sábado, 8 de agosto de 2015


RUTH DE AQUINO
07/08/2015 - 20h07 - Atualizado 07/08/2015 20h07

A quem interessa a queda de Dilma

Se Dilma renunciar, ou se sofrer impeachment, Lula é quem mais ganhará. Quem disse que a política é linear?

Numa bolsa de apostas apartidária, livre e intuitiva, poucos hoje investiriam seu dinheirinho na permanência de Dilma Rousseff como presidente por mais três anos e meio. Não sou a favor do impeachment de Dilma. Ainda não surgiram provas irrefutáveis de sua desonestidade, apenas de sua incompetência na gestão econômica e política. Por enquanto, Dilma não é Zé Dirceu. Não parece ter a ganância do companheiro.

O que pode manter Dilma no Planalto? Numa crise econômica provocada por ela mesma e pelo PT, e que nada tem de passageira, a presidente precisa de apoio para recolocar o país nos trilhos. Urgente.

Dilma não pede uma vaquinha, apenas paciência. Pede união a quem pensa “só em si mesmo”. Não tem coragem de mostrar na TV, na galeria dos egoístas, a foto de Eduardo Cunha – quem, mais que ele, tenta tumultuar? A pauta-­bomba do presidente da Câmara é clara: inviabilizar Dilma, derrubar a presidente por estrangulamento e por meios legais. PDT e PTB já aderiram ao motim e anunciaram a saída da base aliada.

O Brasil cai no tal alçapão mostrado pelo ator José de Abreu na TV. Os apelos de Dilma não encontram eco, só barulho. Mas é patética a tentativa do PT de intimidar o brasileiro com a alternativa D ou D: “Dilma” ou “Ditadura”. Isso não existe.

De onde pode vir o apoio para Dilma se manter? Da população, não: só 8% aprovam seu governo e 71% a reprovam, segundo pesquisa Datafolha. Da Câmara, jamais – o Planalto considera Eduardo Cunha “ingovernável”. Do Senado, depende do sedento Renan Calheiros. O vice Michel Temer foi o primeiro a constatar o lugar vago da presidente, ao dizer que “alguém” precisa unir o Brasil. Quem será esse alguém? Temer jogou a toalha como articulador. Ou puxou o tapete. A semana dramática culminou em apelos petistas ao PSDB e aos empresários.

Nenhum presidente governa sozinho. Essa fórmula não fica de pé. Chico Buarque cantava que “é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”. O ar que emerge dos panelaços hoje cheira a azedo. Dilma descobrirá que não pode fazer troça de manifestações populares. O humor, nesses casos, vira provocação. Se Dilma negociar sua saída do Planalto em nome da governabilidade e ceder sua cadeira ao vice Michel Temer, quem ganhará com isso? Se Dilma sofrer impeachment, e levar junto o vice, com convocação de novas eleições, quem será o mais forte adversário do novo presidente, seja ele do PMDB ou do PSDB?

Em ambas as hipóteses, Lula é quem mais ganhará. Ganhará fôlego para a eleição de 2018. Ganhará liberdade para aumentar as críticas a “tudo que está aí” – como vem fazendo de forma subliminar. Jogará a conta no novo governo e nos economistas liberais. Dirá que sabe como fazer o Brasil crescer. Os remédios amargos para curar o país do “mal de Dilma” não serão mais ministrados pelo PT.

“O Lula é um animal político, dos mais sagazes e mais capazes de manipular a opinião pública”, disse Roberto Romano, cientista político da Unicamp, Universidade Estadual de Campinas. “Lula tem uma liderança inconteste, mesmo em baixa nas pesquisas. A prisão do Dirceu foi um golpe, mas ele já isolou o companheiro. Com Lula é assim: os ônus vão para os auxiliares. Desde o Getúlio (Vargas), não existe personagem mais rápido para se reorganizar. Saindo Dilma, poderá bater sem pudor no Levy, na terceirização. Dirá que Dilma não seguiu a linha dele, e que ele é a salvação da lavoura.”

Não sou a favor do impeachment de Dilma. Também não acho bonito o cenário de Dilma sangrando até o final, sem base e sem chão. A continuidade da presidente interessa à economia, pois o impeachment agrava a crise. Interessa a Serra e Alckmin, que sonham em ser candidatos tucanos em 2018. Interessa à parte do PMDB que quer disputar com alguma viabilidade a Presidência – leia-se o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes. Interessa à terceira via, Marina Silva. Interessa a todos que odeiam tanto o PT que têm medo de fortalecer Lula para 2018. Paradoxo? A política nunca foi uma ciência linear.

Não vejo ninguém capaz de unir o país, nem na base aliada nem na oposição. Faltam líderes com credibilidade. O melhor para o Brasil seria que a presidente tivesse habilidade para dialogar com as forças políticas e a população. Utopia.

Enquanto o PT tiver a cara de pau de defender que evitou por seis anos que a crise internacional chegasse ao Brasil, que o país vive “problemas passageiros na economia” e que reprovar Dilma equivale a nos jogar nos braços de uma ditadura de direita, será difícil reconquistar a população. Chamar críticos de trouxas e fascistas é desespero de causa. Diz o PT: “Hoje, há uma pessoa capaz de evitar uma grave crise política no país: você”. Não diga! “Juízo”, aconselham mamãe Dilma e papai Lula. O que você fará no dia 16?


08 de agosto de 2015 | N° 18252 
NÍLSON SOUZA

TELEFONE SEM FIO

Caos em Porto Alegre: arrastões no centro da Capital, tiroteios em diversos bairros, assaltos nos engarrafamentos de trânsito e muita troca de mensagens nas redes sociais, com avisos alarmantes e notícias sobre ocorrências policiais. Assim começou para os gaúchos uma semana marcada por paralisações e protestos de servidores públicos com salários atrasados. 

Só que não. A única coisa real desse cenário é a compreensível revolta dos trabalhadores com o parcelamento de seus salários. Tudo o mais faz parte de uma onda de boatos que provocou fechamento antecipado de lojas e causou pânico nas pessoas.

O boato é filho do medo e tem a maldade como madrasta. Nem sempre é intencional. Quando fiz meu estágio de Educação Física, uma das brincadeiras que gostava de fazer com as crianças na hora do “volta à calma” era a do telefone sem fio. Inventa-se uma frase secreta, de preferência com certa complexidade, dispõe-se a garotada em fila ou em círculo, e o primeiro conta a historinha em voz baixa no ouvido do segundo, que repassa ao terceiro e assim por diante. O último diz em voz alta o que ouviu – e, invariavelmente, o resultado é desastroso, engraçado, com muita coisa diferente daquilo que foi proposto no início.

Pois o telefone sem fio, tanto o aparelho quanto o da brincadeira, é agora uma realidade. Qualquer pessoa tem poder para lançar uma afirmação, uma suposição ou até uma maledicência – e a tecnologia da retuitagem faz o resto.

Claro, o boato é antigo como o mundo. Há incontáveis exemplos na história da humanidade de fofocas que interferiram nos rumos dos fatos. Em tempo de guerra, mentira é como terra – diz o ditado. A própria imprensa foi rotulada de fofoqueira durante anos, o que a obrigou a desenvolver mecanismos de checagem e transparência para reconquistar a confiança do público. Não que esteja totalmente livre de erros e até de desvios éticos. Ainda ocorrem. Mas agora essa pecha de pouco confiável está passando para as redes sociais.

Durante o dia confuso do início da semana, os jornalistas e os veículos de comunicação foram muito pressionados a divulgar as informações sobre os tais arrastões e assaltos que cidadãos sérios e preocupados repassavam aos amigos. Poucos profissionais, porém, caíram na armadilha da boataria.

Acho que nos saímos satisfatoriamente desse deprimente e nem sempre bem-intencionado telefone sem fio.

terça-feira, 4 de agosto de 2015



04 de agosto de 2015 | N° 18247 
CARPINEJAR

A minha primeira carteira de motorista

Tirei a minha primeira carta de motorista dentro de um supermercado.

Tinha cinco anos. Já não entrava mais no banquinho de bebê do carrinho, muito menos me equilibrava na grade de trás, junto com os produtos.

A mãe precisava me ocupar. Queria que não incomodasse para comprar salgadinho, bolacha recheada, sorvete e refrigerante. Ela sabia o perigo que era qualquer criança de pé e sozinha, com a possibilidade de mexer nas prateleiras com liberdade.

Lembro claramente quando, numa tardezinha de sexta-feira, ela me ordenou:

– Hoje, você leva o carrinho. Toma! – Eu?

O mercado estava lotado, véspera de Carnaval.

Não explicou como se manobrava. Não me deu aula de direção. Não treinou balizas. Não realizei nenhum psicotécnico, exame médico e prova teórica.

Entregou o veículo com displicência, avaliando o ato como fácil e instintivo.

O “toma” me marcou definitivamente. Eu merecia um tutorial. Afinal, o que há de gente que nem consegue pilotar um guarda-chuva e vive batendo em quem está se protegendo nas marquises.

De uma hora para outra, tornei-me o responsável pelas compras da casa. Não lia e nem escrevia, e já dirigia carrinho de supermercado.

Aquilo me envaideceu, meu primeiro grande passo de adulto, e também me enervou, talvez fosse o meu primeiro grande tropeço de adulto.

Assumi o comando da barra com as duas mãos, tremendo, suando barbaridade, mal enxergava um palmo à minha frente.

Cauteloso com a função, comecei devagarinho, a 0,01 km/h, mas ela me pediu que andasse mais rápido pois não contava com a noite inteira.

Foi quando colidi com o enorme traseiro floreado de uma senhora selecionando verduras.

– Uiii! Também foi a primeira vez que fiz uma mulher gemer na vida.

– Olhe por onde você anda, menino! – ela protestou.

Em vez de me apoiar, a mãe engrossou o coro:

– Mais atenção para não atropelar as pessoas, senão tiro o carrinho de você.

Eu não havia pedido para dirigir, mas a arte materna consistia em transformar suas imposições em nossas escolhas.

Segui por mais quatro corredores, já rezava para que aquilo terminasse logo, que a listinha encurtasse de repente, que a mãe não entendesse mais sua letra.

Na grande quina das bebidas com os itens de higiene, realizei uma curva muito fechada e não vi a pilha de galões de clorofina em promoção.

Dei no meio: garrafas voaram para todos os lados. Criei um lago de água sanitária na entrada dos caixas.

Lavei o súper e instalei um pânico de rodos, panos e vassouras entre os empacotadores.

O cheiro da água sanitária vem junto com a lembrança. Inspiro com força até umedecer os olhos, e recordo de cada detalhe desse entardecer emocionante, em que comprei minha primeira carta de motorista dentro de um supermercado – e não saiu barato para o Zaffari.

sábado, 1 de agosto de 2015



02 de agosto de 2015 | N° 18245 
MARTHA MEDEIROS

O primeiro beijo


Se antes as vozes eram graves, suavizam. Se antes havia cerimônia, ela se desfaz assim que os lábios se desgrudam.

Para quem tem Woody Allen como ícone, é imperdível o documentário sobre sua vida e obra. Não sei se ainda está em cartaz quando fui ao cinema, havia menos de 10 pessoas na plateia, não é exatamente um blockbuster. 

Durante o apanhado que o filme faz da carreira deste cineasta singular, aparece uma cena de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa que considero genial: o cara convida a personagem de Dianne Keaton para ir ao cinema e depois, ao saírem caminhando pela calçada, em meio ao papo, ele estanca de repente e diz a ela: Que tal se a gente se beijasse de uma vez para terminar com essa tensão e irmos comer alguma coisa?. Ela concorda, ele a beija por dois segundos e então voltam a caminhar e a dar prosseguimento à conversa do ponto onde haviam parado. Simples assim.

Se a cena parece boba, não é. É mais um acerto do olhar afiadíssimo do diretor para os detalhes que fazem das relações humanas o que elas são: um universo repleto de peculiaridades. O que pode ser mais potente do que um primeiro beijo? Pense. Vocês dois estão ali conversando, ou bebendo, ou dançando, ou fazendo qualquer outra coisa prosaica. Já há um clima no ar, mas ninguém confirma, pode ser apenas um delírio de uma das partes. Nada parece estar acontecendo, mas se estiver acontecendo de fato, só passará a valer a partir do primeiro beijo. Antes dele, era uma coisa. Depois dele, well...

O primeiro beijo transfigura a ação. Se antes as vozes eram graves, suavizam. Se antes havia cerimônia, ela se desfaz assim que os lábios se desgrudam. Se antes eram apenas bons amigos, agora se instalou a indefinição. O primeiro beijo remete a uma nova fase, a um novo feitio de relacionamento – ou acaba tudo, porque tem isso também: pode ser uma decepção e a fantasia terminar ali mesmo. Mas é raro: o primeiro beijo dificilmente age como finalizador. O mais comum é o primeiro beijo ser inaugural.

O primeiro beijo acaba com a tensão e traz de volta à cena essa mesma palavra, só que com o “n” a menos. O primeiro beijo traz a promessa de um segundo beijo, um terceiro, um quarto – principalmente um quarto.

O primeiro beijo faz valer a escova no salão, a depilação em dia, o Trident mascado momentos antes.

O primeiro beijo, se for muito ruim, ao menos aconteceu. Fim de estresse. Ninguém espera mais nada e a noite não foi totalmente perdida, ao menos ficaram esclarecidas as possibilidades (ou impossibilidades) de futuro.

Mas se for muito bom, pode levar você às nuvens ou até mesmo a lugares mais arriscados, como a um altar.

Em tempos de pegação em que não existe amanhã, pode parecer que escrevi esse texto sob efeito de um alucinógeno, mas quem acredita que o romantismo ainda sobrevive, mesmo respirando por aparelhos, vai entender. E lembrar.


02 de agosto de 2015 | N° 18245 
CARPINEJAR

Ratoeira do relacionamento


Se você dedicar seu mundo inteiro a uma pessoa, a entrega poderá ser vista como submissão. Você que está mergulhado no amor não percebe. Para você, é somente amor. Não representa obediência, escravidão, bajulação.

Não mede esforços para agradar sua companhia, para atendê-la, para fazê-la feliz.

É capaz de se endividar em segredo para corresponder suas expectativas. É capaz de omitir suas vontades para privilegiar os desejos dela. É capaz de não respirar alto dentro de casa para não atrapalhar.

Ela sabe que você é todo dela – eis o problema que também deveria ser a solução (afinal, ser todo de alguém é a premissa do amor).

Mas o alimento é a isca do veneno e você foi fisgado pela ratoeira do relacionamento: emparedado, encurralado, dependente, viciado, sem anticorpos, sem imunidade, sem defesa, preso em sua idealização.

Já se declarou ao extremo, eliminou qualquer incerteza de seu coração, assinou o atestado de óbito da solteirice. Sua doação não impõe mais desafio, não exige a reconquista de outra parte.

Está soterrado pela própria generosidade. De tanto dar, banalizou seu valor. Sua existência ficou barata. É um precatório a perder de vista.

Diante da exposição absoluta dos sentimentos, não é de duvidar que ela esnobe suas ações, conte que você come nas mãos dela, menospreze suas inúmeras gentilezas e deboche de suas constantes delicadezas.

Tornou-se inofensivo e previsível. Assumiu o risco de ser idiota e ingênuo, fragilizado em suas conexões com os amigos e familiares, absolutamente constrangidos com sua mendicância afetiva.

Atravessa um dilema sem saída. Ela jamais entenderá o peso de suas decisões, pois não mostrou seu sacrifício dia a dia, quis fingir uma naturalidade dos presentes, mimou e escondeu o trabalho por detrás de cada gesto, apresentou uma facilidade que não existia. 

Assim como pode tentar efetuar uma reprise de suas realizações dentro do namoro, apresentar os investimentos feitos, justificar sua abnegação, só que será inútil, não há estorno da espontaneidade, ela dirá que você está jogando na cara o que ofereceu de estorno da espontaneidade, ela dirá que você está jogando na cara o que ofereceu de graça, que vem cobrando os juros de sua falsa bondade.

Esta é a parada mais dura do romance, não vejo conserto da situação.

Ou está numa relação em que os dois entregam tudo ou tudo o que entrega será sempre nada.


RUTH DE AQUINO
31/07/2015 - 20h31 - Atualizado 31/07/2015 20h34

O mau pagador de promessas

Você precisa comprar a pauta-bomba de nosso governo: cortaremos na carne, na sua carne, morô?


Devo, não nego. Pagarei quando puder. E com a ajuda de vocês. Governadores, prefeitos, deputados, senadores. Mas apelo sobretudo a você. Você pai ou mãe de família, que perdeu seu poder de consumo, perdeu o emprego, perdeu salário e crédito, perdeu conforto e esperança, perdeu economias, perdeu sua lojinha, sua microempresa, seu apartamento, seu carro. Perdeu até as estribeiras, porque se sente intimidado por gangues das ruas e dos palácios.

Você precisa vestir minha camisa, que é a camisa do Brasil, agora em tamanho menor devido à dieta argentina. Você tem de acreditar, mesmo que o PT tenha provado ser um mau pagador de promessas. Eu e o Guido no ano passado pedalamos a mesma bicicleta, aquela de dois lugares, para atropelar todas as contas que atravessavam nosso caminho glorioso. Mesmo assim você precisa se sacrificar.

Você precisa nos ajudar a manter bem altos os lucros dos bancos, porque eles sempre se dão bem, já reparou? Com a ajuda de cortes, câmbio e juros, os grandes tiveram lucros históricos. Você precisa aceitar calado a redução do salário, você precisa cuidar de seu rombo particular. Porque o meu rombo no primeiro semestre foi inédito na história, um deficit de R$ 1,6 bilhão de janeiro a junho. Um rombão, tudo é aumentativo por aqui, mensalão, petrolão, eletrolão.

Você precisa reunir a família, assim como eu reuni os meus parentes próximos e distantes, os governadores dos Estados. Para explicar que a gastança e o desperdício têm de parar. E, claro, eles entenderam que, se eu for atingida, eles vão junto. Como se não bastasse o Brasil perder selo internacional de bom pagador, ganhará o selo de mau gastador.

Você precisa sobretudo comprar nossa “pauta-bomba”, que é a seguinte: cortaremos na carne, na sua carne, entendeu? Não falo de churrasco de fim de semana, esse já era. Falo de cortes mais nobres. Cortes de gastos públicos, que eu e o Levy prometemos. Vamos cortar no sal grosso: no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), na Saúde e na Educação. Morô? Não, esse verbo não, lembra o sobrenome daquele juiz que não larga o meu pé nem o de meus companheiros empreiteiros. Juiz posudo, metido a italiano da gema, com ternos bem cortados e essa obsessão de lavar tudo a jato, como se a água e meu governo fossem acabar amanhã.

Você sabe que tem gordura nos hospitais e nas escolas, não? Gordura no chão, nos corredores, nas salas de cirurgia e de aula. Ah, você deixa esses itens do orçamento doméstico para cortar por último? Você preserva ao máximo a saúde e a educação de sua família e prefere cortar primeiro os supérfluos? Entendi: é porque você valoriza a vida e o futuro deles e a oportunidade real de crescimento digno e sustentável.

Por isso a classe média não vai para a frente, cai no cheque especial, paga juros escorchantes no cartão de crédito. E a gente (nós e os intelectuais do PT) tem ojeriza a esse pessoal conservador, não afeito a riscos, enfim, uma classe média reacionária. Não é uma categoria politizada. Além de ser gigante, difícil de ser manobrada, a classe média cultua a ideologia do bem-estar da família. E ponto.

Você também sabe que a gente gosta de dar esmola aos pobres e de adular os ricos. É a tal governabilidade, uma receita infalível. Posar de mãe de miseráveis e se locupletar com os grandes projetos. Vimos agora que o nuclear entrou na dança premiada. Minha geladeira vive abarrotada de energéticos para aguentar o tranco de nossa House of Cards.

Graças a Deus que lá também, no Congresso, acabou a mamata. E também a proteção que dávamos ao ex-PMDB comportado de Sarney. Agora o Congresso quer me derrubar, prefere o diretor da escola, aquele que parece uma esfinge e não diz nada, você sabe quem é, só espera mais um passo meu em falso. Bota falso nisso. Agosto começou e deveria ser menor. Vou arrumar umas viagens internacionais.

Já nos livramos da Catta Preta, a advogada de delatores que se mudará para Miami por medo. Você também tem medo, não? É a lógica de gangues que impera no país. Viu as cenas no Brás, em São Paulo, com cidadãos, muitos idosos, cercados e roubados por abutres? Você se sente ameaçado por taxas e impostos, por assaltantes, golpistas e policiais, por empresas de serviço, todo mundo tascando um pedacinho seu? Tente um pacto, como eu.

Esqueçam minhas pedaladas fiscais, me ajudem a aprovar minhas contas no TCU, não deixem que a Caixa e o Banco do Brasil cobrem de mim mais de R$ 1 bilhão em taxas dos programas sociais. Reclamem menos da inflação de hoje porque ela tende a piorar amanhã. Não critiquem inaugurações de clínicas sem médicos ou fechamento de escolas sem professores. Não somos um governo-bomba.


01 de agosto de 2015 | N° 18244 PALAVRA DE MÉDICO
J.J. CAMARGO

PÉROLAS PORTUGUESAS


As rusgas que os patrícios adoram fomentar na defesa da língua portuguesa


Passar uns dias em Lisboa é sempre uma maravilha. A cidade é linda, a mistura do novo e do decadente tem uma harmonia que comove, os resíduos da imponência histórica são impactantes, a culinária é original, o povo é afável e sempre se renova a promessa de voltar, não importa quantas vezes o ritual tenha se repetido.

Quando se está em companhia de outros brasileiros, é inevitável que se passe a limpo as últimas rusgas que os patrícios adoram fomentar na defesa intransigente da língua portuguesa, um embate ainda mais hilário se aliado à inabalável lógica lusitana.

Na noite de Lisboa, à espera do jantar, jorraram histórias maravilhosas:

O cirurgião paulista toma um táxi no aeroporto:

– Para onde vamos? – Vila Galé.

– Desculpe, mas aqui em Lisboa tem várias, qual o endereço?

– Não tenho o endereço.

– Como vou levar-te a um sítio se nem sabes onde é?

– Fica perto do Centro de Convenções.

– Nunca ouvi falar!

– O senhor não sabe onde é o Centro de Convenções em Lisboa? Não acredito!

– Nunca ouvi falar! – Bom, fica junto da ponte 25 de Abril!

– Bom, essa toca eu conheço, então vamos para lá. Pode ser que achemos!

Quando se aproximam, se vê o prédio enorme com letreiro gigante: Centro de Congressos de Lisboa.

– O senhor está vendo? Este é o Centro de Convenções que eu falei!

– Raios, o senhor tinha que ter falado Centro de Congressos, porque convenção, para nós, é um acordo que se pode fazer entre duas pessoas, e eu não saberia nunca do que estavas a falar. Pois!

Esposa de conferencista brasileiro acorda desconfortável com a altura excessiva do travesseiro. 1397124194O marido solícito liga para a mucama e pede a troca por um travesseiro mais baixo. Cinco minutos depois, a portuguesa está à porta com a encomenda. O marido recebe o travesseiro, agradece, e se prepara para fechar a porta, mas ela continua imóvel.

– Desculpe, alguma coisa errada?

– Não exatamente errada mas, para se completar a operação, o senhor deve me devolver o outro travesseiro porque, afinal, foi solicitada uma troca, pois não?

Final da sessão da manhã, congresso no topo de um edifício de 20 andares, saguão cheio, todos loucos para descer, e abre-se a porta do elevador gigante. O médico brasileiro, no piloto automático, pergunta:

– Desce? O velhinho ascensorista, irritado com a estupidez da questão, responde calmamente:

– Este elevador só não faz movimentos rotatórios e para os lados. Tanto sobe quanto desce e no momento estamos parados!

Uma pergunta que ficou: quanto tempo dura um passeio de 20 andares com o elevador cheio de gente se divertindo às custas de um infeliz distraído?

Voo da TAP, classe executiva, casal sofisticado, mulher loira e afetada. Aproxima-se o chefe dos comissários e pergunta:

– Boa noite. Gostariam de jantar?

A mulher põe os cílios postiços a vibrar e devolve a pergunta:

– Quais são as opções? E a lógica portuguesa, que estabelece uma coisa de cada vez, prevaleceu:

– Sim e não! Casal de brasileiros, em viagem de carro pela Europa, na era pré-GPS, se atrapalha num trevo na zona de Viseu e pergunta a um velhinho que passava:

– Por favor, meu senhor, esta estrada vai pra Espanha?

– Melhor que não vá, faria muita falta aqui!

Brasileiro, na classe executiva da TAP, acorda lá pelas 3h da madrugada com vontade de ir ao banheiro. Quando surpreende uma fila de quatro necessitados, resolve recorrer àquele banheiro que, em geral, existe entre as classes executiva e econômica. Quando se aproxima da zona presumida, percebe que vem um baixinho da área econômica, com aparente mesma intenção. É bruscamente interceptado pelo comissário, que o repreende:

– Econômica? Lá no fundo, lá no fundo!

O gajo, constrangido, se retira e, então, o comissário gentilmente orienta o brasileiro:

– Quanto ao senhor, isto aqui é um armário, não se trata de um banheiro, podes voltar pro seu lugar!

Há alguns anos, eu tinha sido convidado para uma conferência em Coimbra e fui apanhado por um grupo de cirurgiões no aeroporto de Lisboa para a viagem de carro. Na saída, passamos por uma placa que anunciava: Perdidos e Achados. Ignorando uma das melhores oportunidades de calar a boca, comentei:

– Engraçado, no Brasil, nós dizemos Achados e Perdidos.

E, então, o mico que podia ter sido evitado:

– Aqui estamos acostumados a perder antes de achar!

Bem feito.

quarta-feira, 29 de julho de 2015



29 de julho de 2015 | N° 18241 
MARTHA MEDEIROS

Anacrônica

Não me preocupo em ficar velha (mentira). Desde que nascemos, estamos envelhecendo, cada dia com menos joelhos, visão e memória. Sabendo levar com humor, tudo certo. Mas ficar obsoleta é preocupante. Já começo a antever a solidão que me aguarda. Onde catar meus pares? Será que me transformarei naquelas malucas que zanzam pela noite falando sozinhas em busca de uma realidade que não existe mais?

O Facebook não tem culpa de tudo, só de uma parcela da minha sensação de anacronismo: leio os posts de amigos inteligentes e espirituosos, e tudo me parece tão esperto, moderno, atualizado, divertido, bem sacado e oportuno, que acabo me considerando uma personagem de filme de época que esqueceu de sair de cena.

Além do conteúdo das postagens, todos sabem corrigir defeitos em fotos, baixar vídeos complicados, colar matérias, fazer intervenções nas imagens e eu matei quase todas essas aulas. Até o Papa usou um tablet para se registrar como peregrino da próxima Jornada Mundial da Juventude. Outro dia, um amigo que é respeitado no Brasil inteiro, craque em seu ofício, um cara antenado, postou uma singela pergunta no Face: alguém me ensina como fazer parágrafos nos comentários sem enviá-los antes de terminar de digitar? Alívio para minha humilhação. Também não sei, também não sei.

Mas não estou obsoleta só nas redes sociais. É em tudo. Meus conceitos caducaram. Não espalhe, mas ainda gosto de algum romantismo, aprecio quem entra no jogo da sedução, faz seu papel, curte o flerte – nem precisa estar tão apaixonado, basta que encene, decore suas falas. Até dispenso o amor, fico com o simulacro, acho que evoluí (se bem que o fato de ainda gostar da mise-en-scène já me condena – e nem ouso confessar que, quando há amor de verdade, fico ainda mais feliz).

Feliz! Coitada de mim, que ainda arrisco trazer a público palavra tão retrô. Angustiada, medicada e vulgar, é isso que esperam de uma mulher condizente com seu tempo.

Só que não tenho mais meu tempo. Ele não é ontem, não é hoje e o amanhã se assemelha a um gigantesco aspirador de pó – o pó sou eu. Estou soando dramática? Exagerada? Pois é, até isso é antigo.

Eu apoio o casamento gay, sou a favor da descriminalização do aborto, viajo sozinha quando dá na telha, meu trabalho me sustenta e ainda assim me sinto como se recebesse mesada de marido e não pudesse votar. Música eletrônica me atordoa, ostentação me nauseia e meus heróis, em vez de morrerem de overdose, estão chegando aos cem anos. Meu sonho de consumo é encontrar outros sobreviventes nesta ilha em que estou me exilando. E uma tevê que não envergonhe minha filha diante dos amigos – sou a única terráquea que ainda não tem uma de LED.

terça-feira, 28 de julho de 2015



28 de julho de 2015 | N° 18240 
CARPINEJAR

Não deixe de ir


Vejo o enterro como uma majestosa sessão de cinema.

Cada um que entra no velório é um derradeiro espectador de uma vida.

De uma vida que não irá se repetir.

Manteremos o respeito dos trajes negros e dos gestos comedidos para homenagear um idioma que se extingue, um jeito de falar que desaparece, um modo de amar que some do convívio.

Não há como não ser inesquecível. O cenário nos remete às salas antigas de exibição: o tapete vermelho e as cadeiras ao redor do caixão. É sentar e lembrar as principais cenas de uma longa trajetória.

Não se nasce impunemente, assim como não se deve morrer no esquecimento.

A despedida não traz apenas tristeza, mas uma confusão de sentimentos envolvida no olhar profundo. Saímos da pressa do presente, ausentamo-nos das obrigações e dos compromissos para eternizar o que o outro representou em nosso passado. O ritmo lento da recordação encharca os olhos. Não é mais o rosto que carrega a lágrima, é a lágrima que carrega o rosto.

A música composta de soluços, cumprimentos e sussurros ao fundo lembrará o piano dos filmes mudos. O batimento cardíaco é o nosso pianista.

Não há superfície que nos separe da sensibilidade das coisas. Não há pele nas palavras. Não há proteção para os ouvidos.

Ficaremos leves repetindo incessantemente os pêsames.

Apesar da dor, não podemos desperdiçar o momento, não podemos renunciar à chance de falar o que sabemos e abraçar os espectadores. É acrescentar um capítulo inédito ao romance.

Não importa quem conheceu mais ou menos o falecido, quem era mais próximo ou mais distante. O fim torna qualquer um íntimo. Todos têm o ingresso para a saudade.

Trata-se de um momento fundamental, o de montar o copião de uma biografia.

Ouvir as histórias alheias e dar-se conta de que não conhecíamos tudo.

Descobriremos um novo lado, uma nova personalidade daquele que partiu.

Talvez desvendar que um homem sério também era divertido, que uma mulher introspectiva também era apaixonada.

Filhos ganham versões diferentes dos pais, esposas têm a surpresa das palavras ditas aos amigos, maridos recebem recordações antes do namoro.

Os mistérios serão solucionados, os passatempos serão denunciados, os traumas serão desfeitos.

Os familiares emendarão, em ordem cronológica, fotograma por fotograma da infância, da adolescência, da maturidade e da velhice de seu parente findo.

As festas de aniversário de uma pessoa estarão reunidas numa só celebração.

O enterro é uma ilha de edição, onde se juntam fragmentos dos contemporâneos, relatos de interessados, causos dos colegas, com o propósito de resumir e entender o significado de uma alma.

Não deixe de se despedir de um amigo. Será a última e, ao mesmo tempo, a primeira vez que assistirá a uma vida por inteiro.

sábado, 18 de julho de 2015




Alimente seu coração apenas com os bons sentimentos,
aqueles que irão lhe render bons frutos,
esqueça os ressentimentos, não perca tempo
com magoas guardadas, isso não lhe fará bem,
libere boas energias, ame mais, sorria!
sorria para vida, abrace o amor, regue flores,
colha amores, ame! Acima de tudo ame desesperadamente
como se não houvesse tempo, plante e semeie o amor
onde você for, por onde andares exale um aroma suave
de alma pura e sem rancores, a vida é tão curta pra
ficar perdendo tempo com coisas fúteis e infrutíferas.
Por isso viva a vida com ternura e doçura.

(GORETH MAIA)

Fiquem com Deus



19 de julho de 2015 | N° 18231 
ANTONIO PRATA

Dormir é para os fracos

Quinze constatações a partir da paternidade: uma crônica de autoajuda para os que pretendem procriar – ou talvez, mais ainda, para os que não pretendem.

1 – Antes de ter filhos, eu era um vagabundo que ficava reclamando, sem razão, de não ter tempo pra nada.

2 – Depois de ter filhos, eu sou um pobre-diabo que fica reclamando, com razão, de não ter tempo pra nada. (Se hoje me dessem três meses com o tempo livre que eu tinha há dois anos, eu conseguiria aprender esperanto, escrever Anna Karenina e treinar pro Ironman).

3 – Se eu tivesse um minuto pra pensar a respeito da paternidade, provavelmente me daria conta de que estou vivendo um dos momentos mais gloriosos da minha breve passagem sobre a Terra: estou acompanhando o desabrochar de pequenos seres humanos feitos com metade dos meus genes e metade dos genes da mulher amada.

4 - Se eu não tenho um minuto pra pensar a respeito da paternidade é porque estou exercendo a paternidade, o que significa, entre outras coisas: tentar evitar que um desses pequenos seres humanos ponha na boca a mão que acabou de meter na fralda suja de cocô; tentar convencer o outro pequeno ser humano de que não dá para vermos o caranguejo, agora, pois o caranguejo mora em Ubatuba, nós moramos em São Paulo – e são duas e trinta e sete da manhã. Tais atividades, convenhamos, deixam pouco espaço para a contemplação.

5 – Felizmente, devido a uma simpática trapaça cognitiva, pregada pela seleção natural, o cocô dos nossos filhos nos parece muitíssimo menos repulsivo do que os cocôs do resto da humanidade. (Infelizmente, não a ponto de nos esquecermos que aquilo na fralda, nas costas, nas pernas ou na mão do pequeno ser humano continua sendo cocô.)

7 - Depois de ter filhos, os minutos destinados ao próprio cocô se transformam num raro e beatífico momento de paz pelo qual os jovens pais anseiam como um monge por sua meditação.

8 - (Não é incomum pais neófitos simularem dores de barriga para poderem se trancar no banheiro várias vezes ao dia e: ler rótulo de creme hidratante, dar “like” na foto do gato da prima, contemplar os azulejos num torpor quase místico).

9 - Ninando um bebê, me descubro capaz de executar funções com partes do meu corpo que, até ter filhos, julgava completamente ineptas. Consigo abrir e fechar uma maçaneta com o cotovelo – sem fazer barulho. Consigo regular o dimer com a bunda. Consigo abrir e fechar o mosquiteiro com o nariz. Coço o queixo na estante de livros, as costas no armário embutido, a testa no prato da samambaia. Se tiver uma única mão livre, posso fazer o solo de bateria do John Bonham, em Moby Dick, de trás pra frente – só não faço porque iria acordar o bebê.

10 – Antes de ter filhos, eu achava o fim da picada pais que trabalhavam com: babá, biscoito recheado, televisão no carro.

11 – Hoje, procuro uma folguista pro fim de semana (pago metade do meu salário e dou meu carro como bonificação), negocio “Só mais uma, já é o terceiro pacote!” e imploro “Não chora! Olha o filme do Senhor Batata! A Menina Moleca! A Galinha Pintadinha!”.

12 – Galinha Pintadinha é a imagem da Besta.

13 – Galinha Pintadinha é uma bênção divina.

14 – Dormir é para os fracos.

15 – Eu sou fraco.


19 de julho de 2015 | N° 18231 
CARPINEJAR

Mexendo nas feridas

Demoro a me recuperar dos tombos. Não aguento o período de recuperação. Sempre mexo nas cascas dos machucados. Nunca a minha pele teve a chance de se regenerar naturalmente. Passo do limite, começo retirando as bordas secas e invado o úmido da purgação.

Jamais me controlo, desde a infância.

Na escola, cutucava o pisado debaixo da classe. Ao apressar o seu fim, retomava o seu início. Não me movia pela curiosidade infantil e biológica de entender o processo, e sim para me livrar do incômodo. Óbvio que a calça do uniforme vivia manchada de sangue. Eu mesmo encontrava um jeito de me ferir e ampliar a data de validade da ferida.

Esfolar o joelho representava meses de recuperação. Transformava a expectativa convencional de uma semana em longo martírio de coceira.

Minhas pernas estão depiladas involuntariamente nas canelas. De tanto mexer nas batidas, criei cicatrizes onde não deveria constar nenhum sinal.

Acentuava a gravidade dos escorregões e encontrões do futebol.

Quem me dera se a minha impaciência estivesse reduzida à epiderme dos costumes.

Infelizmente, carreguei a mesma ânsia para dentro de namoros e de casamentos. Não percebia que as piores ofensas acabavam por aparecer no meio da briga (as que desencadeavam a discussão eram simbólicas, de menor gravidade).

Quando surgia uma insatisfação, não deixava esfriar. Não aceitava que cada um se aquietasse em sua solidão para sarar o ruído com silêncio e pensamento.

Não há como evitar acidentes e quedas na vida a dois, mas não realizava o simples curativo perante um revés: limpar a zona infeccionada das palavras, cobrir o assunto por dois dias e aguardar a melhora.

Já coçava com as unhas compridas. Já cavoucava a chaga. Já pretendia resolver na hora. Já pressionava a minha companhia a tomar uma decisão, a explicar seu posicionamento, a emitir uma sentença.

De algo muito tolo (uma piada no contexto errado, uma frase torta, um descontentamento com um gesto), convertia em tudo ou nada, naquele extremismo de exigir desculpa ou terminar a relação.

Não admitia a existência breve de uma pequena ferida. Não guardava as mãos. Não saía de perto.

Fixava-me no desentendimento a ponto de ampliá-lo em impasse.

O que é físico é também emocional.

Assim como no corpo, um ferimento na pele do orgulho, diante da insistência de insultos e acusações, pode dar origem a uma lesão crônica, que persistirá durante anos.

sábado, 11 de julho de 2015



12 de julho de 2015 | N° 18224 
CARPINEJAR

Casal brigando esquece que tem filho

Quando estou numa discussão de relacionamento ainda me pego guri, ainda me pego distraído. A mulher me pergunta algo simples e objetivo berrando e me perco no ponto de interrogação, somente presto atenção no agudo de seu timbre.

Ela questiona sim ou não, e rastejo indeciso num estado meditativo.

Com uma caneta nas mãos, faço de conta que não é comigo. Já me flagro tirando o canudo, reparando o estado da tinta, me desligo completamente das palavras. Diante da voz levantada, as palavras não são mais comigo, sou inteiro do silêncio.

É um estado de fuga que guardei da infância, no momento em que meus pais brigavam aos gritos. O palco permanece montado em minha memória: arrumados na sala, eu e os irmãos brincávamos de forte-apache enquanto esperávamos para almoçar.

Tudo ia bem, os cabelos estavam penteados e a mesa posta. De repente, a porta da frente batia, os lustres balançavam e a paz ia embora. Alguém saía de casa correndo, talvez o pai, talvez a mãe, e um seguia o outro.

A discrição não frequentava o nosso endereço, envolvia perseguição de carros, latidos desesperados no quintal, abraços histéricos e empurrões confusos.

Descobria que não teria almoço, nem sessão da tarde, muito menos tranquilidade.

A briga dava dois trabalhos: o de explicar aos vizinhos durante toda a semana o que aconteceu e o de acalmar o coração que nunca sabia ao certo o que estava acontecendo.

Eu me abstraía de propósito, recusando determinar se correspondia ao fim do casamento ou uma reiterada tentativa do papai e da mamãe de se entenderem e de serem felizes.

Os filhos desapareciam naquele instante para os pais, eles realmente esqueciam que eram pais. Casal quando briga esquece que tem filhos.

Alheios ao que escutávamos e à nossa posição vulnerável no front de batalha, retornavam para a sala, jogavam objetos nas paredes, soltavam palavrões que jamais poderíamos repetir e se xingavam mutuamente, com energia e disposição demoníacas.

Eu mexia cada vez mais no cocar de meu índio do forte-apache e em sua machadinha marrom. Fingia que não existia, diminuindo de tamanho, até me transformar num boneco e alguém me guardar na caixinha para brincar no dia seguinte.

Fixo na caneta e vejo que não me defendo do medo de gritos, apesar de adulto, apesar da paternidade.

Em vez de escrever qualquer coisa de útil, em vez de pedir socorro, vou desmontando a caneta no meio de uma nova e inesperada gritaria doméstica. 



12 de julho de 2015 | N° 18224 
MARTHA MEDEIROS

Inquietude pré-embarque

A cada vez que estou fechando a porta de casa para ir ao aeroporto, dou uma espiada mais demorada para a sala e penso: será que voltarei?

Julho, mês de férias. Momento de se preparar para a melhor coisa do mundo: viajar.

Na verdade, as três melhores coisas do mundo são comer, dormir e transar (coloquei em ordem alfabética, não em ordem de preferência), mas é viajando que desfrutamos para valer desses três grandes prazeres da vida. Não há rotina, não há horários, ninguém está nos apressando. O que pode ser mais excitante?

Pois estava, dias desses, conversando com quatro mulheres que vivem em trânsito pelo mundo. Ainda que sejam contumazes viajantes, elas admitiram que, a cada vez que compram uma passagem, sentem um temor incômodo que não sabem de onde vem. Estranho, tendo elas tantas milhagens acumuladas, mas não me surpreendeu. Também fico meio aflita antes de embarcar para um destino longe demais do meu quintal. Por um motivo tosco, infantil: fico achando que vou morrer.

Uma amiga que mora no Rio tem esta mesma sensação. Já somos seis (as quatro mulheres da primeira conversa, minha amiga carioca e eu). Você também? Então está na hora de a gente formar um grupo de apoio e tentar entender o que acontece.

Não é um medo racional, um medo de que o avião caia, por exemplo. As chances de ele cair são mínimas. Neste exato instante há várias centenas de aviões cruzando os céus do planeta e nenhum deles estará na matéria de abertura do Fantástico neste domingo (uma madeira, pelo amor de Deus! – toc, toc, toc).

Trata-se de um desassossego, mais do que um medo. Viajar é abrir um parêntese na vida, escapar de um esquema já organizado, se predispor ao desconhecido – e se despedir de quem fica. A cada vez que estou fechando a porta de casa para ir ao aeroporto, dou uma espiada mais demorada para a sala e penso: será que voltarei? Nem preciso dizer o que sinto ao dar um beijo nos familiares e trocar mensagens com os amigos: por um fiapo de segundo me passa pela cabeça que é a última vez que estou falando com eles. Qual a razão dessa neura descabida, se algo tão maravilhoso está para acontecer?

Deve ser justamente isso. Dá a impressão de que não merecemos este algo tão maravilhoso, de que teremos que pagar por este extremo deleite, não em cash, mas em sofrimento.

Culpa, em outras palavras.

Já soube de gente que, ao chegar ao aeroporto, mudou de planos: deu meia-volta e retornou para casa. Ufa, me sinto menos louca diante desses casos perdidos. Eu embarco com inquietação e tudo, e assim que o avião aterrissa do outro lado, estou uma tonelada mais leve e completamente esquecida do que até então me perturbava. A inquietação se autoextravia.

Aliás, embarco hoje e volto para a coluna daqui a duas semanas. Sem despedidas, por favor.

quarta-feira, 8 de julho de 2015



08 de julho de 2015 | N° 18218 
MARTHA MEDEIROS

Sem palavras

Acabo de ser apresentada ao trabalho de John Koenig, um web designer americano que lançou uma série na internet chamada Dicionário das Dores Obscuras (Dictionary of Obscure Sorrows). A intenção é nomear emoções ainda indefinidas. Qual é o nome para aquele desejo de desaparecer que nos acomete no meio de uma quinta-feira qualquer? Como se chama aquele frisson ao fazermos um ligeiro contato visual com algum desconhecido? 

Que palavra resumiria o desconforto de perceber que estamos apenas repetindo a história já vivida por tantos? E a angústia de que o tempo está passando cada vez mais rápido? A cada semana, Koenig posta belos vídeos de cerca de três minutos apresentando uma palavra inventada para conceituar tudo isso. O texto é inteligente, melancólico e comove. Como diz uma amiga minha: como é que ninguém pensou nisso antes?

O projeto é original (vale a pena dar uma olhada, está no YouTube), mas fiquei pensando: a gente precisa mesmo nomear o inominável? Me vieram à cabeça dezenas de situações que experimento e que nunca foram batizadas. Por exemplo, algo bom me deixar inexplicavelmente triste. Lembrar cenas de um passado remoto que não sei se aconteceram mesmo ou se inventei. 

Abrir meu coração e, ainda assim, parecer que estou mentindo. Ter a súbita consciência de que não faz sentido me preocupar com o que quer que seja. Não conseguir desviar os olhos do fogo. Estar numa festa e sentir como se estivesse vendo tudo aquilo de fora, como se eu não estivesse ali de verdade. Imaginar coisas terríveis acontecendo com quem mais amo, logo com eles.

Ao entrar nesse assunto, é inevitável lembrar a palavra saudade, que não existe no vocabulário de quem fala inglês. Anglo-saxões costumam sentir falta (I miss you), mas não possuem um substantivo que defina essa sensação de ausência dolorida. 

Nós possuímos e a usamos sem parcimônia. Nas redes sociais, declaramos sentir saudade de amigos, inimigos, de tudo e de todos, da última festa, do último beijo, do último churrasco, saudade de ontem e também dos velhos tempos, saudade dos outros, de nós mesmos, saudade de quem se foi para sempre e de quem viajou semana passada, saudade de sabores, de músicas, de turmas, de épocas. É tanta saudade assim? Ou o fato de termos uma palavra à mão é que invoca tamanha nostalgia?

Como escreveu Adélia Prado: a coisa mais fina do mundo é o sentimento. Ele não se presta a banalizações. Portanto, esses inúmeros insights que me ocorrem e que ocorrem também a você, sem que haja nenhuma palavra que os especifique e conceitue, talvez sejam os últimos meios de conceder algum lirismo à nossa existência. A poesia é o verdadeiro dicionário das dores obscuras.

sábado, 4 de julho de 2015



05 de julho de 2015 | N° 18215 
CARPINEJAR

Invasores

– Já que ele não vai ficar comigo, não vai ficar com mais ninguém.

Assim também esquece que ele jamais olhará novamente para sua cara. Tentar destruir a próxima relação de seu ex ou flerte postando mensagens ofensivas e insinuações na web ou até mesmo mandando prints de conversas antigas é atitude de recalcada. Desceu sem volta o seu espírito para o inferno mais remoto. Não há depois como salvar o respeito e a reputação. É gesto de megera, de bruxa, de burra, de psicopata, onde os fins justificam os meios.

Pode estar desesperada, louca, histérica, mas até o jogo da sedução é constituído de regras e etiqueta, não é um vale-tudo emocional, o que não é reciproco deixa de vigorar como realidade, cabe respeitar a decisão de sua companhia, mesmo que um dia tenha recebido juras. Nada de destituir a liberdade do outro, que tem todo o direito de reavaliar o trajeto, não querer o relacionamento e trocar de opinião. Nada de bancar a hacker e entrar em contas alheias em nome de uma dor-de-cotovelo.

Depois de perder o amor, é muito fácil perder o amor próprio e despencar para a grosseria.

Não é não, o não está a léguas de significar um charme, não é para insistir se não existe abertura, não é uma provocação, um desafio e uma oportunidade para provar o seu valor.

Se ele não quer ficar junto, não se rebaixe e, o mais grave, não busque rebaixar todo mundo. Não arraste inocentes para seu túmulo. Se está infeliz, não espalhe a infelicidade. Aceite a derrota e o fracasso com humildade. Não procure sofrer acompanhando a novela do amor recente nas redes sociais. Não fique investigando o perfil da nova namorada. Não faça comparações e conclusões distorcidas, não crie tumulto e fakes. Policial amador é criminoso.

Ele não quis permanecer a seu lado quando apresentou seu melhor, não é com o pior que mudará seu conceito. Compreensão e respeito são capazes de trazer alguém de volta, jamais mentira e invasão de privacidade. Isso serve para homens e mulheres.

Não provoque o desprezo. O desprezo é a paixão azedando, vinho virando vinagre, sem rótulo e safra para ser lembrado. Quando o sentimento acaba por uma das partes, é necessário ser amigo do tempo. O tempo cordial é a única esperança que resta.


05 de julho de 2015 | N° 18215 
MARTHA MEDEIROS 

SUTIÃS

 
Um sutiã pode ter um significado oculto. Funcionar como um abraço apertado. Uma amarração.

Minha profissão traz poucas inconveniências e muitos prazeres, o que torna o saldo altamente positivo. Uma das coisas a celebrar é o contato que tenho com pessoas que, mesmo desconhecidas, estabelecem comigo uma intimidade enriquecedora. Foi o caso de uma garota (acho que ainda posso chamar uma socióloga de 45 anos de garota) com quem tive uma adorável conversa dias atrás, no Rio de Janeiro.

Ela me contou sobre seu primeiro casamento e sua primeira separação, do quanto ficou abalada, de como fez para se reerguer, de como foi o processo todo. Fez um relato comovente de tudo o que aconteceu, mas não pude deixar de ajustar o foco num detalhe rápido que ela mencionou, daqueles que a gente costuma deixar passar batido. Em meio ao turbilhão de emoções que ela narrava, me disse: Depois do fim, eu já nem sabia direito quem era, nunca usei sutiã e de repente comecei a usar.

Encontramos metáforas onde menos se espera.

Separação: tem desamparo maior? Uma aposta que parecia estar dando certo de repente começa a fazer água, alguém que para você era a pessoa mais importante do mundo perde o protagonismo, a vida estruturada se dissolve, o amor dá lugar à mágoa, e mesmo quando não há mágoa ainda assim existe um abismo para se atravessar antes de chegar ao outro lado. Você precisa reconstruir sua identidade, não é mais a esposa de, o marido de, o amor da vida de alguém.

As declarações não se sustentaram, as promessas não vingaram, o destino foi mais forte que a idealização: fez cada um seguir carreira solo. Depois de tanta luta, tanta negociação, tantas tentativas de manter o acordo, chega a hora em que é preciso entregar os pontos, não há mais o que fazer a não ser partir e tentar de novo com outro alguém, quando as forças voltarem.

Mas, até que elas voltem, quanto medo. Da solidão, da saudade, do rumo desconhecido. Você agora é um, não dois. Já não tem quem segure sua mão. Está solto. E essa soltura assusta. E se eu cair?

Um sutiã pode ter um significado oculto. Funcionar como um abraço apertado. Uma amarração. Não usá-lo sempre foi uma atitude libertária, até que, um belo dia, você descobre que a liberdade virou um bicho-papão e você voltou a ser uma menininha assustada. O que mais deseja é se sentir presa, segura, acolhida.

O desafio das separações é fazer com que voltemos a nos sentir confortáveis com a soltura dos dias, confortáveis diante da incógnita do futuro. Não sei no que os homens se seguram quando se separam (minto: sei, sim), mas grande parte das mulheres recomeça a vida emocional se segurando nelas mesmas. Só então, aos poucos, iniciam outra revolução, uma nova queima de sutiãs, a fim de formar uma identidade mais firme que a anterior.

quarta-feira, 1 de julho de 2015



01 de julho de 2015 | N° 18211 
MARTHA MEDEIROS

Ainda Cristiano Araújo

Em uma cena de Birdman, o personagem Riggan Thomson, um astro em decadência, reflete sobre o que aconteceria se ele e George Clooney estivessem no mesmo avião e ocorresse um acidente fatal. Óbvio: Clooney estamparia as páginas de todos os jornais no dia seguinte, enquanto que a Thomson restaria uma nota de rodapé.

Farrah Fawcett teve a infelicidade não só de morrer, mas de morrer no mesmo dia que Michael Jackson. O senador Antonio Carlos Magalhães morreu em julho de 2007, três dias depois de um dos maiores desastres aéreos do país, notícia que monopolizou a imprensa por semanas. As mortes de Farrah e ACM ficaram em segundo plano. Não é preciso buscar outros exemplos: existe hierarquia na tragédia.

Gaúchos apegados à sua cultura podem ter considerado desproporcional a cobertura das mortes de Nico Fagundes e Cristiano Araújo, mas, sem entrar na discussão sobre o legado de cada um, o desaparecimento do cantor sertanejo teve todos os componentes para causar comoção – era jovem, talentoso (dizem os entendidos no gênero), um ícone nacional (também só soube agora) e morreu num acidente súbito ao lado de uma linda namorada. Não é páreo para o ocaso de um tradicionalista de 80 anos que transitava dentro das fronteiras do próprio Estado. Não é páreo em termos de notícia, que fique bem claro.

Ainda assim, a cobertura televisiva da morte de Cristiano Araújo causou espanto porque evidenciou a “alienação” de quem não sabia quem ele era. Alienação ou direito de escolha? Eu não apenas desconhecia Cristiano Araújo como também desconheço a maioria de seus colegas que compareceram ao velório, e não pretendo me atualizar sobre eles.

Não sei quem são os expoentes do axé e do forró, quem domina a cena do pagode atualmente, assim como muitos brasileiros talvez não saibam quem é Adriana Calcanhotto ou Marcelo Camelo – e muito menos quem é Tulipa Ruiz, Filipe Catto, Céu, Clarice Falcão. Vai do interesse de cada um. O problema é que, se a criatura vende milhões, é promovida a fenômeno, e ai de quem não capitular. Outro dia quase fui espancada por ter feito uma pergunta inocente: quem é Ludmila?

Houve uma época em que nossos ídolos eram os mesmos e vivíamos como nossos pais. Todos sabiam quem era Caetano, quem era Rita Lee, gostassem deles ou não. Agora os gêneros musicais deram cria, as tribos se multiplicaram e a tecnologia facilitou a popularização: há sucesso para todos os paladares – tantos, que é impossível acompanhar. 

Não há nada de errado em não saber quem era Cristiano Araújo e isso não significa que sua morte é desprezada, ela apenas não causa sensação de perda em quem não escutava sua música. A hierarquia do obituário obedece a critérios midiáticos, já a importância de cada um é medida não por números, e sim pela qualidade do encantamento que provocou em vida.