sábado, 16 de junho de 2012


IVAN MARTINS

Os traficantes do amor

Estamos cercados por uma indústria que explora a nossa carência

Na minha mesa de trabalho há uma rosa amarela do dia dos namorados. Entraram aqui um fortão e uma loirinha, vestidos de anjo, e deixaram o presente em nome de uma marca de cerveja. Achei engraçado, mas, assim que eles saíram, bateu certa melancolia. Como é fácil banalizar as coisas que nos comovem. Como é simples transformar em clichê – ou babaquice – os sentimentos terríveis que definem a nossa humanidade.

Olhe em volta: estamos cercados pela palavra amor. 

Há um milhão de livros com esse título, dez milhões de músicas com esse refrão, centenas de filmes e um batalhão diário de novelas que trata do assunto. Pela quantidade de produtos amorosos que nos oferecem, é inevitável concluir que consumimos mais amor do que cerveja, chocolate e televisores de tela plana. Talvez um pouco menos que celulares.

Nosso apetite por amor não tem limites. Nossa sede de amor jamais acaba. Somos carentes insaciáveis. Sonhamos com o amor todas as noites. Acordamos encharcados de imagens doloridas. Dentro de nós se agita um mar de memórias que tem como centro as nossas experiências de afeto. Velhas, remotíssimas, e recentes. Elas nos movem de forma inconsciente. Somos filhos, somos irmãos, somos amigos, somos amantes, somos pais e mães. Todos nós. A cola que liga todas essas situações é o amor. 

Começamos a receber amor ainda minúsculos, nos braços da mãe, e nunca mais paramos. Ele nos constitui emocionalmente, como os músculos e os ossos nos formam fisicamente. É parte essencial de nós e precisa ser reposto, realimentado, revivido a cada dia, a cada momento, em um processo que, a rigor, nunca tem fim. 

Um alienígena que chegasse à Terra iria perceber, em dois minutos, nossa abissal vulnerabilidade. Além de água, alimento, abrigo, precisamos desesperadamente de amor - em várias formas, em qualquer forma na verdade. Somos viciados nele. Erguemos nossa vida em torno dele. Do erotismo violento da adolescência aos sentimentos suaves da velhice, nossa existência é uma longa experiência amorosa – ou uma busca desesperada, e muitas vezes cega, muitas vezes infrutífera, pelo amor.

É por isso que me incomoda a banalização comercial do sentimento. Ela me parece uma covardia, quase uma canalhice. Algo como oferecer luz a um cego. Diante do amor, somos todos ingênuos, frágeis, facilmente enganáveis. É simples nos vender qualquer coisa, nos iludir com qualquer promessa. Estamos, desde crianças, atrás da próxima dose dessa droga – e, às vezes, tenho a sensação de estarmos cercado de traficantes que não entregam a mercadoria. Nem poderiam.

O que tem o bumbum da Scarlett?

Nossos verdadeiros sentimentos são obscuros e sombrios, quase impossíveis de serem saciados. Eles não cabem nos formatos pré-moldados da indústria do amor. Pegue o caso da mulher que matou e destrinchou o marido uns dias atrás. Havia amor ali. Amor na forma de ciúme. Amor próprio. Amor de mãe que temia ser separada da filha. Mas não é disso que a marca de cerveja quer falar no dia dos namorados.

A história de Elize Matsunaga precisa de um filme europeu pesado, triste, não comercial, daqueles que nos expulsam da sala de cinema com a mesma força com que mergulham dentro de nós. 

Diante do tamanho das nossas necessidades, e da nossa imensa complexidade, a indústria do amor está fadada a nos desapontar. Ela oferece música para um momento de dor, mas mil músicas são incapazes de nos consolar quando acabamos de ser abandonados. Ela nos dá lindas histórias de amor, mas quem pode com elas quando está coberto por um manto intransponível de medo e tristeza?

O paradoxo do amor público, industrial, feliz, multiplicado nas redes sociais e nas salas de Multiplex, é que as nossas experiências realmente importantes são incomunicáveis e intransferíveis. Apesar do estardalhaço social, estamos sozinhos frente ao amor.

Cabe a cada um de nós encontrá-lo, vivê-lo ou perdê-lo intimamente. É inevitável gemer sozinho no escuro, cercado de silêncio. O pessoal da rosa amarela não estará disponível se você precisar deles. 
Ivan Martins escreve às quartas-feiras


16 de junho de 2012 | N° 17102
NILSON SOUZA

O espelho do tempo

Num certo dia de junho do ano da graça de 1991, o colega Pedro Chaves, editor da página reservada aos leitores neste jornal, ingressou na Redação com uma filmadora nas mãos. Como uma criança com o seu brinquedinho novo, foi passando entre as mesas de trabalho e, em silêncio, registrando imagens dos colegas.

Todos fomos pegos de surpresa, pois estávamos concentrados em nossos afazeres. Alguns fingiram que não era com eles, outros enfrentaram a câmera com um olhar desafiador, os brincalhões deram a clássica abanadinha para o cinegrafista e teve até uma jovem, mais saidinha, que aproveitou o momento de visibilidade para um improvisado desfile.

Tudo gravado para a posteridade. Agora, 21 anos depois, o nosso Steven Spielberg relançou no YouTube a sua obra, e todos, com exceção dos enviados especiais à outra dimensão, pudemos apreciá-la em nossos monitores. Foi um choque de espanto e de saudade. Como é desconcertante a gente se ver no espelho do tempo, com gestos, movimentos e aquele rosto familiar que os anos insistem em redesenhar!

Entre risos fartos e discretas lágrimas, vimos colegas que perderam cabelo e ganharam peso nessas duas décadas, outros que incrivelmente rejuvenesceram e também aqueles que se despediram sem saber – e sem que soubéssemos – na despretensiosa filmagem. Como tudo passa rápido e hoje os recursos tecnológicos são abundantes, principalmente no que se refere à captação de imagens, fica até difícil de explicar à garotada por que nos emocionamos com uma simples visão do pretérito de nossas existências.

Um dia, lá no ponto futuro, eles vão entender.

Ainda mais agora, que a holografia está ressuscitando ídolos desaparecidos e colocando-os no palco em três dimensões, como se ainda estivessem entre nós. A tecnologia aperfeiçoa o espelho do tempo e dá vida ao passado, tornando um pouco mais consistente a ilusão de que um dia viveremos para sempre.

Nossas imagens, agora circulando pelo mundo virtual, talvez já estejam condenadas à eternidade. E devemos essa à persistência do nosso cinegrafista amador, que não ligou para constrangimentos e caras feias, levando o seu trabalho até o final. Precisamos, pelo menos, filmá-lo, pois naquele dia especial de junho ele estava escondido atrás de sua câmera e não se apresentou para a posteridade.


16 de junho de 2012 | N° 17102
CLÁUDIA LAITANO

Monet e o HD

“É como ver o mundo pela primeira vez em HD”, ela me disse, saindo da óptica com o primeiro par de óculos sobre o nariz e um horizonte de possibilidades subitamente estendido a sua frente.

Comecei a usar óculos ainda mais cedo do que a minha filha, que tem 13 anos, mas lembro bem da sensação de descobrir uma nitidez na paisagem que eu nem sequer suspeitava que fosse possível: linhas borradas virando retas, manchas difusas revelando-se formas e até o chão parecendo ocupar outra distância em relação ao corpo, obrigando o míope recém-corrigido a aprender a caminhar alinhando-se a uma nova perspectiva.

Sim, é como ver tudo pela primeira vez – e a imagem em HD é a metáfora tecnológica que os míopes esperaram durante todos esses anos, ou pelo menos desde que as lentes foram inventadas.

Hoje, muitas pessoas têm em casa a chance de comparar uma boa imagem com uma imagem perfeita. É só trocar o canal, e a novela das oito ganha novos contornos. A mulher bonita continua bonita, mas já não é perfeita – e a mulher perfeita, ou quase, salta da dela como uma deusa em meio aos mortais. Aparecem as rugas, as manchas na pele, o desalinho do cabelo.

É como se toda aquela gente agrupada com o único e inescapável objetivo de iludir tivesse perdido um dos seus principais truques: o de encenar uma versão mais caprichada do real, onde os poros não aparecem e as pequenas imperfeições podiam ser cobertas com uma simples camada de maquiagem comum. A tecnologia do disfarce foi menos ágil do que a tecnologia da multiplicação dos pixels, e o Olimpo das estrelas de TV tornou-se um pouco menos divino aos olhos comuns.

Diante da possibilidade de escolher entre a imagem perfeita do HD e a imagem comum a que estávamos acostumados, não é de todo improvável que muitos espectadores acabem optando pela versão com menos qualidade – por mais paradoxal que isso possa parecer.

Às vezes, vê melhor quem enxerga um pouco menos e imagina um pouco mais. Ou talvez essa seja apenas a lógica a que nós, os míopes, estamos acostumados, habitando desde sempre um mundo em que eventualmente somos obrigados a preencher certas imagens com a imaginação ou o puro chute.

Quis a natureza que o momento em que a minha filha adolescente, corrigindo uma leve miopia, passasse a ver o mundo em HD coincidisse com o momento em que eu começo a enxergar menos. Como os míopes têm a vantagem de nunca perderem a visão do que está bem próximo, cada vez mais tenho optado por não corrigir a miopia o tempo todo.

Resulta que o que está bem perto continua nítido e límpido – livros, páginas de jornal, o rosto das pessoas mais queridas – enquanto o que está longe se perde na mancha borrada da indefinição. Sim, eu poderia usar um multifocal ou ficar botando e tirando os óculos, mas, por enquanto, estou preferindo olhar o mundo distante como quem admira um quadro de Monet: aproveitando a visão do conjunto sem sofrer muito com a perda dos detalhes. E tem sido como voltar a ver o mundo como ele sempre foi.

quarta-feira, 13 de junho de 2012



13 de junho de 2012 | N° 17099
MARTHA MEDEIROS

Passe adiante

Tenho vários DVDs de shows, e houve uma época em que assistia a eles atenta, ou então deixava rodando como som ambiente enquanto fazia outras coisas pela casa. Até que os esqueci de vez.

Conhecedor do meu acervo, meu irmão outro dia pediu: posso pegar emprestado uns shows aí da tua coleção? Claro! Ele escolheu quatro e levou com ele. E subitamente me deu uma vontade incontrolável de voltar a assistir àqueles shows. Aqueles quatro, não é estranho?

Logo a vontade passou, mas fiquei com o alerta na cabeça. Me lembrei de uma amiga que uma vez disse que havia comprado um vestido que nunca usara, ele seguia pendurado no guarda-roupa.

Um dia ela me mostrou o tal vestido e intimou: “Pega pra ti, me faz esse favor. Jamais vou usar”. Trouxe-o para casa. Muito tempo depois, ela me confidenciou, às gargalhadas, que não havia dormido aquela noite. Passou a ver o vestido com outros olhos. Por que ela não dera uma chance a ele?

Maldita sensação de posse, que faz com que a gente continue apegada ao que deixou de ser relevante. Incluindo relacionamentos.

Uma outra amiga vivia reclamando do namorado, dizia que eles não tinham mais nada em comum e que ela estava pronta para partir para outra. E por que não partia? “Porque não quero deixá-lo dando sopa por aí.” Como é que é?

Ela não terminava com o cara porque não queria que ele tivesse outra namorada, dizia que não suportaria. Reconhecia a mesquinhez da sua atitude, mas, depois de tantos anos juntos, ela ainda não se sentia preparada para admitir que ele não seria mais dela.
DVDs, roupas, amores: claro que não é tudo a mesma coisa, mas o apego irracional se parece. É a velha e surrada história de só darmos valor àquilo que perdemos. Será que existe solução para essa neura? Atribuir ao nosso egoísmo latente talvez seja simplista demais, porém não encontro outra justificativa que explique essa necessidade de “ter” o que já nem levamos mais em consideração.

É preciso abrir espaço. Limpar a papelada das gavetas, doar sapatos e bolsas que estão mofando, passar adiante livros que jamais iremos abrir. É uma forma de perder peso e convidar a tão almejada “vida nova” para assumir o posto que lhe é devido. Fácil? Bref. Um pedaço da nossa história vai embora junto. Somos feitos – também – de ingressos de shows, recortes de jornal, fotos de formatura, bilhetes de amor.

Isso sem falar no medo de não reconhecermos a nós mesmos quando o futuro chegar, de não ter lá na frente emoções tão ricas nos aguardando, de a nostalgia vir a ser mais potente do que a tal “vida nova”.

Qual é a garantia? Um ano para geladeiras, três anos para carros 0km, cinco anos para apartamentos. Pra vida, não tem. É se desapegar e ver no que dá, ou ficar velando para sempre os cadáveres das vontades que passaram.



13 de junho de 2012 | N° 17099
INTERNET RÁPIDA

Vencedores de leilão adiantam que tecnologia 4G será mais cara

Executivos de operadoras reclamam de restrições de prefeituras para a instalação de mais antenas

Assim que venceram o leilão da internet móvel 4G, as operadoras adiantaram que o cliente vai pagar mais pela nova tecnologia. Os executivos das companhias aproveitaram para cobrar colaboração dos municípios, cada vez mais rígidos a respeito da instalação de novas antenas, e avisaram: sem novas torres, não será possível fornecer o serviço.

Claro e Vivo ficaram com as faixas de maior capacidade de transmissão de dados com cobertura nacional no leilão 4G para a internet móvel. Oi e TIM também arremataram faixas com abrangência em todo o país, mas com metade da capacidade.

O primeiro dia do leilão das faixas 4G terminou com arrecadação parcial de R$ 2,72 bilhões, ágio médio de 34,37% em relação aos valores mínimos dos lotes colocados em disputa. A Sky arrematou 12 lotes regionais e a Sunrise (empresa de TV por assinatura do interior de São Paulo), dois lotes. Dos 268 lotes regionais disponíveis, 24 foram vendidos, 33 serão oferecidos hoje e 36 passarão por nova rodada.

Com a quarta geração da telefonia móvel, a transmissão de dados terá velocidade até 10 vezes maior do que a oferecida atualmente pela tecnologia 3G. Será possível baixar vídeos, fazer videoconferências e enviar arquivos com mais rapidez, mesmo em movimento. Na América Latina, três países têm redes desse padrão: Porto Rico, Colômbia e Uruguai.

O funcionamento das redes começará em abril do próximo ano pelas cidades que sediarão a Copa das Confederações. Porto Alegre deverá ter as redes 4G até dezembro de 2013, já que é uma das cidades-sede da Copa do Mundo.

Como não houve interesse na aquisição da faixa destinada ao serviço de telefonia móvel para áreas rurais, as vencedoras do leilão terão de oferecer serviços de voz e dados 3G nessas áreas. A oferta de internet móvel na zona rural do Rio Grande do Sul ficará sob responsabilidade da Oi.

terça-feira, 12 de junho de 2012



12 de junho de 2012 | N° 17098
FABRÍCIO CARPINEJAR

Carta para minha namorada

Eu decorei suas fraquezas, acalmei seus pesadelos.

Conheço histórias de sua infância, dores e repulsas.

Sou sua caixa-preta, sua cópia de segurança, seu diário, seu esconderijo na parede.

Poderia imitar sua caligrafia, poderia escrever sua biografia, listar o material escolar da 5ª série, recordá-la da capa de bichinhos coloridos da cartilha Alegria de Saber.

Você não escondeu nenhuma resposta de minhas perguntas. Nenhuma gaveta para a minha curiosidade.

Nunca se revelou tanto para outra pessoa. Expôs quem odiava no Ensino Médio, quem amava, quais as gafes e as covardias que experimentou na escola.

Confidenciou aquilo que seu pai gritou e que magoou fundo, aquilo que sua mãe omitiu e feriu fundo.

Não tem anticorpos contra mim. Baixou as armas, depôs a mínima resistência.

Se você me escolheu para confiar, devo ter o dobro de tato para falar contigo, o triplo de responsabilidade. Qualquer um conta com o direito de falhar, qualquer um desfruta da possibilidade de errar, menos eu. Sou o que realmente estudou seus pontos fracos e o lugar de suas veias.

Perdi a desculpa do acidente, a vantagem do lapso.

Sou o mais perigoso, portanto tenho a obrigação de defendê-la de mim. Tudo o que ouvi a seu respeito não posso empregar para agredi-la. Cada desabafo que me confiou não serve para nada, a não ser para amá-la.

Não tem finalidade doméstica, nem serventia para fofoca, é uma amnésia alegre: escuto, sorrio e consolo.

Não ouso soprar verdades sem sua permissão. São arquivos protegidos.

Quem ama mergulha em hipnose regressiva, firmamos um código de quietude e cumplicidade, de zelo e compromisso.

Intimidade é um conteúdo perigoso, tóxico, explosivo. Há os casais que esquecem que estão levando a valiosa carga e transformam a catarse em tortura psicológica, em chantagem emocional, em sequestro moral.

Suas confidências morrem comigo ou eu vou morrer nelas. Não podem retornar numa briga. Que eu morda a língua, queime a boca, mas não use jamais seus segredos. Aquilo que você me disse não é para ser devolvido. Todo o segredo é um sino sem pêndulo.

Não importa o que faça ou as razões da raiva, é covardia distorcer suas lembranças.

Não posso rifar seus problemas, nem propor leilão dos seus medos.

Minha namorada, minha noiva, minha mulher, meu amor.

Eu prometo cercar seu silêncio com meu silêncio.

Não nasci para julgá-la, mas para me julgar e, assim, merecê-la.



12 de junho de 2012 | N° 17098
CLÁUDIO MORENO

Para durar mais que o bronze

Écom uma ponta de inveja que Aulo Gélio, um dos mais pitorescos cronistas da Antiguidade, registra o amor extraordinário de uma mulher por seu marido – segundo ele, “superior àquelas paixões que a literatura imortalizou, superior a tudo aquilo que se possa esperar da ternura humana”.

Por 25 anos, na cidade de Halicarnasso, capital de uma das províncias do império Persa, Mausolo levou uma vida feliz ao lado de sua rainha, Artemísia. Além de esposo dedicado, era amado por seu povo e temido pelos inimigos – as duas qualidades essenciais dos bons reis de antigamente.

Em perfeita harmonia, o casal se dedicou a embelezar sua cidade, enchendo-a de esculturas famosas e de templos e edificações de mármore polido.

Quando Mausolo morreu, Artemísia mandou emissários à Grécia para contratar os arquitetos, escultores e artesãos de renome que quisessem participar da construção de um túmulo grandioso para o marido, ao qual esperava se juntar em pouco tempo – um monumento que eternizasse o amor de um pelo outro e a dedicação de ambos à arte e à beleza.

A construção tinha quase 50 metros de altura e ostentava elegantes colunas em toda a volta, entremeadas com relevos assinados pelos mais célebres artistas gregos. Mas como nem mesmo o sólido mármore resiste ao implacável desfile dos anos e dos séculos, Artemísia resolveu construir outro monumento, desta vez com o material mais duradouro de todos, e promoveu um concurso literário.

O prêmio, uma elevada soma em ouro, atraiu a Halicarnasso oradores e filósofos tão famosos quanto Isócrates e seu discípulo Teopompo, que celebraram, por escrito, a memória de Mausolo.

Pois ela tinha razão; o túmulo, apesar de aclamado pelos historiadores como uma das sete maravilhas do Mundo Antigo, não chegou a nossos dias. Mil e quatrocentos anos depois, já abalado por sucessivos terremotos, foi descoberto por cruzados da ordem dos Cavaleiros de São João, que entraram no sepulcro e, depois de admirarem por algum tempo as belíssimas colunas e as cenas representadas nos relevos, quebraram tudo, moendo o mármore para alimentar os fornos em que faziam cal.

Artemísia, no entanto, tinha conseguido romper para sempre a barreira do esquecimento, legando para todas as línguas do Ocidente a palavra “mausoléu”, que imortalizou o nome de Mausolo – agora sim, um monumento imperecível de uma rainha apaixonada por seu rei e do amor que os uniu.

Lembrete – Nesta quinta, dia 14, começa meu curso Os Mitos de Troia, na Casa de Ideias, no Shopping Total. Detalhes pelo fone 3018-7740 ou em www.casadeideias.com.

sábado, 9 de junho de 2012



09 de junho de 2012 | N° 17095
NILSON SOUZA

Os deuses vendem quando dão

A vida é um sopro e 20 anos não é nada, cantava Carlos Gardel. E 30? Pois esta semana levei um susto quando me dei conta de que já se passaram três décadas do dia em que encontrei o homem mais solicitado do mundo passeando sozinho numa praia de Portugal.

Não, não era o Papa, nem John Lennon, assassinado dois anos antes. Naquele início de junho de 1982, o homem mais solicitado do mundo era Telê Santana, técnico da Seleção Brasileira, que estava a caminho da Copa da Espanha. Cada vez que ele dava uma entrevista coletiva, batalhões de repórteres e fotógrafos de todos os continentes se formavam para ouvi-lo e questioná-lo.

Como jornalista esportivo, eu também estava na Europa para cobrir o Mundial. Acordei cedo naquela sexta-feira de junho, dia de folga da Seleção, que fazia uma adaptação em Lisboa. Quando olhei pela janela da estalagem Mar do Guincho, em Cascais, onde estava hospedado justamente para ficar próximo da Seleção, nem acreditei: Telê caminhava solitário à beira do mar, com uma máquina fotográfica a tiracolo.

Em poucos minutos, estava a seu lado. Ao identificar-me como gaúcho, fui recebido com simpatia, pois o treinador mineiro trabalhara quatro anos antes em Porto Alegre e tinha a melhor impressão do Rio Grande e de sua gente.

Caminhamos e conversamos durante mais de uma hora. Em várias ocasiões, ele me pediu que o fotografasse em cenários bonitos do local. Chegamos até a estrada que leva a Sintra, onde está o Cabo da Roca, o ponto mais ocidental do continente europeu. Lá tem um monumento com uma célebre frase de Camões: “Aqui... onde a terra se acaba e o mar começa”.

De Camões eu pouco sabia, mas aquele momento e aquele lugar me fizeram lembrar Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto de teu sal são lágrimas de Portugal”. Ou esta outra, que decorei nas aulas de literatura da faculdade: “Os deuses vendem quando dão./ Compra-se a glória com desgraça./ Ai dos felizes porque são/ só o que passa”.

Claro que não falei nada disso para meu cordial e famoso companheiro de caminhada. Falamos de futebol, evidentemente, mas o assunto principal foi o cigarro. Telê odiava cigarros. Disse-me que fora um fumante insensível e intransigente, a ponto de xingar a filha quando esta reclamou da fumaça numa viagem de carro. O choro da menina, me contou, fez com que ele refletisse e nunca mais pusesse um cigarro nos lábios.

Voltamos do passeio, mais tarde estivemos juntos em Sevilha e Barcelona, onde a Seleção Brasileira encantou o mundo e alegrou a Itália, na célebre tragédia do Sarriá. O estádio não existe mais, Telê não existe mais, o futebol mágico do time de 82 não existe mais.

Pessoa tinha razão: compra-se a glória com desgraça. Trinta anos se passaram.

Um sopro, mas impossível de esquecer.


09 de junho de 2012 | N° 17095
PAULO SANT’ANA

O casaco de lã

Todo dia de pagamento aqui na RBS (dia 5), bate-me uma forte autocomiseração.

Doem-me como um punhal cravado no peito as lembranças da minha infância.

Eu estudava no Júlio de Castilhos, 1ª série ginasial, tinha 11 anos. Era alegre a hora do recreio, todos os alunos corriam para o bar e o meu maior sonho era poder comer um mil-folhas com Coca-Cola.

Todos comiam e bebiam e eu ficava olhando-os de longe, sem dinheiro para o lanche.

Que dor me causa hoje essa lembrança!

Havia por essa época uma turminha de quatro ou cinco garotos que se reuniam todas as noites ali no Partenon, sob a liderança de um adulto, o saudoso Cláudio Goandete.

Depois das conversas, iam todos para o bar Monte Pascoal, na Avenida Bento Gonçalves, quase esquina Rua Guedes da Luz.

E eu não ia para o bar com eles porque me faltava dinheiro para tomar meia taça de café com leite com um sanduíche. Quanto me custava essa dor, mas o interessante é que me parece que me dói mais hoje do que me doía naquela época.

Nós nos reuníamos também no inverno, e os meus amigos um dia disseram que talvez seria o caso de fazerem uma “vaquinha” para me dar um casaco de lã grossa que me protegesse do frio. Parece que ficavam com pena de eu ter de me reunir a eles com camisa de verão. Não tinha dinheiro para comprar roupa.

Dói-me muito isso hoje, é interessante que eu me lembre dessas passagens. E que por isso eu tenha profundo respeito pelas pessoas pobres.

Eu fui uma criança que não teve bicicleta. Não tive bilboquê, a rara lembrança de brinquedo que tive é de uma gangorra sem graça que meu pai me deu um dia no Natal.

Já adolescente, um dia fui a um psiquiatra e me queixei muito de meu pai, contei-lhe que não ganhava nada dele, que me faltava tudo e meu pai não me abastecia de coisas simples que no entanto eram essenciais para que eu sobrevivesse.

O psiquiatra me olhou e me perguntou: “Tu já pensaste que talvez teu pai não tivesse recursos para te fornecer as coisas que te faltavam?”.

Eu nunca tinha pensado nisso. Mas é quase certo que era verdade.

O que mais eu queria era desfilar na parada dos colégios no dia 7 de setembro.

O colégio exigia calça azul-marinho e camisa branca rulê. Eu tinha uma camisa branca mas não era de gola rulê.

Lá fui eu desfilar na parada, constrangido porque estava vestido de forma diferente de todo o colégio, graças à misericórdia do professor que não quis impedir que eu desfilasse só por causa daquele detalhe estético.

Mas eu desfilei com vergonha do meu deslize.

Não sei se não estou exagerando ao sentir pena da mim na infância. Mas sinto.

É possível que eu esteja apenas comparando a minha condição socioeconômica de hoje com a da minha infância.

É complicado, mas é muito difícil a gente, depois de tornar-se adulto, conseguir se libertar de alguma recordação triste da infância.

Sempre a infância a martelar os nossos pensamentos.


09 de junho de 2012 | N° 17095
CLÁUDIA LAITANO

Pais & filhos

Os bebês invadiram o mundo – ou pelo menos o mundo virtual. Eles são onipresentes nas redes sociais: bebês sorrindo, bebês chorando, bebês de roupa nova, bebês tomando banho. Nunca participamos tanto da primeira infância alheia ou fomos tão detalhadamente informados sobre rotinas que pouco ou nada interessam a quem não é próximo da criança. Sua majestade, o bebê, é provavelmente o ser vivo mais filmado e fotografado do planeta – seguido de perto por gatos fofinhos e a realeza britânica.

Bebês talvez sejam mesmo a face mais luminosa da existência. Onde mais, seja você o Steve Jobs ou o vendedor de maçãs da esquina, seria possível encontrar uma combinação tão magnífica de amor incondicional, possibilidades ilimitadas e futuro a perder de vista? Não é à toa que os pais exibem as fotos de seus filhos nas redes sociais como antigamente se compartilhavam cartões-postais das pirâmides ou da Torre Eiffel.

Sim, eles são lindos, sim, eles são amados, mas, mais do que isso, eles são um instantâneo de um momento de plenitude em meio à inevitável imperfeição de todo o resto. Quem tem um bebê em casa não está pensando no que ele já foi nem sabe ainda o que ele será. O bebê muito desejado é um doce e prolongado presente, nos dois sentidos. E estar “presente no presente”, dizem, é o mais perto da felicidade que a gente consegue alcançar.

No outro extremo desse presente sorridente e absoluto, encontram-se os filhos encarregados de cuidar dos pais no fim da vida. Aqui é o peso do passado, tenha ele sido feliz ou nem tanto, e a angústia em relação ao futuro que tomam conta do dia a dia. O presente torna-se precário – e, em muitos casos, fisicamente doloroso.

Perder os pais, ou a sua lucidez, nos torna órfãos não apenas da companhia deles, mas da alegre inconsequência de nunca pensar muito a sério na própria finitude. (Imaginem que experiência transcendente essa que viveu a filha do Niemeyer, que morreu esta semana, aos 82 anos, deixando o pai vivo e lúcido chorando por ela.)

Ao contrário dos bebês, pais e avós não são exatamente um hit nas redes. Talvez essas cerimônias privadas de adeus não caibam mesmo na superficialidade de um tweet ou de um retrato de celular – embora experiências de dor, por mais diferentes que sejam da nossa própria realidade, nos ensinem muito mais sobre a condição humana do que os momentos de felicidade e plenitude alheios.

Nos últimos dias, foram publicados dois belos textos sobre o assunto – dois relatos corajosos e tocantes de filhos que perderam os pais. O primeiro, na capa da revista Time desta semana, assinado pelo jornalista Joe Klein: “Como Morrer: o que aprendi dos últimos dias dos meus pais”, em que o autor narra como enfrentou a responsabilidade de ter que decidir sobre a vida e a morte dos pais.

O outro, “O Cérebro do Meu Pai”, publicado na revista Piauí de junho e assinado pelo escritor americano Jonathan Franzen – um dos grandes autores da minha geração –, é provavelmente o texto mais comovente e profundo sobre a experiência de conviver com um paciente de Alzheimer que eu já li.

Entre outras coisas, Franzen revela que a excruciante experiência de ver o pai indo-se aos poucos, paradoxalmente, o fortaleceu: “Tornei-me, no geral, um pouco menos medroso. Uma porta ruim se abriu, e descobri que era capaz de atravessá-la”.

quarta-feira, 6 de junho de 2012



06 de junho de 2012 | N° 17092
MARTHA MEDEIROS

Carisma e inocência

Nestes tempos em que originalidade é mercadoria em falta, em que quase nada nos surpreende, foi notícia fresca saber que o ator Wagner Moura iria se apresentar com Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá em dois shows promovidos pela MTV para comemorar os 30 anos da Legião Urbana, banda de rock que embalou a adolescência e juventude de uma geração inteira (a minha, inclusive) e que muitos consideram como a melhor de todos os tempos.

Não são comuns essas substituições, menos ainda quando o substituído é um sujeito idolatrado e messiânico como Renato Russo, e muito menos ainda quando não é um cantor profissional que assume o microfone. Alguém imagina o Robert Downey Jr. cantando ao lado de Krist Novoselic num tributo ao Nirvana? Eu não me incomodaria se a moda pegasse.

Wagner Moura é vocalista de uma banda amadora chamada Sua Mãe, o que já demonstra que não está muito interessado em lançar-se a sério no mercado fonográfico, mas o convite não veio daí, e sim por causa da cena em que cantou Será no filme VIPs: o personagem protagonista dava uma canja num bar, entre um golpe e outro.

Foi o que bastou para acender a lampadinha sobre a cabeça dos idealizadores da homenagem. É ele.

Correndo todos os riscos que as comparações provocam, Wagner topou, e que bom que topou. Deve ter pensado: “Quantas chances desperdicei quando o que eu mais queria era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém”.

Dançou feito um possuído, incorporou maneirismos do Renato, amou a plateia como se não houvesse amanhã e desafinou uma barbaridade sem perder o sorriso no rosto e o olhar arrebatado. Se divertiu a valer, que é pra isso que serve a vida. Estava vivenciando cada verso das músicas que cantava: “Quem me dera ao menos uma vez, como a mais bela tribo, dos mais belos índios, não ser atacado por ser inocente”.

Vibro com os inocentes, torço pelo time deles. São pessoas que saem da sua zona de conforto e testam-se em novos papéis sem queimar os neurônios. Nessa hora, somos todos atores sem texto, sem direção e sem rede de segurança, agindo por instinto e abraçando loucuras – perder tempo calculando prós e contras já é uma maneira de dizer não.

Wagner gosta de cantar, é fã do Legião, tem familiaridade com o palco e viu no convite uma chance de fazer outro tipo de teatro. Não podia dar errado, mesmo com todas as desafinações previstas. Não podia porque as coisas feitas com espontaneidade, sem almejar algo além do momento vivido, já saem em vantagem. E porque Renato Russo havia cantado essa pedra quase três décadas atrás: “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?”.

Poesia. É ela que sempre nos salva do ridículo e dá à vida uma transcendência cada vez mais necessária.



06 de junho de 2012 | N° 17092
LITERATURA

De loucura e de sombras

Tailor Diniz autografa hoje romance ambientado na região da fronteira gaúcha com o Uruguai

Quando loucura e lucidez não têm fronteiras nítidas, é perigoso seguir as sombras. Esse é o mote de fundo de A Superfície da Sombra, novo romance que o escritor Tailor Diniz autografa hoje, às 19h, na Livraria Cultura do Shopping Bourbon Country.

E m A Superfície da Sombra, o protagonista, um escritor de nome Antônio, residente em Porto Alegre, viaja a uma fictícia localidade na fronteira do Uruguai. Duas cidades-gêmeas, Poblado Oriental, no Uruguai, e Passo do Cati, no Brasil, são separadas apenas por uma avenida localizada na fronteira.

De tão próximas, ambas vivem uma existência comum à margem de trâmites diplomáticos. Como se fossem uma só localidade, os moradores cruzam de um lado para outro tranquilamente, mas uma carta enviada para o outro lado pode demorar um mês para ser entregue, porque precisará ser remetida para o centro de alguma das duas nações e voltar.

Antônio foi chamado a Poblado Oriental por uma antiga paixão, Adèle, à beira da morte. Chega tarde, à cidade, no entanto, e é recebido apenas pela filha da recém-falecida, a bela e misteriosa Blanca Lucía. Duplamente estrangeiro numa comunidade em que todos parecem conhecer os desvãos mais íntimos da vida dos outros, Antônio percorre a cidade, vai ao enterro da amiga, acompanha Blanca Lucía a alguns compromissos. A narrativa o segue de perto, ora em primeira pessoa, ora em terceira.

A cada mudança de foco, o não nomeado narrador “de fora” desvela algo que Antônio, em sua inconsciência, parece não notar ao relatar os próprios movimentos– entre outras coisas, o fato de que sua chegada aparentemente colocou em marcha forças obscuras que se organizam contra ele.

Se tal recurso narrativo por vezes soa repetitivo, ao reapresentar as mesmas cenas mais de uma vez, seu saldo final é positivo por dar ao livro um tom sólido de suspense. Diniz vem enveredando de modo consistente pela literatura policial nos últimos anos – seu romance anterior, Crime na Feira do Livro, era um folhetim detetivesco em meio ao principal evento literário de Porto Alegre. Na época de seu lançamento, o autor comentou que o romance havia se beneficiado de leituras e pesquisas sobre a estrutura da narrativa de gênero.

Esse apanhado teórico pode ter deixado suas marcas também em A Superfície de Sombra. Embora não seja um policial – o que Crime na Feira do Livro declaradamente era –, a história se constrói na pintura de uma atmosfera de suspense em que, sob cada parágrafo, espreita uma sensação de ameaça ao protagonista, conhecida pelos moradores da cidade – e, por tabela, pelo leitor – mas ignorada por ele próprio.

Assim como a narrativa se localiza num território geográfico de fronteira, também Antônio, o protagonista, se movimenta entre fronteiras metafóricas: as mais nítidas delas entre o sonho e a vigília (quando não está descobrindo a cidade, Antônio dorme longos períodos fora de hora) e entre a sanidade e a loucura – mesmo alertado de que corre perigo, ele parece navegar incerto pelas duas cidades, que em seu espelhamento refletem a dubiedade dos moradores do local.

carlos.moreira@zerohora.com.br.

A SUPERFÍCIE DA SOMBRA
De Tailor Diniz
Romance. Grua, 160 páginas, R$ 32,50. Sessão de autógrafos hoje, às 19h.
Livraria Cultura (Bourbon Shopping Country, Avenida Túlio de Rose, 80)
Onde estacionar: O shopping tem estacionamento próprio
O livro: Na tentativa de um último contato com uma antiga namorada moribunda, homem chega a duas misteriosas cidades de fronteira.


06 de junho de 2012 | N° 17092
DIANA CORSO

Uma princesa guerreira

Por 200 anos, Branca de Neve sobreviveu na imaginação das crianças, fiel ao relato dos irmãos Grimm, pouco alterado por Disney. Essa história adormecida, sem nunca ter perdido as cores, pode-se dizer que acaba de ser novamente beijada.

2012 foi o ano da ressurreição da princesa morena, dois filmes a despertaram. Mas, desta vez, ela foi chamada à ação: em Branca de Neve e o Caçador, de Rupert Sanders, ela tornou-se uma princesa guerreira.

Essa trama confirma uma antiga suspeita: que a nova Rainha, a feiticeira Ravenna, assassinara o Rei. A enteada foi mantida prisioneira até que, como na história clássica, o espelho revele sua beleza. Agora a malvada não quer apenas matá-la e comer seu coração. A feiticeira Ravenna mantém-se linda e desejável, vampirizando a juventude de jovens súditas.

Branca de Neve é especial, pois lhe conferirá a vida eterna. Ao fugir, a princesa é ajudada por um cavalo branco, sem príncipe.

Quando desperta de seu sono enfeitiçado, não é para casar, é para liderar as tropas que derrotarão sua rival e salvar o reino aterrorizado pelo domínio nefasto de Ravenna. Já o Caçador é um jovem viúvo atormentado, que se culpa pela morte da esposa. Ele protege a moça paternalmente, lhe ensina a lutar, mas se apaixona por ela. Ressurge também um amor infantil, William, que também é seu dedicado e apaixonado cavalheiro. Só que a princesa tem mais o que fazer.

Muitas princesas sobreviveram ao esquecimento, várias conseguiram a juventude eterna. Branca de Neve foi a primeira a inaugurar um novo cânone: a princesa cantora de desenho animado. Só podia ser ela, novamente, a revolucionar o nicho das princesas clássicas: o amor não é mais o final feliz.

O que permanece? O fato de que crescer é tornar-se órfão. Nos contos de fadas, a mãe amorosa morre rápido (quando, na verdade, é o filho perfeito que sucumbe, assim que começa a crescer e aparecer). É aí que madrastas e bruxas são convocadas para representar os conflitos normais do desenvolvimento.

E mais, a mulher terá que desbancar a mãe, cuja juventude fenece esperneando, superá-la em encantos. Deverá a seu modo matá-la, apropriar-se dos atributos femininos. Esse conflito alimenta a paixão das meninas por histórias de princesas e bruxas.

O que não tinha como sobreviver? A ideia de que a vida de uma mulher tem o ápice no casamento. Da revolução de costumes dos anos 60, da libertação da tristeza pelos horizontes estreitos do lar, veio a certeza de que elas querem mais. Para nós, liderados por uma presidenta guerreira, não é uma surpresa.

Correção

Por erro de edição, três travessões foram substituídos por interrogações na coluna de Luís Augusto Fischer publicada na edição de ontem do Segundo Caderno. Confira a íntegra do texto em www.zerohora.com/segundocaderno.

domingo, 3 de junho de 2012


DANUZA LEÃO

Sobre o abuso sexual

Coisas ruins acontecem, mas devem e podem ser também superadas, e o estupro é uma delas

Ninguém sabe o que se passa na cabeça das pessoas, mas existem -homens, principalmente- as que têm fantasias sexuais com meninas (ou meninos) muito jovens, sobretudo quando são meninas (ou meninos) bonitas; isso desde que o mundo é mundo, e acontece até no seio da Santa Madre Igreja. Esses, ou procuram pensar em outra coisa, ou cometem abusos, o que é crime hediondo.

Mas qual a diferença entre uma menina e uma moça? Já era assim quando as adolescentes usavam saia pregueada e meia curta. Hoje elas imitam, desde bem novinhas, o que veem na televisão: usam sapatos de saltinho, minissaia, batom e pintam as unhas.

Pedófilos sempre existiram, existem e existirão, mais do que se imagina, mais do que se sabe. São pessoas com desordem mental, e quem não ouviu falar que em regiões mais atrasadas pais tiveram relações com uma ou mais filhas, tendo até engravidado algumas, que se tornaram mães de suas próprias irmãs.

Isso acontece no Brasil profundo e também em países altamente civilizados; na Espanha, houve um bando de pedófilos que abusava sexualmente de crianças, até mesmo de bebês. A miséria humana não tem limites.

A sexualidade das pessoas é um mistério; existem muitos homens, mais do que se imagina, que se alteram quando veem uma criança bonita. Acariciam uma perna, dizem que ela é linda, mas não vão adiante por saberem que esse desejo é pecado, é crime, é contra as leis da natureza, como preferirem chamar; alguns não passam disso, pois não chegam nem mesmo a terem consciência desse desejo.

Mas as crianças percebem; não sabem o que está acontecendo, mas quando fogem do abraço de algum amigo do pai ou de um tio, é porque perceberam. Até pelo olhar elas sentem, criança não é boba. Intuem que alguma coisa está errada, mas como não compreendem o que está acontecendo, não falam.

Só se fala do que se entende, e acusar uma pessoa próxima da família de algo que elas mesmas não sabem o que é está fora de questão. Têm pudor e sabem que podem ser castigadas, por terem a cabeça "suja".

Cabe às mães e aos pais ficarem atentos, não deixarem suas filhas/filhos em situações de risco, olhar atentamente o que se passa, e desconfiar sempre, sem medo de estar pensando em "maldades", sabendo que essas coisas acontecem nas melhores famílias. Não vivemos em um mundo ideal.

O abuso sexual causa efeito devastador nos que o sofrem, e precisam de apoio profissional, apoio esse que deve ser forte e positivo; só o amor de mãe e pai não é suficiente.

Elas devem aprender a levantar a cabeça e olhar a vida de frente, deixando esse triste momento para trás, no lugar de sofrer por toda a existência; passaram por um péssimo momento, como poderiam ter sido atropeladas ou levado uma facada de um assaltante.

Houve gente que perdeu a família inteira na guerra, ou durante o tsunami, ou nas torres gêmeas de Nova York, ou no terremoto de Tóquio, mas conseguiu superar. Coisas ruins acontecem, mas devem e podem ser também superadas, e o estupro é uma delas.

A condição humana é uma miséria.

danuza.leao@uol.com.br

FERREIRA GULLAR

É um circo ou não é?

Parece que a corrupção tomou conta do Estado brasileiro, que não há mais em quem confiar

Ultimamente, faço um esforço enorme para não perder a esperança em nosso país, em nossa capacidade de nos comportarmos com um mínimo de respeito pelo interesse público, pelos valores éticos, enfim, por construirmos uma nação digna deste nome.

É que, a cada dia, como você, fico sabendo de coisas que me desanimam. Parece que a corrupção tomou conta do Estado brasileiro, que não há mais em quem confiar. O que desanima não são apenas as falcatruas praticadas por parlamentares, ministros, governadores, prefeitos, juízes... O pior é que esses dados refletem uma espécie de norma generalizada que dita o comportamento das pessoas e o próprio funcionamento da máquina pública.

Um pequeno exemplo: o precatório. Se ganhas na Justiça uma ação que obriga o governo a te indenizar, ele está obrigado a te pagar, não? Só que ele não paga, não cumpre a decisão judicial, e fica por isso mesmo. A Justiça sabe que sua decisão não foi obedecida e nada faz.

Pior, às vezes esse dinheiro é apropriado por altos funcionários da própria Justiça. Enquanto isso, as pessoas que deveriam ser indenizadas esperam 20, 30 anos, sem nada receber. É como um assalto em via pública. Este é um fato corriqueiro num país dominado por uma casta corrupta.

E eu, burro velho, embora sabendo disso tudo, não paro de me surpreender. Acontece de tudo, até CPI criada pelo governo. Nunca se viu isto, já que CPI é um recurso da oposição; quer dizer, era, porque a de Cachoeira foi invenção do Lula e seu partido, e conta com o apoio da presidente Dilma. Isso porque, no primeiro momento, os implicados pareciam ser apenas adversários deles, a turma do mensalão.

Eis, porém, que novas revelações envolveram gente do PT e aliados do governo, sem falar numa empresa corrupta que é responsável por grande parte das obras do PAC, o Plano de Aceleração do Crescimento do governo federal.

Mas o que fazer, agora, se a CPI já estava criada? Voltar atrás seria impossível, e nem era preciso, uma vez que, dos 30 membros da CPI, apenas sete são da oposição, quer dizer, não decidirão nada.

Mas essas revelações punham em risco um dos principais objetivos de Lula, que era usar a CPI para desqualificar o processo do mensalão, prestes a ser julgado pelo STF. Essa intenção foi favorecida por um fato que envolve o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, a quem caberá fazer a denúncia da quadrilha chefiada por José Dirceu.

O PT tentou desqualificá-lo, apresentando-o como ligado a Demóstenes Torres e, portanto, a Cachoeira. A jogada não deu certo e, além do mais, está aí a maldita imprensa, que insiste em criar problemas, por levar à opinião pública informações inconvenientes.

De qualquer modo, a CPI teria que ouvir Carlinhos Cachoeira, e só Deus sabe o que ele poderia revelar. Deus e nós também: nada, como se viu.

É que ele se valeu do direito, que a Constituição lhe concede, de permanecer calado para não produzir provas contra si mesmo. Quem quer que tenha inventado isso -sempre em defesa dos inocentes, claro- com frequência favorece aos culpados, uma vez que o inocente, por nada temer, faz questão de contar toda a verdade. Calar, portanto, é confissão de culpa.

De qualquer modo, Carlos Cachoeira, a conselho de seu advogado, não respondeu a nenhuma das perguntas que lhe foram feitas, deixando os parlamentares, que inutilmente o interrogavam, em situação constrangedora. Aquela sessão da CPI, em Brasília, só pode ser comparada a um espetáculo circense.

E quem é o advogado de Cachoeira? Nada menos que o ex-ministro da Justiça de Lula, Márcio Thomaz Bastos, que, sentado a seu lado, como um segurança jurídico, ouvia os deputados e senadores se referirem a seu constituinte como "bandido, chefe de uma quadrilha de ladrões". Estava ali por vontade própria ou por imposição do cliente? Não se sabe, mantinha-se indiferente, como se nada ouvisse.

Foi por saber Cachoeira culpado de todas aquelas falcatruas que o aconselhou a nada responder. Resta à CPI recorrer às provas documentais. Por isso mesmo, Thomaz Bastos já pediu a anulação delas. Cachoeira pode não ter razão, mas dinheiro não lhe falta. E o espetáculo continua...

sábado, 2 de junho de 2012



03 de junho de 2012 | N° 17089
MARTHA MEDEIROS

Noite em claro

A maioria das pessoas admite ter alguma dificuldade para dormir. Ou elas custam a pegar no sono, ou então dormem assim que desligam o abajur, porém acordam no meio da madrugada, por nada. Fazemos parte de uma confraria que preza suas cinco a sete horas de descanso (oito é para afortunados), mas que não apaga profundamente como deveria, a não ser com a ajudinha de um Rivotril ou similar.

Se é ansiedade, excesso de preocupação ou herança genética, problema para os especialistas ajudarem a resolver. Eu não posso me queixar, durmo cedo e rápido. Mas como se viram os insones clássicos? Abraham Lincoln realizava caminhadas noturnas, Groucho Marx ligava para estranhos e os insultava, Cary Grant recorria à hipnose, Charles Dickens tinha que posicionar a cabeça para o norte e Marilyn Monroe se entupia de comprimidos – exagerou, como se sabe.

Já os reles mortais leem enquanto o sono não vem.

No entanto, sei de uma mulher que, em vez de ler, resolveu escrever um livro durante uma noite chuvosa. Nunca havia escrito nada antes.

Fez um pacto consigo mesma: enquanto a chuva não parasse, ela não pararia de escrever – e como choveu a madrugada inteira, a cântaros, ela passou a noite em claro, com tempo mais que suficiente para fazer um inventário de sua vida amorosa e sexual, que não tinha nada de vitoriana, como a obra de Dickens, nem de engraçada, como a de Groucho Marx.

Era a história de alguém que raramente conseguiu conciliar amor e sexo numa mesma relação, e resolveu por bem escolher entre um e outro. Escolheu o sexo.

O nome dela? Não sei. Não tem. É uma personagem que inventei. Escrevi essa história em 2003 ou 2004. Uma ficção curtíssima que nunca foi publicada, nem teria onde, sendo tão enxuta. Pois bem: depois de eu fazer essa personagem povoar uma madrugada inteira com suas lembranças de amores imperfeitos (todos são), calei-a. Coloquei o ponto final na obra e deixei essa mulher descansar. Ela ficou dormindo dentro do meu computador por cerca de nove anos.

Esqueci dela. Até que o Ivan Pinheiro Machado, meu editor, comentou que a L&PM estava lançando uma coleção de bolso chamada “64 Páinas”, só para textos breves. Era a chance que eu tinha de deixála sair do seu quarto escuro. Acordei-a, dei uma revisada em suas confissõs ora melancóicas, ora picantes, e agora ela vai pra rua.

“Noite em Claro” já deve estar nas livrarias, supermercados e farmácias, a um preço megapopular: cinco reais. Ideal para deixar na mesinha de cabeceira, ao lado da cama, para o caso de o sono não vir. Mas espero que a leitura seja tão dinâica que não permita que você pregue os olhos antes do fim.



02 de junho de 2012 | N° 17088
CLÁUDIA LAITANO

Hologramas

Entre as experiências sensoriais inusitadas proporcionadas por novas tecnologias – coisas insólitas como observar o interior do próprio corpo no monitor de uma TV ou conferir na internet a imagem que um satélite captou do telhado da sua casa –, assistir a um artista morto cantando e dançando em três dimensões no palco deve estar na lista das mais bizarras.

A tecnologia nem é tão nova assim – na verdade, trata-se apenas de uma superprojeção em 3D em tamanho natural –, mas o impacto da ressurreição virtual do rapper Tupac Shakur, morto em 1996, durante um show realizado em abril, nos Estados Unidos, tem feito brilhar de cobiça os olhos de empresários e herdeiros de artistas mortos.

A possibilidade de fazê-los trabalhar de graça sem a necessidade de providenciar cachês, hospedagem ou toalhas brancas no camarim – e eliminando completamente o risco de faniquitos ou excesso de consumo de substâncias químicas – anuncia-se como o melhor dos mundos (e dos outros mundos) para o showbiz. Artistas como Michael Jackson, Elvis Presley e Marilyn Monroe foram chamados a interromper seu descanso eterno para retornar aos palcos, numa lista que, até a última contagem, incluía nomes como Jimi Hendrix, Kurt Cobain e Whitney Houston.

Por enquanto, as estrelas desse baile macabro são apenas os grandes artistas – gente famosa que deixou tantos registros audiovisuais da sua passagem pela Terra, que poderia viver uma segunda encarnação inteira circulando entre os vivos apenas na forma de fantasma holográfico.

Mas como anônimos também adquiriram o hábito de fotografar-se e filmar-se o tempo todo, é possível imaginar um futuro, nem tão distante assim, em que nossos bisnetos poderão assistir TV sentados ao lado dos queridos bisavós que morreram antes mesmo de eles nascerem.

Os hologramas musicais, como qualquer bom truque de mágica, fascinam os espectadores porque usam a ilusão para dar aparência de realidade a façanhas que contrariam as leis da natureza – feitos como aparecer e desaparecer, levitar ou caminhar sobre as águas. No caso dos ídolos que voltam à vida no palco, a tecnologia vai ao encontro das duas mais antigas fantasias do homem: viver para sempre e reencontrar pessoas que já se foram.

Apenas com essas duas promessas, religiões vêm nascendo e morrendo desde que o mundo é mundo – ou melhor, desde que o homem é homem, ou seja, tem consciência da própria finitude. Também na arte, o tema tem sido explorado até onde a vista alcança: do mito grego de Orfeu, que volta ao reino dos mortos para tentar, em vão, resgatar a amada Eurídice, ao cemitério maldito de Stephen King, que traz os mortos de volta, mas nunca exatamente como eles eram antes.

O sonho de driblar a morte tem assombrado a humanidade como um fantasma desde sempre. A novidade é que agora inventaram um jeito de cobrar ingressos para vê-lo cantando num palco.