quarta-feira, 9 de maio de 2012



09 de maio de 2012 | N° 17064
MARTHA MEDEIROS

Às três e meia da tarde

Eu trabalhava num prédio comercial da Avenida Carlos Gomes, com grandes janelões para a rua. Um dia deixei minha mesa, fui até um desses janelões e fiquei espiando o intenso movimento dos carros. Eram entre três e quatro da tarde. Fiquei olhando, olhando. Mal percebi uma colega que se aproximou e também ficou olhando, olhando. Até que ela disse em voz alta exatamente aquilo que eu estava pensando: “Esse pessoal não trabalha?”.

Caímos no riso. Parecíamos duas detentas sonhando com uma liberdade longínqua. Estávamos apatetadas por ver tanta gente transitando pra lá e pra cá no meio da tarde de um dia útil, enquanto nós ficávamos trancafiadas num escritório das 8h30min ao meio-dia e das 14h às 18h30min, saindo dali apenas quando precisávamos ir a um médico ou fazer uma reunião com um cliente.

Toda aquela gente estaria também indo ao médico ou a uma reunião com o cliente?

Isso foi em outra vida, quando eu ainda era funcionária em tempo integral e o “intenso” movimento dos carros era fichinha perto da avalanche que inunda as avenidas hoje. Só que agora contribuo para essa avalanche. Há mais de 15 anos que trabalho em casa, um luxo que permite que eu saia às 10h30min para ir ao supermercado, às 14h45min para levar uma filha à aula de dança, às 17h para ir a uma livraria comprar um presente. Ou seja, sou mais uma das que “não trabalham”.

Ainda assim, acredito que muitos também se perguntem: essa turma que afunila as ruas no meio da manhã e no meio da tarde está indo para onde, vindo de que lugar? Não deveria estar dando expediente como gente normal?

São fotógrafos de moda se dirigindo a uma locação, confeiteiras entregando uma encomenda, executivos indo visitar uma irmã na maternidade, jornalistas saindo ao encontro de um entrevistado, farmacêuticos voltando do dentista, lojistas transportando roupas de uma filial para outra, publicitárias levando o filho pra tirar o gesso da perna, psicólogos que foram experimentar um terno feito sob medida para o casamento do melhor amigo, universitárias seguindo em direção ao shopping porque o professor ficou doente, chefs de cozinha indo vistoriar os preparativos do bufê de um evento corporativo, bancários dando uma carona para a namorada até o aeroporto.

Não existe mais hora do rush, nem ruas livres e transitáveis no meio da manhã e da tarde. Agora, com tanta gente facilitando o próprio ofício com tecnologia portátil, com a flexibilização de horários de trabalho e sem mais a tirania do cartão-ponto, a vida ficou mais ágil e menos monótona.

As ruas estão cheias não só porque são vendidos mais automóveis, não só porque as cidades não se planejaram para esse excessivo volume de veículos, mas também porque aprendemos a trabalhar e viver ao mesmo tempo. As ruas estão cheias porque aprendemos a trabalhar e viver ao mesmo tempo.

segunda-feira, 7 de maio de 2012



O tango de Tibério e Lola

Estavam dançando um tango: quando ele ia, ela recuava, quando ele recuava, ela vinha

O amor é um tango. Hoje vou contar uma história de amor que ouvi de alguém esses dias. Esta história é real e nos faz pensar, afinal, quem somos nós.

Tibério era um jovem promissor. De boa família e com bons antecedentes, era visto como alguém inteligente, vivo e alegre. Vivia sua vida, numa casa de classe A, quando, numa noite de calor, viu alguém chegar à vizinhança. Loira, naquela idade que as avós chamavam de menina-moça, mesmo que ainda novinha, já se mostrava pronta para um investimento erótico.

Lola passeava pela vizinhança, livre e senhora de si, como são as fêmeas da espécie quando seguras de sua beleza e de seu charme. Para o coração do jovem Tibério, aquilo foi demais.

Ficou obcecado por Lola. Tentou voltar para sua vida pré-Lola, mas não adiantou. Nada do que tinha fazia mais sentido, pensava naquela jovem loira todo o tempo. Ficava parado olhando para parede, como se sua casa, sua vida e seus objetos de valor tivessem se esvaziado de sentido. Se Tibério soubesse filosofia, diria que a vida perdera o significado.

Ele era ainda virgem. No fundo da alma, se envergonhava disso e preferia que este fato permanecesse em segredo.

Mas, de repente, tomou uma decisão e resolveu abordar a bela e irresistível Lola, a loira arrasadora do "cartier", como dizem os franceses. Quem sabe, pensou Tibério no silêncio de sua alma, ela fosse, ainda que jovem e virgem, uma loira devassa em potencial? Pelo caminhar dela, balançando, ainda que discretamente, as promissoras ancas, ele pensou que tinha alguma chance.

Chegou perto e tentou falar com ela. Nada. Aquele olhar de desprezo que só fêmeas lindas da espécie sabem dar quando percebem que algum jovem candidato está por perto. Mas, percebia Tibério, Lola o olhava pelo canto dos olhos.

Tibério tinha razão. Ela estava dando sinais de interesse. Aproximou-se e tentou chegar bem pertinho. Lola, literalmente rosnou para ele. De primeira, Tibério temeu que ela o fosse morder de fato.

Tibério correu para casa, temeroso. Mas o desejo era grande, e Lola seguramente o olhava de longe, com olhos doces. Todos os seus genes ancestrais diziam: "Tibério, vá fundo, cara!".

O jovem voltou à carga. Pensou naquilo que todo macho pensa: "Ela quer um presente!". Não tinha nada à mão e, infelizmente, dependia da sua família para ir a um shopping, portanto teve uma ideia desesperada: "Vou dar para ela o que eu mais gosto e assim ela vai ver que eu quero muito ficar com ela".

Correu e pegou um objeto (pouco importa o que era, mas sim o valor que tinha para ele; de longe alguém diria que não passava de uma bola). Colocou carinhosamente o objeto diante da bela Lola. Ela, de novo, desprezou o infeliz Werther. Recuou. De longe, de novo, percebeu o discreto sorriso da bela Lola. Ela estava mesmo dançando um tango com ele: quando ele ia, ela recuava, quando ele recuava, ela vinha.

Uma dor grande se apoderou do pobre coração apaixonado. Mas, de novo, seus genes clamavam pela jovem Lola. Decidiu fazer-se de macho poderoso do pedaço e se aproximou confiante.

De repente, assim como quem ia roubar um beijo e um abraço, Tibério tentou se apossar de Lola. Ela, agora sem dúvida nenhuma, rosnou e o mordeu sem pena.

Tibério fugiu humilhado. Perdido, tentou comer alguma coisa. Mas, de novo tomado pelo amor, pensou se Lola não o aceitaria em troca de sua comida importada, mesmo que por um segundo tivesse pensado que aquilo não eram modos de abordar uma dama fina como Lola.

Docemente, ele empurrou a comida para ela. Lola comeu a comida dele e virou de costas. Tibério ficou arrasado e sentou-se, triste, enquanto a contemplava pela porta de vidro. Lola olhou para ele e ensaiou um sorriso, mas não adiantou. Tibério já estava triste e adormeceu. No dia seguinte, à mesma hora que Lola chegara, reconhecendo o carro, correu para o porta-malas para ver se a bela Lola voltara. Mas não.

Alguém perguntará: como uma bela dama pode vir num porta-malas? Simples: basta ela ser uma golden retriever, e ele, um border collie.

Sim, o amor é um tango, seja entre humanos, seja entre cães.

ponde.folha@uol.com.br

ELISANGELA ROXO DE SÃO PAULO

Carolina Dieckmann depõe hoje sobre fotos vazadas

 Advogado da atriz da Globo diz que ela rejeitou chantagem para impedir divulgação de imagens íntimas

A Polícia Civil do Rio de Janeiro vai abrir um inquérito para investigar o vazamento na internet de fotos em que a atriz da Rede Globo Carolina Dieckmann aparece nua.

A atriz vai prestar depoimento na (DRCI) Delegacia de Repressão a Crimes de Informática na manhã de hoje, acompanhada de seu advogado, Antonio Carlos Almeida Castro, o Kakay.

A investigação será conduzida pelo delegado Gilson Perdigão. O computador pessoal de Dieckmann também deve passar por perícia.

"Certamente é possível encontrar o culpado [pelo vazamento das fotos] porque temos os e-mails dele fazendo chantagem", afirmou Castro.

Segundo ele, há algumas semanas, a atriz recebeu ameaças de que deveria pagar R$ 10 mil para evitar que as fotos roubadas de seu computador fossem divulgadas.

No último dia 24, Dieckmann disse no Twitter que sua conta foi invadida.

Para o advogado, as mensagens enviadas pelo suposto chantagista vão facilitar o trabalho de identificação.

"Espero que o culpado vá para a cadeia", disse Castro.

Uma vez identificado o responsável, Dieckmann pretende processá-lo nas esferas cível e criminal pela responsabilidade de retirar as imagens de seu computador pessoal e divulgá-las na internet.

O advogado afirmou que vai entrar na Justiça com uma ação inibitória para impedir que as fotos continuem no ar, sob pena de multa diária para os sites que as hospedem.

Na última sexta-feira, 36 fotos da intimidade da atriz foram divulgadas na web, hospedadas anonimamente em um site estrangeiro.

Em algumas das imagens que vazaram, aparecem também o marido da atriz, Tiago Worcman, que é diretor do canal pago GNT, e seu filho caçula, de quatro anos.

sábado, 5 de maio de 2012



06 de maio de 2012 | N° 17061
MARTHA MEDEIROS

O dinheiro que grita

Todo mundo quer ter dinheiro e não há nada de errado com isso, desde que seja conquistado por mérito próprio, sem roubar de ninguém tampouco do município, do Estado e da nação.

Dinheiro limpo é bem-vindo: nos proporciona viagens, prazeres, conforto, cultura, saúde. Saúde não apenas física, mas mental, e não estou falando do fato de poder pagar um analista se for preciso, mas da tranquilidade de não ter dívidas. Uma pessoa sem dívidas dorme melhor, pensa melhor, respira melhor.

Além de limpo e honesto, dinheiro bom é dinheiro silencioso. Que não se exibe, não se pavoneia, não aponta para si próprio dizendo: olhem eu aqui! Conheço milionários que tem com o dinheiro uma relação discreta. Claro que moram bem, viajam, possuem um bom carro, mas não ostentam, não botam seu dinheiro no sol para brilhar e ofuscar os outros. O dinheiro tem que ser elegante como o seu dono. Ninguém precisa lidar com o dinheiro como se fosse um bicheiro.

Mas é como muitos lidam. Mesmo não abrindo a camisa para mostrar suas correntes douradas nem transitando em limusines, ainda assim há quem não se importe que seu dinheiro grite – aliás, até fazem questão de ter um dinheiro bem marqueteiro.

São mulheres que colocam todas as joias que possuem para ir a uma festa, usam bolsas com monogramas gigantes, instalam chafarizes nas piscinas e compram os dias de folga dos empregados porque não toleram a ideia de irem até a cozinha buscar seu próprio copo d´água num domingo.

Homens que andam em carros que valem uma cobertura, pets que vestem Prada, vinhos que são escolhidos pelo preço e namoradas idem, que amor verdadeiro é coisa de pobre.

O rico que esnoba pessoas humildes tem um dinheiro que grita. O rico que trata a todos com respeito e gentileza, tem um dinheiro silencioso.

O rico que só gasta com grifes, tem um dinheiro que grita. O rico que investe também no que é popular (e valoriza uma pechincha, por que não?) tem um dinheiro silencioso.

O rico que perdeu o prazer de apreciar as coisas gratuitas da vida, tem um dinheiro que grita. O rico que não perdeu a conexão com aquilo que lhe dava prazer quando não era tão rico, tem um dinheiro silencioso.

Quem dificulta o acesso a si mesmo através de um sem número de assessores, guarda-costas, secretários, agentes e demais bloqueadores humanos, tem um dinheiro que grita. Quem segue disponível pro afeto, tem um dinheiro silencioso.

Costuma-se diferenciar um do outro dizendo que um é o novo rico, e o outro, o rico de berço. Pode ser. Quem nunca teve, se deslumbra. Reconheço que é muito bom viver bem e poder pagar as próprias contas, tenham elas quantos dígitos tiverem. Mas dinheiro deveria ser educado da mesma forma que um filho: nunca permita que ele seja insolente e ruidoso.


06 de maio de 2012 | N° 17061
VERISSIMO

Lá vai um...

O sono não vem. Você já leu tudo que queria ler, e o sono não vem. Você já repassou tudo o que fez durante o dia e planejou tudo que fará no dia seguinte, e o sono não vem. E o dia seguinte ainda está longe.

Contar carneirinhos pulando a cerca, será que adianta mesmo? Coisa de americano. Mas lá vai um, lá vai dois, lá vai três... Ih, lá vem o um de volta. Organização, gente. Lá vai quatro. O cinco não conseguiu. O seis pulou em cima do cinco... Assim não vai dar. Você vai ficar ainda mais tenso.

Pensar em nada. Isso. Fechar os olhos e pensar em nada. Esvaziar o cérebro. Concentrar o pensamento num ponto no exato centro do seu cérebro, depois transportar esse ponto para o exato centro do Universo. Você não é mais você, você é o que existe em torno desse ponto luminoso no exato centro do Universo.

Você é o Universo! Se você abrir os olhos, o Universo vazará pelos seus olhos e inundará seu quarto, inundará sua vizinhança...

Suas pálpebras são só o que retém o Universo dentro do seu cérebro e o impedem de invadir... o Universo. Suas pálpebras são as únicas tênues defesas do Universo contra o caos. Não abra os olhos, não abra os olhos, não abra os... Você abre os olhos, em pânico. Quem pode dormir com tanta responsabilidade?

Quem sabe ler mais um pouco? Tanta coisa para ler... Na verdade, só quem tem insônia tem tempo para ler. É por isso que todo intelectual tem aquela cara de zonzo. Não é cultura, é sono. Intelectual não dorme. Não dorme porque é intelectual ou é intelectual porque não dorme e tem tempo para ler? Você não sabe. A sua insônia não tem qualquer proveito cultural. A sua insônia, além de tudo, é burra.

Você lembra que quando era criança achava que tinha um monstro embaixo da cama. Quando precisava fazer xixi durante a noite, dava um pulo da cama, pro monstro não pegar o seu pé. E na volta dava outro pulo pra cima da cama. O engraçado era que você nunca imaginava que o monstro fosse sair debaixo da cama e correr atrás de você.

Era um monstro terrível, comedor de pé de criança, mas era preguiçooooso... Você pensa: até que seria bom se houvesse mesmo um monstro embaixo da sua cama. Pelo menos alguém para conversar. Trocar reminiscências da infância... Lembra os pulos que eu dava para cair na cama sem você me pegar? Vocês dariam boas risadas.

Nem precisava ser um monstro. O ideal seria ter um psicanalista embaixo da cama. Além de alguém para conversar, alguém para curar a sua insônia. Quem sabe contar psicanalistas pulando a cerca? Lá vai um, lá vai dois, lá vai três... Ei, você, o quarto: não é para analisar o simbolismo da cerca, é para pular! Deve ser um freudiano ortodoxo. Lá vai quatro, lá vai cinco...

Você começa a enumerar todas as mulheres que teve na sua cama de adolescente. Artistas de cinema, vizinhas, primas... Sua imaginação as colocava ao seu lado na cama e vocês se amavam loucamente. E o melhor: depois do amor, depois de saciado – você dormia! Como você dormia antigamente. Que fim levara aquele sono todo?

Cérebro vazio. Pensar em nada. Esperar o amanhecer. Esperar o bendito dia seguinte. E o dia seguinte parece ficar cada vez mais longe.


06 de maio de 2012 | N° 17061
PAULO SANT’ANA

Forçoso é refletir

Todas as pessoas que encontro me dizem que não gostam quando escrevo sobre a morte. Detestam quando escrevo que estou para morrer.

Eu gostaria de responder a essas pessoas com o que disse o imperador Marco Aurélio, da Roma antiga, que era um filósofo: “Não sei por que se teme tanto a morte se ela significa a paz, o descanso definitivo. Além disso, a morte é o único lugar em que todos se tornam iguais”.

Em outras palavras, Marco Aurélio quis dizer que a morte é uma coisa muito boa. A melhor de todas as coisas.

E, sendo assim, é paradoxal que todos não queiram morrer, lutam para não morrer.

Só quem deseja a morte e não a teme são os suicidas.

De alguma forma, Marco Aurélio, ao afirmar que a morte é a única situação em que todos se tornam iguais, quis também afirmar que a única forma de socialismo é a morte, ou seja, ao contrário do princípio constitucional brasileiro “de que todos são iguais perante a lei”, todos são iguais perante a morte, isto sim.

Não existe nada mais falso do que “todos são iguais perante a lei”. Os pobres, os negros, os doentes do SUS, ninguém é igual perante a lei.

E o pior e o mais perverso de tudo é quando as leis tornam os homens desiguais.

O que faz o homem infeliz é exatamente ele acreditar na lei e na Justiça. Isso é o que revolta o homem.

A maior de todas as justiças, portanto, é a morte. Nela, o pobre e o rico se igualam. A mulher e o homem se igualam. Até os animais e os homens se igualam com a morte, tanto que nutro a esperança ardente de me reencontrar no céu com meu adorável cãozinho Dick, morto há tantos anos e por quem tenho uma saudade comovente e perfurante.

A morte, já chegamos a esse acordo por esta reflexão, é justa.

E a vida é profundamente injusta. Vejam o privilégio da herança, que separa os homens em ricos e pobres desde o seu nascimento.

Ou seja, é profundamente injusto que uma pessoa já nasça rica.

E não é injusto que uma pessoa já nasça pobre. Afinal, ela tem a vida inteira pela frente para adquirir seu patrimônio.

Enquanto aquele que já nasceu rico nem precisa esforçar-se para adquirir patrimônio, ele já o possuía desde seu nascimento.

Outro privilégio odioso da vida é que umas pessoas já nasçam bonitas, enquanto outras nascem feias.

Uns já nascem fortes, robustos, outros nascem mirrados ou doentes. Pode existir maior desigualdade decretada exatamente pela vida? É incrível, mas só quem pode corrigir isso é a morte.

Eu confesso que, como todos, não tenho boa ideia sobre a morte. Mas será que não estou enganado?


06 de maio de 2012 | N° 17061
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

O solteiro

George Clooney é um homem solteiro. Completa 51 anos neste domingo, e é solteiro. Merece homenagem. A começar porque George é solteiro por opção. Não que seja difícil casar. Olhe em volta.

Os seres humanos menos “desejáveis” estão casados. O zelador do seu prédio que anda sempre de regata é casado, os azuizinhos multadores são casados, os especialistas em endomarketing são casados, os donos de pitbulls são casados.

Quando vejo um dos tantos casados repugnantes que andam sobre o chão e sob o sol, fico pensando em sua mulher. Ele caminha por Brasília com o pescoço amarrado numa gravata, ele lambe as solas dos sapatos dos nababos e logo me ocorre: esse sujeito tem uma mulher que partilha os dias e a cama com ele e, pior, se repimpa com ele e para ele até deu um filho que, miseravelmente, é a cara dele. Como ela pôde cometer isso?

Alguém pode achar que as mulheres são generosas. Não se trata disso. Trata-se do instinto animal, da sobrevivência da espécie, o mesmo instinto que faz com que formigas e abelhas operárias trabalhem para alimentar a rainha. As três, abelhas, formigas e mulheres, funcionam em nome da continuidade da vida sobre a Terra.

As abelhas e as formigas podem até morrer pela rainha responsável pela reprodução no formigueiro ou na colmeia, enquanto as mulheres se submetem à convivência com homens que vão ao shopping vestindo camisa de time.

Se uma mulher casa com esse homem, imagine, então, um cara como o George, ator de Hollywood, bonitão, aparentemente inteligente e RICO. Uma mulher olha para George e deseja de imediato misturar os seus genes aos dele. Os mecanismos da evolução da espécie se põem a funcionar, os ácidos nucleicos dela fervem, suas entranhas se intumescem e todo o seu ser implora: Quero procriar! Quero procriar!

Calculo as armadilhas que George teve de desarmar para continuar solteiro, uma delas até o divórcio obtido quando, em tenra idade, casou-se por breve porém suficiente tempo. Imagino as dezenas de mulheres que George possuiu, algumas dengosas, outras agressivas, não poucas meigas, menos ainda fatais, todas lindas, macias e ansiosas por capturá-lo.

E ele não cedeu. Trata-se de um sobrevivente, de um exemplo, de um farol. Trata-se d’O Maior Solteiro do Mundo.

Um herói caído

O homem solteiro é uma ameaça. Não à continuação da espécie, pois solteiros podem fazer filhos. O solteiro ameaça a Civilização, essa criação da mulher. Neste ponto, lembro um velho herói de épocas primevas, um ser intrigante, que tem a ver com George: o neandertal.

O neandertal é uma dessas espécies humanas extintas em meio à conflagração da pré-história. Havia várias. Os hobbits, por exemplo, não passavam de um metro de altura. Se tivessem sobrevivido, imagine suas casinhas, seus carrinhos, suas cidadezinhas. Viveriam no Minimundo.

O neandertal, não. O neandertal era mais forte do que nós, sapiens. E possuía cérebro maior. Era mais inteligente. Vivia em pequenos bandos, alimentava-se da caça e da coleta. Não trabalhava. O bando partilhava seus poucos instrumentos, os alimentos e as doces fêmeas. Ninguém era de ninguém. Se ocorresse uma enchente ou uma carestia, ele se mudava. Era um desapegado. Vivia sem posses, sem compromissos e sem psicanalistas. Só que desapareceu. Como derrotamos o neandertal?

Aí é que está: não fomos nós, os sapiens. Foram AS sapiens. Elas inventaram a família e, com a família, a Civilização. Porque a mulher precisa de estabilidade. Fica grávida durante nove meses e depois tem de apascentar crias que não são independentes como as dos animais. Isso dificulta a mobilidade da fêmea por largo período.

Assim, a alegre vida nômade não era a ideal para a mulher. Foi o que a estimulou a observar e domesticar plantas e animais. Domesticando-os, criou a propriedade; com a propriedade, criou a família; com a família, domesticou o homem. Domesticado, o homem eliminou o neandertal. Logo, a mulher acabou com a vida nômade e selvagem. Que saudade.

Os antepassados de George

O neandertal nômade, forte e independente era uma ameaça à Civilização que a mulher sapiens havia criado. Porque a vida nômade do neandertal era um exemplo constante ao homem sapiens. Os homens lembravam-se de seus tempos de selvageria, e suspiravam por eles. Suspiram até hoje.

Os tempos de selvageria e nomadismo, das ruidosas caçadas e da existência livre são reproduzidos todos os dias nas atividades esportivas, nos jogos de guerra, na violência urbana e na grande arte. A pintura, a literatura, a escultura e a música são apenas sublimações dos instintos bárbaros do homem. O homem queria ser como o neandertal, queria ser como foi um dia, e não é mais.

Exceto George.

George resiste ao casamento, logo resiste à família, logo resiste à Civilização. George é como o neandertal, que preferiu extinguir-se a civilizar-se. São poucos como ele. Mas ele significa muito para muitos.

O Potter

É fácil encontrar o Potter. Procure atrás de um smartphone. Ele está sempre lá. É irritante, porque, mesmo que estejamos com ele, ele nunca está conosco. Ele está sempre com alguém mais importante lá do mundo virtual.

Fora esse inconveniente, o Potter é uma pessoa de quem todo mundo gosta, desde que o conheça. Quem não o conhece pode não gostar dele por um único motivo: porque o Potter é uma ameaça.

Ocorre que o Potter é um solteiro e, mais, ele exerce sua solteirice. Então, todas as mulheres comprometidas temem a influência do Potter e todos os homens comprometidos invejam a vida do Potter. Em resumo, o Potter é um péssimo exemplo. Por isso, muitas mulheres se aproximam dele para censurá-lo e muitos homens se aproximam dele para espancá-lo.

Só que, quando eles chegam perto do Potter, se encantam com sua simplicidade, sua lealdade e seu bom humor. Assim, os homens se tornam amigos do Potter e as mulheres ficam apaixonadas pelo Potter. O que leva à conclusão inevitável de que quem não o conhece tem razão: o Potter é mesmo uma ameaça.

Do filósofo Guerrinha sobre a vida do homem casado: “A última calcinha que eu vi foi da minha vizinha. No varal”

quarta-feira, 2 de maio de 2012



02 de maio de 2012 | N° 17057
MARTHA MEDEIROS

Briga de rua

Estava voltando da minha caminhada habitual, de manhã. Foi então que vi um carro embicado na entrada da garagem de um edifício, com todas as portas abertas, e, antes que eu achasse estranho, comecei a ouvir gritos. Ao lado do carro, uma moça segurava um menino no colo, um garoto de uns quatro anos, que chorava. Chorava de medo e susto: sua mãe berrava com seu pai. Um pai igualmente descontrolado que a impedia de entrar no prédio com a criança. O que havia acontecido?

Não sei, não os conheço, não imagino o que motivou esse barraco, só sei que fiquei em choque diante da cena: uma mulher no auge da sua fúria, histérica, ordenando que aquele homem desaparecesse, que sumisse, e ele chorando e ao mesmo tempo segurando-a, até que ela deu um tapão na cara dele, e outro, e a criança apavorada, e eu, parada a poucos metros de distância, sem saber se acudia, se fugia, sem um celular para chamar alguém – vá que ele esteja armado? Aquilo poderia terminar em tragédia.

Cheguei a pedir, ingenuamente, parem, conversem depois, olhem as crianças, e foi então que me dei conta de que elas estavam mesmo no plural, havia outra criança presa a uma cadeirinha dentro do carro, uma menina de não mais que dois anos, que chorava também. A essa altura, outros transeuntes pararam, circundamos o casal, mas todos sem ação, imobilizados pelo ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, mas não se mete mesmo?

Uma senhora tentou tirar o menino do colo da mãe para que ele não recebesse um safanão sem querer, mas o menino, lógico, esticou os braços e quis voltar, a despeito de todos os riscos que nem sabia que estava correndo, e o que mais me impressionava nem era aquele homem em lágrimas impedindo a passagem dela, nem o menino que chorava diante de uma cena que jamais irá esquecer, mas a mulher, a mulher que não chorava, e sim berrava “NÃO TOCA EM MIM!”, berrava “SAI DA MINHA FRENTE!”,

berrava e batia naquele homem que era duas vezes o seu tamanho, berrava de uma maneira surtada, assustadora, com uma voz que nem parecia vir dela, mas da fera que a habitava, berrava com uma raiva e um tormento que não podiam ser maiores. Ela havia chegado ao seu limite. Dali em diante, ela iria matá-lo, se matá-lo fosse possível.

Foi então que entendi como acontecem esses crimes passionais que não testemunhamos, que costumam ocorrer entre quatro paredes: por algum motivo, um homem ou uma mulher, ou ambos, tornam-se irracionais. Não se escutam, não conversam, não preservam os filhos, não percebem o entorno, viram dois selvagens, até que um deles escape ou morra.

Ela escapou. Um rapaz interveio, segurou o homem, ela entrou no prédio com as duas crianças. Ele ficou socando o chão, fora de si. Tudo isso numa das avenidas mais movimentadas da cidade, às 11h da manhã. Voltei pra casa arrasada. Nunca saberei quem era a real vítima da história, quem estava com a razão, e não estranharia se hoje os encontrasse de mãos dadas, com as pazes feitas, que isso é mais comum do que se pensa. Mas a violência do ato existiu, e foi testemunhada por duas crianças.

Na verdade, por três crianças. O mundo adulto, ali, me fechava as portas.


02 de maio de 2012 | N° 17057
EDITORIAIS

LÓGICA PERVERSA

Em pronunciamento alusivo ao Dia do Trabalho, feito na noite de segunda-feira, a presidente Dilma Rousseff cobrou duramente uma ação dos bancos privados no sentido de reduzir as taxas de juros cobradas aos clientes nos empréstimos, nas compras a prazo e nos cartões de crédito.

Argumentou que a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil já deram um bom exemplo neste sentido e que o governo também está fazendo a sua parte ao desonerar de impostos a folha de salários, para assegurar alívio aos empregadores e segurança aos trabalhadores.

Lembrou ainda, a chefe da nação, que o Banco Central tem feito um esforço para cortar a taxa básica de juros do país, que hoje está em 9%, mas as instituições privadas continuam resistindo e privilegiando apenas seus lucros. “O setor financeiro não tem como explicar essa lógica perversa aos brasileiros”, bradou a presidente em cadeia nacional de rádio e televisão.

Porém, ouvindo-se o outro lado, percebe-se que não se trata apenas de má vontade por parte dos banqueiros. A Febraban garante que os bancos não são os responsáveis pelas elevadas taxas de juros, que inibem a atividade produtiva, restringem o consumo, aumentam o desemprego e impedem o crescimento da economia.

Ocorre que o próprio governo é o grande tomador de empréstimos, para financiar seus enormes déficits. Ao pagar altos juros para obter empréstimos internos e cobrir rombos como o da Previdência Social, o governo acaba acionando o círculo vicioso da usura financeira.

Todos sabem que os juros só vão cair de forma sustentada se o governo mantiver o controle sobre a inflação, cortar gastos e gerar superávits para reduzir a dívida pública.

Aí entram aspectos que a presidente não mencionou no seu pronunciamento aos trabalhadores, como as reformas estruturais e a redução significativa dos gastos públicos, especialmente com a máquina administrativa.

A lógica perversa, portanto, não pode ser atribuída apenas aos bancos e financeiras, embora estas instituições invariavelmente sejam movidas por resultados e às vezes até mesmo pela ganância. Também há uma lógica insana num processo de governança que gasta mais do que arrecada, que usa cargos públicos como moeda para comprar apoio político e que transforma ministérios, estatais e órgãos públicos em cabides de emprego para apaniguados.

Ainda que não se possa responsabilizar a presidente por este estado de coisas, que é muito anterior a ela e resiste a sucessivos governos, também não se pode ignorar sua existência no momento em que o setor financeiro é legitimamente cobrado a fazer sua parte.

O país precisa, sim, reduzir o custo do dinheiro, para que mais brasileiros possam se beneficiar do momento favorável para o crescimento. Mas não basta demonizar os banqueiros – ainda que muitos façam por merecer o rótulo da perversidade.


02 de maio de 2012 | N° 17057
PAULO SANT’ANA

Surras entre amantes

Uma das cenas mais deprimentes mostradas pela televisão brasileira foi repetida na semana passada à exaustão.

Um pai, um homem possante, incomodado com um pequeno estrago que sua filha de nove anos fez num aparelho doméstico, foi até o quintal da casa e espancou cruelmente a criança, que se revirava mas era atingida violentamente pelo homem, que não cessava a agressão por longos minutos.

Uma vizinha filmou as cenas bárbaras e as entregou para a polícia. Durante o atroz espancamento, a menina implorava dramaticamente: “Baixa a mão! Baixa a mão!”.

E o pranto da menina encharcava o relho implacável do pai desnaturado.

O pai foi preso, pagou fiança e acabou solto. A menina disse à polícia que, ainda assim, queria muito bem a seu pai. As crianças perdoam porque são puras de sentimentos.

No mundo dos adultos, esta relação é mais complexa. O genial cronista Nelson Rodrigues, num dos seus paroxismos costumeiros, provocou severamente seus leitores, num pensamento célebre: “Toda mulher normal gosta de apanhar”.

É claro que ele quis dizer serem frequentes surras que certos maridos impõem às suas mulheres, nem por isso se separam e levam o casamento até a velhice.

Há um certo ingrediente masoquista-sexual entre maridos e mulheres que por vezes gostam de apanhar.

Há até um desvio perverso da personalidade que só consegue orgasmo diante de um pequeno sofrimento, um tapa, um puxão nos cabelos, um chupão no pescoço, uma pequena mordida na orelha.

Ao contrário do que afirmou Nelson Rodrigues, este é um comportamento pretensamente anormal, mas se torna rotineiro e faz a delícia das atitudes sadomasoquistas.

Quando eu era criança, nós, uns 20 meninos, na Rua 17 de Junho, bairro Menino Deus, sentávamos na calçada todos os dias às 18h, quando sempre o açougueiro do lugar era espancado por sua mulher, invariavelmente às 18h. Era a hora da ave-maria debaixo da pauleira.

E nós víamos esse espetáculo diário sem pagar ingresso e com hora marcada.

Um dia, a surra da mulher excedeu-se a uma derrama teatral: ela saiu correndo atrás do marido, que disparava no rumo da Avenida Getúlio Vargas.

A mulher começara a surrar seu marido dentro do açougue, usando, pasmem, uma manta de mondongo.

E correu uma quadra inteira baixando laçaços de manta de mondongo sobre as costas e cabeça do pobre açougueiro, que se defendia como podia dos golpes pesados da dobradinha.

Ora, um homem apanhar durante 30 anos, todos os dias, às seis da tarde, faz supor que ama doentiamente sua mulher.

E faz supor mais: que sem aquelas surras o sexo não teria sobrevivido, tampouco o casamento do curioso açougueiro.

O sexo entre homem e mulher compreende um desforço físico, uma fricção severa, e não raro deriva para a pequena violência, que se derrama muitas vezes em requintes de prazer.

Mas daí a que o Nelson Rodrigues tenha afirmado em outras palavras, que só mulher anormal não gosta de apanhar, isso que ele disse, além de causar revolta, provoca polêmica perturbadora.


02 de maio de 2012 | N° 17057
JOSÉ PEDRO GOULART

Programa de índio

Li que o Fernando Meirelles desistiu de filmar Grande Sertão: Veredas porque estava decepcionado com a bilheteria do filme Xingu, cuja produção assina. Pensei falar algo a respeito, mas antes quis ouvir o próprio Fernando, e o que de fato ele tinha a dizer a respeito. Ele me escreveu a seguinte resposta:

“Xingu foi selecionado para o Festival de Berlim e teve ótimas críticas na imprensa internacional. Isso nos animou. Quando começaram a sair as críticas no Brasil, o tom também era muito animador e nas ‘sessões-teste’ que fizemos o resultado foi o mesmo. Com isso, começamos a acreditar que o filme poderia cruzar aquela famosa barreira do milhão de espectadores, que significa chegar a todas as classes.

Foi bastante frustrante ver os resultados do filme depois do primeiro final de semana em cartaz e constatar que, apesar das salas lotadas e dos aplausos no final das sessões, nos cinemas que costumam ter programação menos focada em blockbusters, nas salas mais populares, nas cidades do interior e especialmente no Rio Grande do Sul, o filme foi mal. Nossa avaliação é que o tema não interessou. Ironicamente há uma fala do Jânio Quadros no filme que comenta isso.

Ele diz para o Orlando Villas-Boas: ‘Ninguém gosta de índio no Brasil, Orlando’. O curioso é que no site do filme há dezenas de comentários de gente que diz ter ido praticamente forçada ao cinema e saído encantada.

Enfim, depois dessa surpresa e vendo a lista de filmes que fazem grande público no Brasil, fiquei extremamente desmotivado em embarcar no projeto que estava planejando para o ano que vem, uma adaptação de Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Seria muito esforço para, no final, fazer apenas 300 mil espectadores. Nesta semana, resolvi tirar o time de campo.

Preciso ressaltar que acho extremamente positivo o fato de muitas comédias estarem fazendo um grande público no Brasil. Isso forma plateia para o nosso cinema, movimenta, banca e profissionaliza nossa indústria. Diria até que estas comédias são a boia salva-vidas do nosso cinema, só não tenho interesse pessoal em fazer este tipo de filme.

Nos próximos meses vou me dedicar ao lançamento de 360 e à filmagem do próximo longa que começa em setembro na Inglaterra. Mais um filme internacional. Esta por enquanto tem me parecido uma opção mais segura, ou ao menos, menos dolorosa.”

Isso foi o que o Fernando Meirelles disse. Ele, que desde que Cidade de Deus ganhou o mundo, fez longas fora, concorreu ao Oscar, entrou para o clube seleto dos que filmam o que quiserem, onde quiserem. Mesmo assim, manteve o prumo alinhado com o Brasil. Produziu filmes de outros diretores, alguns iniciantes, e produções de porte, como Xingu. Mas agora, cansou. Como é um sujeito elegante, ele diz que “as comédias são formadoras de público etc, etc”.

Na verdade, digo eu então, trata-se de um público acomodado, viciado na rasa dramaturgia televisiva imiscuída há décadas no seu dia a dia. E o poder é de quem consome, se tem procura, tem oferta. E a oferta é abundante, por todos os lados há sempre alguém pronto para entregar o fast- food cultural que público parece desejar. É fácil. Lucrativo. As crianças gostam. A família se alegra. Nem dá para sentir o gosto de veneno.

terça-feira, 1 de maio de 2012



01 de maio de 2012 | N° 17056
FABRÍCIO CARPINEJAR

Enterrado vivo

A tomografia computadorizada é um ensaio do velório.

Quem já fez o teste concordará comigo. Oferece uma experiência singular de impotência.

Quando deitei na cama branca do aparelho, eu me vi desamparado, me vi inferiorizado, me vi vulnerável, deparei com minha fragilidade em sua pureza mais remota. Uma sensação anterior à infância. Talvez adquirida no útero materno.

Eu era um mosquito sendo apanhado por duas mãos, mas ainda não esmagado. Um mosquito preso em seu último voo. Abafado pelos dedos de Deus.

Então, sou isso? Esse conjunto quebradiço de carne e osso que não tem noção do que há por dentro e que segue desinformado do próprio corpo?

Isso? Essa coisa almada?

Busquei espantar a tristeza aparente, mas o lugar não permitia conversas. As palavras não foram autorizadas a entrar comigo.

Passaria pelo túnel tempo suficiente para descobrir que sou finito.

O auxiliar pediu que cruzasse os braços no peito enquanto a máquina reproduziria meu cérebro.

A impressão é de que repousava em meu caixão e ia sendo levado pelos amigos. Ouvia nitidamente as argolas de prata batendo no casco da madeira.

Não estava nu, quem dera, vivia a pior nudez, a da camisola do hospital, fina e intrusa como uma casca de ovo.

Aquela cena rascunhou minha morte.

É uma solidão sem família. É aterrorizante realizar o exame de tomografia pela monotonia fúnebre. Pela ausência absoluta de sentido.

Obedecer é o que me resta, sou fantoche do desespero, perfumado à toa, sem mais uso de minha mulher:

– Mais de lado, para esquerda, olhando para cima –, o técnico orientava e eu prontamente atendia suas ordens.

Nem precisa de memória, de imaginação, para se enquadrar nos gestos e nas talas. Assumo uma passividade monstruosa, onde não discuto nada com medo de provocar o pior.

Deitar e esperar, com as mãos firmes e tensas algemadas no tórax. Breves minutos que reprisam as contradições da vida, as incertezas, os engasgos da dor, se fui bom ou ruim, se serei lembrado com vigor ou sofrerei o descaso natural dos parentes.

Mergulhar com a cabeça no interior do tubo, como quem ingressa na sepultura. Como quem abre um lugar na parede do São Miguel e Almas.

Com o início do exame, escutar o barulho do cimento, da pazinha, fechando nossa comunicação com o mundo. O zumbido de mosquito finalmente pego.


01 de maio de 2012 | N° 17056
DAVID COIMBRA

Meus dias de carimbador

Uma época trabalhei na microfilmagem do Estado. Tinha lá meus 17 anos e havia sido contratado como estagiário. Minha função era carimbar documentos, separá-los por natureza e amarrá-los com um atilho. Só isso. Então, passava o dia inteiro com aquele carimbo, pam, pam, pam! Depois, juntava tudo em uma pilha, atava e colocava numa caixinha de madeira, de onde outro estagiário os recolhia para levá-los ao arquivo.

O dia todo, todos os dias, pam, pam, pam! Se estivesse com sono, como em geral estava depois do almoço, minha carimbada era flácida como um argentino do Grêmio: pam... pam... Se estivesse irritado por ter saído de casa atrasado, sem café da manhã, as carimbadas eram pancadas de protesto: PAM! PAM! PAM! Se estivesse animado porque a loira do sétimo andar havia me dado uma olhada de lado no elevador, as carimbadas eram festivas: PARAMPAMPAM! PAM-DAM-BAM!

E pronto. Era essa a minha diversão. De resto, passava os dias pensando no fim de semana. Afinal, que motivação no trabalho pode ter um cara que só tem de carimbar e carimbar e nada mais?

É para esses caras, para os que têm de carregar um fardo diário, para os que se acordam ao alvorecer e voltam para casa quando a lua está alta no céu, para os que ganham pouco e trabalham muito, é para esses que existe um feriado como o de hoje, o Dia do Trabalhador. Jogador de futebol, não. Jogador de futebol faz todos os dias o que os trabalhadores fazem no fim de semana: diverte-se jogando bola. E ainda ganha para isso.

Hoje, portanto, é o dia dos assalariados, dos escriturários, dos cobradores de ônibus, dos motoristas de táxi, dos comerciários, dos operários, das secretárias, dos professores, mas não dos jogadores. Treinos físicos e concentrações semanais até podem transformar o jogo de bola profissional em uma atividade exigente, certo, mas trabalho não é.

O que entrará para a História

A História é retroativa. Pegue, por exemplo, um homem notoriamente bem-sucedido: o ex-presidente Lula. Você pode odiá-lo e a toda a sua descendência, dos retirantes dos intestinos de Garanhuns à elite do centro de São Bernardo, mas não haverá de negar que o governo dele desfruta de boa imagem e que ele já está inscrito nos chamados anais da História como um dos maiores governantes do Brasil.

Lula enfrentou denúncias sérias de corrupção contra seu governo e até contra seus familiares. Algumas dessas denúncias foram comprovadas e inclusive reconhecidas. Talvez tenham sido mais graves do que as que derrubaram Collor. Mas Lula se manteve altaneiro no cargo e sua gestão vicejou, enquanto a Era Collor se transformou em paradigma de corrupção.

Por que a diferença?

Porque, com Lula, a economia foi bem. Se Collor tivesse conseguido debelar a inflação com o plano econômico da famigerada Zélia, talvez não tivesse caído e, hoje, tudo que aconteceu no seu governo não pareceria trevas e danação, como parece.

A avaliação da História não depende só dos fatos. Depende também do que se sente a respeito dos fatos.

Depois do Gre-Nal de domingo, o técnico perdedor, Luxemburgo, foi severamente criticado por sua reação à atuação dos robustos gandulas que o Inter colocou em torno do campo. Bobagem. Isso teve tanta importância na partida quanto o Inter ter espalhado sal grosso na casamata do Grêmio para “sugar as energias” do adversário. Luxemburgo deveria ser criticado por outra razão: por ter escalado mal o time.

O Grêmio entrou no jogo com um meio-campo frágil e acabou contido pelo Inter. Foi um erro primário do treinador. Esse, sim, o erro decisivo. Mas não é o que está entrando para a História. O que já está na História é que esse foi o clássico dos gandulas. Às vezes não dá mesmo para se confiar na História.

Marxista

Quantidade gera qualidade, como disse Marx.

O Grêmio precisa de muitos reforços e até deve se livrar de alguns jogadores que pesam demais na folha salarial, mas a varrição sem critérios é um equívoco. Não adianta só ter um time, é preciso ter um grupo forte.

O Grêmio não tem nem time, quanto mais grupo. Então, manter alguns jogadores que não são exatamente titulares, mas que são reservas eficientes, é fundamental. Um Rochemback, por exemplo, fez falta nesse Gauchão.

O Inter tem perseguido essa filosofia. Tinha D’Alessandro e Oscar, trouxe Dátolo; tinha Kleber, trouxe Fabrício; tinha Damião, trouxe Jô e Gilberto. Às vezes dá errado, como deu com Cavenaghi, mas aí é o caso de se contratar ainda mais e não menos.

sábado, 28 de abril de 2012


Martha Medeiros

Os expulsos

“Entre o eu e a vida abriu-se um hiato, que faz daquela não mais a sua vida, mas um território onde ele não consegue penetrar e se inserir, um lugar estranho que não lhe pertence e ao qual não se sente pertencer, uma contínua fuga de algo que nunca possuiu e que portanto não é seu, mas do qual sente nostalgia como se o tivesse perdido”

(prólogo do livro Niels Lyhne, do escandinavo Jens Peter Jacobsen, publicado em 1880)

É uma sensação esquisita. É Está tudo bem, nada de grave aconteceu, mas você não está legal. Não aguenta mais o trânsito, palco das maiores grosserias, e o que é pior: flagra a si mesmo praguejando na hora do rush, quando sabe que é preciso ter paciência e sair mais cedo de casa, pois os trajetos estão tomando mais tempo.

Está todo mundo nervoso por razões que não necessariamente o fato de você ter cruzado à frente – você que também vive numa pressa danada. Ainda assim, mesmo com toda a compreensão sobre o assunto, que desânimo.

Lê nos jornais que o metrô está longe de sair do papel e suspira. Tampouco se sente seguro para andar de bicicleta em meio ao caos urbano. E não se atreve a dizer em voz alta (é politicamente incorreto), mas até os pedestres estão abusando da soberania que possuem.

Atiram-se na frente dos carros, longe das faixas, com a empáfia de donos da lei, como se não houvesse leis para eles também.Você já não suporta dar e ouvir tanta opinião, e se choca com os desaforos anônimos que inundam as redes sociais.

Quanto mais se enaltece o bom humor, mais aumenta o número de pobres de espírito , pessoas com uma nuvem negra sobre a cabeça, inquisidores a apontar falhas, criticar, debochar. Todos se julgam aptos a dar lições quase não há mais humildade em aprender. Você sabe que não é melhor do que ninguém, porém gostaria de ser melhor doq eu você esmo, mas como?

São tantos avanços tecnológicos, atualizações de vocabulário, acontecimentos, modismos, tendências, como absorver? O dia de ontem torna-se obsoleto a cada nascer do sol, e essa renovação constante não lhe excita, ao contrário, dá preguiça. Você queria mesmo era se refugiar numa casa de campo ao melhor estilo Zé Rodrix, com seus amigos, seus discos, seus livros e nada mais.

Mas você não faz o tipo ermitão a quem bastaria uma hora para sobreviver. Você gosta de ir ao cinema, viajar, conversar, ainda tem curiosidade sobre o mundo. Só que curiosidade moderada não é suficiente. Não basta ter um interesse médio. É preciso acompanhar tudo. Já nem tento. Será assim mesmo que a velhice anuncia que está chegando?

Preferia pensar que é a sabedoria batendo à porta. Não precisar de tanta gente em volta (“Não sofrer de solidão, e sim de multidão” – Nietzsche), não se cobrar modernidade não se envergonhar de usar ferramentas antigas. Mas nada disso é sábio, dizem os outros. É desistência. Talvez você se sinta como eu. Prestes a ser expulsa da própria vida.


29 de abril de 2012 | N° 17054
ARTIGOS - Claudia Costin*

É possível transformar a educação pública?

Num recente estudo da egípcia Mona Morshed, da McKinsey, a pesquisadora evidencia que diferentes redes de escolas públicas têm sucesso quando adotam medidas compatíveis com o estágio de avanço de seus sistemas escolares. Em outros termos: o receituário atual da Finlândia ou da Coreia não é o indicado para o Brasil.

O Brasil investiu pouco e tardiamente em Educação Básica. Em 1930, enquanto a Argentina tinha 62% das suas crianças nas escolas e o Chile chegava a 73%, nosso país contava com apenas 21,5%. Apenas em 1997 conseguimos universalizar o acesso das crianças de sete a 14 anos ao Ensino Fundamental.

Mas, logo em seguida, um sério problema de qualidade colocou-se no processo de ensino. Finalmente haviam entrado nas escolas os filhos dos não letrados ou de pais com baixa escolaridade. Naércio Menezes, da Insper-SP, mostrou, em artigos recentes, que o sucesso escolar depende, em grande medida, da escolaridade dos pais.

Este é o grande desafio da educação brasileira: como ensinar crianças cujos familiares, em muitos casos, não concluíram as séries iniciais do Ensino Fundamental. Certamente não é copiando fórmulas da Finlândia, país em que boa parte da população tem formação universitária.

Os dados educacionais brasileiros são reveladores: na última aplicação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) com resultados divulgados, constataram-se avanços importantes em relação aos exames anteriores, mas, entre os alunos do 5º ano, apenas 34,2% aprenderam o que deveriam em língua portuguesa e 32,6%, em matemática.

No 9º ano, em língua portuguesa, a situação é pior: 26,3% dos alunos aprenderam o que deveriam e, em matemática, só 14,8%. No Ensino Médio, 28,9% dos estudantes dominam os conhecimentos em português. Em matemática, o pior resultado: 11%.

No Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), teste organizado pela OCDE que permite avaliar a qualidade da educação oferecida aos jovens de 15 anos, o Brasil também tem mostrado avanços, desde sua primeira participação em 2000 até a mais recente, em 2009, quando fomos o terceiro país que mais avançou. Mas, mesmo assim, estamos apenas em 53º lugar, abaixo da Romênia e do México.

Quais são as nossas tarefas nesse contexto desafiador? Em primeiro lugar, estabelecer um currículo nacional claro, que deve ser adotado em todo o país e complementado com conteúdos regionais. Alfabetizar as crianças aos seis anos, como fazem as boas escolas privadas e, nos três primeiros anos, concentrar-se em ensino da língua e de matemática. Investir no professor, valorizando-o, capacitando-o e dando-lhe instrumentos para o processo de ensino.

Manter um bom sistema de reforço escolar, voltado às crianças com mais dificuldade em aprender. Adequar a educação a cada fase do desenvolvimento da criança e do adolescente e evitar excesso de disciplinas com carga horária diminuta, fenômeno que assola o Ensino Médio.

Mais do que tudo, é fundamental termos persistência estratégica nos caminhos a serem seguidos para transformar a educação. Esta é uma área que apresenta resultados no médio e no longo prazo. Mas, para obtê-los, é fundamental afastar o fisiologismo vigente na máquina em muitos Estados e municípios e manter continuidade e consistência técnica nas políticas educacionais. É possível!

*SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO