sábado, 25 de agosto de 2012



26 de agosto de 2012 | N° 17173QUASE PERFEITO |
Cínthya Verri e Fabrício Carpinejar

Antessala da separação

“Tenho medo de ser trocada. Namoro há um ano, e de uns dois meses para cá, meu relacionamento está diferente. Acho meu namorado distante. Tudo o que acontece me faz pensar que ele está a fim de outra, a começar pelas mulheres que adiciona no Facebook. Será que estou neurótica ou ele manda sinais para pular fora? Beijo, Elis”

Querida Elis,

Não está neurótica. É uma constatação de que o relacionamento esfriou. Observou que ele age diferente e já é necessário tomar uma atitude.

Dividir a dúvida é melhor do que telepatia. Caso ele se sinta ofendido com a pergunta, tanto faz, pelo menos estará avisado. Essencial que ele tome conhecimento de que você sabe que algo mudou, que não vão se distanciar impunemente.

A maior causa de morte do amor é a omissão: o outro enxerga o fim, mas não quer acreditar.

Quais os sinais do tédio amoroso?

Quando ele não responde as provocações costumeiras, não explica os trabalhos, passa a dormir no lado contrário da cama, não tem paciência nem para se chatear e lhe dá razão de graça, não renova convites para sair e se contenta com sua primeira recusa, faz questão de viver pela casa em horários diferentes, evita a convivência com sua curiosidade, a agenda social dele deixou de incluí-la.

O tédio é a antessala da separação. Há um longo corredor pela frente, que pode ser alterado com sua disposição em ouvir e entender o que vem aborrecendo seu namorado. Deve ser uma frustração pequena que cresceu em silêncio. O incidente que gerou a tristeza deve ser bobo para você, mas importante para ele, por isso não reparou.

Sobre o medo de ser trocada, não tem nada ver, é um segundo momento, quando a monotonia não produz nenhuma revolução.

Não sofra com as mulheres que ele adiciona no Facebook. Na hipótese de traição, apagaria os contatos.

Homem infiel não é frio, não é quieto, mas exagerado. Com culpa no cartório, busca sufocar a verdade comprando presentes, flores e se derramando em elogios e declarações à toa.

Abraço com toda ternura,

Fabrício Carpinejar

Querida Elis,

O movimento de translação é aquele que a Terra realiza ao redor do Sol junto com os planetas. A velocidade média para viajar esta órbita é de 107.000 km por hora, e o tempo necessário para completá-la é de 365 dias, 5 horas e cerca de 48 minutos.

Esse tempo que a Terra leva para dar uma volta completa em torno do Sol é chamado ano.

É um bom período de tempo para conhecermos alguém. Doze meses de convivência contam na construção do entendimento sobre suas rotinas, seus hábitos, suas estações. É a primeira apresentação, a primeira grande volta que damos juntos.

Uma páscoa, um natal, férias de julho, um inverno, um verão, um dia dos namorados, os aniversários e assim por diante. Vocês estão à beira do convite para prosseguir. Será que não desejam? O que será que está assustando?

Desenvolver um namoro depende dos dois; gostar conta com a contribuição de ambos. Se a relação perdeu a força, é preciso olhar melhor e conversar tão logo possível e com a máxima franqueza que se conseguir. A conversa é o mestre-sala dos mares.

Pensar que seu namorado planeja terminar pode estar encobrindo sua própria vontade de partir. Quando um começa a ser menos carinhoso, e não se dá conta pode provocar o desinteresse sem necessariamente assinar a autoria.

Quando as coisas não estão claras dentro da gente, é pretensioso procurar a nitidez dentro do outro. Investigue a si mesma: já renderia uma série policial imensa e interessante. Garantia de aventuras sem fim. E mais: na dúvida, faça o que você quer. Se a vontade dele concorda com a sua, melhor; se não, nada há a fazer.

Beijos meus,

Cínthya Verri


25 de agosto de 2012 | N° 17172
CELSO GUTFREIND

Carta aos livros

O Tristão era um amante normal. Alimentou ilusões quando o amor chegou. E, durante, sempre temeu que a mulher partisse antes do fim. Mas com o Chico Buarque, o George Clooney, o Martinho da Vila. Surpreendeu-se quando a Isolda fugiu com o dono do Sebo.

Não porque fosse uma livraria. Foi ali que se conheceram. Ela sempre gostou de literatura. No segundo encontro, Tristão recitou o final de O Ciúme, do Guilherme de Almeida. Conquistou Isolda ao prever o ciúme de quem a veria pálida e linda pela primeira vez. Depois, ofereceu-lhe a obra seleta do Manuel Bandeira. Não foi amor à primeira vista. Foi aos primeiros livros.

O Tristão era mesmo um leitor razoável. Dominava quase toda a prosa do Nabokov, muito além de sua Lolita. E quase não tinha exemplar do Quintana que não tivesse lido. Nas noites com a Isolda, jamais suspeitou da fatalidade daqueles quases.

O tempo mostrou que não tinha cacife para a mulher. O dono do Sebo havia lido a Comédia Humana inteira. Chegava a colecionar desenhos de Balzac, a quem chamava de senhora fofa. O Tristão ria disso, inocente como um homem que se acha o máximo ou ignora a concorrência e considera suficiente o que leu.

O dono do Sebo tinha toda a coleção do Guilherme de Almeida e não o módico O Ciúme, do volume dois. Isto incluía textos sobre a raiva, a esperança, a inveja, o perdão. Sobre a vida e a morte.

Com a verdade das melhores frases, elogiou os olhos verdes de Isolda, comparando-os com a obra de Camões, que expunha integralmente na parte central da loja. Ao Tristão, restava a antologia da lírica, adquirida com um bom desconto. Nem fez falta na prateleira em que viveu apagada por seis edições de Os Lusíadas.

O dono do Sebo não era um quase. Ele tinha cara de obras completas com sumário, prefácio, índice. Voltava aos clássicos e mergulhava nas novidades. A Isolda entrou na dele como nota de rodapé, tipo um puxado para as casas, mas era maior do que nas casas, porque tinha a ver com os livros, onde a vida pulsa ainda mais.

A tristeza do Tristão era volumosa. Ele se arrastou até o boteco da esquina, desses que acolhem um sujeito de biblioteca rala, cuja única coleção é um arrazoado sobre a Inconfidência Mineira, com um Tiradentes esquartejado na última página.

Mas ficar sem mulher não dava. Seria quase tão grave quanto não ler. Então, mandou baixar uma cerveja, batata frita e ofereceu para a primeira moça disponível. Dedicou a ela a canção seguinte e, quando o cavaquinho fez silêncio, o Tristão recitou O Ciúme. Quase completo.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012



22 de agosto de 2012 | N° 17169
MARTHA MEDEIROS

Trem bão

Foi só ler no jornal sobre a remota possibilidade de voltarmos a ter trens de passageiros no país e me pus a delirar – que luxo seria poder ir de trem para Santa Catarina em vez de perder horas infindáveis em congestionamentos, ou ir de trem para as cidades da serra, contemplando aquele cenário inspirador passando pela janela, ou ir de trem até Montevidéu, mesmo numa viagem mais demorada do que um voo, mas certamente mais romântica e menos estressante, sem sujeição a cancelamentos, atrasos e outras chatices corriqueiras do setor aeroviário.

Minha mãe fala com saudosismo das viagens que fazia entre Porto Alegre e Sant’Ana do Livramento, onde viveu quando criança. Eu não tive trens povoando minha infância. O primeiro me encontrou já com 24 anos, quando precisei me deslocar de Londres até a cidade portuária de Dover, na Inglaterra. Atravessei então o Canal da Mancha num barco que atracou em Osteende, na Bélgica, e ali mesmo peguei outro trem para Bruxelas, e essas duas viagens em um único dia, por dois países diferentes, selaram minha rendição.

Daquele dia em diante, circulei pelos países da Europa em trens diversos, desde uns bem esculhambadinhos até os modernos TGVs, sempre em segurança e militarmente no horário (trens marcados para as 14h37min saem às 14h37min, uma indecência de pontualidade). Mas o melhor de tudo é o benefício que pouco se comenta: o convite a refletir, que todo trem nos faz.

O escritor e filósofo Alain de Botton tem uma frase ótima a respeito: “Viagens são parteiras de pensamentos”. Dentro de trens, então, nem se fala. Ônibus também convidam à dispersão, porém são veículos que precisam parar nos postos de pedágio, que desaceleram diante de um buraco, que fazem ultrapassagens que nos obrigam a trocar a dispersão por preces aflitas. Já trens mantêm velocidade constante, e isso ajuda no fluxo das ideias – somos conduzidos não só para outra cidade, mas para um estado elevado de transcendência.

E tem a mística envolvida. Ninguém conseguiria imaginar o detetive Hercule Poirot desvendando assassinatos no interior de um ônibus da Unesul, assim como é improvável que um rapaz sente ao lado de uma moça num pinga-pinga e proponha que desçam juntos na próxima parada para percorrerem uma cidade desconhecida – Camaquã, por exemplo.

Já em um trem, propostas malucas podem ser levadas em consideração. Foi o que aconteceu no filme Antes do Amanhecer, em que Ethan Hawke e Julie Delpy se conhecem num vagão, desembarcam juntos em Viena e... bom, assistam.

O Brasil é craque em filme de caminhão, que são road movies mais ligados à nossa identidade. É difícil imaginar que, num país onde nem o metrô pegou, teremos trens de passageiros desafogando as estradas e inspirando livros, filmes e casos de amor, mas não custa sonhar. Tanta coisa temos que colocar nos trilhos, quem sabe não começamos por aquelas que os têm por direito.

Linda quarta-feira pra voce - Aproveite.

sábado, 18 de agosto de 2012



19 de agosto de 2012 | N° 17166
MARTHA MEDEIROS

Não parecia eu

Já deve ter acontecido com você. Diante de uma situação inusitada, você reage de uma forma que nunca imaginou, e ao fim do conflito se pega pensando: que estranho, não parecia eu. Você, tão cordata, esbravejou. Você, tão explosivo, contemporizou. Você, tão seja-lá-o-que-for, adotou uma nova postura. Percebeu-se de outro modo. Virou momentaneamente outra pessoa.

No filme Neblinas e Sombras (não queria dizer que é do Woody Allen pra não parecer uma obcecada, mas é, e sou) o personagem de Mia Farrow refugia-se num bordel e aceita prestar um serviço sexual em troca de dinheiro, ela que nunca imaginou passar por uma situação dessas.

No dia seguinte, admite a um amigo que, para sua surpresa, teve uma noite maravilhosa, apesar de se sentir muito diferente de si mesma. O amigo a questiona: “Será que você não foi você mesma pela primeira vez?”

São nauseantes, porém decisivas e libertadoras essas perguntas que nos fazem os psicoterapeutas e também nossos melhores amigos, não nos permitindo rota de fuga. E aí? Quem é você de verdade?

Viver é um processo. Nosso “personagem” nunca está terminado, ele vai sendo construído conforme as vivências e também conforme nossas preferências – selecionamos uma série de qualidades que consideramos correto possuir e que funcionam como um cartão de visitas.

Eu defendo o verde, eu protejo os animais, eu luto pelos pobres, eu só me relaciono por amor, eu respeito meus pais, eu não conto mentiras, eu acredito em positivismo, eu acho graça da vida. Nossa, mas você é sensacional, hein!

Temos muitas opiniões, repetimos muitas palavras de ordem, mas saber quem somos realmente é do departamento das coisas vividas. A maioria de nós optou pela boa conduta, e divulga isso em conversas, discursos, blogs e demais recursos de autopromoção, mas o que somos, de fato, revela-se nas atitudes, principalmente nas inesperadas. Como você reage vendo alguém sendo assaltado, foge ou ajuda? Como você se comporta diante da declaração de amor de uma pessoa do mesmo sexo, respeita ou debocha?

O que você faria se soubesse que sua avó tem uma doença terminal, contaria a verdade ou a deixaria viver o resto dos dias sem essa perturbação? Qual sua reação diante da mão estendida de uma pessoa que você muito despreza, aperta por educação ou faz que não viu? Não são coisas que aconteçam diariamente, e pela falta de prática, talvez você tenha uma ideia vaga de como se comportaria, mas saber mesmo, só na hora. E pode ser que se surpreenda: “não parecia eu”.

Mas é você. É sempre 100% você. Um você que não constava da cartilha que você decorou. Um você que não estava previsto no seu manual de boas maneiras. Um você que não havia dado as caras antes. Um você que talvez lhe assombre por ser você mesmo pela primeira vez.



19 de agosto de 2012 | N° 17166
PAULO SANT’ANA

Ode a Cláudia Laitano

Segurem-se nas cadeiras, meus leitores e leitoras, vocês agora vão ler um documento de curiosidade, um pergaminho histórico e espetacular do fetiche humano.

Trata-se de um e-mail enviado a este colunista pelo leitor Ivan Carlos Ferreira Franco (lcffranco@gmail.com). Saboreiem-no até a exaustão. Ei-lo: “Boa tarde, Sant’Ana! Eu iria perguntar ao David Coimbra, que trabalha com ela, mas tu és o cara para me responder sobre isso. Eu assisto ao programa Café TVCOM sempre que posso por causa da qualidade do programa.

E posso te dar um detalhe: fico olhando debaixo da mesa porque acho a panturrilha da Cláudia Laitano uma loucura. Quero que tu confirmes se as pernas dela no geral têm a mesma qualidade. Abraços (estava assinado)”.

Agora, a minha resposta: senhor Ivan Carlos, quando a Cláudia Laitano casou-se pela primeira vez, seu hoje ex-marido e então cônjuge, ao olhar, no instante inicial da lua de mel as pernas de Cláudia Laitano, disse o seguinte para ela: “Recuso-me a participar desta lua de mel. Vou me retirar deste hotel”.

Cláudia Laitano naturalmente ficou perplexa e perguntou ao recém marido a razão por que renunciava à lua de mel ao olhar para as pernas dela.

E olhem o que ele respondeu: “Recuso-me à lua de mel contigo porque fiz um juramento: eu só queria usufruir do Paraíso quando morresse. Ao ver tuas pernas, julgo ilícito moralmente penetrar no Éden antes da minha morte. Adeus”.

Por aí o ilustre leitor já pode imaginar como são lindas, como diz o senhor, “em linhas gerais”, as pernas de nossa aplicada e talentosa colega.

Eu só não entendi por que o senhor escolheu as panturrilhas de Cláudia Laitano como as partes mais atraentes do corpo dela.

O senhor precisa ver os calcanhares da Cláudia Laitano. São de fazer português largar a padaria nas mãos dos caixeiros.

O senhor precisava ver, meu sincero leitor, os pés de Cláudia Laitano! Nunca vi metatarsos mais magníficos.

E os artelhos de Cláudia Laitano são os mais estupendos que jamais vi.

E, se o senhor fitasse os joelhos da Cláudia Laitano, o senhor era capaz de ficar com os olhos rasos d’água diante do deslumbramento que lhe causariam aquelas patelas sublimes.

Eu nem quero mais subir a detalhes, mas lhe afirmo com segurança: Cláudia Laitano é possivelmente uma das jornalistas mais belas do Brasil, além de talentosa.

As mãos de Cláudia Laitano? Nunca vi dedos mais parelhos e esguios. As unhas dela parecem ser de porcelana, de tão delicada formosura.

Sabe de uma coisa, finalmente, senhor Ivan Carlos, se o senhor se baseia nas panturrilhas de Cláudia Laitano para definir sua beleza e atração, o senhor está completamente enganado.

Cláudia Laitano sempre foi, e é, uma mulher para mil e quinhentos talheres.


18 de agosto de 2012 | N° 17165
NILSON SOUZA

Maluquinhos

Do alto de sua cabeça branca, incluindo as espessas sobrancelhas de algodão, Ziraldo desancou esta semana a garotada que não lê. “Muitos pais não percebem, mas seus filhos se tornaram idiotas” – lascou, no seu estilo patrola desgovernada.

Ele estava na Bienal Internacional do Livro de São Paulo e deve ter sido influenciado pelo ambiente de louvor à literatura. Disse que o livro é o objeto mais perfeito da história da humanidade e que o computador, apesar de todas as suas possibilidades culturais, tem sido usado como brinquedo.

Livro versus computador, será esta a batalha final? No começo da disputa, todos achávamos que eram ferramentas complementares. Depois, começamos a perceber que o livro foi ficando de lado e que o computador, além da vantagem atrativa da interatividade, passou a absorver os conteúdos dos impressos.

Um leitor eletrônico (computador, celular, tablet, qualquer plataforma dessas novas) permite acessar não um livro, mas uma biblioteca inteira, quem sabe tudo o que se escreveu até hoje desde o primeiro papiro. Difícil rivalizar com uma máquina tão poderosa. Só que... Quantos livros inteiros você já leu no computador?

Falo de livros que param em pé, não do Menino Maluquinho, do Ziraldo, que tem meia dúzia de palavras. A história até que é bem legal. Meio antiga, é verdade: o menino fazia pipa com taquara, papel de seda e grude feito de polvilho, como aprendera com o pai, que também aprendera com seu pai e por aí vai. Ninguém faz mais isso hoje. Talvez, para não ser tão incisivo, algum raro menino da área rural ou de algum bairro periférico de cidade grande.

No final da história do genial cartunista, a gente descobre que aquele menino não era exatamente maluquinho – era, na verdade, feliz. Como sei disso? Li num livro. Mas a história está igualmente nos computadores.

Ziraldo também parece ser um cara legal. Foi preso por debochar da ditadura nos anos de chumbo, mas, recentemente, também arrumou bronca com a esquerda mais intelectualizada, que não gostou de vê-lo pedir indenização de perseguido político. O episódio gerou uma das célebres frases do falecido Millôr Fernandes, colega de Ziraldo no Pasquim, também crítico do regime militar, mas que se negou a pedir a indenização. “Então, aquilo não era ideologia, era investimento?”

Maluquinhos eles, não? Mas também inteligentes, talentosos, espirituosos, bem-informados, comprometidos com causas sociais, cidadãos brasileiros.

Em uma palavra, leitores. De livros.

Ainda assim, nada impede que os não leitores da era digital também sejam pessoas felizes.




18 de agosto de 2012 | N° 17165O
PRAZER DAS PALAVRAS | CLÁUDIO MORENO

Nada a ver

De tudo aquilo que a escola nos ensina, nada nos marca mais fundo que as palavras que ouvimos de nossos mestres prediletos. Nas séries iniciais, então, a confiança na sabedoria da professora é ampla, total e irrestrita – e ai do sacrílego que ousar corrigir algum de seus ensinamentos! (Perguntem se alguma vez consegui convencer filho meu ou filha minha de que determinada regra de Português aprendida no colégio estava errada... Jacaré conseguiu? Pois nem eu...).

É claro que muitas dessas “verdades” vão pouco a pouco perdendo o brilho à medida que nos distanciamos no tempo, mas algumas delas se entranham de tal forma nos tecidos de nossa mente que nos custa admitir que está na hora de expulsá-las, mesmo desconfiando de que são moeda falsa.

Um exemplo tocante é a leitora Elena V., de São Paulo, que escreveu a esta coluna em busca de um aliado para uma ideia que ela defende, quixotescamente, há muito tempo. “Professor, tenho esta dúvida desde que deixei o ensino fundamental, faz mais de trinta anos, mas não tive sucesso em solucioná-la: na 5ª série, aprendi com minha professora de Português que a expressão correta seria ‘tudo haver’, e não ‘tudo a ver’, como escrevem por aí. No entanto, eu era sempre rechaçada quando empregava a forma que considero correta.

Mesmo na faculdade perdi pontos em trabalhos e exames pela grafia ‘tudo a haver’, que era corrigida por todos os professores. A coisa ficou pior quando a TV Globo começou a usar ‘tudo a ver’ como bordão de sua programação, porque aí todos mencionavam a emissora para mostar que eu estava errada”.

Numa comovente fidelidade às ideias transmitidas pela antiga professora, ela continua narrando sua cruzada: “Comecei então a pesquisar em gramáticas e em sites dedicados à língua portuguesa, mas as referências a qualquer uma dessas duas formas de grafia eram inexistentes.

Consultei, inclusive, estudiosos e nativos de outros idiomas (de origem latina e germânica), e alguns deles responderam que, pela lógica dos próprios idiomas, a grafia correta poderia ser ‘tudo a ver’, o que só me confundiu ainda mais. Numa pesquisa no Google, percebi que as duas formas são usadas atualmente, embora haja predominância do ‘tudo a ver’. Pergunto-lhe: será que há luz no fim do túnel? Será que um dia a forma que defendo vai finalmente prevalecer?”.

Pois então, minha cara Elena, sinto desiludir-te, mas sempre foi “tudo a ver”, “nada a ver”. A TV Globo, desta vez, não tem culpa alguma: assim está no Houaiss, assim está no Aurélio, mansamente registrado. Não há motivo para dúvida; haver, aqui, não caberia em nenhum de seus sentidos, e a sequência *nada haver, assim, com o verbo no infinitivo, é absolutamente impossível no Português.

Vais encontrar, aliás, a mesma estrutura no Francês, língua irmã da nossa, na qual “isso nada tem a ver comigo” fica exatamente “ça n’a rien à voir avec moi” (o Espanhol usa “tiene que ver”, igual ao “tem que ver”, que também usamos aqui no Brasil).

É assim que vais encontrá-la em Rubem Braga: “E se na verdade não somos pescadores nem aviadores, que temos a ver com o vento?”; “Afinal, o leitor nada tem a ver com o que me aconteceu em Casablanca”. E em Monteiro Lobato: “Que tem a Lua a ver com isso?”.

Dentre as dezenas de ocorrências em Nelson Rodrigues, escolho duas: “Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real” e “As nossas conversas eram tristes, porque o amor nada tem a ver com a alegria e nada tem a ver com a felicidade”.

Em Érico Veríssimo também: “Pois esta revolução, meu filho, não tem nada a ver com jogo de xadrez”; “A inteligência não tem nada a ver com a fé – replicou Rodrigo”. Em Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior: “Eu preparava pastas de documentos e as mandava para lá, não tinha nada a ver com a política do governo”; “Eu sofria quando ela me dizia: – Que tem a ver com as calças, meu querido?”.

Do outro lado do Atlântico, comparecem Saramago (“prova de que o meu íntimo não tem nada a ver com este caso”) e Lobo Antunes (“Porque não tinha a ver com o processo”). Queres mais? Clarice Lispector:

“Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?”. Carlos Heitor Cony: “Zizinha aceitava tudo, achou até que o amor àquela cobra tinha alguma coisa a ver com são Francisco de Assis” – e muitos, muitos outros, que não preciso mencionar porque acho que já dei exemplos bastantes.

Algo me diz, no entanto, que minha resposta não vai pôr fim ao teu tormento de tantos anos, e vais continuar procurando alguém que te justifique o “haver”... Esquece isso, Elena; exorciza este fantasma, absolve tua professora, que devia ser excelente, a julgar pela marca que deixou na tua vida, e parte para novas dúvidas, que a vida continua.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012




15 de agosto de 2012 | N° 17162 
MARTHA MEDEIROS

Tudo indo

Acompanhei as matérias sobre Londres feitas pelos jornalistas que Zero Hora enviou à capital britânica para cobrir a Olimpíada, e me chamou a atenção um relato feito pelo meu amigo Tulio Milman, que descreveu o fascínio de perder-se pelas ruas de uma cidade estrangeira. Não é a primeira vez que vejo uma pessoa inteligente sair em defesa da desorientação, o que me deixa inquieta, pois me considero uma viajante audaz, mas, pelo visto, sem muito tutano: nunca gostei de me perder.

Claro que possuo o hábito de flanar pelos bairros, que entro em praças e parques que não conheço, que viro à esquerda numa rua sem saber onde ela vai dar, mas tenho uma boa ideia sobre as possibilidades que a redondeza oferece e posso apostar que a caminhada vai resultar proveitosa, mesmo sem destino determinado. Se não resulta, me sinto uma songamonga.

Uma vez me perdi além do tolerável nas ruelas de Veneza e, sinceramente, a experiência não me trouxe nada além de cansaço e desassossego – fui parar onde os doges perderam as botas.

O fato é que todos nós estamos caminhando para algum lugar, mesmo sem saber para onde. Há os que têm um propósito, sabem aonde querem chegar: se não possuem um mapa, possuem ao menos um desejo, e desejos costumam ser guias confiáveis. Já fiz parte do primeiro grupo, mas, de repente, me percebo instalada no segundo: não tenho a menor noção de para onde estou indo, e admito que isso embaralha meu senso de direção – mas tampouco quero voltar para o ponto de partida.

Isso me faz lembrar pessoas que, quando você pergunta se está tudo bem, respondem: “Tudo indo”. Tudo indo pra onde? Ribanceira abaixo? De mal a pior? Seguidamente cruzo com uma moça com quem simpatizo, e, a cada vez que pergunto a ela se está tudo bem, ela me responde “tudo indo” com um jeito de quem vai cair em prantos.

Há um ano que está tudo indo pra ela. E eu fico torcendo para que esteja tudo indo às mil maravilhas, que esteja tudo indo de vento em popa, que esteja indo melhor do que o esperado. Mas não é nada disso que sugere seu olhar sorumbático.

Todos nós estamos indo, que é melhor do que estarmos parados. Estamos indo rumo a novas eleições, indo rumo à primavera, indo rumo a pessoas que ainda não conhecemos, indo rumo a dias melhores, a dias piores e, encaremos: indo rumo ao fim dos dias, se me permite ser uma desmancha-prazeres. É duro, mas a outra opção é estacionar, não ir a lugar algum. Prefiro ir, seja para onde for.

Se eu continuar sem inspiração como hoje, o único rumo que vou tomar é o do departamento de RH para acertar minhas contas. Como você pode comprovar, aqui, nesta coluna, tudo indo. No momento em que escrevo, sem ideia sobre as possibilidades que a redondeza oferece e sem saber se a caminhada vai resultar proveitosa, mas indo. Espero que chegue logo a parte divertida, Tulio.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012


POR AMY O’LEARY

No mundo dos jogos virtuais, o assédio sexual é real

Jogadoras são insultadas e ouvem propostas indecentes

Quando Miranda Pakozdi participou neste ano do torneio de videogame Cross Assault, o técnico do seu time, Aris Bakhtanians, perguntou-lhe diante da câmera sobre o tamanho do seu sutiã.

Em seguida, pediu que ela tirasse a blusa e focou a webcam da equipe no peito, nas pernas e nos pés dela.

Para Pakozdi, 25, uma jogadora experiente, foi demais. E, ao ouvir Bakhtanians defendendo o assédio sexual como parte da "comunidade dos jogos de luta", ela desistiu da disputa.

Machismo, racismo, homofobia e xingamentos em geral são fatos comuns e tradicionais em certos redutos dos games on-line.

Mas o episódio do Cross Assault foi o primeiro em uma série de casos neste ano que expuseram a gravidade do assédio enfrentado por muitas mulheres nas comunidades virtuais de jogos.

Os executivos desse setor que movimenta US$ 25 bilhões por ano estão atentos. Em fevereiro, a LevelUp, canal da internet que transmite competições de games, afastou dois comentaristas que praticaram assédio na frente das câmeras e apresentou um pedido formal de desculpas.

Apesar disso, Tom Cannon, cofundador do maior torneio de game de lutas, o EVO, retirou o patrocínio da sua empresa para o evento semanal da LevelUp, alegando a necessidade de conter o "discurso ignorante e odioso".

No caso de Bakhtanians, que teve suas ações no Cross Assault registradas em vídeo, ele divulgou um pedido de desculpas.

Mas as questões despertadas pelo episódio atraíram mais atenção com a campanha feita em maio por Anita Sarkeesian para arrecadar US$ 6.000 no Kickstarter, a fim de documentar como as mulheres são retratadas em videogames.

Suas páginas no YouTube e no Facebook foram imediatamente inundadas por dezenas de comentários raivosos.

Pessoas tentaram sabotar suas contas on-line. Ela recebeu violentas ameaças pessoais.

Sarkeesian respondeu documentando o assédio e postando na internet as montagens fotográficas pornográficas feitas por seus detratores com a imagem dela.

Perplexos, seus apoiadores doaram mais de US$ 150 mil, o que irritou ainda mais seus críticos. Um homem de Ontário criou um jogo na internet em que o objetivo é "socar" Sarkeesian.

"O setor dos games está na verdade num processo de mudança", afirmou Sarkeesian.

"Essa é uma coisa realmente positiva, mas acho que há um pequeno grupo de jogadores homens que sentem que os jogos lhes pertencem e que estão realmente aterrorizados diante dessa recente mudança."

Quando o jogador Sam Killermann, de Austin (Texas), viu a reação ao projeto de Sarkeesian, decidiu iniciar a sua própria campanha, chamada "Jogadores Contra a Intolerância", na qual pediam às pessoas para acatarem o compromisso de apoiar um comportamento mais positivo.

Seu site recebeu 1.500 adesões antes que hackers o invadissem e apagassem a lista de nomes.

A exemplo de Sarkeesian, muitas jogadoras estão documentando suas experiências em blogs como o "Fat, Ugly or Slutty" ("Gorda, Feia ou Vadia", insultos habituais às mulheres na internet).

Ele cataloga xingamentos, ameaças e propostas indecentes dirigidos às mulheres durante os jogos e campeonatos virtuais.

Jessica Hammer, pesquisadora da Universidade Columbia, em Nova York, disse que o percentual de mulheres nos jogos on-line varia de 12% a quase 50%, dependendo do tipo de jogo.

A presença feminina costuma ser criticada como uma "distração". Algumas mulheres recebem ofertas de dinheiro ou "ouro" digital para fazerem sexo virtual. Algumas são perseguidas dentro e fora da rede.

James Portnow, designer que trabalhou nos jogos Call of Duty e Farmville, escreveu sobre o assédio para a sua série de animação na web, a "Extra Credits".

Diz o narrador: "Neste momento, é como se déssemos ao valentão da escola o acesso ao sistema de comunicação interna e lhe disséssemos que todo mundo iria escutar o que ele tem a dizer. É hora de retirarmos esse megafone".

No fim do vídeo, o espectador era convidado a mandar um e-mail à equipe do Xbox Live, na Microsoft, pedindo mudanças nas ferramentas de comunicação e melhoras no sistema de denúncias on-line.

A Microsoft confirmou que está trabalhando em melhorias nas suas ferramentas comunitárias. "Na maior parte do tempo, as pessoas viram os games como um passatempo infantil e nós, como indústria, estivemos por trás dessa ideia", disse Portnow.

"Mas isso não é mais verdade. Somos um meio de comunicação de massa real e temos um efeito real sobre a cultura. Precisamos dar um passo além dessa ideia de que nada que pudermos fazer poderia ferir as pessoas."


Luiz Felipe Pondé

Sensibilidade cultural

Antropólogos de boutique deveriam pegar um avião e ir para algumas regiões da África

Hoje em dia gostamos de inventar termos "científicos". Um deles é "sensibilidade cultural", e o usamos para criticar formas de "intolerância cultural" (ou insensibilidade cultural), ou seja, tratar mal pessoas com hábitos diferentes dos nossos ou negar o direito de se praticar coisas estranhas para nossa cultura. A forma mais radical de criticar esta intolerância é dizer que "todo outro é lindo".

Gosto mais da expressão "tolerância" quando era inocentemente aplicada a casas de mulheres que fazem sexo em troca de dinheiro, as chamadas "casas de tolerância". Tenho saudade do uso da palavra "tolerância" neste sentido. Hoje em dia, a expressão "tolerância" é comumente utilizada por fanáticos que querem afirmar que tudo que vem do "outro" é lindo e maravilhoso.

Polêmicas ao redor do uso do véu islâmico têm sacudido a Europa. Até a Olimpíada em Londres não escapa disso. Recusar o direito de se usar o véu (ou similares) seria falta de sensibilidade cultural ou falta de tolerância cultural.

A verdade é que esse negócio de tolerância ou sensibilidade cultural com o outro (da qual partilho) é invenção de ocidental rico. E às vezes, temo, a moçada que gosta de falar disso fica tomando vinho em suas casas em segurança e nada sabem do mundo em chamas por aí. "Outros" são triturados por muitos dos "outros" que teimamos em achar lindo. Só que estes "outros" triturados são invisíveis para olhos acostumados às vítimas "profissionais" da nossa época. A indústria das vítimas oficiais não assimila esses miseráveis de fato em suas campanhas de conscientização chique.

Esses defensores da sensibilidade cultural, antropólogos de boutique, deveriam pegar um avião, sair de Paris, Londres, Nova York e São Paulo, e viajar um pouco. Quem sabe ir para algumas regiões da África, como Sahel (área semiárida no continente), Mali ou norte da Nigéria, dominadas por salafistas muçulmanos fanáticos, e defender a sensibilidade cultural por lá. Queria ver como esses inteligentinhos iriam se virar com esses salafistas que não estão nem aí para suas modinhas culturais.

No Mali, domingo 29 de julho, salafistas pegaram um casal que teve um filho fora do casamento, enterraram os dois até o pescoço e mataram a pedradas. Eles já têm espancado cristãos, destruído seus mausoléus e também destruído locais históricos do próprio islamismo que para eles não seja o "islamismo correto". Qualquer um que não obedeça sua versão da "sharia", a lei islâmica, é castigado fisicamente.

Sabe-se muito bem que no Egito, cristãos coptas são espancados há muito tempo e não têm os mesmos direitos civis que os muçulmanos. Por que os inteligentinhos de plantão da sensibilidade cultural não montam uma agência especial de direitos humanos para os cristãos? Que tal propor um jogo de futebol entre muçulmanos e cristãos no Egito para ensinar a "sensibilidade cultural" à maioria muçulmana lá?

Recentemente ouvi relatos antropológicos interessantes acerca de um país importante do golfo Pérsico. País que já ocupou várias vezes a mídia internacional em destaque.

Lá, mulheres estrangeiras (filipinas, paquistanesas) que buscam trabalho são constantemente violentadas por seus patrões e espancadas pelas suas patroas. Muitas vezes mortas. Todo mundo sabe (o país é minúsculo), mas não importa, porque a população local tem mais direitos dos que os estrangeiros.

Quer um exemplo: você pode trabalhar lá a vida inteira e nunca terá direito de comprar uma propriedade para você. Seu passaporte fica retido na mão do seu empregador, e se ele não quiser te dar quando você pedir, se você não achar alguém da população natural local que interceda a seu favor, você poderá não conseguir sair do país. Se você bater num carro de um cidadão natural do país, você nunca terá razão.

Todo mundo sabe que em países desta região, tocar num muçulmano é considerado ilegal. Você poderá ser preso ou deportado se alguém reportar que você tocou um dos seres "sagrados" naturais da terra. Experimente converter um deles. Cadeia na certa. Que insensibilidade cultural, não?

ponde.folha@uol.com.br

quarta-feira, 8 de agosto de 2012



08 de agosto de 2012 | N° 17155
MARTHA MEDEIROS

O poder terapêutico da estrada

“Viajar é um ato de desaparecimento”, escreveu certa vez Paul Theroux, um dos escritores mais bem-sucedidos na arte de narrar suas andanças pelo mundo. É uma frase ambígua, pois parece verdadeira apenas do ponto de vista de quem fica. O viajante realmente desaparece pra nós – aliás, desaparecia, pois nestes tempos cibernéticos ninguém mais consegue manter-se inalcançável.

Já para aquele que parte, viajar não é um ato de desaparecimento. Ao contrário, é quando ele finalmente aparece para si mesmo.

Somos seres enraizados. Moramos a vida inteira na mesma cidade, mantendo um endereço fixo. Nossa movimentação é restrita: da casa para o trabalho, do trabalho para o bar, do bar para a casa, com pequenas variações de itinerário. Essa rotina vai se firmando gradualmente, e um belo dia nos damos conta de que estamos vendo sempre as mesmas pessoas e conversando sobre os mesmos assuntos. Não há grande aventura ou descoberta no nosso deslocamento sistemático dentro desse microcosmo.

Isso, sim, soa como um desaparecimento. Onde foram parar as outras partes de nós que compõem o todo?

Viajar é sair em busca dos nossos pedaços para integralizar o que costuma ficar incompleto no dia a dia.

Assisti a On The Road, adaptação do livro de Jack Kerouac, superbem filmado por Walter Salles, e também a Aqui É o Meu Lugar, em que Sean Penn, magistral, pra variar, interpreta um roqueiro decadente que sai pela estrada para acertar as contas com o passado do pai e encontra adivinhe quem? Ele mesmo, ora quem. É sempre assim. Há em nós uma persona oculta que só se revela quando a gente se põe em movimento.

Road movies me encantam porque dão protagonismo a tudo que alimenta nossa fantasia: a liberdade, a música, a poesia, a natureza e o tempo estendido, sem o aprisionamento dos relógios e dos calendários – viajar é uma jornada simultânea de ida e volta, nosso passado e nosso futuro marcando um encontro no asfalto. Ou sou eu que fico meio chapada só de falar nisso.

On The Road, mesmo que em certos pontos convide para um cochilo, tem momentos arrebatadores, como a dança sensual de Kristen Stewart com Garrett Hedlund, o boogie woogie de Slim Galliard num contagiante número de jazz, e um final que emociona, senão a todos, certamente aos que reverenciam a literatura. Já o filme com Sean Penn é uma viagem para longe do lugar-comum – nada é óbvio, nada é o que se espera.

E não bastasse ter Frances McDormand no elenco e a trilha sonora de David Byrne, ainda conta com a participação significativa, tipo cereja do bolo, do ator Harry Dean Stanton, que nos remete ao emblemático Paris, Texas, uma forma de lembrar que todas as estradas se cruzam em algum ponto.

Que seus pais não me ouçam, mas se você está entre iniciar uma terapia ou se largar no mundo, comece experimentando a segunda opção. Ambas levam para o mesmo lugar, mas num consultório não tem vento no rosto nem céu estrelado. Se não funcionar, aí sim, divã.

terça-feira, 7 de agosto de 2012



07 de agosto de 2012 | N° 17154
CLÁUDIO MORENO

Mistérios eternos

De todos os seres vivos, o homem é o único que sabe que vai morrer. O que acontece depois é um mistério insondável, mas nosso avô das cavernas, no momento em que decidiu sepultar seus mortos, já trazia na cabeça as duas questões decisivas: “De onde viemos? Para onde vamos?”. A humanidade carrega essas perguntas no sangue, e a busca por respostas fez surgir a ciência, as artes, a música, a religião e a filosofia.

Os gregos mantinham sobre o assunto uma humildade prudente, pois, embora fossem excelentes em tudo, sabiam, como ninguém, reconhecer a pequenez do homem diante do vasto mistério do mundo.

Quanto mais estudavam, mais se convenciam de que os limites do universo, fossem ou não infinitos, ficariam para sempre fora de nosso alcance. Falando sobre os deuses, Protágoras expressou muito bem esse sentimento: “Não sei se eles existem ou não, ou como é sua aparência, e isso por boas razões: porque eles são invisíveis, e porque a vida humana é breve demais para descobrir”.

Séculos mais tarde, o mundo científico, num acesso de onipotência aguda, proclamou que não havia nada que pudesse escapar à luz penetrante da razão. Se havia zonas obscuras, era por estarem envoltas numa névoa provisória, que o vento higiênico da ciência haveria de dissipar algum dia. Como dizia o astrônomo Kepler, no séc. 17: “O homem ainda não conhece todas as respostas”.

Esse orgulhoso (e ingênuo) “ainda não” era como um pedido de paciência – “Esperem, e tudo se esclarecerá”. No séc. 20, no entanto, um gênio como Einstein redefiniu nosso tamanho: vamos avançar cada vez mais na compreensão das leis da natureza, mas o mistério último do Universo vai persistir – inatingível, desafiador, maravilhoso. Falava como cientista; não era um homem religioso.

É curioso ver como Freud – contemporâneo de Einstein e tão genial quanto ele – esqueceu de incluir a alma feminina entre esses enigmas que nunca serão desvendados. Em carta a Marie Bonaparte, sua amiga e seguidora, o mestre confessou que, apesar de toda uma vida dedicada ao estudo do tema, ainda não era capaz de resolver a eterna questão sobre o que querem as mulheres. “Ainda não” – como se a mulher fosse um continente desconhecido à espera do explorador capaz de mapear sua geografia. Não lhe ocorreu, decerto, que, se isso ocorresse, a humanidade estaria perdida.

Este é um mistério que está fora de nosso alcance, como a morte ou o infinito, e que deverá permanecer sem resposta para que homens e mulheres façam e refaçam incessantemente a mesma pergunta, gerando assim o desejo que nos faz viver.

Texto publicado em 15/12/2009


07 de agosto de 2012 | N° 17154
FABRÍCIO CARPINEJAR

Pac-man sempre vai morrer num beco

O homem é um produto frágil demais. Pode ser destruído simplesmente pelo saca-rolha.

Eu tremo ao abrir uma garrafa de vinho. Vá que a rolha esteja esfarelada e afunde. O longo esforço de maturação da bebida, depois de dois anos de envelhecimento no barril e três na garrafa, morre em segundos pela minha imperícia. Nenhum dos presentes vai mexer o líquido rubro no cálice e cheirar o buquê por minha culpa.

O medo tem uma razão especial: a esposa é que me alcança a safra. Representa um ato de confiança, um crédito no relacionamento. É coisa de macho. Ela finge se distrair enquanto observa o desempenho pelo rabo dos olhos.

E se eu vacilo e ela delega a atividade para a visita? E se a visita abre com facilidade e solta um risinho diabólico?

Toda garrafa de vinho traz uma mensagem de S.O.S. Apelo de náufragos do amor.

O champanhe é também uma tragédia moral. Festa da virada, contagem regressiva 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, e você se demora ao puxar o lacre. O mundo familiar aplaude, grita, e a garrafa permanece fechada em sua mão. É azar para o resto da vida amorosa, não somente para um ano.

Nossos maiores constrangimentos baixam nos pequenos atos, onde não há coragem, mas apenas obrigação. É se enxergar no dever de fazer, que o fracasso é certo.

Não são tarefas maiúsculas, em que podemos nos perdoar pela concorrência e nervosismo, como vestibular, autoescola e entrevista de emprego.

Refiro-me a situações coloquiais, da rotina, na qual o outro conclui que você não terá dificuldade.

Um dos vexames da escola foi ao bancar o educado com uma colega. Eu me ofereci para abrir seu salgadinho Pingo d’Ouro. Suava frigoríficos, e não descolava as pontas. Até que exagerei e o saco rasgou-se inteiro.

Já penei com uma lata de extrato de tomate. Não fui ensinado a usar o abridor pela mãe, pai, irmão mais velho (afinal, quem era o responsável pela aula?). No casamento, na primeira refeição a dois, dividindo romanticamente o balcão da cozinha, ganhei a ingrata tarefa. Desenhava a tampa e nada de furar a lata e encontrar a polpa. A massa pronta, a mulher aguardando e eu batendo cabeça por 15 intermináveis minutos. O avental foi curto para conter o al sugo do rosto.

Experimento sucessivamente suspiros de alívio ou engasgos de aflição diante de potes de geleia, requeijão e pepino.

Dói quando sua companhia compra ingresso para assistir a você se estrebuchar.

Dói quando você recorre à camisa para torcer a tampa.

Dói ainda mais quando ela consola:

– Não depende de força, mas de jeitinho.

É uma das frases mais horríveis de se escutar na vida, junto com “isso acontece!”.

sábado, 4 de agosto de 2012



05 de agosto de 2012 | N° 17152
MARTHA MEDEIROS

De onde surgem os amores

Uma amiga na casa dos 50 estava solteira há anos. Não tinha namorado e tampouco se sentia ansiosa com isso. Já havia casado duas vezes, tinha um filho bacana e podia muito bem viver sem amor, essas mentiras que a gente conta para nós mesmos.

De qualquer forma, para não perder o hábito, de vez em quando se produzia e ia pra balada, vá que. Mas voltava invariavelmente sozinha para casa. Até que um ex-paquera do tempo que ela era uma debutante fez contato ele, que morava no Exterior, voltaria para o Brasil e queria revê-la. Milagre by Facebook.

Ela disse claro, vai ser ótimo, mas não sabia quando exatamente a promessa desembarcaria no Salgado Filho. Seguiu sua vida. Foi para a piscina do clube num dia de semana e lá, estando acima do peso, suada e com um biquíni velho, escutou seu nome sendo pronunciado por uma voz aveludada. Era o dito cujo, testemunhando in loco no que a debutante havia se transformado depois de tantos anos. Ela pensou: o cara vai sair correndo.

Ele pensou: não desgrudo mais dessa mulher. E assim foi. Certa de que só estando impecável atrairia olhares, ela conquistou um guapo num dia em que se sentia pouco atraente.

Outra história. Atriz, loira, olhos verdes, leva um fora do noivo. Passa dias inchada de tanto chorar. Deprê em estágio avançado. A avó organiza um almoço do tipo italiano, aberto ao público. Ela vai e encontra um velho conhecido com quem brincava na infância. Ele, recém-separado. Ela, um trapo.

Ficam ali conversando, ela aos lamentos por sua situação, quando, em meio a soluços, a mulher se engasga. Mas engasga feio. De quase morrer. Uns 10 vieram esmurrar suas costas, e a guria vertendo lágrimas sem conseguir respirar, roxa como uma berinjela, já encomendando a alma. Ela me conta: naquele dia, eu havia saído de casa medonha, e o engasgo só piorou o quadro, eu parecia o demo convulsionando. Mas o amiguinho de infância não teve essa impressão. No dia seguinte, ligou para saber se ela passava bem, e estão casados há 15 anos.

Mais uma: depois de duas décadas de uma relação bem vivida, veio a separação amigável. Porém, mesmo amigável, nunca é fácil sair de um casamento, ainda mais de um casamento que não era um inferno, apenas havia acabado por excesso de amizade.

Ela pensou: agora é a hora do luto, um recolhimento me fará bem. Não deu uma semana e um estranho tocou o número do seu apartamento no porteiro eletrônico. Ela não reconheceu a voz, o nome, não sabia quem era, e não deu trela. Ele tentou no dia seguinte: ela tampouco abriu a porta, achou que o cara havia se enganado de prédio. No terceiro dia, ela resolveu esclarecer pessoalmente o equívoco. Desceu até a portaria para convencer o insistente de que ela não era quem ele procurava. Era.

Do que se conclui: de onde muito se espera – boates, festas, bares – é que não surge nada. O amor prefere se aproximar dos distraídos.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012



01 de agosto de 2012 | N° 17148
DIANA CORSO

Numa velha história, um projeto de vida

Há muito, esperava esse reencontro, mas nunca o fazia acontecer. Afinal, pedi o exemplar em um sebo virtual. Estava curiosa, mas foi sinistro, constrangedor até. Fazia 40 anos que não tinha notícia dessa história, mesmo considerando-a minha predileta.

Trata-se de Uma Casa na Floresta, o primeiro volume dos nove escritos por Laura Ingalls Wilder, contando a vida difícil dos pioneiros norte-americanos, a sua própria. Li a série no início da puberdade, numa biblioteca, nunca tive os livros embora os adorasse.

Quando o pacote chegou, tão pequeno, pensei ter me enganado: vai ver que pedi uma edição adaptada. Nada disso, “texto integral”, dizia na capa. Na lembrança, era maior. Além disso, nesse relato não havia nada de encantador, o livro era chato. A surpresa era outra.

Aquelas páginas eram como uma carta que houvesse enviado para mim mesma do passado. A missiva tinha data para chegar e era agora, com as filhas crescidas. Ali estavam descritos, prescritos, sonhos do passado que realizei sem clareza de que os tinha.

A menina Laura e sua irmã Mary viviam numa cabana de troncos na floresta. Há intermináveis páginas sobre o cotidiano severo, de escassez, rezas, obediência, chatices domésticas identificadas com aconchego. O pai caça para alimentar a família, o preparo da carne salgada e defumada e das conservas para atravessar o inverno.

As brincadeiras e o calor da casa quando a neve chega, a boneca de pano, um presente inesquecível. A animação fica por conta do relato das aventuras do pai, que conta da floresta onde enfrenta panteras, ursos e lobos. Dentro de casa proteção, fora o perigo.

Essa vida rudimentar meticulosamente narrada evoca a nostalgia de algo que, na verdade, nunca existiu: uma família antiga e amorosa, na qual há um pai poderoso que se ocupa das filhas mulheres, veja só. Um verdadeiro “refúgio num mundo sem coração”, como Christopher Lasch, em seu livro com esse nome, descreveu o ideal em que se inspira a família nuclear.

Sem lembrança consciente do livro, nem dos seus efeitos em mim, construí uma família com várias alusões a essa história. Dei à minha primogênita o nome da autora e protagonista da obra, minha porta sempre teve um buldogue, como o velho Jack da saga, montando guarda, e minhas duas filhas cresceram ouvindo histórias sentadas no colo do seu atencioso pai.

Errantes pelo mundo, sempre nos resta a nostalgia de um ninho imaginário. É isso que queremos para nossos filhos, eu bem que tentei. Como se vê, leituras infantis são perigosas, no bom sentido.


01 de agosto de 2012 | N° 17148
MARTHA MEDEIROS

Fora do contexto

A grande maioria de jornais e revistas traz hoje uma sessão que é das mais populares: são as frases destacadas de políticos, artistas, empresários e demais notáveis. A pessoa deu uma longa entrevista e dela é pinçada uma pequena declaração que vai para o hall das “frases da semana”. Quem não lê? Todo mundo lê e adora.

Algumas frases são fortes, outras divertidas, há as ridículas, as burras, as geniais. Mas todas, absolutamente todas correm o risco de estar descaracterizadas. Porque aquilo que é subtraído do contexto ganha projeção, para o bem ou para o mal. E isso, por si só, é uma forma sutil de manipular o leitor.

Em tudo há um contexto. No seu pedido de demissão, na sua defesa dos animais, na sua confissão para o padre, no seu desabafo para o analista, na sua briga de casal, na sua campanha política, até na escolha da roupa que você vai vestir pela manhã. Cada atitude, cada escolha, cada argumentação, cada lamúria está vinculada a uma série de outras coisas que orbitam em volta do assunto principal. Não existe “não vem ao caso”. Tudo vem ao caso.

A namorada, depois de aprontar muito, diz que você é o homem da vida dela. Essa frase, sozinha, reconstitui relações, mas e o contexto todo, onde fica? Seu chefe considera você um ingrato por desligar-se da empresa de uma hora para a outra, mas e a quantidade de sapos que você engoliu por meses, não explica?

Você é considerado um sequelado por descer pelo elevador do prédio de calça laranja, blusão pink e óculos de lentes verdes, mas alguém levará em consideração que você é um artista performático? Você diz para o analista que seu pai a ignora, e o analista precisa acreditar em você, mas jamais lhe dará alta até que descubra o contexto. O contexto é soberano, o contexto é revelador, o contexto não pode ser ignorado, assim na vida, assim na imprensa.

Como destacar uma ironia sem contextualizá-la? A ironia soará grosseira. E aquele que ao ser entrevistado para a TV estava visivelmente brincando, mas que por escrito pareceu estar falando sério? E o comentário dito no entusiasmo do momento, sem compromisso, que ganha ares de profetização? Falou, imprimiu, já era.

Explicar o contexto exige tempo, exige dedicação, exige compromisso, e está tudo em falta: tempo, dedicação, compromisso. Quer-se o bombástico de deglutição fácil. Quer-se o vexame público, o mico, a constatação constrangedora, a genialidade de pronta-entrega, quer-se o impacto imediato, sem olhar para os lados. O contexto são os lados ignorados.

Eu leio essas “frases da semana”, você também lê. Mas, na falta da contextualização, não percamos o critério. Acreditemos com um olho fechado e outro bem arregalado.

terça-feira, 31 de julho de 2012



31 de julho de 2012 | N° 17147
FABRÍCIO CARPINEJAR

Casinha de homem

O homem brinca de casinha. É quando ele vai a um motel.

Todo motel tem ladeira e uma torre. O motel é o castelo do macho. É seu sonho de príncipe encantado.

Todo motel tem letreiros luminosos de cinema. É sua vontade de ser um ator pornô famoso e ser descoberto por Hollywood.

O motel é o conto de fadas masculino. É o pontapé inicial de sua vida imobiliária, o exercício de sua independência de estilo.

Homem não aprecia olhar apartamentos antes de comprar, não tem paciência para analisar plantas residenciais e espiar condomínios: homem visita motéis.

É uma compulsão estranha e irrefreável.

Não acredita em mim? Por que, então, quarto de motel tem churrasqueira? Explica?

Trata-se de um projeto secreto de residência, um modelo perfeito de convívio familiar. Traz a ilusão de lua de mel permanente com sua amada, não tem que aguentar a indiscrição de vizinhos e nunca sofrerá ameaça de despejo do condomínio por gritos e gemidos.

Naquele momento, realiza sua especulação patrimonial, treina seu gosto para decoração, avalia sofás, cortinas, box, azulejos para, posteriormente, adotar em seu cantinho. Passa a conhecer o que é uma poltrona Luis XV. Vivência moteleira é cultura.

Não estou troçando, o homem desejaria que seu dormitório fosse igual ao do lugar. Com cama redonda, espelhos no teto, luz negra, piso elevado, várias atmosferas e frigobar. Pergunte a qualquer marmanjo.

Adoraria dispor de um painel com botões para acender o ar-condicionado, o som, trocar as luzes e vibrar o colchão. Um controle centralizador que simplificasse seus movimentos e mantivesse o ambiente sob o alcance de um simples gesto.

O motel é o ideal de consumo dos marmanjos. Se possível com piscina, banheira de hidromassagem e roupão branco sempre lavado esperando no gancho atrás da porta. Na hora de ligar a TV, que viesse direto os jogos exclusivos do Brasileirão, nada de novelas e seriados românticos.

Diante da pequena portinhola da garagem, logo na entrada do estabelecimento, o homem define o futuro da relação ao escolher o quarto. A tabela de preços é o equivalente à vitrine de uma joalheria para a mulher: cada quarto é uma aliança ou de 12 ou de 16 ou de 18 ou de 24 quilates.

Se ele solicita o apartamento simples, é apenas uma transa rápida, não passará de meia hora. Se ele sugere uma suíte, é proposta de namoro. Se ele requisita a chave de uma supersuíte, comemore o noivado. Se ele quer uma supersuíte luxo, é a consagração erótica, um convite indireto ao casamento.

Mas, se ele pedir uma supersuíte luxo presidencial, é que ele andou frequentando motel com outra e pretende obter o perdão.