terça-feira, 10 de abril de 2012



10 de abril de 2012 | N° 17035
PAULO SANT’ANA

Pitbull sem focinheira

Chego e deparo com uma notícia intrigante: um vigilante da Rudder matou com um tiro de revólver na cabeça uma cadela pitbull.

Então, só pode ter sido legítima defesa.

Se o vigilante me chamar, eu deponho a favor dele no inquérito como testemunha de referência.

E, como sempre, agora ineditamente a pitbull como vítima, o noticiário diz que várias pessoas depuseram que a cadela era mansinha.

Mansinha?

Leio também que centenas de pessoas protestaram pela morte da cadela pitbull.

No Brasil, acontece uma coisa interessante: qualquer ser vivo que seja assassinado levanta a seu favor uma comoção popular, até uma cadela pitbull. Muitas vezes, mais comoção que a morte de uma pessoa.

Agora, esta coluna vai, em primeira e exclusiva mão, dar a versão do vigilante, a qual consegui porque me interessam todos os casos sobre pitbulls e rottweilers.

O vigilante declarou que era mais ou menos meio-dia da Sexta-Feira Santa quando ele estava atravessando o pátio da faculdade, com uma marmita na mão, ia esquentar a refeição.

De repente, a cadela partiu em disparada em direção ao vigilante, que foi pronto, houve tempo para que ele puxasse o revólver e atingisse a cabeça do animal, antes que este cravasse suas presas no corpo do guarda. A cadela, assim, morreu quase aos pés do vigilante.

Mas ainda disse o vigilante (o mesmo, exatamente o mesmo, dirá à polícia): esta cadela já tinha mordido alguém em março lá na faculdade.

Este é o depoimento do vigilante, que esta coluna conseguiu ontem com absoluta exclusividade.

O vigilante e a empresa Rudder, para quem ele trabalha, organização de vigilância de notável eficiência, estão tranquilos, porque a cadela estava sem focinheira, sem enforcador e sem guia como manda a lei. A dona estava em companhia da cadela e a fera solta no pátio.

Isto serve de aviso aos donos de pitbulls: essa raça, sem enforcador e sem focinheira, é perigo máximo, mais gente vai atirar nesse tipo de cão se o animal atacar.


10 de abril de 2012 | N° 17035
DAVID COIMBRA

Quem é Mozart e quem é Michel Teló

Chico e Caetano são Pelé e Garrincha. Os melhores entre os melhores. Com Pelé e Garrincha juntos a Seleção jogou 50 vezes e não perdeu nenhuma.

Chico e Caetano, juntos ou apartados, não fazem música ruim, sai no mínimo boa, às vezes antológica, como Quereres ou Anos Dourados. Pelé e Garrincha eram gênios da bola, Chico e Caetano são gênios da Música Popular Brasileira.

Sei que o adjetivo “gênio” é empregado com demasiada prodigalidade, hoje em dia. Não quero incorrer neste erro. O que define um homem como gênio? Suponho que o gênio deva ser muito superior às outras pessoas em determinada área de atividade humana, e que suas realizações sejam proporcionais à sua superioridade. Sobretudo, a ação do gênio não pode se restringir ao seu tempo. O gênio produz façanhas que varam os séculos, que ficam para sempre. O gênio é eterno.

Beethoven, Mozart e Bach foram gênios da música em todos os tempos. Os Beatles foram gênios da Música Popular. Mas definir gênios da música é mais fácil, porque todos “sentem” a música, ainda que a música não seja requintada e elaborada como uma sinfonia, ainda que seja singela como a música popular.

Definir gênios em outras áreas é mais complexo e mais sutil. Einstein, Newton e Galileu foram gênios da ciência, mas sei que há outros além deles. Picasso, Van Gogh, Michelangelo e Leonardo foram gênios das artes plásticas, possivelmente na companhia de Monet e Goya.

Sócrates, Platão, Kant, Schopenhauer e Freud foram gênios da filosofia, e aí não coloco Nietzsche, nem Rousseau, nem Aristóteles, que são menores, embora tenham sido grandes. Alexandre foi o maior gênio militar do Ocidente. No Oriente, ombreia-se a ele Gengis Khan, e ninguém mais.

Julio Cesar e Napoleão não foram gênios militares; foram gênios da política. Dostoievski foi talvez o maior gênio da literatura, acossado por Proust, Kafka, Cervantes e Shakespeare. Incluo aí duas preferências pessoais, ambos americanos: Edmund Wilson e Mencken.

O Brasil jamais concebeu um gênio na literatura. Machado de Assis não é nem supercraque, é craque. É assim um Ronaldo Nazário, bem distante de Pelé e Dostoievski, distante até de um Rivellino, de um Zico, de um Romário. Gênios, no Brasil, só Pelé e Garrincha. Supercraques, no Brasil, foram Rivellino, Leônidas, Zizinho, Friedenreich, Zico, Romário e Ronaldinho. Sim, Ronaldinho é supercraque, ou foi, e foi maior do que Falcão e Renato, que eram grandes craques.

Neymar é craque, isso é certo. Mas já estou achando que, aos 20 anos de idade, ele se aproxima da categoria de supercraque. Se o time do Santos fosse melhor, se Ganso não tivesse se lesionado, Neymar estaria empossado e coroado como supercraque.

Messi talvez seja supercraque. O curioso é que o Barcelona, o melhor time do século, é um time com apenas três craques, Messi, Xavi e Iniesta. Trata-se de uma nova concepção de supertime. Não é um supertime; é uma superequipe.

Gostaria de ver Neymar nesse time. Porque considero Neymar MELHOR do que Messi, Xavi e Iniesta, apesar de ser diferente deles. Neymar tem a facilidade de burlar o adversário, de passar por ele como se ele fosse um criança, de humilhar o zagueiro sempre e sempre, Neymar tem essa habilidade que ninguém no mundo hoje tem. Isso é espantoso: Neymar está um degrau abaixo de Messi em grandeza, mas tem mais potencial, tem mais futebol em estado bruto, pronto para ser lapidado, já em processo de lapidação.

O que faria Neymar, se estivesse em companhia de Xavi, Iniesta e Messi? Seria como Caetano, Chico e Tom Jobim compondo juntos, ou Beethoven, Mozart e Bach escrevendo uma sinfonia, ou Freud e Schopenhauer requintando um texto, ou Pelé e Garrincha aos 25 anos de idade, na mesma Seleção. Neymar tem os instrumentos para fazer história, para entrar para a História. Para ser um dos gênios eternos da bola.


10 de abril de 2012 | N° 17035
FABRÍCIO CARPINEJAR

Todo casado por muito tempo é tarado

Quando alguém confessa que está casado há 30 anos, ataco:

– Tarado!

Ele tenta se explicar, logo repito:

– Tarado!

Ele gagueja, e gesticulo com o dedo:

– Tarado!

Ficar com a mesma mulher todo dia é obra de maníaco sexual. Não tem o que acrescentar. É safadeza em demasia. Sério, sem brincadeira, o homem casado é um pervertido. Deveria ser preso por atentado ao pudor. Não poderia sair por aí espalhando o exemplo.

Há a crença equivocada de que o solteiro dispõe de um harém, que pode sair livremente e aproveitar sua sexualidade sem dar satisfação. Que nada. O solteiro não larga a primeira marcha – ao engatar a terceira e correr um pouquinho, já troca de caso e necessita conhecer o percurso inteiro de novo.

O casamento é a porta dos sentidos, a autêntica libertinagem, o elo perdido do Marquês de Sade.

Sabe mais sobre sexo quem transa com a mesma mulher durante décadas do que aquele que tem uma diferente a cada manhã. É como jogador de futebol, que atua muito melhor com a sequência de partidas.

Mulher não é diversidade, é permanência. Ela se solta ao longo da convivência, impõe seu ritmo lentamente, até formar um estilo para se vestir e outro para se despir.

Depende de tempo para expor suas fantasias. Afortunado é o que não se separa antes dos cinco anos.

Com a intimidade, sua companhia realiza acrobacias inacreditáveis, transforma as janelas em trapézios; os trapézios, em escadas de incêndio.

Uma mulher devota é capaz das maiores obscenidades. Porque o amor tira a culpa, o amor elimina o preconceito, o amor não sofre de nojo.

Uma mulher devota enlouquece o marido. Cria suspense na hora certa, desarma o ciúme no último minuto. Tem informações privilegiadas sobre a vítima: conhece seus pontos fracos, o lugar do arrepio atrás do ouvido, onde tocar para acelerar ou retardar o prazer, o que falar para enervar o silêncio.

Uma mulher devota é irresistível, rodará a casa por um afago, estará reaproveitando os suspiros do dia nos gemidos de noite.

Uma mulher devota desfruta de segurança no relacionamento para correr riscos no quarto.

Vá se acostumando com a ideia: sua esposa humilha qualquer profissional, pois entra na cama para ganhar, não joga amistoso, não faz cera, não tem interesse a não ser o próprio orgasmo.

Sua esposa que é pornográfica. Ela dedicará absoluta atenção na transa, a atenção cristalina que vem da carência. Nada passará em branco, nada será esquecido.

As insanidades indescritíveis são experimentadas no matrimônio. Os casados são bando de loucos, irresponsáveis, perigosos.

O altar perdoa a cama.

domingo, 8 de abril de 2012


Ferreira Gullar

Ah, ser somente o presente

Confesso que sofrer não é a minha vocação, embora nem sempre consiga escapar do sofrimento

Muito embora alguns de meus poemas falem do passado, viver no passado ou tê-lo presente no meu dia a dia não me agrada. Na verdade, todos nós somos o que vivemos e, de certo modo, o passado constitui também o nosso presente, quer o lembremos ou não. Mas, precisamente porque somos o que vivemos, trazemos conosco lembranças muitas vezes dolorosas, que de repente emergem no presente. Disso, creio que ninguém gosta, à exceção dos masoquistas.

Para falar com franqueza, confesso que sofrer não é a minha vocação, embora nem sempre consiga escapar do sofrimento. Se puder, escapo. Creio mesmo que a vocação do ser humano (de todo ser vivo?) é a felicidade.

Isso é o que todos buscamos, na comida que saboreamos, na bebida que sorvemos, nos momentos de amor, no carinho, na amizade e na alegria de fazer o outro feliz. Sofrer, não. Só quando não tem jeito e a lembrança do passado é quase sempre sofrimento: ou porque voltamos a sentir a dor de outrora, ou porque relembramos a felicidade que houve e se foi para nunca mais.

Por isso foi que, certa manhã, ao entrar na sala vindo do quarto de dormir, deparei-me com o sol matinal que a invadia e me senti feliz como nunca. Nenhum passado, nenhuma lembrança. Eu era ali, então, um bicho transparente, mergulhado na luz matinal. E escrevi estes versos:

"Ah, ser somente o presente, esta manhã, esta sala".

Essa é uma aspiração certamente impossível de realizar, mas a poesia é, entre outras coisas, viver, com a ajuda da palavra, o impossível, já que aspirar apenas ao possível não tem graça. Pois bem, houve gente que leu esses versos e não apenas gostou deles como concordou com aquela aspiração irrealizável. Essa de que o passado já era.

Mas eis que estou caminhando pela avenida Atlântica quando vem a meu encontro um senhor de óculos, barba e cabelos quase inteiramente brancos.

- Gullar, meu querido, quantos anos faz que a gente não se vê! Lembra daquele dia, na Redação da "Manchete", quando o Adolpho Bloch só faltou te agredir?

- Me agredir, é? -falei por falar, já que não sabia quem era aquele sujeito que me abordara assim de repente. E ele continuou:

- Você tinha aparecido na televisão, de barba por fazer e sem gravata, falando em nome da revista, o que deixou o Adolpho furioso.

E acrescentou:

- Mas acho que você não está me reconhecendo... Eu sou o Hélio, o fotógrafo.

Só então me lembrei dele. Tínhamos sido amigos e não fui capaz de reconhecê-lo.

- Você pegou um cinzeiro, ia bater com ele na cara do Adolpho e fui eu que te arrastei para fora da Redação, lembra?

A verdade é que nunca fui muito bom de memória. Quando voltei do exílio, uma atriz famosa e linda, companheira na luta contra a ditadura, desceu do carro no meio da rua, em Ipanema, para vir me abraçar.

Dois meses depois, estou lançando um livro e ela para em minha frente para que eu lhe autografe o livro, e o nome dela some de minha mente. Entro em pânico. Não poderia perguntar-lhe o nome depois daquele abraço efusivo em plena rua.

A solução que encontrei foi me levantar, sair da livraria, atravessar correndo a rua, entrar no boteco em frente, perguntar à Teresa o nome da atriz e voltar. Sentei-me de novo, ela me olhou sem entender nada. Escrevo, então, no livro: "Para Norma Bengell...".

Com o passar dos anos, a coisa foi ficando pior. Outro dia, combinei com a Cláudia que iríamos ao cinema. Escolhi o filme, marquei para nos encontrarmos lá mesmo, cheguei antes, comprei as entradas (uma inteira e uma meia, que eu sou idoso) mas, quando o filme começou, ela falou revoltada: "Você ficou maluco? Esse filme nós já vimos!". E eu: "Você está brincando!". "Eu, brincando!? Você é que está maluco! Não faz nem um mês que vimos este filme!"

Realmente, após minutos, constatei que já o havíamos visto. Assim está minha memória: tudo o que vejo, leio, ouço ou faço logo esqueço. Não tenho mais passado. Aquilo que escrevi no poema virou verdade: tornei-me apenas o presente, esta manhã, esta sala.

Danuza Leão

Felicidades enganosas

Viagens dão uma impressão de felicidade, mas não é delas que vamos lembrar fazendo o balanço da vida

Quantas vezes pensamos que éramos felizes, e era apenas um engano? E quantas vezes fomos felizes, e estávamos tão distraídos que nem percebemos?

Claro, algumas vezes sim, mas precisa ser uma coisa muito forte para que isso aconteça; quando se compra o primeiro carro, o primeiro apartamento e a melhor de todas: quando nasce um filho.

Viagens nos dão uma vaga impressão de felicidade, mas não é delas que vamos nos lembrar, um dia, fazendo o balanço da vida. Só o tempo é capaz de dar a dimensão exata de nossos sentimentos -mas só depois.

Mas é bom achar que se foi feliz; eu achei que era no primeiro dia da primeira viagem a Nova York. A vida era bela, não tinha um só problema, achava que viver assim era normal, e eu, imortal. Mas seria aquilo tão maravilhoso assim?

Claro que um certo charme envolvia aquela viagem; só o fato de poder sair de botas e casaco de pele, poder tomar dois dry martinis sabendo que não tinha nenhuma obrigação, tipo levar um filho ao dentista ou ir a um supermercado; não ter que -isso parecia a imagem da felicidade. E era? Em termos, mas, pensando bem, não, era apenas um filme em que eu era roteirista e atriz, mas nada era de verdade.

Por outro lado, aconteceram momentos de felicidade intensa, que na hora nem percebi. Um fim de tarde em que me perdi em Veneza, sozinha. Veneza é das poucas cidades no mundo em que se ouve o ruído dos próprios passos -o que pode parecer bobagem, mas não é. Aí, atravessei uma pequena ponte sobre um pequeno canal, começava a escurecer, a cidade estava vazia, e aquele momento foi único, só meu, e certas coisas não dá para dividir. A felicidade, por exemplo.

Existiram outros momentos, claro; alguns ficam nítidos, a gente se esquece, um dia eles voltam e você se dá conta do quanto foi feliz durante um tempo -curto-, só que na hora não sabia.

Aconteceu comigo: foi um momento totalmente banal e inesquecível, talvez até por sua banalidade. Era verão, nove da noite, fazia calor e saí com um amigo para dar uma volta na praia. Andamos e acabamos dando um mergulho no mar do Arpoador, naquela noite quente. Nadamos um pouco, depois tomamos uma água de coco e voltamos para casa.

É preciso que fique claro que era um amigo -e tem melhor do que um amigo? Voltamos rindo e combinamos de repetir o programa outras vezes, mas isso nunca mais aconteceu, nem sei por quê.

Nunca vou esquecer da beleza daquela noite, da temperatura da água, do banho de chuveiro quando cheguei em casa, de quando me deitei e vi o final de um péssimo filme na TV. Como eu estava feliz, só que não sabia; lembrei -e soube- hoje.

E penso: será que foi tão bom porque foi só uma vez? Se tivesse virado rotina, ainda me lembraria daquela noite com tanto prazer? E por que, naquela noite, não percebi?

Às vezes penso que se a felicidade fosse um verbo só seria conjugado no passado.

P.S.: Recado a meus colegas de insônia: estou me adaptando. Depois de receber várias sugestões para resolver o problema, optei por uma delas, e passei a ir para a cama à 1h da manhã (eu ia às 23h). E como acordo às 6h, inventei de andar durante uma hora. Volto para casa às 7h30 exausta, tomo um chuveiro e leio os jornais na maior tranquilidade, já que o telefone a essa hora não toca. Está funcionando.

danuza.leao@uol.com.br

Carlos Heitor Cony

A Páscoa e os homens

RIO DE JANEIRO - Nos domingos de Páscoa, como o de hoje, lá no seminário onde estudei, acordávamos com o coro da "Cavalleria Rusticana", "Inneggiamo il Signore è risorto", um dos mais famosos da lírica de todos os tempos.

No rude cenário de uma aldeia siciliana, o povo se reúne e louva o Senhor, que subiu à glória do céu. Mal termina o coro pascal, num duelo por causa de mulher, um homem mata outro.

Não é por falta de exemplos e melodias que a humanidade, desde Caim, segundo a Bíblia dos judeus e cristãos, convive com a violência e os baixos instintos, como o ciúme, a cobiça e a inveja. Os momentos de glória passam depressa e depressa são esquecidos.

Santo Agostinho, falando sobre as prostitutas, e em parte as absolvendo, dizia que elas sofriam a "nostalgia da virtude". Creio que também exista uma nostalgia do vício. Não podemos passar sem um vilão, um demônio no qual podemos descarregar nossas culpas por causa da perdida inocência.

Deixando de lado outras considerações, vamos aos fatos de nosso cotidiano, que também pode ser considerado rústico como a ópera de Mascagni, baseada em peça de Giovanni Verga.

Inútil arrolar os vilões, o assassino nos Estados Unidos que sem mais nem menos invade escolas e mata jovens alunos. Em termos prosaicos, aqui no Brasil não podemos passar sem um vilão público, seja Ricardo Teixeira, seja Carlos Cachoeira.

Isso sem falar no satã da vez, um senador que atuava como um Catão, denunciando e cobrando moralidade na vida pública.

O que tem a Páscoa com nossas misérias? Somos diariamente açoitados e crucificados. "Ecce homo", num vastíssimo plural: eis os homens! Mesmo assim, e apesar das evidências em contrário, pensamos que um dia poderemos subir à glória do céu.

Eliane Cantanhêde

O emergente e a potência

BRASÍLIA - A beligerância verbal e as idiossincrasias entre o Brasil e os EUA esfriaram muito de Lula para Dilma. E os interesses continuam.

O Itamaraty está mais tímido, e Dilma não é tão bom produto de política externa quanto Lula era, mas ela também é altamente popular, tem o trunfo real de ser a primeira presidente brasileira mulher e é quem, de fato, dá a linha da diplomacia brasileira -para os EUA, "uma diplomacia de valores, não só de interesses".

É possível acrescentar: sem uma busca frenética por lideranças que ou são naturais, como na América do Sul, ou prematuras, como nas negociações de paz no Oriente Médio.

Poucas pautas de Dilma são tão ricas e importantes como a que ela leva para Washington. Há desde o "Ciência sem Fronteiras" (intercâmbio de estudantes que os dois lados enaltecem) até inúmeros entreveros comerciais, o foco em energia e as espinhosas questões de Síria e Irã. Os EUA insistem na tática de torniquetes financeiros, econômicos e comerciais, enquanto o Brasil contra-argumenta que isso só piora as coisas.

No caso da Síria, o Brasil tenta se equilibrar entre os EUA e a Rússia e a China -parceiros nos Brics que dão suporte ao regime assassino de Assad-, mas o embaixador Thomas Shannon (EUA) minimiza: "Brasil e EUA pensam quase igual, o vocabulário é que é diferente". (Cá para nós, vocabulário é tudo em diplomacia...)

Mas a questão mais delicada nem é Síria, é Irã. O Brasil teme que a política de sanções chegue a um resultado oposto, empurrando os aiatolás para a guerra. Já os EUA pressionam o Irã para evitar, por tabela, que Israel vá às armas. A ação do Ocidente seguraria os ânimos dos israelenses.

Portanto, o lado mais visível da visita de Dilma aos EUA será a economia, mas o que vai valer mais não será o dito em público, mas o não dito. Ou melhor, o dito entre Dilma e Obama, a portas fechadas, sobre os sólidos interesses bilaterais e as escorregadias questões internacionais.

elianec@uol.com.br

sábado, 7 de abril de 2012




08 de abril de 2012 | N° 17033

MARTHA MEDEIROS

Posto, logo existo

Começam a pipocar alguns debates sobre as consequências de se passar tanto tempo conectado à internet.

Já se fala em saturação social, inspirado pelo recente depoimento de um jornalista do The New York Times que afirmou que sua produtividade no trabalho estava caindo por causa do tempo consumido pelo Facebook, Twitter e agregados, e que hoje ele se vê diante da escolha entre cortar seus passeios de bicicleta ou alguns desses hábitos digitais que estão me comendo vivo.

Antropofagia virtual. O Brasil, pra variar, está atrasado (aqui, dois terços dos usuários ainda atualizam seus perfis semanalmente), pois no resto do mundo já começa a ser articulado um movimento de desaceleração dessa tara por conexão:

hotéis europeus prometem quartos sem wi-fi como garantia de férias tranquilas, empresas americanas desenvolvem programas de software que restringem o acesso à web e na Ásia crescem os centros de recuperação de viciados em internet. Tudo isso por uma simples razão: existir é uma coisa, viver é outra.

Penso, logo existo. Descartes teria que reavaliar esse seu cogito, ergo sum, pois as pessoas trocaram o verbo pensar por postar. Posto, logo existo.

Tão preocupadas em existir para os outros, as pessoas estão perdendo um tempo valioso em que poderiam estar vivendo, ou seja, namorando, indo à praia, trabalhando, viajando, lendo, estudando, cercadas não por milhares de seguidores, mas por umas poucas dezenas de amigos. Isso não pode ter se tornado tão obsoleto.

Claro que muitos usam as redes sociais como uma forma de aproximação, de resgate e de compartilhamento – numa boa. Se a pessoa está no controle do seu tempo e não troca o real pelo virtual, está fazendo bom uso da ferramenta. Mas não tem sido a regra. Adolescentes deixam de ir a um parque para ficarem trancafiados em seus quartos, numa solidão disfarçada de socialização.

Isso acontece dentro da minha casa também, com minhas filhas, e não adianta me descabelar, elas são frutos da sua época, sua turma de amigos se comunica assim, e nem batendo com um gato morto na cabeça delas para fazê-las entender que a vida está lá fora. Lá fora!!

O grau de envolvimento delas com a internet ainda é mediano e controlado, mas tem sido agudo entre muitos jovens sem noção, que se deixam fotografar portanto armas, fazendo sexo, mostrando o resultado de suas pichações, num exibicionismo triste, pobre, desvirtuado. 


São garotos e garotas que não se sentem com a existência comprovada, e para isso se valem de bizarrices na esperança de deixarem de ser “ninguém” para se tornarem “alguém”, mesmo que alguém medíocre.

Casos avulsos, extremos, mas estão aí, ao nosso redor. Gente que não percebe a diferença entre existir e viver. Não entendem que é preferível viver, mesmo que discretamente, do que existir de mentirinha para 17.870 que não estão nem aí.


07 de abril de 2012 | N° 17032
NILSON SOUZA

Dia de São Tomé

Decidi ser jornalista na adolescência, no dia em que um professor do curso secundário, conhecendo a minha timidez, duvidou que eu pudesse abraçar um ofício que exige uma certa exposição pública. Meu propósito não era exatamente desafiá-lo, mas, sim, provar a mim mesmo que podia superar aquilo que ele considerava um obstáculo, o medo de falar diante de uma plateia.

Nunca fui de levantar o dedo para responder a perguntas que não eram endereçadas diretamente para mim. Jamais me escalava para ser orador ou relator de qualquer trabalho coletivo. Em compensação, tinha facilidade para redigir falas alheias. Já escrevi discurso de orador, de paraninfo, de palestrante e até lembrancinha de um ano, como se fosse eu próprio o aniversariante. Creio que estava me encaminhando para ser ficcionista quando tropecei no Jornalismo. E me apaixonei.

O que poderia ser mais atraente para um jovem do que a oportunidade de fazer descobertas, de investigar e contar histórias, de viajar pelo cotidiano e pelo mundo em busca da verdade das coisas? Claro que nem tudo na profissão era como eu imaginava, mas agora, quatro décadas depois, posso afirmar sem qualquer arrogância que encontrei mais alegrias do que frustrações neste ofício de incrédulos que hoje celebra mais um aniversário.

O 7 de abril é reconhecido pela Associação Brasileira de Imprensa como Dia do Jornalismo, homenagem ao médico e jornalista Líbero Badaró, assassinado por inimigos políticos. A revolta popular gerada pela sua morte provocou a abdicação de dom Pedro I em 7 de abril de 1831.

Mas seríamos engenheiros, e não jornalistas, se a celebração do nosso ofício se resumisse a uma única data.

Temos várias e quase não nos entendemos sobre elas: 3 de maio também é chamado de Dia do Jornalista por ser a data da Liberdade de Imprensa, decretada pela ONU em 1993; 1º de junho é o Dia da Imprensa no Brasil, por ser a data em que começou a circular o Correio Braziliense, nosso primeiro jornal (já foi 10 de setembro, até nos darmos conta de que a Gazeta do Rio de Janeiro era um diário oficialista);

16 de fevereiro é Dia do Repórter, nem sei por quê; 29 de janeiro também é dia de jornalismo por homenagear o jornalista abolicionista José do Patrocínio, falecido em 1905; e 24 de janeiro é considerado pela Igreja Católica o dia do padroeiro da profissão, São Francisco de Sales, que foi bispo, escreveu muito e criou uma linguagem especial para a comunicação com surdos.

É celebração demais para um tímido. Se fosse para escolher um santo como paraninfo, eu ficava com São Tomé, o apóstolo, que nos deixou como legado o saudável ceticismo da profissão. Sou tão discípulo desse santo, que chego a duvidar de que ele tenha mesmo existido.


07 de abril de 2012 | N° 17032
CLÁUDIA LAITANO

Cair do cavalo

Todo mundo um dia cai do cavalo, alguns literalmente inclusive. Cair do cavalo é perder o equilíbrio e o movimento ao mesmo tempo. É bater com toda a força no chão e em seguida ficar prostrado, incapaz de planejar o próximo movimento. Cair do cavalo dói não apenas pelo impacto em si, mas porque nos arranca do conforto da rotina.

Paranoicos, hipocondríacos, precavidos, todo mundo cai do cavalo do mesmo jeito, ou seja, sem aviso prévio. E ninguém consegue evitar a perplexidade e a indignação ao verificar, na própria pele, um dos fatos mais banais da existência: coisas dão errado.

Se as tijoladas do destino são mais a regra do que a exceção, deveríamos estar mais preparados para lidar com doenças, separações, mortes, problemas de dinheiro, frustrações em geral – mas o fato é que nunca estamos. Somos comovedoramente ingênuos e distraídos, pelo menos até o primeiro grande tombo.

De volta à terra firme, quando já não há dúvida de que, enfim, sobrevivemos, cada pessoa elabora o sofrimento da forma que pode e sabe. Alguns naufragam na autopiedade, outros veem suas forças exauridas pelo próprio esforço de enfrentar a tormenta.

Muitos sentem a necessidade de extrair sentido do sofrimento, atribuindo algum propósito à experiência e propondo a si mesmos uma espécie de jogo do (des)contente: sofri, mas aprendi. (Foi o caso, por exemplo, de Reynaldo Gianecchini, que em todas as entrevistas depois do fim do tratamento do câncer fez questão de falar sobre o lado transcendente da doença.)

Há aqueles, porém, em que o sofrimento apenas acentua traços de personalidade que já existiam: o egoísta torna-se intratável, o tímido recolhe-se ainda mais, o extrovertido abusa da grandiloquência. (Lula, na primeira grande entrevista depois do fim do tratamento, falou da doença com a mesma ênfase barroca que usa para florear todos os assuntos, da economia internacional às derrotas do Corinthians: “Se eu perdesse a voz, estaria morto” ou “Estava recebendo uma Hiroshima dentro de mim”.)

O ensaísta francês Michel de Montaigne (1533-1592) também caiu do cavalo – concreta e metaforicamente – e essa experiência foi determinante para tudo o que ele viria a produzir depois. A tese é apresentada na deliciosa biografia do filósofo lançada há pouco no Brasil: Como Viver – Uma biografia em uma pergunta e vinte tentativas de respostas, da escritora inglesa Sarah Bakewell.

O acidente quase fatal, sustenta a autora, ajudou Montaigne a desencanar das preocupações com o futuro e prestar mais atenção no presente e nele mesmo. Seus magníficos Ensaios, escritos nos 20 anos seguintes ao acidente, nada mais são do que a tentativa de ficar alerta às próprias sensações e experiências e buscar a paz de espírito – o “como viver” do título.

Para Montaigne, a vida é aquilo que acontece quando estamos fazendo outros planos, e nossa atenção tem que estar o tempo todo sendo reorientada para onde ela deveria estar: aqui e agora. Cair do cavalo pode ser inevitável, mas prestar atenção na paisagem é o que faz o passeio valer a pena.

sexta-feira, 6 de abril de 2012



06 de abril de 2012 | N° 17031
DAVID COIMBRA

Os bons maridos de Esparta

O espartano casado, se encontrasse um rapagão belo e imponente, oferecia-lhe a sua mulher, para que reproduzissem. Era a eugenia: o “aperfeiçoamento” da raça por meio da seleção genética. Licurgo, o grande legislador, caçoava dos que hesitavam em partilhar as esposas, dizendo que eles se importavam mais com a reprodução de seus cães e cavalos do que com a de suas mulheres.

A intenção dos espartanos era formar uma casta de guerreiros. Há uma passagem da Batalha das Termópilas em que o rei Leônidas, marchando à frente de seus 300 soldados, encontra o pelotão de 7 mil aliados de outras cidades. O comandante dos aliados olha para aquele punhado de homens e se espanta, sabendo que o inimigo persa conta com um exército de centenas de milhares de combatentes.

– Mas você só trouxe esses soldados?!? – pergunta, incrédulo.

Ao que Leônidas aponta para um dos aliados:

– Qual é a sua profissão?

– Eu sou moleiro.

– E você – prossegue Leônidas, indicando outro.

– Camponês.

– Você?

– Ferreiro.

E assim por diante. Por fim, Leônidas volta-se para os seus 300 homens e grita:

– Espartanos! Qual é a sua profissão?

Os 300 batem com as lanças nos escudos de ferro e urram, em uníssono:

– HO-HAAAA!!!

Leônidas sorri para o comandante aliado:

– Como vê, trouxe mais soldados do que você.

Imagino a mesma cena no Congresso brasileiro. Você espeta o dedo no peito de um deputado:

– O senhor! Qual é a sua profissão?

– Advogado.

– E o senhor aí, de óculos, qual a sua profissão?

– Médico.

– E o senhor?

– Jornalista.

– Ex-palhaço de circo.

– Pastor evangélico.

Não existem políticos profissionais no Brasil. Ninguém é político de nascença ou faz curso de político. Os políticos somos nós, o povo inteiro. Será, então, que somos um povo de ladrões, como indica o comportamento dos nossos representantes? Será hereditário? A corrupção corre nas nossas veias, vermelha e quente?

Não pode ser. Porque, se um dia houve o espartano geneticamente falando, não se pode dizer o mesmo do brasileiro. O brasileiro é índio e negro, é alemão e japonês, é italiano e português, e é tudo isso miscigenado. Então, como explicar o vezo de desonestidade do brasileiro?

Tive uma pista para a solução do mistério ao ler Uma Jornada, relato que o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair fez de seu governo. Em dado momento, Blair conta que “o sistema britânico é essencialmente dirigido por funcionários públicos de carreira até nos altos escalões. Os assessores especiais são poucos e não muito frequentes (...). Quando, após alguns anos de governo, acumulei cerca de 70, algumas pessoas consideraram que isso era um ultraje constitucional”.

O primeiro-ministro acumulou 70 assessores e os ingleses consideraram esse número um ultraje. Quantas dezenas de milhares de funcionários foram nomeados pelos presidentes brasileiros nos últimos anos? Quase tantos, talvez, quantos os soldados do exército persa que enfrentou Leônidas. Eis a origem do mal: não são os políticos. É o sistema. É o sistema que gera a corrupção. É o sistema que precisa mudar.

quarta-feira, 4 de abril de 2012



04 de abril de 2012 | N° 17029
MARTHA MEDEIROS

Millôr para jovens

    Foi assim. Dia 30 de dezembro de 1987, eu estava na agência de publicidade onde trabalhava, quando me liga o Jorge Furtado: “Tu já leu o Jornal do Brasil hoje?”. Não tinha o costume. “Então lê. O Millôr fala do teu livro de poesia.” Catei o jornal e vi com meus próprios olhos – ele inclusive reproduzia um poema meu. “Jorge, o que eu faço?” “Liga pra ele, te dou o número.”

“Imagina, vou morrer de vergonha, é o Millôr!” “Fica tranquila, ele nunca atende, vai cair na secretária eletrônica.” Me enchi de coragem e liguei. Foi como Jorge profetizou, caiu na secretária, e depois do sinal, deixei meu recado: “Bom dia, Millôr, aqui é Martha, de Porto Alegre, acabei de ler sua coluna no jornal, puxa, nem sei como agrad...” Fui interrompida por um “Salve, Martha!”.

    E ali começava uma relação que, se eu dissesse que foi de amizade, estaria exagerando e sendo mais cabotina do que já fui nesse primeiro parágrafo. Foi, isso sim, uma relação brevíssima de carinho mútuo. E, de minha parte, de gratidão eterna.

    O resultado daquele telefonema: ele escreveu a orelha do meu livro seguinte, nos encontramos pessoalmente num churrasco em Porto Alegre, almoçamos num restaurante no Rio, fui contemplada com a presença dele numa sessão de autógrafos e depois trocamos rápidos e-mails, ele sempre gentilíssimo e eu embasbacada, me belisca. Então, perdemos contato, ele perdeu a saúde, e o Brasil o perdeu de vez.

    A única maneira que encontro para retribuir o aval inacreditável que ele me deu é recomendar a todos os jovens que não conhecem seu trabalho que leiam imediatamente Millôr Definitivo – a Bíblia do Caos. É uma espécie de dicionário que traz 5.142 frases sobre todos os assuntos possíveis e imagináveis, sempre com o brilhantismo, o humor, a provocação e a mordacidade de um autor que não teve similar.

    “Me arrancam tudo à força, e depois me chamam de contribuinte.”

    “Pra escrever bem não é preciso muitas palavras, só saber como combiná-las melhor. Pense no xadrez.”

    “Podem-se evitar descendentes, mas ninguém jamais conseguiu evitar antepassados.”

    “Escravos sempre produzem menos.”

    “O direito de resposta é fundamental. Senão a gente fica até pensando que o outro lado pode ter razão.”

    “Nunca ninguém me disse que parar de sofrer doía tanto.”

    “Pode ser que paz e tranquilidade sejam no céu. Mas showbusiness é no inferno.”

    “Passei a vida pensando que diabos, afinal, estou fazendo neste mundo. Descobri – nada. Sou visita.”

    “Pela aparência que tinha e pela idade que dizia ter, aquela senhora podia ser a mãe de si mesma.”

    “Nascimento e morte. A mais perfeita forma de renovação de estoque”.

    Não no teu caso, Millôr. O produto ficará em falta para sempre.

domingo, 1 de abril de 2012


DANUZA LEÃO

As noites sem dormir

Será um problema físico, ou sinal de uma mente atormentada? Não dá para ler, não dá para trabalhar

Existem os que deitam na cama e dormem. Simplesmente dormem, dormem a noite inteira e acordam na manhã seguinte leves, descansados, de bom humor. E há os outros, os que não têm sono nunca.

Mesmo que estejam cansados, exaustos, eles simplesmente não conseguem dormir. A cabeça não para de pensar, seja no que for; esses não têm descanso, não têm paz, e volta e meia olham o relógio para ver quanto tempo se passou, há quanto tempo estão tentando, quanto falta para o dia clarear, e pensam em como vão poder trabalhar no dia seguinte, já que não dormiram.

Dizem que dormem bem os que têm a consciência leve, mas conheço muitos que a têm bem pesada, mas que põem a cabeça no travesseiro e dormem o sono dos justos.

Os insones tentam de tudo. Desde os chás mais inocentes à ioga, aos antialérgicos -dizem que são ótimos-, até chegarem aos quase pré-anestésicos. Com esses conseguem dormir por algumas horas, mas como o efeito dura pouco, acordam de madrugada, ligados, sem saberem o que fazer.

Como se conhecem bem, evitam pensar em problemas, em tristezas. Fazem planos para uma futura viagem, uma possível mudança de casa, de vida, não pensam nunca em coisas tristes e fazem os planos mais absurdos para o futuro, mas nem assim. Conheço um que escolheu o número 650, sei lá por que, e vai contando ao contrário: 649, 648, e assim vai indo -e nada. Quando consegue dormir um pouquinho, é um sono tão leve que nem tem a certeza se dormiu ou não.

Será um problema físico, ou sinal de uma mente atormentada? Nas horas em que ficou estabelecido que devemos estar dormindo, não dá para ler, não dá para trabalhar, não dá para fazer nada, a não ser ficar agoniado e pedir a Deus para adormecer. Com o universo dormindo, os insones só pensam em uma coisa, que é também dormir.

Conheço um a quem aconselharam chá de maconha; ele comprou um pacotinho -todo mundo tem um amigo para essas coisas-, disse para que era (o amigo não acreditou), fez o chá, e nada. Pensou então que seu sonho seria um anestesista todos os dias, às 11h30 da noite.

Esse mesmo amigo, depois de consultar vários médicos, soube que a partir dos 60 ninguém precisa das famosas oito horas de sono; cinco são mais do que suficientes, e deram o exemplo dos bebês, que quando nascem, dormem quase o tempo todo. Ok, cinco horas por noite; mas como conseguir dormir cinco, e como administrar o resto do tempo?

Ele tentou alugar filmes; vários filmes. Se eles eram bons, o sono não vinha, claro, e se eram ruins, não dava para assistir. Não, não foi por aí. Uma sexta-feira resolveu não tomar remédio algum e passar a noite em claro sem angústia, sem pensar em dormir; o tempo não passava, aconteceram alguns cochilos, e só.

Lembrou que nunca dorme em longas viagens de avião, mas tinha pelo menos no que pensar: como seria bom quando chegasse, as coisas que iria ver, as novidades de uma cidade nova. Mas dentro do quarto era bem diferente. Se ao menos o telefone tocasse; mas quem iria telefonar às 3h da manhã?

Teve a ideia de fundar um clube, o clube dos que não dormem, para ter com quem falar, nas madrugadas, mas o projeto não prosperou.

Vou confessar: tudo o que contei se refere a mim, que nunca tenho sono, e mesmo quando tomo uma bola, resisto a dormir, penso que com medo.

Porque dos pensamentos consigo me defender, mas não dos sonhos.

danuza.leao@uol.com.br