem sempre sentiu. Os amores puros de um e de outro finalmente se encaixariam – o amor real dele e o amor dela desprovido de ansiedades secretas. Enfim, juntos?

Indo mais longe, talvez isso explique por que são as mulheres as que mais pedem o divórcio: já atingiram seus propósitos e procuram agora vivenciar um amor que seja unicamente sentimental, sem cota de sacrifício, enquanto que o homem só pede o divórcio quando se apaixona por outra mulher, pois ele sempre foi movido pelo amor desde o começo, deixando as racionalizações fora do âmbito do coração.

Jung, me perdoe se delirei a partir de uma única frase sua, mas me permita realizar esse meu anseio de pensar o amor, além de vivenciá-lo. Que jeito, sou mulher.


O amor bom é facinho
Ivan Martins

Por que as pessoas valorizam o esforço e a sedução?

Há conversas que nunca terminam e dúvidas que jamais desaparecem. Sobre a melhor maneira de iniciar uma relação, por exemplo. Muita gente acredita que aquilo que se ganha com facilidade se perde do mesmo jeito. Acham que as relações que exigem esforço têm mais valor. Mulheres difíceis de conquistar, homens difíceis de manter, namoros que dão trabalho - esses tendem a ser mais importantes e duradouros. Mas será verdade?

Eu suspeito que não.

Acho que somos ensinados a subestimar quem gosta de nós. Se a garota na mesa ao lado sorri em nossa direção, começamos a reparar nos seus defeitos. Se a pessoa fosse realmente bacana não me daria bola assim de graça. Se ela não resiste aos meus escassos encantos é uma mulher fácil – e mulheres fáceis não valem nada, certo? O nome disso, damas e cavalheiros, é baixa auto-estima: não entro em clube que me queira como sócio. É engraçado, mas dói.

Também somos educados para o sacrifício. Aquilo que ganhamos sem suor não tem valor. Somos uma sociedade de lutadores, não somos? Temos de nos esforçar para obter recompensas. As coisas que realmente valem a pena são obtidas à duras penas. E por aí vai. De tanto ouvir essa conversa - na escola, no esporte, no escritório - levamos seus pressupostos para a vida afetiva. Acabamos acreditando que também no terreno do afeto deveríamos ser capazes de lutar, sofrer e triunfar. Precisamos de conquistas épicas para contar no jantar de domingo. Se for fácil demais, não vale. Amor assim não tem graça, diz um amigo meu. Será mesmo?

Minha experiência sugere o contrário.

Desde a adolescência, e no transcorrer da vida adulta, todas as mulheres importantes me caíram do céu. A moça que vomitou no meu pé na festa do centro acadêmico e me levou para dormir na sala da casa dela. Casamos. A garota de olhos tristes que eu conheci na porta do cinema e meia hora depois tomava o meu sorvete. Quase casamos? A mulher cujo nome eu perguntei na lanchonete do trabalho e 24 horas depois me chamou para uma festa. A menina do interior que resolveu dançar comigo num impulso. Nenhuma delas foi seduzida, conquistada ou convencida a gostar de mim. Elas tomaram a iniciativa – ou retribuíram sem hesitar a atenção que eu dei a elas.

Toda vez que eu insisti com quem não estava interessada deu errado. Toda vez que tentei escalar o muro da indiferença foi inútil. Ou descobri que do outro lado não havia nada. Na minha experiência, amor é um território em que coragem e a iniciativa são premiadas, mas empenho, persistência e determinação nunca trouxeram resultado.

Relato essa experiência para discutir uma questão que me parece da maior gravidade: o quanto deveríamos insistir em obter a atenção de uma pessoa que não parece retribuir os nossos sentimos?

Quem está emocionalmente disponível lida com esse tipo de dilema o tempo todo. Você conhece a figura, acha bacana, liga uns dias depois e ela não atende e nem liga de volta. O que fazer? Você sai com a pessoa, acha ela o máximo, tenta um segundo encontro e ela reluta em marcar a data.

Como proceder a partir daí? Você começou uma relação, está se apaixonando, mas a outra parte, um belo dia, deixa de retornar seus telefonemas. O que se faz? Você está apaixonado ou apaixonada, levou um pé na bunda e mal consegue respirar. É o caso de tentar reconquistar ou seria melhor proteger-se e ajudar o sentimento a morrer?

Todas essas situações conduzem à mesma escolha: insistir ou desistir?

Quem acha que o amor é um campo de batalha geralmente opta pela insistência. Quem acha que ele é uma ocorrência espontânea tende a escolher a desistência (embora isso pareça feio). Na prática, como não temos 100% de certeza sobre as coisas, e como não nos controlamos 100%, oscilamos entre uma e outra posição, ao sabor das circunstâncias e do tamanho do envolvimento.

Mas a maioria de nós, mesmo de forma inconsciente, traça um limite para o quanto se empenhar (ou rastejar) num caso desses. Quem não tem limites sofre além da conta – e frequentemente faz papel de bobo, com resultados pífios.

Uma das minhas teorias favoritas é que mesmo que a pessoa ceda a um assédio longo e custoso a relação estará envenenada. Pela simples razão de que ninguém é esnobado por muito tempo ou de forma muito ostensiva sem desenvolver ressentimentos. E ressentimentos não se dissipam.

Eles ficam e cobram um preço. Cedo ou tarde a conta chega. E o tipo de personalidade que insiste demais numa conquista pode estar movida por motivos errados: o interesse é pela pessoa ou pela dificuldade? É um caso de amor ou de amor próprio?

Ser amado de graça, por outro lado, não tem preço. É a homenagem mais bacana que uma pessoa pode nos fazer. Você está ali, na vida (no trabalho, na balada, nas férias, no churrasco, na casa do amigo) e a pessoa simplesmente gosta de você.

Ou você se aproxima com uma conversa fiada e ela recebe esse gesto de braços abertos. O que pode ser melhor do que isso? O que pode ser melhor do que ser gostado por aquilo que se é – sem truques, sem jogos de sedução, sem premeditações? Neste momento eu não consigo me lembrar de nada.

Ruth de Aquino

A lição do caso Strauss-Kahn

O homem que domina todas as conversas em Paris é Dominique Strauss-Kahn – e sua ressurreição. A mídia francesa ataca o moralismo americano e a condenação antecipada de DSK. A dúvida é se, inocentado, ele tentará ser eleito presidente da França em 2012 ou se o desgaste do sexo com a camareira do hotel foi forte demais. DSK está nesta página porque eu acreditei na versão da camareira da Guiné – assim como o FMI, o promotor americano e a maioria da imprensa mundial. Uma versão que vem sendo demolida aos poucos.

Tudo leva a crer que eu, como tantos, me precipitei e cometi um erro ao analisar o caso pela ótica da africana descrita como “exemplar” no emprego e em sua comunidade. De “estuprador de muçulmana”, DSK teria passado a ser apenas o cliente pão-duro de uma prostituta imigrante e mentirosa, namorada de um presidiário traficante de drogas.

Isso, claro, se as últimas informações surgidas sobre o escândalo forem verdadeiras – porque, como percebemos, indícios não são provas. A mídia está escaldada. Todos aprendemos com esse episódio. DSK também aprendeu, espera-se.

O mais provável é que nunca se saiba o que realmente aconteceu na suíte 2.806 do Hotel Sofitel entre DSK e Nafissatou Diallo. Ela é mesmo prostituta? O sexo foi consensual? DSK foi violento ao cobrar o serviço sexual e ela quis se vingar? Ele não pagou o que devia?

Ela quis chantageá-lo após o sexo oral e ele não cedeu à pressão de uma oportunista? Sabe-se que o ex-diretor do FMI não foi execrado apenas pela palavra da camareira. O passado o condenou. Outras mulheres, que ele supostamente tentou seduzir à força, resolveram falar – e contribuí­ram para dar veracidade ao crime de estupro.

A convicção do promotor americano parecia forte. Sem provas definitivas, como a Justiça dos Estados Unidos poderia algemar um passageiro já embarcado na primeira classe do avião com destino à Europa, proibir liberdade sob fiança e, depois, submetê-lo à prisão domiciliar, em troca de um cheque-depósito de US$ 5 milhões?

DSK foi obrigado a usar bracelete eletrônico. Em Manhattan, vizinhos do apartamento alugado por sua mulher se recusaram a tê-lo no prédio. De executivo poderoso e político influente, tinha se tornado, para a opinião pública, um homem asqueroso e inconveniente.

Caso o processo seja realmente anulado, DSK poderá exigir dos Estados Unidos uma indenização bilionária por danos morais. A reviravolta deixa uma lição conhecida. Com todas as evidências em contrário, o réu pode ser inocente. Mesmo condenado em tribunal, a Justiça pode errar. Inocentes chegam a ficar muitos anos na prisão.

No final, a mulher de DSK sorriu ao lado dele e celebrou sua libertação. Que homem faria o mesmo?

A sociedade adora culpados, especialmente quando são ricos e poderosos. Hoje, em reuniões sociais, há sempre uma turma barulhenta que odeia o empresário Eike Batista simplesmente porque ele nasceu rico, ficou mais rico ainda e admite abertamente que quer ser o homem mais rico do mundo. Não importa se é empreendedor, se cria empregos.

Dar R$ 20 milhões por ano para a pacificação no Rio de Janeiro até 2014 se torna um acinte, prova de culpa em troca de favores escusos, jamais uma benfeitoria ou uma aposta na cidade onde vive. Para essa turma, Eike já nasceu condenado. É vilão.

DSK foi aparentemente injustiçado, mas não dá para exaltar suas qualidades como homem. Não é louvável seu alegado ataque a uma jornalista francesa, Tristane Banon, que o acusou formalmente na quarta-feira passada de tentar estuprá-la em 2003. O episódio recente no hotel de Manhattan não engrandece a biografia de DSK. Não engrandece a Justiça americana. Nem muito menos a camareira imigrante. Está difícil encontrar um mocinho ou uma mocinha nesse filme.

Talvez a única “mocinha” seja a mulher de DSK, Anne Sinclair, que ficou a seu lado, leal e fiel. Um leitor me pediu para discorrer sobre o que leva uma mulher a sorrir para as câmeras depois de sofrer uma traição pública. Eis algo surpreendente. Que homem no mundo pagaria a fiança e celebraria a libertação de sua mulher num restaurante caro se ela admitisse ter feito sexo consensual com o faxineiro?


09 de julho de 2011 | N° 16754
NILSON SOUZA


Estatuto do homem do gelo

Com a devida vênia do poeta Thiago de Mello e do meteorologista Cleo Kuhn.

Artigo 1

Fica decretado que o inverno deste ano será abreviado, terminará neste sábado, e uma primavera perfumada e eterna ocupará o coração dos homens e das mulheres do sul do Brasil.

Artigo 2

Fica decretado que os habitantes das calçadas geladas, que dormem sob as marquises das grandes cidades, passarão a receber o Bolsa-Calor Humano, com direito a cama confortável, café quente e total liberdade para ir e vir, e também para sorrir e rir.

Artigo 3

Fica decretado que as aulas matinais começarão ao meio-dia e terminarão 15 minutos depois, para que as crianças recebam sopão, chocolate quente e até sorvete, pois gosto é gosto e ninguém tem o direito de questionar a sabedoria infantil.

Artigo 4

Fica decretado que as frentes frias ficarão definitivamente na Argentina.

Artigo 5

Fica estabelecido que a água do chuveiro, das torneiras e até mesmo da chuva será sempre morna, mas o banho continuará sendo opcional.

Parágrafo único:

As mulheres manterão a fragrância das flores do campo.

Artigo 6

Por decreto irrevogável ficam banidas de nossas vidas as viroses, todas as ites, a dor de garganta, a tosse e as filas nas portas dos hospitais.

Artigo 7

Fica decretado que uma força-tarefa resgatará os sobreviventes de São José dos Ausentes e os hospedará numa estação de águas termais pelo tempo necessário para o degelo.

Artigo 8

Ficam suspensos, até segunda ordem, o vento minuano na fronteira, os arremedos de neve na Serra e a geada nos campos de todas as querências.

Artigo 9

Fica proibido usar casaco de lã grossa com cheiro de naftalina, ponchos e assemelhados, toucas, gorros, chapéus de feltro e, sobretudo, sobretudo.

Artigo 10

Fica permitido correr no parque de bermuda e camiseta, tomar banho de sol ou de mar (que saudade!), andar de bicicleta à noite, passear com o cachorro na primeira hora da manhã, levar as crianças na pracinha, dançar com vestido de festa, descer a rampa de skate, dormir sem cobertor e levantar sem ter que prestar continência para o General Inverno.

Parágrafo único:

Revogam-se as disposições em contrário.

quarta-feira, 6 de julho de 2011



06 de julho de 2011 | N° 16751
MARTHA MEDEIROS


Brrrrrrrrrrrrrrrr

Aos 16 anos, eu não conseguia admitir que alguém pudesse gostar de inverno. Só podia ser maluco, deprimido, estressado ou coisa pior. Escolher logo a estação mais encarangada do ano? Não fazia sentido.

Na época, era fanática pelo verão, e meus argumentos pareciam irrefutáveis: ora, no verão ficamos perto do mar, usamos menos roupa, saímos mais de casa. No verão os dias são longos, praticamos mais atividades físicas, comemos mais saladas. Quem trocaria essa vida saudável por dias cinzentos, curtos e gelados?

Quem trocaria braços abertos sobre a Guanabara por braços cruzados e mãos embaixo da axila? Quem preferiria correr o risco de se gripar dia sim, outro também? E quem haveria de considerar agradável sair debaixo das cobertas de manhã cedo para enfrentar um dia que nem virou dia ainda?

Mas isso foi aos 16. Cresci, amadureci e me reconciliei com o inverno. Passei a valorizar os casacões, as botas, o vinho, a lareira, as paisagens serranas, enfim, o lado romântico da estação. Cheguei a admitir em um poema que o inverno era minha estação preferida. Provavelmente, uma tentativa de que me levassem mais a sério. Adultos respeitáveis não combinam com bermuda, e sim com sobretudos.

Não ficam rindo à toa, mantêm a classe da sisudez. Não tomam chope, não dançam em rodas de samba, odeiam Carnaval, nunca foram fotografados em situações vulgares. Escritores, menos ainda. Imagine uma Marguerite Duras de biquíni em Capão, um Philip Roth de sunga tomando banho de mangueira no quintal. O cachecol é que dignifica os intelectuais.

Segui vivendo, amadureci mais um pouco e finalmente cheguei a uma conclusão definitiva: às favas com minha credibilidade, que a adulta em mim procure asilo na Sibéria. Hoje afirmo, assino embaixo e reconheço firma em cartório se for preciso: tenho pavor de sentir frio. A elegância que os dias gélidos me conferem não compensa a leveza e o bom humor que me são subtraídos. E vinho tinto eu tomo em qualquer estação.

Só quem ganha com o inverno é o turismo, já que o frio é nossa principal atração turística. No mais, quem em seu juízo perfeito iria curtir passar o dia com o nariz gelado, as pernas enrijecidas e sentindo-se tentado a matar o banho? Quem não se assusta com o valor da conta de luz no fim do mês? E o que se gasta em farmácia? Mulheres, me ajudem: como se vestir adequadamente para um casamento numa noite em que faz 4°C? E vocês, rapazes, têm tido coragem de tirar as meias antes de dormir?

Cresci, amadureci, mas não adiantou nada: contrariando a evolução da espécie, voltei ao tempo em que era movida a energia solar. Menos mal que sempre teremos intelectuais de cachecol para salvar a pátria.

terça-feira, 5 de julho de 2011



05 de julho de 2011 | N° 16750
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Sobre um e-mail

Na calma manhã de domingo, um dia gelado, pois parece que o inverno enfim chegou de verdade, acesso meus e-mails. São dezenas de mensagens, das mais diversas procedências e espécies. Ponho de lado os recados de empresas, instituições, convites, autores e atores e me fixo nos remetidos por pessoas que só querem dialogar comigo, ou me mandar um comentário sobre uma de minhas crônicas.

A estas dedico uma atenção particular. São elogios e observações críticas sobre os meus textos, mais aqueles do que estas. Fico pensando como leitores que devem trabalhar, ter compromissos, acham disposição e tempo para me dedicar uma parte de suas horas e mandar-me dizer o que pensam sobre uma frase, um pensamento, uma reflexão que passei para as páginas do Segundo Caderno de Zero Hora, uma das melhores e mais lidas partes do jornal.

Compareço aqui desde 1985, o que significa 26 anos, ou seja, a época em que muitos dos meus leitores, que hoje me escrevem, nem haviam nascido. Componho estas crônicas por prazer. E também por uma necessidade íntima de me confessar em público. Produzir crônicas, já dizia Rubem Braga, é viver em voz alta, se não erro na citação.

Uma das leitoras que frequentam meus e-mails hoje se mostra curiosa porque, tendo um milhão de assuntos, me fixo tantas vezes em Cachoeira. É porque em Cachoeira estão minhas raízes e algumas de minhas melhores lembranças. Foi lá onde nasci e vivi boa parte da infância e da adolescência. Foi lá também que fiz amizades que até hoje me acompanham.

Já em Porto Alegre, numa época em que nem se sonhava com a internet e muito menos com e-mails, buscava cada manhã a caixa de correspondência para achar alguma carta de namoradas de minha terra, não raro seladas com gotas de perfume Toque de Amor.

Meu primeiro livro e vários dos seguintes foram lançados em Cachoeira. Em Cachoeira vivi belos momentos de minha vida, dos bailes e reuniões do Comercial e do Rio Branco aos amores da primeira juventude.

Nada disso habitará jamais o passado. Tudo permanecerá comigo como um presente. Especialmente quando receber um e-mail de Cachoeira.

domingo, 3 de julho de 2011


DANUZA LEÃO

O último ato

Não acredito que o suicídio seja um ato de agressão contra alguém, contra muitos ou contra todos

IMAGINO QUE ninguém se jogue de um prédio ou se atire debaixo de um trem por impulso de momento. Um suicida deve pensar durante muito tempo nesse desfecho voluntário por diferentes razões, até mesmo por não entender essa estranha coisa que é o mistério da vida; e deve programar sua morte com dias -anos, talvez- de antecedência. O suicida costuma já nascer suicida.

Assisti uma vez a um documentário sobre a morte assistida. Depois de toda uma parte burocrática, o/a suicida, que sofria de uma doença degenerativa, embarcou com seus dois filhos de Londres para Genebra, e de lá foram para uma pequena clínica que parecia um hotel, onde houve mais um pouco de burocracia -até nessa hora; muitos papéis foram assinados, e se bem me lembro, até um vídeo foi feito, para que não houvesse dúvida de que aquele era mesmo o desejo da pessoa.

A cena era muito triste; ele se despediu da família, tudo foi acontecendo conforme programado, e o médico trouxe um copo com a droga letal que o matou em minutos.

Acabar com a própria vida é um ato radical, talvez o mais radical que possa ser praticado. Por isso, não dá para compreender que uma pessoa aceite, em seu momento final -escolhido por ela-, ter a seu lado um estranho. É sempre possível se matar sem precisar de ajuda, seja por estar em processo terminal, seja por razões de qualquer ordem.

Se estiver num hospital, vai ser mais difícil comprar o veneno ou o revólver, mas sempre haverá alguém que o ame o bastante para ajudar.

Acho que já contei a história de um casal que se amava muito; ele ficou dias internado, sem chances de recuperação. Quando percebeu que estava chegando a hora -ou talvez ele tenha escolhido a hora-, fez um sinal para ela, que tirou da sacola um iPod com as músicas de que mais gostavam, uma garrafa de uísque, serviu em dois copos que também havia trazido, tirou o oxigênio que o ajudava a respirar e pôs em sua mão um cigarro já aceso.

Ele sorriu como não fazia há muito tempo, e eles passaram algumas horas ouvindo música, fumando, bebendo e driblando as enfermeiras. Na mesma noite ele se foi, e ela ficou quase feliz, por terem passado uma tarde tão boa. Foram considerados loucos.

Não acredito que o suicídio seja necessariamente um ato de agressão contra alguém, contra muitos ou contra todos, segundo dizem os que acham que entendem tudo sobre a natureza humana.

Eles apenas acham, já que nunca ninguém soube nem jamais saberá o que se passa na cabeça de alguém que decide se matar; e mesmo os que tomam essa decisão, deixando uma ou muitas cartas, talvez não saibam exatamente em que momento ela foi tomada, e por que a vida ficou tão impossível de continuar sendo vivida; só sabem que ficou.

Não sei se o suicídio é um ato de coragem ou de covardia, mas não entendo a morte assistida; se já são raros os que se matam na presença de alguém, é incompreensível que o façam na presença de um médico desconhecido, nesse que é o momento mais solitário do ser humano.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 2 de julho de 2011



03 de julho de 2011 | N° 16748
MARTHA MEDEIROS


Os seguidores

O Twitter fundou uma nova tribo e agora qualquer um pode ter seu rebanho, ser um pastor

Estava no aeroporto, outro dia, conversando com um ator e um blogueiro. Um deles se virou para o outro e perguntou: Quantos seguidores você tem?. A resposta: Novecentos, e você?. Resposta: Um pouco menos, uns 650 mil.

Músicos têm ouvintes, atores têm plateia, escritores têm leitores, mas pelo visto isso já não diz muita coisa, não há tanto mérito, é uma relação quase passiva. Bem-sucedido, mesmo, é quem tem seguidores, ao menos é o que dizia o slogan de um produto anunciado em comercial de tevê recentemente, e nem era anúncio de equipamento eletrônico.

Não lembro o produto, mas lembro da promessa: “Você com cada vez mais seguidores”. Que blusa eu uso, em que loja compro, que shopping devo frequentar para ter tantos seguidores assim? A ambição, agora, é ser messiânico.

Jesus tinha seguidores, assim como Renato Russo. Mas agora qualquer um pode ter seu rebanho, ser um pastor. O Twitter fundou uma nova tribo. Soube que Caio Fernando Abreu, falecido há mais de 10 anos, tem hoje 60 mil seguidores. E seus leitores? Já não estão com esse cartaz todo.

É apenas uma questão de semântica, claro. Renovam-se as palavras para perpetuar a sensação de modernidade, de atualização, mas, no fundo, é tudo a mesma coisa. Só que não se pode negligenciar o sentido do termo: a palavra seguidor sugere um refém intelectual, enquanto que o leitor pensa, reflete, concorda, discorda. O seguidor não se dá esse trabalho. Apenas xereta.

Eu sei que é apenas uma expressão, eu sei, eu sei, mas acho estranho, fazer o quê. Já me perguntaram: quantos seguidores tu tens? Ora, nem às minhas filhas desejo tal destino. Se eu tivesse um caminhão, escreveria no para-choque: “Não sigam ninguém, que estão todos perdidos também”.

É só um termo atual para definir a prática inofensiva de twittar, mas não sei se é mesmo tão banal, tão sem significado. Os equipamentos eletrônicos hoje já dispensam o plugue na tomada, mas seus usuários, em efeito contrário, estão criando uma corrente de interligação que despreza a privacidade e a introspecção. O pensamento alheio virou uma espécie de asilo. Livro serve pra isso também, mas é uma relação a dois: você que lê e o escritor que lhe inspira.

Há uma certa sacralidade nesse encontro. Algo de muito pessoal é preservado. Aquilo que lhe emocionou, que iluminou seu pensamento e que despertou seu raciocínio é exclusivo, secreto: uma relação obviamente mais romântica. Por mais popular que seja um escritor, ele é consumido no particular. Mas se ele tem 564.238 seguidores conectados ao mesmo tempo, puf, evapora-se o mistério.

Todos viraram gurus uns dos outros. Me siga que eu te sigo. Mas para onde?


02 de julho de 2011 | N° 16747
NILSON SOUZA


Fuga para o ontem

Estive em Paris apenas uma vez, em 1998, e foi uma viagem inesquecível. Escalado para representar o jornal no centenário de uma grande fábrica de automóveis, fui recebido, juntamente com outros jornalistas que faziam a cobertura, como um príncipe árabe. Já na chegada, fomos convidados a dar um passeio numa caravana de carros antigos, uma dezena deles, todos com quase um século de fabricação e conservadíssimos.

Desfilamos pelas ruas da Cidade Luz, fomos aplaudidos pela população (quem disse que os franceses são antipáticos?) e paramos à margem do Sena, para continuarmos de barco, com direito a curtir cada uma das pontes, o museu do Louvre, a catedral de Notre Dame e todas aquelas maravilhas da capital cultural da Europa.

Não encontrei Scott Fitzgerald nem Ernest Hemingway, como o personagem do novo filme de Woody Allen, mas encontrei o próprio diretor na figura do seu sósia gaúcho, o jornalista Juremir Machado da Silva. Na ocasião, meu amigo e companheiro de ofício morava no bairro de Montparnasse e estudava na Sorbonne.

Ele e Cláudia foram meus anfitriões por dois dias, nos passeios de metrô, na visita a lugares turísticos e em longas caminhadas pelas ruas da cidade encantada. Para concluir aquela viagem extraordinária, ainda vi um jogo da Seleção Brasileira no Stade de France, na cidade vizinha de Saint-Denis, vitória de 2 a 1 sobre a Escócia. Ainda bem que não fiquei para o restante do Mundial, pois as cabeçadas de Zidane talvez me fizessem amar menos aquela cidade.

Voltei a Paris esta semana, num dos cinemas da Capital. Vi (e li, pois os diálogos são extensos) o filme em que Woody Allen faz uma declaração de amor a Paris, para dar um recado singelo: sonhe menos com o passado e viva mais o momento presente. Mas o filme contraria a mensagem. Faz sonhar do início ao fim. Paris, na verdade, é o principal personagem, mesmo com o surpreendente desfile de figuras ilustres de outras épocas.

Ainda assim, fica o questionamento: por que de vez em quando fugimos para o pretérito perfeito da nossa existência, como se lá tudo fosse sempre melhor? Talvez Freud – que também estudou em Paris – tenha uma explicação lógica para isso, baseada nas suas pesquisas da mente humana. Eu, modestamente, tenho a minha própria tese: a gente foge para o passado porque lá, em algum momento, conheceu o encantamento.

Jamais vou esquecer aquele tour na boleia de um calhambeque polido, a hospitalidade dos meus amigos gaúchos e aquela torre histórica iluminada por mil luzes, ostentando nas suas quatro faces a emblemática contagem regressiva para o novo milênio.

quarta-feira, 29 de junho de 2011



29 de junho de 2011 | N° 16744
MARTHA MEDEIROS


Compostura

Uma das minhas fotos preferidas da infância mostra meu irmão e eu sentados em um degrau da casa da nossa avó. Eu deveria ter uns quatro anos de idade. Usava um vestidinho e estava sentada da forma mais moleca possível, de pernas abertas, sem perceber que a calcinha estava aparecendo. Certamente minha mãe não estava por perto, ou ela teria dito, como sempre dizia: “Fecha as pernas, menina, olha a compostura”.

A compostura era, para mim, um genérico do bicho-papão. Sempre à espreita. Se eu falava algum nome feio, olha a compostura. Se eu agia de forma mais folgada com algum idoso (qualquer um acima de 20 anos), olha a compostura. Se eu mastigasse o chiclete de boca aberta, olha a compostura. A danada da compostura me perseguiu a infância toda e, por causa dela, não tive escapatória, acabei virando uma moça educada.

No entanto, descobri com o passar dos anos que é possível ter compostura e ser espontânea ao mesmo tempo. Que compostura não é sinônimo de rigidez, e sim de adequação. Sempre acho estranho quando alguém defende a própria grossura argumentando que está sendo “ele mesmo”, como se ter uma postura elegante fosse falta de personalidade.

Lembrei disso outro dia, enquanto assistia na tevê ao Tiririca vestido de palhaço, fazendo campanha contra o nepotismo. A seu lado, dois personagens que representavam a mãe e o pai do deputado federal, eles também vestidos de palhaço. Tiririca, para deixar tudo bem explicado para a população, diz: “Pai, continue catando latinha. Mãe, continue lavando roupa pra fora. Não pode contratar parente” , enquanto ouvimos um forró de trilha sonora, dentro do clima de São João.

Propaganda eleitoral é sempre uma coisa muita chata, então Tiririca apostou na irreverência, sua marca registrada. E a intenção foi boa, corrige sua plataforma quando era candidato (“ajudar a todos, inclusive a minha família”). Compreende-se que precisa estar caracterizado para que seus eleitores o reconheçam, mas não consigo ser benevolente com essa papagaiada toda.

Nepotismo é assunto sério em qualquer lugar do mundo, e já que seus colegas parlamentares o escolheram para vir a público e usar a luta contra o nepotismo como bandeira para promover o partido, seria mais adequado fazê-lo com o traje que costuma usar em sessões do plenário, onde trabalha e recebe salário para garantir os interesses do povo que representa.

Ou com roupa casual, sem problema. Menos fantasiado. Por nada, não. Apenas por compostura. Para conferir um pouco de recato e decência a uma classe já tão desgastada como a política.

Tiririca não é mau sujeito, foi apenas “ele mesmo”. Uma criança mostrando a calcinha do país em rede nacional.

Ótima quarta-feira para você. aproveite