quarta-feira, 24 de outubro de 2012



24 de outubro de 2012 | N° 17232
MARTHA MEDEIROS

Para que serve uma crônica?

Como trabalho em casa, não costumo trocar ideias com meus colegas de jornal a respeito da nossa atividade, mas desconfio de que nossos pensamentos sejam parecidos. Talvez eles também se perguntem “por que logo eu tenho um espaço para escrever o que me dá na telha, enquanto tantas outras pessoas que escrevem bem e teriam algo a dizer se expressam apenas nas redes sociais e olhe lá?”. Por reconhecer que é um privilégio ter conquistado esta coluna, busco dar-lhe alguma utilidade pública de vez em quando. Mas adianta?

Respondendo à pergunta do título: para que serve uma crônica? Serve para estimular o gosto pela leitura, já que é um texto rápido e cotidiano, que atrai os que têm pouco ânimo para ensaios mais complexos. Serve para conhecer pontos de vista diferentes e assim sentir-se convocado a refletir sobre o assunto proposto. Serve para divertir, já que muitos cronistas aproveitam sua liberdade autoral para olhar o mundo com alguma graça.

Serve para estabelecer um contato mais estreito com os leitores, que acabam vendo o cronista não como um jornalista distante, mas como um amigo de bar, tal o coloquialismo do gênero. Serve para emocionar, dependendo do tema e do tom. Mas não serve para mudar o que está errado. Essa é a pretensiosa utilidade pública que eu, vez que outra, gostaria de alcançar.

Sobre o que escrever nesta quarta-feira? Cogitei questionar o número incrível de mortes no trânsito que são contabilizadas a cada final de semana, quase todas por imprudência dos motoristas, que seguem bebendo e correndo, a despeito de todas as crônicas, matérias na imprensa e campanhas de esclarecimento que buscam despertar consciências.

Cogitei escrever sobre a absurda violência urbana, que faz com que um homem roube carros na companhia dos filhos pequenos, que uma garota de 15 anos seja assassinada na saída de uma festa ou que delinquentes sejam presos e soltos no mesmo dia, como bem relatou ontem em ZH a médica que foi atacada perto da Redenção, mas crônica alguma consegue fazer com que as autoridades coloquem mais policiais nas ruas, essa medida tão vergonhosamente adiada.

Cogitei chamar a atenção sobre a negligência do nosso sistema de saúde, que possibilita que doentes recebam injeções de sopa, injeções de café com leite, um escândalo que deixa o país de calças arriadas, nossa incompetência é indecente e risível. Mas uma simples crônica muda alguma coisa?

De vez em quando, um leitor confidencia que minhas palavras o ajudaram a destravar um sentimento, outra me escreve dizendo que consegui estimular seu filho a ler um livro pela primeira vez, alguém me conta que finalmente agendou uma mamografia depois de ler o que escrevi, e me gratifico: crônicas não precisam servir para nada, mas às vezes servem, individualmente. Só resta seguir confiando em que fazer diferença para uns possa significar a diferença para muitos.

sábado, 20 de outubro de 2012




21 de outubro de 2012 | N° 17229 
MARTHA MEDEIROS

Quando termina a novela

Pegar a estrada é o primeiro pensamento de quem encerra uma etapa da vida

A atriz havia passado os últimos meses na pele de uma personagem atormentada, vulcânica, daquelas que não tem um dia de sossego. Era de se supor que ela estivesse dando o sangue pra interpretar uma mulher tão diferente dela mesma, ela que na vida real parecia ser bem tranquila.

Foi então, na festa de encerramento, quando o elenco se reuniu para assistir ao último capítulo juntos, que o repórter se aproximou da estrela e perguntou: Para onde você irá viajar quando terminar a novela?.

Ele não perguntou “se” ela iria viajar. Perguntou direto “para onde”, sem a menor dúvida de que essa era a única opção após tanto empenho – nem passou pela cabeça do jornalista que ela poderia emendar um personagem no outro. E de fato, ela não emendaria. Respondeu que pretendia passar um mês em alguma praia deslumbrante e secreta, sem especificar em que lugar exatamente.

Quando termina a novela, a primeira providência é preparar a mala e se mandar.

O mesmo se dá nas novelas particulares, fora da tela. O que não falta é dramalhão no nosso cotidiano. A pessoa se doa, se escabela, chafurda em lamentações, quase enlouquece, até que o desgaste se confirma (seja o de uma relação, de um drama familiar, de um projeto profissional) e chega-se ao último capítulo, pois sempre há um fim.

E entre o fim e um novo começo, há que se recuperar a energia, abandonar o “personagem” e marcar um encontro consigo próprio, de preferência bem longe do cenário onde foram vividas as agruras. Pegar a estrada é o primeiro pensamento de quem encerra uma etapa da vida.

Viajar tem essa função terapêutica – também. Pretende-se que seja um divisor de águas, um momento de desconexão com o passado e de preparo para um futuro que promete ser mais promissor. E como tudo que foi intenso exaure nossas forças, espera-se que uma viagem (para um local paradisíaco, de preferência), acelere o reestabelecimento.

Claro, pode ser também para um lugar lúgubre, abandonado, sem energia elétrica. Há quem não queira ver ninguém, não queira ser interrompido em sua introspecção, e se embrenha num lugarejo fora do mapa, na esquina de Deus nos Acuda com o Fim do Mundo.

Mas geralmente procura-se o belo e o alegre – desde que se conte com um bom pé-de-meia. Separou? Itália. Encerrou um tratamento quimioterápico com sucesso? Porto de Galinhas. Pediu demissão depois de 23 anos na mesma empresa? Um cruzeiro pelo Caribe. Passou no vestibular? Garopaba. É preciso comemorar. Terminou a novela.

Algumas pessoas carrancudas não sabem o que se ganha com uma viagem. Chamam de fuga, e uma fuga bem cara. Gasta-se uma nota preta para trazer de volta apenas fotografias. Qual o retorno de se comprar um bem imaterial? Não é melhor investir num carro, renovar o guarda-roupa, trocar de computador?

Quando acaba a novela, nem carro, nem guarda-roupa, nem iniciar outra novela na sequência. Hora de sair de cena para recuperar o fôlego até que a próxima inicie – porque sempre haverá outra.

terça-feira, 16 de outubro de 2012



16 de outubro de 2012 | N° 17224
FABRÍCIO CARPINEJAR

Meu sonho de casamento

Meu sonho é subir ao altar. E uma mulher alucinada gritar do fundo da igreja:

– Não, ele me pertence, eu ainda o amo.

Seria o máximo. O pianista buscaria despistar o pânico tocando Princesa Diana, de Elton John, haveria uma agitação febril no átrio, burburinho e gemidos frenéticos entre os convidados, o padre se manteria de boca aberta, a noiva iria me fuzilar:

– Quem é ela?

Explicaria baixinho no ouvido que é uma antiga namorada sem importância.

Todos os olhos estariam voltados para minha boca, eu roubaria a cena. Finalmente veriam que meu terno preto era Armani, que custou tão caro quanto o véu e a grinalda.

Para manter o suspense, não responderia no ato, giraria o rosto indeciso para o lado esquerdo e direito, como torcedor em partida de tênis. Até emitir a sentença:

– Eu amo minha noiva. Você é passado. Some daqui!

Depois do susto, garantiríamos nosso futuro. Nenhum incidente poderia nos separar de novo.

Ela completaria bodas de ouro comigo, jamais cogitaria a distância, permaneceria fiel vida adentro.

Nada como o pânico para renovar os votos de felicidade. Nada como um dilema para fortalecer decisões.

A reconciliação necessita acontecer antes mesmo da briga. É o medo de perder o par que reforça nossa entrega.

Orgulharia sua família e amigos ao descartar publicamente uma rival, ao mandá-la embora desprovido de piedade.

Aquilo seria a maior prova de amor. Muito melhor do que ser casto em festa de solteiro.

Receberia a confiança eterna de sua aliança, a cumplicidade delicada de sua fé.

Mostraria que sou o tipo ideal, sério e devotado: não estraguei a festa, não humilhei seu vestido, venci as tentações egoístas.

Deveria existir um serviço para contratar “loucos da igreja”. Senhoritas e senhores, disponíveis em books nas agências de publicidade, preparados para protestar no casório.

Contidos no princípio da cerimônia, romperiam o corredor com estardalhaço na hora em que o padre falasse: “Se alguém tem algo contra este casamento, que diga agora ou cale-se para sempre”.

Assim como as carpideiras, recrutadas para chorar em velórios, formariam uma nova categoria profissional, um time de lindos modelos provocando ciúme no noivo e na noiva e apimentando o relacionamento.

Seriam atores e atrizes dramáticos e desesperados realizando uma intervenção amorosa e criando intrigas existenciais.

Todo não pede um sim. Todo governo requer oposição.

Casamento de sucesso depende de torcida contrária.

sábado, 13 de outubro de 2012



14 de outubro de 2012 | N° 17222
MARTHA MEDEIROS

Em caso de incêndio

O alarme do prédio disparou às quatro da manhã. Não sou de entrar em pânico, mas era preciso ver o que estava acontecendo. Não estava acontecendo nada, como eu imaginava. Disparou de exaltado.

Mas e se fosse pra valer?

Não há quem não tenha se perguntado, um dia, o que salvaria em caso de incêndio. O fogo começa num determinado andar e se alastra, novos focos começam a se precipitar, os bombeiros são acionados, mas é prudente não aguardá-los sentada. Corra. O que você leva com você?

O site www.theburninghouse.com propõe esse exercício a fim de revelar se somos práticos, sentimentais ou apegados a objetos de valor. As pessoas que participam do site listam seus itens indispensáveis e postam a foto desses “não-posso-viver-sem” que não deixariam para trás de jeito nenhum. É um convite para fazermos o mesmo.

A maioria dos que entraram na brincadeira tem entre 20 e 30 anos, e é curioso como são românticos. Entre os artigos mais citados estão fotos dos pais e caixas contendo cartas e bilhetes que remetem ao passado – mesmo nessa idade, eles já têm um.

Ainda entre os objetos que não deixariam queimar, estão os livros preferidos, relógios de pulso, o passaporte, máquinas fotográficas, óculos escuros, jogos de canetas, a camiseta de estimação e, naturalmente, notebooks, iPhones e demais eletrônicos portáteis.

Excetuando a aparelhagem tecnológica, os outros objetos me surpreenderam pelo espírito nostálgico. Relógio de pulso? Livros? Canetas? Máquinas fotográficas? Muitos deles não desgrudariam da sua rolleyflex comprada numa feira de antiguidades.

Quase não aparece algo caro ou prático: na iminência de perder objetos definidores de sua identidade, o vínculo com o passado demonstra ser imprescindível para que eles consigam ir em frente – a maioria desses jovens revelou-se tão sentimental quanto seus avós.

Para quem já está longe dos 20 anos, no entanto, creio que há outras prioridades. De minha parte, seres vivos estariam no topo da lista: todos salvos? Bom, havendo ainda tempo para reunir um kit de sobrevivência básico, eu trocaria os óculos escuros pelos óculos de grau, pegaria a chave do carro, identidade, o celular, cartões de crédito e um casaco, o primeiro que visse. Seria bem prática e deixaria para lamentar pelos meus perfumes depois.

Espelho, espelho meu, quão insensível serei eu?

Não citei as dezenas de álbuns de fotografia (sou um pterodátilo, ainda amplio fotos) porque não teria mãos suficientes para carregá-los, mas é a única coisa que me faria falta no quesito material. Livros, discos, joias, roupas, tudo isso se readquire com o tempo. Afora os álbuns, não consigo destacar um único objeto indispensável da casa: toda ela é o meu universo, é onde escrevo a história da minha vida, seria perda total.

Por isso, a presteza em salvar objetos práticos que me fossem indispensáveis não pelo apego ao passado, mas que me ajudassem a construir tudo de novo. Não tenho mais tempo para nostalgia. Minha juventude ainda está em acreditar no futuro. 


13 de outubro de 2012 | N° 17221
CLÁUDIA LAITANO

Malala

Todas as notícias ruins sobre crianças nos comovem, mas as notícias ruins sobre crianças que têm a idade dos nossos filhos simplesmente nos devastam. É irracional e talvez até mesmo egoísta, já que o que nos embrulha o estômago nesses casos não é exatamente o sofrimento de uma família estranha, mas a associação involuntária com a criança que temos em casa.

Podemos nos identificar com outros adultos porque eles têm a mesma profissão que nós, interesses comuns ou mesmo proximidade geográfica, mas para ver o rosto do nosso filho no rosto dos filhos dos outros basta uma coincidência de datas.

Pobres ou ricas, brasileiras ou esquimós, vindas de famílias felizes ou nem tanto, crianças da mesma idade parecem todas pertencer a uma mesma tribo imaginária. Darwin, mais do que Freud, talvez explique esse curioso impulso de preservação da espécie que nos leva a querer proteger todas as crianças – e, entre elas, mais ainda aquelas que poderiam ser nossas.

Malala Yousafzai, como a minha filha, tem 14 anos – e apenas esse detalhe aleatório já seria suficiente para que, em meio a tantas notícias mais ou menos distantes, a história desta menina paquistanesa que levou dois tiros na saída da escola se impusesse diante de todos os outros assuntos.

O tom de voz, o olhar aceso e principalmente aquele jeito de oscilar o tempo todo entre a criança, que já não é, e a mulher, ainda por ser, são os mesmos aqui ou no Paquistão. Num minuto, as garotas de 14 anos choram por nada e correm para um colo já simbólico quando precisam de consolo. Em seguida, são adolescentes com opiniões que já não são as nossas, perguntas que a gente não sabe responder, medos que a gente nunca teve.

Minha filha tem medo de ladrões. Malala tinha medo de ir à escola. A região em que ela vive no Paquistão sofre com o terrorismo dos talibãs, que decidiram incluir entre suas causas alucinadas o fechamento das escolas para meninas. Malala tornou-se o rosto e a voz das garotas que sonham em poder estudar, brincar na rua, pintar as unhas.

Em um depoimento em vídeo concedido para o New York Times em 2009, Malala diz que quer estudar e ser médica. Nesse trecho da entrevista, ela para, olha para o pai e chora – talvez em dúvida se sonhou alto demais. Mais adiante, surpreende pela lucidez e pela autoconfiança de quem, aos 11 anos, já sabia bem o que queria.

Não é toda hora que a História nos oferece a oportunidade de vermos luzes e trevas se defrontando de forma tão inequívoca. De um lado, uma menina corajosa e cheia de vida lutando pelo direito de estudar. Do outro, covardes fanáticos capazes de atirar em meninas de 14 anos.

Enquanto escrevo, Malala ainda está no hospital, mas já se tornou um ícone planetário. A gigantesca ameaça com voz e rosto de criança foi atingida da forma mais covarde possível, mas sobreviveu e ficou mais forte ainda. Malala ainda pode sonhar com um futuro. Os talibãs, mesmo sobrevivendo, jamais chegarão lá.


13 de outubro de 2012 | N° 17221
PAULO SANT’ANA

O futuro do Grêmio

Estou sentindo uma comichão para declarar qual o candidato do Grêmio que prefiro.

Dá-me vontade de dizer quem eu quero que seja o próximo presidente do Grêmio, a ser eleito nos próximos dias.

Será uma eleição importante. Nós, gremistas, nutrimos a esperança de que desde a nova Arena se desenhe um destino de títulos para um Grêmio que nem campeão gaúcho tem conseguido ser.

Só não digo o nome do candidato que quero ver eleito no Grêmio porque acho que vale para esta eleição o mandamento ético vigorante na RBS para as eleições político-partidárias: nós, jornalistas da RBS, temos o dever de nos manter isentos em qualquer eleição.

E a eleição para presidente do Grêmio ou do Internacional, diz-se nas ruas, tem tanta importância quanto as eleições para prefeito da Capital e governador.

Então, me mantenho publicamente isento, louco para entrar na luta eleitoral.

E mais uma coisa: com a penetração de Zero Hora no Estado e o canhão que significa minha coluna, se eu escolher um dos candidatos e por ele fizer campanha, na minha condição de gremista histórico, me bastaria escrever três colunas a favor de um candidato que, em face da ausência de campanha eleitoral nas ruas, ele seria sem dúvida o vencedor. Claro, se eu justificasse com argumentos convincentes a minha preferência.

E o candidato que tenho em minha mente tem competência suficiente para erguer um grande Grêmio na nova Arena.

O Grêmio é muito grande, mas infelizmente vem sendo pequeno.

A torcida anseia urgentemente por conquistas de títulos. A torcida está na ponta dos cascos para ver o Grêmio retornar aos seus melhores e mais gloriosos tempos de Grêmio.

Mas estou impedido eticamente de fazer campanha para meu candidato em minha coluna.

Vou, portanto, torcer ardentemente para que ele seja o vencedor.

O Grêmio é um dos mais importantes clubes brasileiros. A rigor, o Grêmio tem o dever biográfico de grandeza de ser participante todos os anos – todos – da Libertadores.

O Grêmio tem torcida, patrimônio e tradição para estar sempre entre os líderes nos campeonatos nacionais. O Grêmio, que detém em todas as pesquisas a maior torcida do Estado, tem de em todos os anos ameaçar ser campeão da América e do Mundo.

Pois não temos sido nem campeões gaúchos. Isto tem de acabar.

A torcida tem de examinar os nomes e as biografias dos três candidatos, Paulo Odone, Fábio Koff e Homero Bellini Júnior, e escolher aquele que melhores qualidades tem para ocupar o lugar de destaque que cabe ao clube no concerto internacional.

Eu já tenho o meu candidato. Examinei cuidadosamente as circunstâncias e os serviços já prestados por eles ao Grêmio, cuidei de ver qual o que maior talento administrativo, em matéria de futebol, possui para dirigir o clube e o escolhi, com a certeza de que a partir de 2013 os torcedores tricolores terão uma sucessão de vitórias e conquistas em campeonatos que vão sacudir o Brasil.

É simples para o votante gremista atingir isso: é só votar no melhor.


13 de outubro de 2012 | N° 17221O
PRAZER DAS PALAVRAS | CLÁUDIO MORENO

Desinquieto

Confesso que fiquei faceiro quando recebi, dia desses, uma consulta proveniente do Acre, lá dos extremos da fronteira oeste, quase na linha do Equador. Quem me escreveu foi Irany G., gaúcha de nascimento, aluna deste que vos fala lá pelos anos 90: “Professor, moro aqui em Rio Branco, na capital, muito longe de minha querida Porto Alegre, mas sempre dou um jeito de ler suas colunas pela internet. Agora que encontrei o senhor no Facebook vou poder lhe fazer perguntas diretamente.

Tenho uma dúvida há muito tempo, mas não sei se vou conseguir explicar direito: se desatento é antônimo de atento, como é que desinquieto é sinônimo de inquieto? Não deveria ser seu antônimo?

Minha cunhada, que é mineira, vive dizendo que o filho dela é uma criança desinquieta; sei que ela quer dizer que ele é uma criança agitada (aqui entre nós, o guri é um demônio), mas se o prefixo des- indica negação, desinquieto não significaria não inquieto – ou seja, calmo, sereno, exatamente o contrário do que ela quer dizer? Será linguagem típica de Minas? Deu para entender?”.

Perfeitamente, Irany. Vários outros leitores, ao longo dos dez anos de existência desta coluna, já estranharam esse desinquieto, o qual, como vais ver, é um pacato cidadão de nosso vocabulário. Se vens acompanhando O Prazer das Palavras, vais lembrar que outro dia – acho que falávamos das paraolimpíadas – mencionei aquela “máquina de fazer palavras” que todo falante do Português traz dentro da cachola e que lhe permite não só formar vocábulos novinhos em folha, como também compreender as criações lexicais de seus vizinhos.

Foi exatamente por saber disso que um habilíssimo ourives da língua como Mário Quintana não hesitou em escrever “Um dia, os padres se desbatinaram”, certo de que até o mais ingênuo de seus leitores poderia decompor instantaneamente o sentido deste verbo.

Palavras derivadas como essa, resultantes da combinação de radicais com afixos, não param nunca de surgir, numa rapidez vertiginosa. No entanto, as peças que entram nessa combinação – especialmente os prefixos e os sufixos - pertencem a um grupo fechado, limitado a tão poucos itens que vários desses morfemas terminaram se tornando polissêmicos – o que significa, em vernáculo, que passaram a ter diferentes significados.

Este é o caso do prefixo des-, que nem sempre vai indicar negação, como faz em desleal, descarregado, descrente, desestimulante. Mesmo os gramáticos mais antigos, como Said Ali, já observavam que ele também pode ser usado com sentido positivo – uma espécie de intensificador –, sem contrariar o significado original do vocábulo.

Essas formas prefixadas são empregadas como meras variantes das formas simples: infeliz ou desinfeliz, apartar ou desapartar, abalar ou desabalar, afastar ou desafastar, apear ou desapear, etc. – e não apenas na linguagem popular: “...o nosso benévolo confrade está, claro, na condição dos que desapartam rixas” (Rui Barbosa); “Adoro queijos. Deixa ver. Desafasta” (Eça de Queirós); “Não deixe o homem desapear, doutor” (Taunay); “Agora, é verdade que ninguém mandou o desinfeliz ir pescar por riba da catedral!” (Olavo Bilac); “Macunaíma sentiu-se desinfeliz e teve saudades de Ci, a inesquecível” (Mário de Andrade).

Tua suspeita de que desinquieto seja criação regional de Minas Gerais também não procede, pois vamos encontrá-lo igualmente em escritores portugueses, desde o Renascimento: “Muito bem me lembra a promessa que vos fiz no Tangu acerca do saque desta desinquieta cidade” (Fernão Mendes Pinto); “De tarde faz o ofício do demônio tentador, a desinquietar quanta rapariga e mulher honesta tem o Porto” (Garrett); “Desde o começo fora um erro! Tinha sido uma ideia de burguês inflamado ir desinquietar a prima” (Eça de Queirós).

Outro prefixo de comportamento semelhante é o a-, que indica negação ou privação em atípico, amoral, acéfalo e apátrida, mas perde seu valor negativo em dezenas de palavras: abrasado, apavorado, afivelado, ajoelhado, amanteigado. A um molho apimentado não pode faltar pimenta, Irany – bem pelo contrário; do mesmo modo, apesar da incredulidade de meu amigo Márcio Pinheiro, um bife não pode ser chamado de acebolado se não vier coberto de muita cebola.

Finalizando, aproveito para comunicar aos amigos que em 22 de outubro começo uma nova edição do curso sobre as mudanças que o Acordo Ortográfico introduziu na nossa maneira de escrever. Mais detalhes pelo fone 3018-7740 ou em www.casadeideias.com.


13 de outubro de 2012 | N° 17221
NILSON SOUZA

Psssiu!

Entre as manias que tenho, uma é baixar o som da televisão nos intervalos comerciais. Tenho hipersensibilidade a ruídos e me sinto agredido com as propagandas que gritam – quase todas. Não entendo por que os autores dos reclames insistem no som alto. Minha tese é a mesma que explica a perda de equilíbrio emocional do debatedor durante uma discussão: grita-se quando faltam argumentos. Na propaganda, o barulho quase sempre é utilizado para encobrir a mediocridade.

E não estou sozinho nesta visão – ou seria audição? As reclamações do público foram tantas, que o Ministério das Comunicações decidiu regulamentar o som dos intervalos comerciais, por meio de uma portaria que estabelece aumento de, no máximo, dois decibéis na hora da mensagem publicitária. Não sei se já está valendo, pois as emissoras ganharam um longo prazo para executar a medida. Além disso, continuo pressionando aquele bendito botãozinho do silêncio nos intervalos dos meus programas favoritos. Bela invenção, o controle remoto.

Pena que não funcione para conter o barulho alheio, especialmente o som automotivo que alguns motoristas colocam em seus veículos. É outra coisa que me desconcerta: o que leva um sujeito a instalar um verdadeiro canhão de alto-falantes na traseira do seu automóvel e sair pela rua a perturbar o sossego alheio? Sei, eles não são os únicos.

O som alto é uma das principais causas de brigas entre vizinhos. Até igrejas têm sido alvo de reclamações e de denúncias por causa dos ruídos excessivos, especialmente aquelas que utilizam instrumentos musicais e cantorias para se fazerem ouvir pelas divindades. Os incomodados argumentam que Deus não é surdo, mas quem os ouve?

E isso ocorre em todo o mundo, tanto que a Organização Mundial da Saúde colocou a poluição sonora entre as três prioridades ecológicas para a próxima década. De acordo com especialistas, a audição é o único sentido humano permanentemente ligado. Mesmo durante o sono, continuamos ouvindo. Por isso, o barulho virou questão de saúde pública. A tecnologia só agravou o problema. Os fones de ouvido até evitam o compartilhamento indesejado, mas os jovens costumam manter o volume de seus aparelhos tão elevado, que acabam ficando com a audição danificada.

Posso parecer ranzinza nesta minha pregação por silêncio, mas a verdade é que os aparelhos de som, os carros tunados e os alto-falantes (ou alto-gritantes) conferiram poder demasiado aos indivíduos. Qualquer pessoa, seja apreciador de rock ou pagode, pode infernizar a vida do próximo, especialmente quando este próximo tem que se manter nas proximidades.

terça-feira, 9 de outubro de 2012



09 de outubro de 2012 | N° 17217
FABRÍCIO CARPINEJAR

Caixinha de fósforos e surpresas

Minha mulher tinha a mania de colocar os fósforos usados de volta para a caixinha.

Assim que riscava, guardava os palitos velhos com os novos.

Nunca colocava fora, apesar da facilidade do lixinho branco em cima da pia.

Nem acho que era pressa, mas hábito. Tentei adverti-la uma vez, duas vezes, até que estava sendo desagradável e desisti (quando marido se assemelha a um pai, é o momento de calar a boca).

Mesmo disposto a me adaptar e não comprar briga, eu me irritava com aquela roleta-russa toda manhã. É evidente que pegava de imediato uma série de fósforos queimados – não sei se você sabe, mas sou o autor da Lei de Murphy na Câmara de Vereadores de Porto Alegre.

O azar me premiava. Jamais retirava de cara a cabeça ruiva da caixinha amarela. Sacrificava preciosos minutos para preservar a chatice da esposa.

Acender incenso, acender fogão, acender vela reivindicavam o suspense do sorteio, a contagem de votos da eleição. E muita paciência para não gritar um bom desaforo ao longo da porta.

Aquilo era ainda mais claustrofóbico para quem aprendeu a tabuada separando grãos de feijão e fósforos. Reproduzia o terror das provas orais, das superações matemáticas.

A caixa não se abria como uma caixa, e sim se aprofundava como uma gaveta desorganizada, uma bolsa de mulher, um armário de solteiro. Solicitava o dobro de cuidado para revirar o fundo e contornar as pontas com o tato.

Eu me enxergava penalizado, diferente de qualquer pessoa normal, que apenas riscava o fulgor e não pensava.

Sofri dois anos com minha indisposição.

Somente hoje reparei que gosto imensamente da dúvida, da possibilidade de colher um fogo extinto ou um fogo vivo.

É uma ansiedade feliz. Uma expectativa pequena, porém agradável.

Encaro o fósforo e confiro se ele tem a pólvora intacta, se vai explodir sua cabeleira loira e azul. Faz sentido, porque liberdade significa manter nossa disposição para se surpreender dentro da rotina.

Presto uma maior atenção na chama, no seu desenho e som. Descubro que o fósforo é um relâmpago em miniatura, tão bonito quanto os raios que cortam os morros e céus. Solto uma risada infantil assim que ele mantém sua auréola firme.

Amar a si próprio é esse movimento: não se resignar, não se conformar com o que foi feito, não mergulhar na repetição desanimada dos dias: olhar cada lembrança de frente e ver se ainda queima. Olhar cada palavra de frente e ver se ainda queima. Olhar cada atitude de frente e ver se ainda queima.

E incendiar a nossa vida na vida do outro.



09 de outubro de 2012 | N° 17217
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Seis anos

Nasci num janeiro, mais de meio século atrás; o mês de aniversário marcou para sempre minha vida, como seria de esperar, mas também como não seria de esperar tão imediatamente. O ano escolar, para mim, coincide com o ano de vida, na prática; eu quase sempre fui o mais jovem da turma, composta, em sua maioria, por colegas nascidos ao longo do ano anterior, de março em diante. (E nunca tive festa de aniversário cheia dos colegas de aula, porque todos estávamos de férias, dispersos.)

Aos seis anos, entrei para o Primário e lembro claramente de muita coisa. O cheiro da pasta de couro; o aspecto promissor dos lápis apontados no estojo de madeira, de tampa frequentemente emperrada; os cadernos encapados pela mãe, com capricho, que davam tanto gosto de começar a escrever.

Os ditados. Os trabalhos manuais. As primeiras pesquisas. Não recordo muitos dos colegas, mas sim da professora; e tenho comigo, em algum canto, o boletim de notas, preenchido com aquela letra antiga de normalista, parelha e firme, com as várias notas a cada mês, tudo ladeado pela assinatura do pai.

Meu filho faz seis anos, hoje, exatamente. Se prepara para ingressar no primeiro ano, novinho em folha. Não terá boletim, mas algo equivalente para notificar os pais do desempenho dele. Seus apetrechos escolares incluem caderno, lápis e pasta, diferentes dos meus, mas a seu modo iguais, como instrumentos de aquisição e construção do conhecimento.

Ciências, artes e letras se abrem diante dele, que anda numa fase de grande interesse por animais, entre exóticos e nativos, domésticos e selvagens, com várias especificações que ele faz questão de saber.

Escrevo essa comparação trivial por quê? Não sei direito. Venho com ela na cabeça e no coração faz já uns dias, girando em torno do aniversário dele. (Meu saudoso irmão, Sérgio Prego, teria feito 48 anos dia 5 passado.

Seu filho, meu afilhado, o queridíssimo Alfredo, completará 7 anos daqui a um mês e pouco.) Minha resposta tem a ver com a memória, justamente: me dou conta de que o Benjamim já retém na lembrança, de agora para sempre, os lances da vida, como eu trago as minhas cá comigo. Essa sucessão me mobiliza de um jeito profundo, a que espero fazer jus.

sábado, 6 de outubro de 2012



07 de outubro de 2012 | N° 17215QUASE PERFEITO |
Fabrício Carpinejar

Desculpas maiores do que os acontecimentos

“Tenho 20 anos e tive um namoro complicado com meu professor da universidade com dobro da minha idade. Ele se mostrou uma pessoa indecisa e contraditória. Isso mexe comigo, pois sempre que estou me libertando ele volta. Sinto que ele é muito ligado ao passado. Será a crise dos 40? Trauma do casamento? Beijo Adriane.”

Querida Adriane,

Assim não tem graça. Não deixa ele se explicar. Já procura absolvê-lo por trauma de casamento ou crise dos 40 anos. Por que não questionou diretamente seu parceiro? Por que é difícil conversar diretamente sobre aquilo que incomoda? Toda mentira se finge de mãe para nos salvar.

É como adulto diante de criança pequena. A criança aponta e o adulto logo traduz o que a criança quer. A criança nunca fala porque basta apontar e seus desejos serão sempre atendidos.

É a atrofia do amor. Apenas um dos dois pergunta e responde, o outro se cala e aproveita.

Você vive perdoando seu namorado por antecipação. Nem permite que ele se defenda com medo da resposta. Sabe qual a resposta que não quer ouvir, né?

A postura dele é confortável. Pode fazer qualquer loucura que aceita. Pode ser contraditório, faltar a compromissos importantes, cabular seu aniversário, que você tratará de costurar coerências e motivações em seu lugar.

Quando as desculpas são maiores do que os acontecimentos, já não há relação.

O que ele parece sentir por você é uma atração física. Um assalto sexual.

Ele não a enxerga como família, como futura esposa. Como ele não sabe onde colocá-la, ele abandona e volta, abusa dos artifícios da inconstância para mantê-la disponível e esperançosa.

Minha convicção é que ele tem preconceito contra sua companhia: pela condição de professor, por ser mais velho e por querer apenas sexo.

Terrorismo psicológico é contraceptivo

“Tenho 33 anos, sou casada há cinco e meu marido não quer ter outro filho. Ocorre que ele tem um filho do outro casamento, mas eu não tenho filhos. Não sei o que fazer para sensibilizá-lo. De um modo um tanto quanto apelativo, ele declarou que não me vê ‘mãe’. Estou angustiada. Relacionamentos se fortalecem com sonhos que são sonhados juntos. É válido permanecer com uma pessoa que não quer o mesmo que eu? Fernanda”

Querida Fernanda,

Não é o caso de vida ou morte. Relaxa. Você deve estar pressionada pelo relógio biológico e entrou na fase de terrorismo sobre o marido. Deve estar falando do assunto a cada 15 minutos ou comentando com as amigas ostensivamente ou superestimando o problema a ponto dele virar um dilema.

Não conheço nenhum homem que diga diretamente: – Quero ter mais filhos.

São exemplos raros. Então, seu homem faz parte da estatística. Ele é prevenido, ressabiado, não pretende começar de novo o processo de esvaziamento biográfico (que o pai enfrenta, ao ceder a realeza ao sucessor).

Mude de perspectiva. Seu marido está com pavor de ser substituído. Toda vez que demonstra esse apelo inadiável de maternidade, empregará o deboche para se proteger. Já acha que não deseja o amor dele, mas um filho dele. Na sua mentalidade imediatista, entende como um aviso de fim de romance e da liberdade de ir e vir.

Sei, deve estranhar minha posição, mas homem é dose. Ele compete com o filho antes do filho nascer, depois compete com a mãe para ficar com o filho. Esqueça as lamúrias. Pode seduzi-lo, investir em indiretas e desistir da campanha aberta. Fortaleça a paternidade dele com o filho do primeiro casamento. Importante mostrar o quanto é prazeroso ser pai, o quanto vale apostar na educação, provocá-lo a falar dos melhores momentos de sua vida, atiçar suas lembranças e a sabedoria dos cuidados.

Nenhuma demonstração direta trará resultados. Sonhos não são sonhados juntos. Sonhos são quartos separados - por isso que existe a varanda do casamento ligando as alas por fora.

Seu filho virá naturalmente. E me convide para ser padrinho.


07 de outubro de 2012 | N° 17215
MARTHA MEDEIROS

Narrar-se

Quem escreve está sempre se delatando, seja de forma direta ou camuflada

Sou fã de psicanálise, de livros de psicanálise, de filmes sobre psicanálise e não pretendo desgrudar o olho da nova série do GNT, Sessão de Terapia, dirigida por Selton Mello. Algum voyeurismo nisso? Total.

Quem não gostaria de ter acesso ao raio-x emocional dos outros? Somos todos bem resolvidos na hora de falar sobre nós mesmos num bar, num almoço em família, até escrevendo crônicas. Mas, em colóquio secreto e confidencial com um terapeuta, nossas fraquezas é que protagonizam a conversa.

Por 50 minutos, despejamos nossas dúvidas, traumas, desejos, sem temer passar por egocêntricos. É a hora de abrir-se profundamente para uma pessoa que não está ali para condenar ou absolver, e sim para estimular que você escute atentamente a si mesmo e assim consiga exorcizar seus fantasmas e viver de forma mais desestressada. Alguns pacientes desaparecem do consultório logo após o início das sessões não estão preparados para esse enfrentamento.

Outros levam anos até receber alta. E há os que nem quando recebem vão embora, tal é o prazer de se autoconhecer, um processo que não termina nunca. Desconfio que será o meu caso. Minha psicanalista um dia terá que correr comigo e colocar um rottweiler na recepção para impedir que eu volte. Já estou bolando umas neuroses bem cabeludas para o caso de ela tentar me dispensar.

Analisar-se é aprender a narrar a si mesmo. Parece fácil, mas muitas pessoas não conseguem falar de si, não sabem dizer o que sentem. Para mim não é tão difícil, já que escrever ajuda muito no exercício de expor-se. Quem escreve está sempre se delatando, seja de forma direta ou camuflada. E como temos inquietações parecidas, os leitores se identificam: “Parece que você lê meus pensamentos”. Não raro, eles levam textos de seus autores preferidos para as consultas com o analista, a fim de que aqueles escritos ajudem a elaborar sua própria narrativa.

Meus pensamentos também são provocados por diversos outros escritores, e ainda por músicos, jornalistas, cineastas. Esse intercâmbio de palavras e sentimentos ajuda de maneira significativa na nossa própria narração interna. Escutando o outro, lendo o outro, se emocionando com o outro, vamos escrevendo vários capítulos da nossa própria história e tornando-nos cada vez mais íntimos do personagem principal – você sabe quem.

Selton Mello, em entrevista, disse que para algumas pessoas o programa pode parecer chato, pois é todo baseado no diálogo entre terapeuta e paciente, e isso é algo incomum na televisão, que vive de muita ação e gritaria.

De minha parte, terá audiência cativa até o último episódio, pois, mesmo não vivenciando os problemas específicos que a série apresenta, todos nós aprendemos com os dramas que acontecem na porta ao lado, é um bem-vindo convite a valorizar o humano que há em cada um. A introspecção não costuma atingir muitos pontos no ibope, mas é a partir dela que se constrói uma vida que merece ser contada.


06 de outubro de 2012 | N° 17214
NILSON SOUZA

O malabarista

Ele se vira nos 30 com quatro pedras nas mãos, bem na frente do para-brisa do meu carro. Do meu e de tantos outros motoristas que passam pelo mesmo trajeto, numa avenida movimentada da zona sul da Capital. Impossível não observar o seu indigente malabarismo, até mesmo porque contém um inevitável potencial de ameaça.

Somos seres amedrontados, tudo o que é estranho nos assusta. Ainda mais quando o outro é um indivíduo andrajoso, descalço, com aspecto descuidado e sofrido. Mais do que o medo, porém, é o sinal amarelo da compaixão que me queima a alma.

– Não dê esmola! – vocifera o grilo falante da consciência, domesticado por sucessivas leituras sobre desigualdades sociais.

A esmola vicia, a esmola financia a miséria, a esmola alimenta a criminalidade e sustenta o tráfico de drogas. Dou o que, então? Um conselho?

– Ô, meu chapa. Sai dessa. Vai procurar um emprego!

Sou ingênuo, mas não sou louco. Se faço isso, viro alvo na certa, embora o jovem malabarista pareça inofensivo enquanto desfila sua cara de fome entre os vidros fechados. Parece jovem, pois se movimenta com certa agilidade, mas já tem vincos no rosto. Criança não é.

As crianças sumiram dos cruzamentos da cidade, o que evidencia o sucesso das políticas de assistência social do Estado e do município. No lugar delas, porém, surgiram adultos fragilizados por deficiências físicas ou pela falta absoluta de oportunidades. Dói vê-los lutando pela sobrevivência no sinal vermelho.

Não são os únicos. De vez em quando, o palco dos semáforos é ocupado por artistas de rosto pintado, que se utilizam até mesmo de maças de fogo. Também assustam: parece que a qualquer momento alguém vai sair chamuscado.

E há, ainda, os meninos que se encarapitam uns sobre os outros. São adolescentes, de idade indefinida. Formam pirâmides, lançam bolinhas para o alto, às vezes deixam-nas cair, tentam subir de novo e, quando concluem o número, invariavelmente os carros já estão em movimento. Embora melhor equipados e mais audaciosos, também despertam uma certa piedade esses personagens do desolador espetáculo das ruas.

Mas nada se compara ao homem das pedras. Seu aspecto é desalentador, sua arte é precária, seu equipamento de trabalho é mais do que rudimentar – é pré-histórico. Ele sequer fala. Apenas executa sua lastimável prestidigitação e caminha silencioso entre os carros de janelas fechadas. Sequer deixa uma mão livre para apanhar alguma improvável moeda. O grilo falante, implacável, não me deixa agir, mas morro de pena.

O sinal verde pesa como uma pedra.


06 de outubro de 2012 | N° 17214
CLÁUDIA LAITANO

Ilha da Fantasia

Os porto-alegrenses têm todo o direito de discutir se um espaço público deve ou não ser cercado – quem gosta de grade é funileiro, embora boa parte da cidade tenha sido obrigada a capitular ao visual Carandiru Style nos últimos anos.

Por trás da discussão das grades em torno do Araújo Vianna, porém, insinua-se a desconfiança com relação à parceria público-privada que permitiu a reforma do auditório. Sobre isso vale a pena pensar com um pouco mais de serenidade, já que o assunto se presta a leituras que, em geral, não parecem muito conectadas com a realidade cultural do país – ou do planeta.

Economia, dizem os manuais, é a ciência que estuda a melhor alocação de recursos escassos em um ambiente de necessidades ilimitadas. Não existe um ambiente com recursos mais escassos e necessidades mais ilimitadas (e diversas) do que a gestão pública da cultura.

No Brasil, administradores culturais operam de forma precária em quase todas as instâncias – falta grana, falta projeto, falta continuidade. A chamada “economia da cultura” ainda está engatinhando no país, e as poucas iniciativas que funcionam (um Em Cena, um Theatro São Pedro...) ainda dependem mais do empenho pessoal de um Luciano Alabarse ou de uma Eva Sopher do que de uma administração planejada para sobreviver aos bons gestores ocasionais.

Para os habitantes da Ilha da Fantasia Subsidiada, porém, o Estado deveria cuidar de tudo: construir teatros, produzir filmes, promover festivais, financiar shows, dar mesada a escritores...

Quando isso, na prática, se mostra inviável, preferem ver os festivais acabarem, os centros culturais fecharem e os prédios ruírem a admitir que qualquer modelo de financiamento cultural no Brasil que dependa exclusivamente do Estado está condenado à falência. No outro extremo da cegueira ideológica, a Ilha do Deus Mercado, é cada um por si e que todo mundo ouça o Michel Teló até morrer.

A sabedoria, como sempre, foge dos extremos. Cada país deve desenvolver o modelo de financiamento cultural que mais se aproxima do que a sociedade pode e quer – com os Estados Unidos em um polo (cidadãos e empresas como os grandes financiadores) e a França do outro (o Estado bancando quase tudo).

Enquanto o Brasil vai consagrando um modelo que se baseia principalmente em leis de incentivo, outros formatos vão sendo testados, como as Oscips e as parcerias público-privadas. Uma coisa é certa: nossa maior preocupação, hoje, deveria ser a falta de empresas querendo investir em Cultura, e não a nostalgia de um Estado que atira para todos os lados (figurativamente, bem entendido).

No caso do Araújo Vianna, temos um bom exemplo de modelo alternativo que funcionou: o espaço foi recuperado do abandono pela iniciativa privada e durante o tempo em que vigorar o contrato a prefeitura vai poder ocupar o auditório em 91 dias por ano (o que dá e sobra para fazer muita coisa). O Araújo está mais bonito e melhor equipado do que antes e promete ser mais ativo do que nos últimos 20 anos. Reclamar do que, cara-pálida?

Se estão faltando causas culturais de grande porte para defender, tenho duas boas sugestões: exigir que a construção da Sala Sinfônica da Ospa engrene e que o Multipalco fique pronto. Ambos, aliás, projetos que só se tornarão possíveis graças ao investimento da iniciativa privada.

O resto é mimimi.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012



03 de outubro de 2012 | N° 17211
MARTHA MEDEIROS

O selinho

De repente, em função de dois acontecimentos recentes (a morte da esfuziante Hebe Camargo e o ataque inesperado de uma eleitora ao candidato José Serra, em São Paulo), o selinho ganhou um protagonismo até então inédito. Já não era sem tempo. Com tanta gente cultuando o beijo profundo e apaixonado, aquele de fazer as órbitas revirarem dentro dos olhos, o selinho vem a público reclamar: eu também existo.

O selinho é inocente, já nasceu absolvido pela sociedade. Mas não custa ficar atento. Lembro de um namorado, lá no início dos anos 80, que era muito moderninho, tinha várias amigas descoladas que faziam teatro, e ao encontrá-las na noite salpicava seus selinhos na maior pureza – curiosamente, só nas bonitas. Hum. No começo, eu fingia que achava muito natural. Depois, abri o jogo, falei que sentia ciúme.

Ele então veio com aquele discurso paz e amor, típico da era de Aquarius, sobre cultivar a harmonia entre os seres, abrir-se para as revelações místicas, libertar a mente, let the sunshine in e outras embromações, e foi então que fiz de conta que seu papo lisérgico havia me convencido – ora, eu também cumprimentaria meus amigos com selinhos. Só os bonitos, claro. Foi então que ele repentinamente teve a sua revelação mística e parou de vez com a distribuição de bitocas. Dali por diante, foram longos anos de harmonia e salutar caretice.

A importância que dou ao selinho vem de um episódio distante da minha biografia. Na saída do colégio, ao final de uma manhã, um rápido roçar de lábios ganhou o título honroso de “meu primeiro beijo”. Um selinho, um só, e foi o que bastou para que eu voltasse para a casa levitando por vários quarteirões.

Passei a tarde me olhando no espelho para ver se eu estava diferente, se alguém notaria minha transformação de menina para mulher – eu devia ter o que, uns 14? Do primeiro beijo pra valer não lembro nada, mas esse selinho continua mantendo seu lugar no pódio entre os momentos mais adoráveis e femininos da minha adolescência. Diante disso, como não levar essa modalidade de carinho a sério?

A foto de Silvio Santos dando o último selinho na Hebe, dentro do caixão, é uma imagem terna e eterna. As redes sociais já se mobilizaram para fazer do dia 29 de setembro o Dia do Selinho, que não vai pegar, claro, a não ser que vire feriado, a única coisa que respeitamos. Tudo continuará como antes. O selinho será para sempre um gesto de afeto assexuado.

É uma beliscadinha oral, um atrevimentozinho entre amigos, uma brincadeirinha entre adultos, uma provocaçãozinha, um beijo no diminutivo: singelinho, rapidinho, malandrinho.

Mas por mais que se esforce em parecer casual, terá para sempre seus significados secretos. O selinho será para sempre um gesto de amor assexuado.

Lindo dia pra você. Aproveite a quarta-feira

sábado, 29 de setembro de 2012



29 de setembro de 2012 | N° 17207PESQUEIRO |
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Nós, os gaúchos

No encerramento de mais um mês de comemorações festivas do tradicionalismo gauchesco, me ocorre evocar aqui um aniversário de 20 anos: em 1992, segundo semestre, foi lançado, pela Editora da UFRGS, um volume de ensaios chamado Nós, os Gaúchos. Acabou sendo o primeiro de uma série de cinco volumes (Nós, os Gaúchos II, Nós, os Teutogaúchos, Nós, os Afrogaúchos e Nós, os Italogaúchos). Cheguei a conceber um sexto volume, que se chamaria Nós, os Neogaúchos, junto com o paulista, aqui residente, José do Nascimento Júnior, mas o plano foi abortado pela mesma editora (e, olha, o volume ia ficar bacana).

O livro foi muito vendido naquele ano e nos seguintes, tendo alcançado quatro edições; foi adotado em cursos da área de Humanidades e circulou bastante por agências de publicidade e em empresas que buscavam informações sobre o temperamento local. E não era para menos, digo com vaidade e certa cabotinice, porque fui um dos organizadores do livro, junto com Sergius Gonzaga, meu colega, que era na altura diretor da Editora da UFRGS e agora é secretário de Cultura de Porto Alegre.

O nascimento foi trivial. Certo dia, estava eu de papo com Poti Campos, na então livraria de seu pai, Arnaldo Campos, no Campus Central da UFRGS. (Bom tempo aquele em que a universidade federal tinha uma livraria no Campus Central.) E foi o Poti quem observou que naquele ano estavam saindo alguns artigos bem interessantes sobre coisas características da cultura do Estado.

Era uma nova rodada, uma nova geração de pensamento sobre esse nó identitário e histórico, tão interessante quanto, por vezes, aborrecido, que se expressa na forma de orgulho e bravata assim como na forma de crítica e mesmo de condenação ideológica. E perguntou o Poti: por que eu não organizava um livro sobre o tema? Apresentei ao Sergius a ideia, que foi imediatamente aceita. Mãos à obra, então.

Nota de época: em 1992 a internet não existia (só em rede universitária, usada por meia dúzia). Apenas em 1995 foi criada a internet comercial (um exemplo concreto: o UOL começou a funcionar em 1996, dia 28 de abril). Outra nota: ninguém tinha ainda telefone celular, aqui no estado (no Rio começou a circular em 1990). Então, entramos em contato com amigos e conhecidos, assim como com gente mais distante, sempre por telefone, para encomendar um texto que pensasse, de modo não óbvio, sobre o jeito de ser dos gaúchos.

Acontecimentos maiúsculos

O mundo era bem diferente vinte anos atrás. Vejamos alguns marcos. Naquele ano ocorreu a assinatura do Tratado da União Europeia, marco do inédito grau de integração entre as nações do Velho Continente (isso no bafo quente do fim da União Soviética, no ano anterior, o que já tinha sido motivo suficiente para perceber que o mundo havia mudado muito). Por outro lado, e não sem certo atraso, a Igreja Católica perdoou Galileu Galilei (1564 – 1642). De qual pecado, mesmo?

No Brasil, muita coisa apontava para mudança também. Em relação à Europa unificada e aos ventos promissores de integração, valerá lembrar que saiu no Brasil a tradução de um excelente livro de Robert Kurz, O Colapso da Modernização, em que o otimismo liberal que se congratulava pelo fim do comunismo era examinado à luz de um marxismo ainda muito eficaz. Era o contraponto ao ensaio de Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, editado no Brasil no mesmo 1992.

No plano político imediato, ocorreu o impeachment de Collor, com a subsequente ascensão de Itamar Franco (e de um seu ministro cheio de apetite, Fernando Henrique Cardoso, ainda esquentando o motor para os futuros oito anos de gestão). O país sediou a famosa Eco 92, a também inédita cúpula mundial sobre clima e ambiente. Não menos impactante foi o horror do Massacre do Carandiru, 111 presos indefesos chacinados com impiedade da PM paulista.

No Rio Grande do Sul, mais modestamente, devemos anotar a visita do Dalai Lama e uma rara reeleição em Porto Alegre, o mesmo partido, o PT, engrenando a segunda de quatro gestões sucessivas na prefeitura. E aqui, talvez mais do que em outras partes do Brasil, ganhava corpo o sonho de integração regional na forma do Mercosul, que no ano anterior, 91, tinha ganhado a primeira cara visível, com o Tratado de Foz do Iguaçu, o primeiro documento a englobar os quatro países-membros originais.

Para dizer de modo breve: 1992 foi uma evidência de que ingressávamos em outro momento histórico, posterior à Guerra Fria, esta o ambiente e horizonte histórico em que tudo havia se movido desde a Segunda Guerra. O termo “pós-modernismo” ganhava destaque, e falava-se em “globalização” ainda com ressalvas e enormes interrogações, porque as barreiras nacionais à circulação de bens, serviços e pessoas eram ainda firmes e fortes. Quem podia prever que ruiriam com tanta velocidade?

Pensar o local em época global

Pois foi justamente neste momento, que se poderá qualificar como globalizante sem muita dificuldade, que nasceu Nós, os Gaúchos. Reação ao fenômeno europeu? Caipirice? Da parte dos organizadores, não havia qualquer intenção restauracionista, nem mesmo saudosista; pelo contrário, o caso era tomar uma atitude freudiana, de discutir o tema para justamente tentar entendê-lo criticamente, com distância.

Não é possível citar todos os colaboradores que aceitaram o convite: foram ao todo 58 pessoas, que resultaram em 55 textos, de grande valor até agora, numa organização em oito seções – lembro com clareza da tarde em que o Sergius e eu, tomando um cafezinho na Editora, repassamos os textos e os agrupamos por afinidades temáticas, bolando para cada conjunto um título: Nós e o Resto do Mundo; Nós Quem?; Então nos Pilchamos; No Tropel da Memória; Sentinelas de Quê?; Fandango da Cultura; A Cidade que Não Está no Mapa; e, finalmente, Atrás da Alma Macanuda.

Uma lista eloquente é a dos colaboradores agora já falecidos. São eles: Sandra Pesavento, Décio Freitas, Rovílio Costa, Oliveira Silveira, Barbosa Lessa, Carlos Reverbel, Nelson Werneck Sodré, Arnaldo Campos, Luiz Pilla Vares, Mozart Pereira Soares, Paulo Hecker Filho, Cyro Martins, Moacyr Scliar. Sem dificuldade o leitor pode imaginar o valor da contribuição de cada um deles, todos inteligentes e com coisa a dizer, inclusive o carioca Werneck Sodré, que recordou em seu texto dos cinco anos que passou em Cruz Alta, a partir de 1950.

Dá vontade de comparar aquele ano com o presente, perguntando se as reflexões de então caberiam a 2012. Sim? Melhoramos ou pioramos? Em grande parte, o tempo não parece ter passado.

Por exemplo: no livro se manifestaram vozes identificadas com o Tradicionalismo, como Barbosa Lessa e Nico Fagundes, assim como gente notoriamente crítica a ele, como José Hildebrando Dacanal e Tau Golin. Debate vivo ainda. Mas também no livro foi impressa a primeira versão da Estética do Frio, de Vitor Ramil, texto de impressionante impacto de então em diante, assim como um texto agudo de Luciano Alabarse sobre certo traço autodestrutivo da vida mental gaúcha.

O livro mantém atualidade, em geral. A globalização prometida em 92 já deu algumas voltas no planeta, teve alguns solavancos e encontra agora a China e o Brasil como protagonistas no planeta – nada que pudesse ser pensado com clareza vinte anos atrás, quando o Brasil importava pouco (nos dois sentidos da frase), e do Oriente extremo só se ouvia a voz do Japão e dos Tigres Asiáticos.

A fantasia liberal de que estava tudo resolvido e havíamos chegado ao fim da história revelou-se uma tolice; em contrapartida a esquerda não conseguiu formular um novo modelo de sociedade para além do verdismo, da sustentabilidade, do combate à corrupção, nos melhores casos.

Aqui no Estado, muito fizemos de bom de lá para cá. Pense o leitor no Porto Alegre Em Cena, que iniciou em 94; na revelação pública do talento do cientista e pensador Ivan Izquierdo, ocorrida em 95;

na Bienal do Mercosul, com primeira edição em 97; no primeiro Fórum Social Mundial, em 2001,que botou Porto Alegre num mapa planetário inédito; na invenção do StudioClio em 2005 e do Fronteiras do Pensamento em 2006; na quantidade apreciável de CDs, exposições e livros (muitos escritores publicam direto fora daqui, desde então). Não, não foi só a adesão ao Tradicionalismo que cresceu, e nem só ele representa reação contra a macdonaldização do mundo.