sábado, 12 de março de 2016



12 de março de 2016 | N° 18471 
DAVID COIMBRA

AS DUAS JUSTIÇAS DO BRASIL

Nós jornalistas adoramos entrevistar cientista político. Faz parte da nossa ânsia de encontrar objetividade no que é essencialmente subjetivo.

Vã ilusão. Um cientista político é uma contradição em si mesmo, porque política não é ciência.

Não existe nenhum cálculo ou experimento capaz de comprovar uma teoria política de forma irrefutável. A política é uma atividade puramente humana. Depende de humores, coincidências, vontades e desejos vis.

Pascal dizia que a História do mundo seria outra se o nariz de Cleópatra fosse maior.

Marx dizia que a História se repete a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Boa frase. Mas nem sempre verdadeira. No caso do Brasil, por exemplo, a História não cessa de se repetir como farsa.

Não é por acaso que cientistas e filósofos tentam explicar o mundo a partir da matemática. Porque a matemática é exata e demonstrável. Seria um alívio se conseguíssemos transformar cada fato da vida em uma fórmula matemática. Estaríamos salvos. Nossos problemas teriam solução lógica, e os psicanalistas iriam à falência.

Só que não é assim que funciona.

A mais científica das áreas humanas, a medicina, é inquietantemente inexata, porque lida com organismos vivos, que volta e meia se tornam imprevisíveis.

O jornalismo, a sociologia, a política, a filosofia, há muito que estudar nessas áreas, mas elas não são científicas.

O Direito também não é.

O ideal seria um Direito técnico e impessoal. Tudo teria de funcionar com precisão de máquina:

1. O povo elege seus representantes.

2. Os representantes fazem as leis de acordo com a vontade de seus eleitores.

3. O governo cumpre a lei feita pelo Legislativo.

4. O Judiciário, uma vez solicitado, dirime pendências e pune, ou não, de acordo com a lei.

E essa lei, centro de toda a democracia, baliza para todas as ações, reguladora de todas as relações, essa lei seria de tal forma clara e criteriosa, que o juiz seria apenas um conhecedor da letra fria, quase que um técnico do Direito.

Mas a realidade estraga miseravelmente esse plano tão bom.

A prova é o Brasil de hoje, onde, mais do que febris paixões políticas, discute-se, quase que de forma clandestina, um tema mais importante: a Nova Justiça.

Existem duas Justiças, no Brasil do século 21. Vou defini-las, grosseiramente, como a Justiça de Marco Aurélio Mello e a Justiça de Sergio Moro.

A Justiça de Sergio Moro, a Nova Justiça a que me referi, é uma Justiça de estilo norte-americano: ágil, rápida, punitiva, focada na defesa da sociedade.

A Justiça de Marco Aurélio Mello, a Velha Justiça, é vagarosa, ponderada, tolerante e focada nos direitos do indivíduo.

O que torna Sergio Moro diferente de Marco Aurélio não é o conhecimento: é a idade. Sergio Moro não foi traumatizado pelo regime militar. Sergio Moro não se sente um repressor quando se guia friamente pela letra da lei e impõe uma condenação grave a quem cometeu grave crime.

Sergio Moro é o que há de mais próximo da tecnicidade da Justiça. Marco Aurélio, ao contrário, é um juiz político.

Isso não significa que Marco Aurélio seja um juiz partidário. Ele é político porque interpreta a lei de acordo com a circunstância e os protagonistas envolvidos.

No caso Lula, Moro foi quase impessoal. Deu algumas prerrogativas ao ex-presidente, como a proibição de filmá-lo. Mas, no geral, considerou-o um brasileiro como qualquer outro.

Marco Aurélio criticou. Fez considerações. Chegou a se espantar:

– Então, eu seria levado sob vara? 

Um juiz americano responderia: – Por que não?

Alguns intelectuais brasileiros argumentaram que Lula não poderia ser conduzido a depor por sua “biografia”? Biografia? Estou vendo Sergio Moro se questionar:

– Onde está escrito isso de biografia na lei? Qual biografia pode? Qual não pode? Só vale biografia de político? Empresário vale também? Então é só o trabalhador, sem “biografia”, que pode ser alcançado pela lei?

Desse caldo efervescente do Brasil de hoje, o que menos me preocupa é o destino do governo. Preocupa-me mais o destino da Justiça.

Que Justiça quer o Brasil? A Justiça de Mello ou a Justiça de Moro? A Justiça que teme reprimir o indivíduo ou a Justiça que não teme proteger a sociedade? As respostas a essas perguntas dirão como será o novo Brasil.


12 de março de 2016 | N° 18471 
PAULO GERMANO

A rua da amargura


Tem gente que debocha do vereador João Carlos Nedel (PP), conhecido por batizar ruas, avenidas, praças, travessas, becos, acessos, alamedas, passagens, viadutos e qualquer coisa por onde circule gente em Porto Alegre. Uma ruela sem nome? Nedel fica louco, dizem que sente até comichão. Em cinco mandatos na Câmara, já apresentou mais de 400 projetos nomeando logradouros do Sarandi ao Lami.

Tem uma vila na Zona Leste onde as ruas se chamam Pintassilgo, Siriema, Andorinha, Gaivota, Bem Te Vi, João de Barro, Beija-Flor, Albatroz e Gralha Azul. Tudo coisa do Nedel. Uma vez, ele conversava com a comunidade sobre qual seria o nome ideal para uma viela, aí o traficante do morro soube da visita e enxotou o vereador aos berros, porque, se a rua tivesse nome, seria mais fácil descobri-lo. Deve ter sido chato.

Confesso que sempre achei uma tolice essa fixação do vereador. Até que um dia, ao encontrá-lo na porta do plenário, questionei-o duramente: que orgulho ele poderia sentir, após quase 20 anos de Câmara, ao ostentar como marca de sua trajetória um amontoado de alcunhas viárias?

– Muito orgulho, sim! – endureceu ele, e eu ergui a sobrancelha. – Você não sabe o que é viver sem um endereço. As pessoas sofrem para pagar suas contas, porque a correspondência nunca chega. O Samu não consegue encontrá-las. Parentes que vêm de fora não conseguem achá-las. Se precisam da CEEE, ninguém aparece. Se precisam do Dmae, é a mesma coisa. Nem uma pizza podem pedir, meu amigo! O cara diz que mora na Rua 2, por exemplo, mas só na Restinga tem 40 ruas 2. Uma pessoa sem endereço, acredite, é uma pessoa sem dignidade.

E eu calei a minha boca. O vereador tinha toda a razão: uma rua batizada é mais do que importante, é uma prerrogativa para exercer direitos.

Lembrei do Nedel nas últimas semanas, quando sua colega Mônica Leal, também do PP, apresentou um projeto para a Avenida da Legalidade voltar a se chamar Castelo Branco. Tenho me perguntado que interesse público pode haver nisso. A controvérsia começou há dois anos, quando os vereadores Pedro Ruas (hoje deputado estadual) e Fernanda Melchionna, ambos do PSOL, propuseram que a avenida trocasse de nome porque homenageava um ditador.

Não sou contrário às revisões históricas, desde que cumpram critérios claros. Se o critério é erradicar menções a ditadores em equipamentos públicos da cidade, tudo bem, Castelo Branco foi mesmo um déspota, mas o governo de Getúlio Vargas, por exemplo, matou, perseguiu, torturou e censurou muito mais do que nos três anos de Castelo como presidente. E a Avenida Getúlio Vargas segue lá, tranquilona.

Deus me livre defender os anos de chumbo. O que quero dizer é que, quando não há critérios claros guiando discussões candentes, abre-se espaço para uma picuinha ideológica que pouco importa à população. E a perda de tempo ganha tal proporção que, veja só, Mônica Leal continua, dois anos depois, gastando energia nessa bobagem.

Trocar o nome da Avenida Castelo Branco nunca foi uma bandeira que o povo ergueu – era uma bandeira de Pedro Ruas e Melchionna. E derrubar o novo nome, Avenida da Legalidade, tampouco interessa ao grande público: interessa a Mônica Leal.

De todas as funções de um vereador, nenhuma é mais nobre do que se imiscuir entre as pessoas, recolher suas queixas e lutar para resolvê-las. Nesse sentido, as recônditas ruas Pintassilgo e Gralha Azul – nomes que os próprios moradores sugeriram, eis o critério – representam muito mais do que a ilustre avenida cujo nome nenhum de nós escolherá.


Como assim, Paulo Pimenta?
Deputado federal do PT e amigo de Lula

A Lava-Jato já teve 117 conduções coercitivas. Por que só agora, quando Lula foi atingido, o PT se revoltou contra esse instrumento? Lula merecia tratamento diferente dos outros 116?

Estamos há muito tempo denunciando o caráter autoritário das conduções, das delações premiadas e das prisões sem julgamento. Do ponto de vista de direitos, não acho que Lula merecia um tratamento diferente, mas em qualquer lugar do mundo, quando a Justiça ouve alguém com certo nível de projeção, percebe-se um respeito. E o que fizeram foi para humilhar o ex-presidente. Está muito claro que uma parcela do MP, da PF e do Judiciário atua em um projeto político-partidário com o objetivo de atingir o governo Dilma e impedir que Lula seja um candidato competitivo em 2018.

12 de março de 2016 | N° 18471
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

JUÍZO E PERDÃO


A intransigência, que se tornou a marca registrada da civilização contemporânea, talvez tenha existido sempre, apenas não nos dávamos conta porque era muito difícil saber a opinião dos que não faziam parte do nosso restrito círculo de convivência.

Com as redes sociais, tudo o que acontece é jogado no mundo dos abutres da razão desnaturada que têm uma necessidade visceral de opinar, sem nenhum pudor, mesmo que o assunto não lhes diga respeito. Como calar a boca passou a ser interpretado não como um sinal de prudência e recato, mas, sim, de alienação, as pessoas se manifestam. E ainda mais esbravejantes se o tema tem alguma remota relação com uma opinião pré-formada ou no mínimo com a timidez assumida de um “ouvi dizer”. Isso lhe garantirá pelo menos um “curtir”.

Se o tema for técnico, era de se esperar que os acreditados no assunto se manifestassem primeiro, para depois, examinando prós e contras da argumentação, dar o seu pitaco em cima do exposto. Mas não, a premência de se fazer presente naquele fórum improvisado impõe que se exteriorize o que pensam sobre um assunto no qual nunca pensaram.

Como toda a bobagem pode ser sofisticada, o requinte fica por conta duma tendência moderna de se expressar por analogias, e então se chega à consagração da estultice quando o que foi usado como comparação não passa nem perto do comparado.

Mas o que mais impressiona não é apenas a necessidade de opinar, mas a compulsão e urgência por julgar. Ninguém se conforma com a função de promotor e se arvora logo à condição de juiz, e com uma intolerância implacável, característica de espíritos humilhados ou reprimidos. Uma sociedade constantemente fraudada e desprotegida explica, por exemplo, o sucesso de histórias que tratem de vingança, atribuível à nossa necessidade de retaliação, mesmo que nunca tenhamos sido agredidos. Uma espécie de vingança preventiva.

Por trás desse comportamento intransigente, está a nossa ausência completa de senso crítico que outorga-nos o direito de julgar os outros com modelos de perfeição que nos condenariam se tivéssemos a isenção de aplicá-los às nossas vidas.

Albert Schweitzer, o grande médico, filósofo e pensador, uma das maiores autoridades mundiais no estudo da ética, Prêmio Nobel da Paz, confessou que só se sentiu em condições de emitir julgamento sobre condutas quando assumiu seus próprios pecados e passou a ensinar que a condição mínima de um juiz é que ele seja capaz de condenar a si mesmo.

Aos 70 anos, mantinha viva a recordação de que, aos três ou quatro anos de idade, depois de sofrer uma picada de abelha numa das mãos, desabara num choro convulsivo que atraiu toda a família para consolá-lo, o que fez com que ele, encantado com o poder que esta cena lhe proporcionara, seguisse chorando por um longo tempo, depois que a dor há muito já passara. Na sua opinião, a consciência assumida dessa atitude como a sua primeira fraude, contribuiu para o aperfeiçoamento de sua capacidade crítica de julgamento, que deve caracterizar as pessoas equilibradas, generosas e puras. Essas criaturas imperfeitas que, por se reconhecerem assim, têm dificuldade de julgar seus semelhantes.

quarta-feira, 9 de março de 2016



09 de março de 2016 | N° 18468 
MARTHA MEDEIROS

Antes do caldo entornar


Violência doméstica é assunto sério. Muitas mulheres são reprimidas, ameaçadas, até estupradas pelos próprios companheiros, e ainda se sentem inibidas de ir a uma delegacia para denunciá-los. É provável que a vítima pense que, se o homem é um troglodita, mais irado ficará quando souber que a polícia está em seu calcanhar. Irá descontar em quem? Nela, evidente. Pois é, só que se ela não denunciar, a agressão poderá chegar a um nível perigosamente letal.

Tudo por causa de um troço chamado amor. Mulheres amam advogados, traficantes, motoristas, estelionatários, empresários, bandidos, arquitetos, sequestradores. O amor não pede comprovante de bons antecedentes, é puro instinto e desejo. Casais se unem por motivos nobres e por motivos absurdos. Pouco se dá ouvido à sensatez.

Então lá está dona Maria sofrendo as mais diversas formas de abuso em seus tantos anos de convívio com um homem estúpido que a maltrata, dá uns sopapos e avisa que, se ela chiar, aí é que o pau vai comer – e não há nada de erótico nessa ameaça. Dona Maria, então, assiste a programas de TV que debatem o assunto, lê matérias em revistas femininas, entra nas redes sociais, conversa com as amigas e cria coragem para dar um basta na situação. Bravo, dona Maria. Meu total apoio. Só há um culpado na história, e é ele. Mas essa trabalheira poderia ter sido evitada.

Dona Maria geralmente tem 30 anos. 40 anos. 50 anos.

Mas você, Maria de 17, não precisa passar por essa via-crúcis. Na maioria das vezes, o homem violento não espera muito tempo para deixar cair a máscara. Ele tirou você para dançar, beijou você, cumpriu todo o ritual do príncipe encantado, mas quanto tempo levou para apertar seu braço com força, para puxar seu cabelo de um jeito brusco ou agarrá-la pela mandíbula para forçar você a olhar para ele? No primeiro mês de namoro, aposto. São os sinais inequívocos de que o príncipe vai perder a majestade logo ali na frente.

Se você considera o ciúme dele romântico, aguarde o primeiro tapa para breve. Você aguardará o segundo e o terceiro para ter certeza?

Você pode resolver a questão mais cedo e sem tanto desgaste. Simplesmente pegue sua bolsa e dê as costas assim que o príncipe levantar a mão. Assim quê. Antes de morar junto, antes de ter filhos, antes de depender dele financeira ou emocionalmente. O agressivo costuma mostrar que é agressivo em poucas semanas. Em poucas semanas você não está tão inexoravelmente envolvida.

Eu sei, não anda fácil arranjar um amor. Às vezes, fazemos vista grossa, achamos que o cara está num momento ruim, que tudo vai passar. Não vai. É um ogro. Você, sendo pobre, rica, negra, branca, menor de idade, maior de idade, caia fora já. Empoderamento também é isso: perceber a encrenca a tempo.

terça-feira, 8 de março de 2016



08 de março de 2016 | N° 18467 
CARPINEJAR

Caixinha de música


Nunca invejei as bonecas das meninas e o mundo em miniatura feito de casinha cor-de-rosa e armarinho com roupas esportivas, sociais e de gala.

Fui menino de futebol, de aventura, de molecagens, de fazer incursões no porão com lanterna, de desbravar terrenos baldios, de subir telhados e esfolar os joelhos, de chegar suado à sala de aula.

Mas morria de ciúme da caixinha da bailarina de minha irmã. Era um teatro de graça: levantava-se a tampa, girava a corda e a bailarina dançava Debussy em cima de um espelho. Não sei o que acontecia direito, eu me maravilhava, o cenário mudava a sequência das batidas do coração. O coração de pé no meu peito se ajoelhava de repente diante dos deslizamentos de cá para lá da coreografia.

Brinquedo lindo que repousava ao lado da cama e sempre me despertava uma vontade imensa de roubá-lo. Eu queria para mim. Tentei as vias legais, pedir no aniversário e no Natal, trocar pela minha coleção de playmobil, só que o pai ria do pedido extravagante:

– Não é coisa de guri. É um porta-joias, Fabrício! Não tem sentido. Você não usa bijuteria.

O pai preocupava-se com uma possível afeminação de minha parte, não compreendia que foi o meu primeiro impulso claramente masculino e heterossexual: eu me apaixonei pela bailarina. Perdidamente. Lembro de seu pequeno rosto de avelã, o nariz arrebitado, os olhinhos brilhantes e o coque perfeito pronto para se desmanchar em nossa noite de núpcias. 

Eu desejava fugir de casa com a bailarina, casar e ter filhos. Estava imerso numa paixão pura, extrema, com a vontade de passar o resto da vida com alguém. Não importava que ela fosse pequena, do tamanho de minha mão, daria um jeito. A gente se apaixona primeiro, depois é que pensa se é possível ou não. O desejo cria realidades paralelas.

Sem a compreensão da família, eu precisava contar com a generosidade da irmã em me ceder apresentações. Antes de dormir, ia nas pontas dos pés ao seu quarto e implorava para que me mostrasse a música. Aquelas sessões de rodopios e voltas da bailarina provocavam suspiros. Não permitia acabar, como um livro que não se aceita o final.

– Mais uma vez, mais uma vez – gritava para a irmã, desesperado, após a décima repetição, procurando manter a chama rosa bailando o máximo possível na concha dos meus olhos.

Eu ainda hoje caminho pelas ruas de Porto Alegre com a esperança de ouvir Clair de Lune e ser reconhecido pela bailarina que tanto amei na infância. Juro que abandono tudo por ela.

sábado, 5 de março de 2016



06 de março de 2016 | N° 18465 
MARTHA MEDEIROS

Amy


Amy foi tão longe em seu desatino que não conseguiu mais voltar

Em 2013, visitei a exposição que o irmão de Amy Winehouse organizou no Museu Judaico de Londres. Ele queria revelar quem era Amy antes de estourar como uma das vozes mais prestigiadas da soul music e de virar figurinha fácil dos tabloides por sua performance nada sublime com álcool e drogas. 

Lembro de ter saído de lá comovida com a normalidade daquela menina britânica que escutava Carole King e Dinah Washington, que curtia Snoopy, que tirava fotos com as amigas, que tinha uma caligrafia infantil. Era este o acervo da mostra: seus livros, discos, fotos, bilhetes, vídeos do colégio. Uma exposição para homenagear a primeira parte de uma vida muito parecida com a minha e a sua, mas que, apesar de ter durado tão pouco (27 anos), foi subitamente repartida em duas.

O mundo só conhece a segunda parte, a recheada de prêmios e vexames. O documentário Amy, que ganhou o Oscar no último domingo (disponível no Net Now e na Netflix), interliga ambas as fases e deixa claro que o turning point se deu com a entrada em cena de um sujeito chamado Blake.

Dizer que a paixão pode destruir uma pessoa é um clichê, mas parece que foi mesmo o caso de Amy. Ela não apenas amava o namorado: queria fundir sua vida na dele, desejava que fossem um só – e levou esse romantismo ao extremo. Repetia tudo o que ele fazia, consumia tudo o que ele consumia, chegando ao absurdo de se machucar de propósito quando ele se machucava. 

Ela queria sentir a dor dele na carne dela, uma imolação que foi um filé mignon para a imprensa. Até que ele foi preso e ela se tornou uma compositora e intérprete ainda mais fenomenal, cantando com o nervo exposto. Porém, quando Blake foi libertado, ele a esnobou, ela entrou em parafuso, e dali por diante não surtiram efeito suas várias tentativas de rehab.

É a história de uma mocinha e de um vilão? Não é tão simples. É a história de uma mocinha, do divórcio de seus pais, de uma bulimia, de um talento sem medida, de um sucesso para o qual não estava preparada e de um cara que pareceu ser uma rota de fuga para tudo isto, mas que ajudou a cavar o buraco e empurrá-la para dentro.

Nunca se sabe o que é deixado de fora na hora de se editar um documentário, mas acredito na boa intenção do diretor Asif Kapadia, que fez a artista falar por si mesma: não há depoimentos de amigos, apenas. A grande depoente é a própria Amy, que se estrutura e se desestrutura diante de nossos olhos, fazendo com que a gente desça com ela até o subsolo da sua vulnerabilidade. Difícil evitar o nó na garganta e a profunda sensação de desperdício. 

Sabemos que basta dobrar uma esquina errada para que a pessoa se desoriente e vá parar no lado oposto da história que tinha para viver. Amy foi tão longe em seu desatino que não conseguiu mais voltar. O documentário ajuda a entender como ela se perdeu – e o que nós perdemos também.



06 de março de 2016 | N° 18465 
CARPINEJAR

Não é simples se apaixonar


Paixão não é banal. Paixão não acontece com frequência. Tenho um amigo que se apaixona semanalmente. Ele está se enganando. Não é paixão, mas flerte, interesse, atração, carência, desespero para se casar.

Paixão acontece poucas vezes na vida. Devo ter me apaixonado somente seis vezes em quarenta anos.

A paixão é a nossa chance de chegar ao amor, jamais uma certeza. Pois a paixão é conquista, já o amor depende da convivência. A paixão é sempre à primeira vista, o amor vem em parcelas.

Se me apaixonei meia dúzia de vezes, amei apenas duas vezes ao longo de meus romances. De amar mesmo, a ponto de desistir de meus preconceitos e de minhas exigências e doar espaço para o tempo de alguém. A paixão é rara. De sua raridade, surgirá o amor, mais único ainda.

O que posso garantir é que a paixão é uma devastação. Não tem como não notar. Você esquece quem você era e aonde ia. Você esquece o que fazia e o que queria.

Seus contatos do celular e das redes sociais desaparecem. Nada mais interessa. É um apagão, a sua memória morre – persistem a imaginação e a fantasia.

A paixão é um blecaute da personalidade. Um redemoinho passa pela cidade de seus olhos, levando a civilização de pretendentes. Um furacão destrói a importância de seus pertences e a sua forma de se relacionar com o mundo.

Você que é cético passa a ter fé, confiar em magia, adotar hábitos de supersticioso. Você que é avarento estará disposto a filantropias improváveis. Você que é tímido é capaz de cantar num microfone em praça pública.

Você que é cafajeste torna-se fiel como uma rolha de vinho. As defesas e restrições estão postas abaixo. É um dia perfeito que interrompe o calendário, o envelhecimento, as mágoas, as cismas.

É um beijo melhor que todas as palavras que procurava antes. Não há como confundir o diagnóstico. Não existem dúvidas do encanto que se abateu.

A paixão traz uma força inacreditável. O sangue bebe energético do ar. As pernas levitam. Experimenta um superpoder: enxerga as auras além dos rostos, adivinha os pensamentos além do som, entende as piadas além do gesto.

Não precisa comer, não precisa dormir, não precisa trabalhar, não precisa arrumar a casa, não precisa atender telefone, não precisa responder mensagens.

Desfruta da imunidade do otimismo. Aguenta emendar noites e permanece disposto. Não consegue parar de transar e não reclama do cansaço. Vira um bicho do instinto. O olfato é a sua realeza.

Emagrece, mas não perde o brilho.

Adoece, mas não perde a saúde.

Com a falta de alimentação e de cuidados, qualquer pessoa ficaria desidratada e baixaria o hospital, menos o apaixonado. O apaixonado encontra a inexistência perfeita, ser cada vez menos para ser o outro.

quarta-feira, 2 de março de 2016



02 de março de 2016 | N° 18462 
MARTHA MEDEIROS

Joviais para sempre

Alguns homens têm mentido a idade, têm aplicado botox e têm sonhado em encontrar a alma gêmea. Nunca pensei que a igualdade entre os gêneros chegasse a esse ponto. Pelo visto, eles também andam procurando rejuvenescer através da aparência e da paixão.

A juventude anda cada vez mais cobiçada, inclusive por quem ainda é jovem. Garotas de 20 anos fazem plásticas e já estão injetando silicone onde podem: até parece que nascemos todos decrépitos.

É bem verdade que começamos a envelhecer no minuto após o parto, mas alto lá com a pressa. Vamos deixar para nos preocupar com isso quando tivermos, sei lá, 60, 70. Mais?

Melhor nunca. Preocupação enruga.

Mais vale aceitar que é impossível retardar o envelhecimento. Não há quem tenha permanecido jovem, nem mesmo Keith Richards. No entanto, ele se mantém vigoroso, contrariando todas as apostas. Diz ele: “Não estou envelhecendo, e sim evoluindo”. Eis um sujeito com foco. O guitarrista dos Rolling Stones diz também (no ótimo documentário Under the Influence, disponível no Netflix) que só se fica maduro ao ser enterrado. Do lado de fora, ninguém amadurece. 

A mim não pareceu um elogio à infantilização, e sim um elogio ao movimento. Enquanto respirarmos, seguiremos atentos e vorazes. Vividos, sim, mas no ponto para a colheita, jamais. A morte sempre nos pegará em processo.

Não podemos ser jovens para sempre, mas podemos ser joviais para sempre, e me parece suficiente, o resto é tentativa alucinada de parar o tempo na marra. Nossa pele ficará mais flácida, nossos joelhos irão ranger e nossos olhos serão trocados por lentes bifocais, mas nem por isso precisamos vestir e pensar como matusaléns, nem faremos papel ridículo se nos mantivermos esportivos em vez de clássicos.

Podemos escutar música vibrante em vez de som ambiente, podemos atualizar nosso vocabulário e nossas ideias, podemos usar a camisa para fora das calças em vez de blazer com três botões e optar por botinas em vez de sapato com cadarço. Podemos tomar longos banhos de sol (de biquíni!), praticar um esporte que não arrebente nossas articulações e afinar o humor, já que sem humor não existe juventude nem que se tenha nascido depois do ano 2000.

Podemos parar de criticar quem é diferente de nós, podemos ser menos reacionários, podemos nos manter bem informados sobre o que acontece no mundo e podemos continuar andando de bicicleta, que é uma coisa que, dizem, ninguém esquece como se faz. Podemos inclusive continuar praticando aquela outra coisa que também ninguém esquece como se faz.

Quem for ao show dos Stones hoje à noite receberá uma injeção muito mais eficiente do que botox e sairá de lá convencido de que ser jovial é o único procedimento anti-idade com chance de sucesso.

sábado, 27 de fevereiro de 2016



28 de fevereiro de 2016 | N° 18459 
MARTHA MEDEIROS

Olha eu sozinha aqui de novo

A sensação de conforto alivia, presta reverência a alguma fantasia, mas não muda muito. Uma falácia essa coisa chamada sucesso

Em 2003, a atriz Nicole Kidman ganhou o Oscar de melhor atriz. Ela subiu ao palco, fez seu agradecimento e em poucos segundos seu talento e elegância estavam sendo comentados em todos os sites. Foi a homenageada mais paparicada da noite. Bateu ponto nas festas pós-cerimônia e, quando tudo acabou, voltou para o hotel, ela e seu troféu que não falava, não fazia um carinho, não dizia eu te amo. Diz ela que naquela noite chorou tudo que tinha pra chorar e que nunca se sentiu tão sozinha. Enquanto isso, o mundo inteiro foi dormir com inveja do glamour da atriz.

Recentemente a cantora Zélia Duncan publicou um texto chamado “Suíte Solidão”, em que ela comenta a respeito de hotéis durante turnês: “Você acaba de ter uma alegria amplamente compartilhada e mergulha num “olha eu sozinha aqui de novo”.

Não sou Nicole, não sou Zélia, mas já vivi situações similares e confirmo: é o suprassumo da contradição. Lembro um dia em que participei de um evento numa cidade do interior do Rio. Fui hospedada no melhor hotel da região: um lugar lúgubre, cheio de corredores mal iluminados e com cheiro de mofo. A porta do meu quarto era de uma madeira encardida e o carpete tinha um aspecto suspeito. A única janela dava para o nada. Me disseram que um motorista viria me buscar às 18h e desejaram bom descanso. Eu tinha cinco horas livres para contracenar com o submundo da minha solidão.

Lá fora chovia a cântaros, pra deixar o cenário mais melancólico e inibir qualquer tentativa de passeio a pé pelas redondezas.

Não fui atrás de club sand- wich, de colega de infortúnio, de coisa nenhuma. Havia levado um livro em estado adiantado de leitura e em meia hora ele foi devorado. Fiquei então a olhar paredes, buscando resposta para uma pergunta simples: e agora? Tomei o segundo banho do dia para ter algo mais a fazer. Deitei. Olhei para o teto. Tudo ao meu redor tinha um tom sépia. As cortinas pesadas. O frigobar vazio. Tentei dormir. Se consegui, nem reparei.

Na hora combinada, fui até o lobby e alguém apareceu para me levar ao local do evento. Chegando lá, havia um auditório com capacidade para cerca de duas mil pessoas sem lugar vago para nem mais um ácaro. Fui recebida como se fosse a atriz protagonista da novela das nove. Cada palavra que eu disse foi similar a do Evangelho. Por uma hora e meia, não havia no universo ninguém mais importante do que eu. Nem Nicole Kidman.

Quando tudo terminou, fui devolvida àquele quarto asfixiante em que dormi feito uma indigente recolhida por caridade, e se fosse um cinco estrelas (quase sempre é), confidencio: a sensação de conforto alivia, presta reverência a alguma fantasia, mas não muda muito.

Olha eu sozinha aqui de novo. Uma falácia essa coisa chamada sucesso.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016


24 de fevereiro de 2016 | N° 18455 
MARTHA MEDEIROS

Chegue mais perto

Saí do cinema não apenas comovida com o filme A Garota Dinamarquesa, mas com a certeza de que, se chegássemos mais perto uns dos outros, o mundo seria bem menos preconceituoso. Pra quem ainda não sabe do que se trata, é a história real da pintora Lili Elbe, que nasceu Mr. Einar Wegener e foi a primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo. O filme mostra como Einar, durante seu casamento, descobre-se mulher num corpo de homem e o quanto sua esposa o ajudou nessa difícil transição – isso nos anos 1920. O que para muitos pode soar como bizarrice é na verdade uma história de amor com uma profundidade que raramente se vê.

Você convive com algum transexual? É amigo íntimo de algum deles? É provável que não. Eu também não. No entanto, temos opinião formada sobre eles e sobre todo mundo. Pretensiosamente, achamos que sabemos como pensam e sentem pessoas com quem nunca trocamos nem duas palavras.

Estamos interligados por aparelhos que cabem na palma da mão e a sensação é de onipotência: nunca estivemos tão informados sobre tudo e tão perto de todos. Uma ilusão, claro. Continuamos com o mesmo número de amigos verdadeiros – poucos. E com o mesmo acesso às suas almas – quase nenhum.

Pessoas convivem, mas não se conhecem. Quem você permite que chegue bem perto das suas dores? A quem você dá a senha para que entre e enxergue aquilo que transtorna você?

O combinado é ninguém chegar muito perto de ninguém para não correr o risco de se envolver. Não queremos nos envolver, só queremos dar palpite.

Então vem um filme e mostra como funciona a história por dentro. De uma forma sensível e delicada, expõe toda a complexidade de uma existência, todo o árduo processo de se transformar em quem se é. 

Vale para um homem que se sente mulher, mas valeria também para um negro que luta para ter sua raça respeitada, um jovem que é dependente de drogas, uma moça casada que não deseja ter filhos, um deficiente visual que se descobre apaixonado, um idoso com pouco tempo de vida, um pai de família que foi demitido, um jovem idealista que sonha entrar para a política, uma atriz que tem sua intimidade exposta pela imprensa – se soubéssemos pra valer o que cada um desses desconhecidos sente na pele, como as reações externas os atingem, o esforço que fazem para defender o direito de ser quem são, o quanto agonizam diante das próprias fragilidades, não seríamos mais tolerantes?

Bastaria reduzir um pouquinho o tempo gasto nas redes sociais e ir mais ao cinema, ler livros, assistir a uma peça. É pra isso que serve a arte. Para nos tirar da superfície e dar um zoom no subterrâneo da emoção alheia, lá onde tudo se explica.

domingo, 21 de fevereiro de 2016



21 de fevereiro de 2016 | N° 18452 
MARTHA MEDEIROS

Céu e inferno


Não é um espaço repleto de nuvens brancas com anjinhos tocando harpa, e também não é uma gruta tomada por labaredas com um diabo segurando um tridente a fim de te espetar.

Céu e inferno são, ambos, lugares terrenos, com endereço, código postal e localizáveis pelo GPS.

Minha ideia de céu: uma praia vazia, mar cristalino, muita natureza, um dia de sol.

Minha ideia de inferno: uma piscina coletiva com alto-falantes tocando música como se fosse uma quadra da comunidade. Céu: um quarto em penumbra, uma cama com lençóis limpos, ar-condicionado suave, o amor da sua vida ao lado.

Inferno: um quarto abafado, lençóis amarfanhados há três semanas, mosquitos e o amor da sua vida de mau humor. Céu: estrada bem pavimentada e bem sinalizada, paisagem espetacular. Destino: férias.

Inferno: viajar na estrada ao lado de um motorista que ultrapassa em faixa amarela contínua, corre demais e gruda, presunçosamente, na traseira do carro em frente. Ou: motorista tão cauteloso que te exaspera. Dirige a 50km/h, não ultrapassa ninguém (espera o caminhão sair da estrada por conta própria, mesmo que isso demore uma vida) e coloca o pé no freio a cada 15 segundos, por nada.

Céu: cinema com lotação pela metade, filme formidável, ninguém comendo, bebendo ou fuçando no celular.

Inferno: cinema hiperlotado, filme arrastado e uma criatura atrás de você violentando um saco de balas e sugando ruidosamente pelo canudo a última gota do refri, além de rir em cenas que não tem a menor graça.

Céu: muitas vagas no estacionamento. Inferno: nenhuma, e você está atrasado.

Céu: chove, está friozinho, você acendeu a lareira, tem um livro incrível em mãos, escuta um disco do Sthephany Grapelli, o vinho tinto e os queijos estão sob a mesa de centro, e seu namorado está por chegar com os beijos.

Inferno: venta, você acaba de chegar de um aniversário de criança, a tevê passa um programa com tradução simultânea, o interfone toca e é o porteiro chamando para a reunião de condomínio em que elegerão o novo síndico: parabéns, sua vez chegou.

Céu: conversa inteligente e divertida com os amigos. Não se fala em política. Inferno: festival de abobrinhas e infantilidades. Não se fala em política. Céu: dinheiro extra, inesperado. Inferno: despesa extra, inesperada.

Céu: seu voo sairá no horário e, ao entrar na aeronave, o assento ao lado está vazio. Ao desembarcar, sua bagagem é a primeira a aparecer na esteira.

Inferno: atraso de voo, fila imensa no banheiro do aeroporto, preço exorbitante do cafezinho. Depois de um tempão esperando para embarcar, você se acomoda no seu assento e ao lado tem alguém querendo conversar – adeus, cochilada.

Céu: quem está querendo conversar é o Wagner Moura.

sábado, 20 de fevereiro de 2016


RUTH DE AQUINO
12/02/2016 - 22h14 - Atualizado 12/02/2016 22h14

De volta para o futuro do Brasil

Estamos cercados por mosquitos e sanguessugas, mas os governantes se recusam a assumir a culpa e o ônus

Se alguém ainda duvidava da existência dos buracos negros, a semana passada tratou de sepultar crendices. Não falo do Universo nem de Einstein. Mas de nosso ontem, hoje e amanhã no Brasil. Falo das ondas gravitacionais que foram ignoradas pelo PT de Lula e Dilma com irresponsabilidade, descaso e incompetência, jogando a economia e a saúde nessa cratera negra da qual será difícil emergir.

Não foi por falta de alerta. A gastança de Brasília aumentou em ano eleitoral, as mentiras foram ditas sem pudor, as negociatas, os tríplex, os sítios, as propinas continuaram a correr soltas mesmo sob investigação. Estamos cercados por mosquitos e sanguessugas, mas o governo federal, os governadores estaduais, os prefeitos e o Congresso se recusam a assumir a emergência, a culpa e o ônus. Apelam a nós – aos impostos pagos por nós e aos pratos de vasos de planta no quintal de nossa casa.

Pode demorar 100 anos, bilhões de anos. Uma hora o marketing, a desonestidade e o obscurantismo são desmascarados e a realidade vem à tona, seja por estudos de físicos e astrônomos, seja pelos fatos crus do dia a dia. Não adianta se fazer de vítima, Lula, não adianta adiar decisões de cortes na sua máquina, Dilma. 

Aí estão os números da falência na Educação e as filas do desespero nos hospitais, os relatos lancinantes de pais desempregados e de mães atingidas pelo vírus zika. Tudo por falta de compromisso com o essencial. Agora os ministros de Dilma viajarão pelo país para fazer campanha contra o mosquito Aedes aegypti. Parece roteiro de filme B. É muita cara de pau. Economizem as passagens aéreas!

Acabou o recesso que nem deveria ter sido. Acabou o Carnaval. O PT comemorou tristemente, na Quarta-Feira de Cinzas, 36 anos de vida. E mesmo sob os holofotes do mundo, em ano de Olimpíadas, no meio de uma epidemia, o governo ainda não sabe onde vai cortar no Orçamento para chegar a sua fictícia meta fiscal de 2016. Adiou a decisão para março. Dilma decidiu editar um decreto provisório num país provisório, para fingir que cumprirá a meta de superavit fiscal primário de 0,5% do PIB.

Enquanto isso, a presidente pensará com sua equipe –porque em janeiro todo mundo parou de pensar – em como apertar as contas públicas. Para pagar os juros da dívida, o certo seria cortar R$ 60 bilhões do Orçamento, mas o governo diz que não poderá cortar nem R$ 20 bilhões.

“Acho que não tem mais gordura para cortar. Vai ter de cortar membro. É amputação, não é lipoaspiração”, afirmou o senador peemedebista Romero Jucá, depois de encontrar o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa.

Não há vacina contra a má gestão. Pode fazer o convênio que quiser com a universidade mais conceituada do mundo – não dará certo. Porque o pecado está na origem. Sem responsabilidade fiscal, um governo comete crime ao maquiar, nesse nível, números e promessas para se eleger. Nem vou falar do roubo continuado, em dinheiro em espécie e em transferências bancárias, de nossa maior estatal. A Petrobras acaba de ficar famosa como o segundo maior caso de corrupção no mundo, em votação promovida pela Transparência Internacional.

Economia doente, Saúde enferma. O Ministério da Saúde sabia que, só no ano passado, 1,6 milhão de brasileiros tinham contraído dengue. E adiou qualquer medida mais séria. Provavelmente porque o Brasil sempre achou ser o país do futuro, o país do milagre, do Deus brasileiro, da criatividade e alegria do povo, o país do Carnaval, do samba e das mulheres bonitas. O país da “meta flexível”, complacente e malandro. Será que Dilma está “estarrecida” com o rombo?

Milhões de inocentes úteis, que hoje andam a pé para o trabalho para economizar no ônibus, que pagam uma taxa de juros no cartão de crédito de até 411% ao ano, que veem a luz de casa cortada por inadimplência, que fecham suas empresas falidas, que perdem seus empregos, acabam de ser convocados por ministros petistas para canonizar Lula e livrar o pai dos oprimidos dos “golpes baixos” da mídia, das elites e da Justiça. “Nunca antes um ex-presidente foi tão caluniado, difamado e injuriado”, escreveu Rui Falcão, o presidente do PT. O slogan “Somos todos Lula”, proposto por militantes, só pode ser brincadeira de mau gosto.

Nos Estados Unidos, após detectar as ondas gravitacionais com seus equipamentos de última geração, os cientistas comemoraram: “Poderemos ver coisas que nunca vimos antes!”. Segundo alguns físicos otimistas, daqui a um século talvez possamos viajar no tempo, como no filme De volta para o futuro. No Brasil flexível, onde tudo é relativo, também estamos vendo coisas que nunca vimos antes. Talvez seja melhor não esperar 100 anos para rever decisões do passado e mudar presente e futuro.


20 de fevereiro de 2016 | N° 18451
JJ CAMARGO | J.J. CAMARGO

O LONGO CAMINHO DA CIVILIDADE


Não tem jeito, a construção de uma sociedade civilizada é um processo longo, demorado e, às vezes, francamente exasperante.

Meu primeiro contato com o mundo do lado de lá foi bem constrangedor. Tinha recém chegado a Rochester, uma cidadezinha do meio-oeste americano, para uma pós-graduação na famosa Clínica Mayo, e atravessei uma ruazinha quase deserta, em diagonal, ignorando a faixa de segurança. Quando alcancei a calçada oposta, um guarda me recepcionou como a um ET e explicou que esse comportamento era inaceitável. Uma velhinha que se aproximava ouviu a admoestação e fez a cara universal de bem feito.

No Brasil de hoje, algumas cidades, mais do que outras, adotam condutas de civilidade que se transformam em marcas registradas e são exercitadas com determinação e um certo orgulho por seus cidadãos, constrangendo os violadores. Experimente, por exemplo, jogar um papel na rua em Curitiba, e você vai ser tratado como um suspeito de pedofilia numa reunião de pais e mestres.

O certo é que, nesses lugares, por um processo educativo continuado, o comportamento se modifica gradualmente e todos passam a colaborar, no mínimo para evitar o vexame.

Na média, entretanto, seguimos desconsiderando normas elementares de convívio e, na maioria das grandes cidades brasileiras, ninguém respeita regras de trânsito. A principal razão para alguém não atravessar as ruas por entre os carros em movimento, provavelmente, é o medo de ser atropelado por algum motoqueiro apressado.

Se alguém quiser avaliar o nosso verdadeiro nível de civilidade, passe uns dias num grande balneário. Com cuidado, porque depois das férias você precisa voltar ao trabalho para seguir pagando os impostos.

Como nas férias as pessoas se sentem assumidamente mais liberadas, esse é o momento e o local para se descobrir o quão civilizados, de fato, somos. O cartão de visita são as camionetes enormes, ruidosas e cafonas, visivelmente adaptadas a um esporte muito radical: a caçada a esses pedestres desentendidos que pretendem ignorar que as ruas têm dono.

E o ruído estridente dos supermotores representam uma primitiva demarcação de território entre a tribo dos poderosos donos da rua e os tímidos que tentam atravessá-la com a instabilidade de chinelos de dedo.

Sentado à beira-mar, deliciado com um milho verde, não consegui ignorar o ruído das motos, aceleradas no limite sempre que o garotão vislumbrava uma menina bonita. Mas será que não existe uma maneira mais civilizada de atrair a fêmea, considerando o quanto é pequena a probabilidade de que ela, além de linda, seja surda? E qual é o objetivo de intimidar os pedestres que eventualmente dão um passo na rua porque a calçada está superlotada? Que necessidade mais estúpida de afirmação. Soube que quando se aproximam as férias, as prefeituras mandam repintar as faixas de segurança.

E para que servem? Aparentemente só para registrar com precisão o local onde os distraídos serão atropelados!

Percebam que, se esse comportamento extravasa na praia, onde todos estão teoricamente dando um repouso aos seus tacapes, fica fácil entender a agressividade da vida urbana, quando todos, resolvidos ou não, voltam à pressa, à competição, e ao neurotizante tempo perdido nos engarrafamentos. Das ruas e da vida.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016



17 de fevereiro de 2016 | N° 18448 
MARTHA MEDEIROS

Quando Deus esquece os óculos


Ele vê tudo. Era no que eu acreditava quando criança. Ficava muito impressionada com esse poder que nenhum super-herói tinha, e até me sentia meio inibida ao entrar no banho. Aí cresci e descobri que Deus, mesmo sendo onipotente e onipresente, dá suas escorregadelas – mínimas, mas dá. Sendo um ancião (nunca se falou em Deus como sendo um jovem), certamente precisa de óculos. E os esquece em algum lugar, como todos nós. Totalmente compreensível.

Quando são entregues coletes salva-vidas forrados de papel para refugiados que se lançam ao mar, quando médicos faltam aos plantões onde centenas de doentes fazem fila para ser atendidos, quando políticos dos mais diversos partidos compactuam com safadezas em proveito próprio, quando ônibus são depredados a título de manifestação, quando moradores da cidade são assaltados e baleados a qualquer hora do dia, Deus não está vendo nada – está procurando seus óculos, que não sabe onde largou.

Quando pessoas com ossos fraturados esperam anos para conseguir uma consulta na rede pública (se tiverem a sorte de não morrer antes), quando trabalhadores têm seus pertences arrancados pelas mãos de pequenos delinquentes, quando pequenos delinquentes não recebem nenhum tipo de educação e afeto de suas famílias (se tiverem a sorte de ter uma família), quando empresas fazem um trabalho porco para faturar mais, sem se preocuparem com as consequências (estradas esburacadas, pontes que caem, barragens que rompem), quando a ausência de higiene urbana facilita a proliferação de um mosquito indesejável, o que Deus pensa disso tudo? Nada, coitado. Nem viu a confusão. Está ocupado procurando os óculos na cozinha. Só podem estar ali.

E se ele não enxerga o macrocosmo, como enxergará o micro, esses borrões que somos você e eu, cada um em sua casa, com problemas que, se comparados com os da humanidade, nem mereceriam esse nome? Amores que não estão dando certo, a dor no ombro, a artrite, o cabelo que não para de cair, a dificuldade em emagrecer, o vício no cigarro, amigos que se transformam em ogros nas redes sociais, a festa de 15 anos que não deu pra pagar, o emprego que escapou das mãos, o medo da solidão, o pavor de envelhecer, as dívidas em dólar, a depressão bloqueando o entusiasmo. E esse Deus distraído que não encontra seus óculos em local algum.

O preconceito que cada um sofre por causa de sua raça, de sua sexualidade, de sua deficiência, de sua religião. Aliás, você é religioso e tem certeza de que Deus enxerga muito bem, que está vendo tudo, inclusive está de olho numa colunista desaforada que anda duvidando que Ele esteja com os óculos bem na ponta do nariz.

Pode ser, mas vai dizer: não parece que Deus perdeu os seus?

sábado, 13 de fevereiro de 2016


14 de fevereiro de 2016 | N° 18445 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Alegria de Carnaval

Para um sujeito de classe média branca como eu, é uma alegria ver o modo como é possível hoje brincar o carnaval na rua, mesmo numa cidade como Porto Alegre, que apesar do adjetivo que lhe enfeita o nome é uma cidade sisuda, melancólica, de vez em quando depressiva mesmo. Ao ver o modo como os blocos agora se ajuntam e se divertem (eu não os frequento, logo não tenho deles nem mesmo queixas a fazer, como ocorre com gente de bem com a vida mas justificadamente aborrecida com os excessos de ocupação de rua com barulho, na Cidade Baixa), não posso evitar a lembrança contrastiva do que ocorria nos anos da minha juventude, os 70.

Bem, não se trata de uma experiência que possa servir de modelo a quem quer que seja, naturalmente, mas representa uma modesta parte do passado da cidade, tenho certeza. Ocorre que havia basicamente duas modalidades de carnaval naquele momento: ou os clubes, para a classe média (dominantemente branca), ou o desfile em escolas, para as camadas populares (dominantemente negras). 

Naquele momento, já quase não aconteciam mais os carnavais comunitários, de bairro, relativamente espontâneos – que, lembro bem, cheguei em vão a caçar numas madrugadas, com amigos que compartilhavam o gosto pela festa, ali pela Santana, no IAPI, mas, oh a falta da internet daquele tempo, não havia informação clara de data nem de horário, e o máximo que encontramos, alguma vez, foi um resto de festa numa arquibancada pequena, já com cara de aguarde o ano que vem.

“É hoje só, amanhã não tem mais”, aliás, era um dos bordões antigos para animar a festa, para convocar o folião a mandar brasa – acabo de misturar gírias fenecidas e desparelhas, de origem diversa e até incompatível, “folião” sendo um termo carnavalesco remoto, “mandar brasa” sendo um termo mais chulo e próximo do rock, como aquele “É uma brasa, mora?” do Roberto Carlos jovem e ainda não careta.

Tive a chance histórica de me divertir muito nos bailes de clube. O meu, a Sogipa, tinha duas noites de grande movimento, o sábado e a segunda, e nós, os que tocávamos no bloco do clube, o “Em cima da hora”, aproveitávamos outras quatro noites, além das nossas – uma prévia, no Teresópolis, na sexta-feira, mais as outras duas noites do tríduo momesco (tríduo de quatro noites, não tenho responsabilidade por essa incongruência aritmética), o domingo e a terça, e mais o baile de Enterro dos Ossos, no sábado seguinte. 

O circuito abrangia, além da Sogipa, o União, o Petrópole, o Clube do Comércio, o Leopoldina Juvenil, o já citado Teresópolis e o Israelita, com acréscimo eventual de outros clubes de bairro. Era baile pra não se queixar.

No Petrópole havia mesmo um concorrido concurso de blocos de clubes. Todo baile era sempre animado por um conjunto (uma banda, como se diz hoje em dia), e no auge desse processo setentista os grandes conjuntos de baile e de pop/rock se transmutavam em conjuntos de carnaval. O baile parava e entrava o bloco concorrente. Um ano, talvez 1976, vencemos o concurso – e eu gostaria de rever aquele troféu, se ainda existir.

A propósito: onde foram parar aquelas agrupações talentosas como o Impacto, o Je Reviens, o Boogaloo, o Alma e Sangue, o Desenvolvymento, com ípsilon? Sempre me ocorre um ensaio, talvez um capítulo de minhas possíveis memórias, acerca deste tema, para mim altamente significativo: naquele tempo, o paradigma era tocar bem, de modo o mais possível fiel, o mesmo arranjo e a mesma instrumentação, com o mesmo timbre e o mesmo arranjo de vozes, a exata versão do conjunto ou do cantor original, fosse ele o Deep Purple ou o Raul Seixas, Carole King ou Rolling Stones. Ninguém ousava cantar músicas de sua autoria, com uma exceção, o Desenvolvymento, em que a band-leader, Ana Maria Masotti, era compositora.

Na geração seguinte, inverteu-se o paradigma, e todos passaram a ser protagonistas com sua própria voz, sua visão das coisas, sua tábua de valores e, talvez mais importante de tudo, sua linguagem. Não em bailes, que acabaram naquele formato. Porto Alegre só começou a falar porto-alegrês na canção na virada para os anos 80, com o Nelson Coelho de Castro, o Nei, o Bebeto Alves, e olhe lá.

(Sim, o Liverpool tinha ousadia e autoria, mas nos 70 era quase uma lenda, não mais uma realidade ativa, como foi quando eu os vi, numa sessão matinal – sim, 10 da manhã, creio – no fenecido cine Rosário. Nada da tranquilidade desses libertos anos 2000, do Carlinhos Carneiro ao cantar, despreocupadamente, “Se tu quiser que eu te leve eu aprendo a dirigir”, coisa impensável para aquele escuro tempo.



14 de fevereiro de 2016 | N° 18445 
MARTHA MEDEIROS

Almas gêmeas

Onde você enxergar o Entusiasmo, pode ter certeza de que o Pânico estará por perto

Anda difícil colocar a mão no fogo pelo amor eterno entre dois seres, então elejo aqui um casal que, este sim, raramente se separa, e quando separa, reata. Falo do Sr. Entusiasmo e do Sr. Pânico. Masculino com masculino, alguém ainda se constrange com isso?

Então avante: onde você enxergar o Entusiasmo, pode ter certeza de que o Pânico estará por perto. E quando enxergar o Pânico, saiba que o Entusiasmo estará à espreita. Um não circula sem o outro.

Vamos andar de balão? Vamos montar um cavalo selvagem? Vamos fazer um rali noturno? 

Tudo o que puder ser designado como radical leva o casal junto, entrelaçado.

E já que estamos falando em casal, pense em vocês dois. Sim, você e aquela criatura que era a última pessoa do mundo para quem você olharia duas vezes, mas olhou e quase enlouqueceu de entusiasmo pelo mundo novo que se descortinava e de pânico pelo buraco que se abria. A criatura era tudo o que você sonhava e nada do que você queria, como foi possível isso acontecer ao mesmo tempo?

Entusiasmo e Pânico.

Você está se formando? Parabéns. Compartilho a alegria por ter finalizado uma etapa importante da vida, é uma conquista memorável, hoje você e seus colegas são bacharéis, orgulhos de seus pais, hora de comemorar e de roer as unhas: haverá emprego para todos? E se a vida prática não corresponder às ilusões teóricas? Ao menos a cela especial está garantida, mas a piada é tão velha que nem o Entusiasmo e o Pânico veem mais graça nela.

Se o trabalho puder esperar, um intercâmbio revela-se uma boa ideia. Responda: não parece entusiasmante viver em outro país, morar na casa de uma família estrangeira e dar expediente na cozinha de um restaurante coreano a título de experiência? Não, responde o Pânico em seu quarto escuro às três da madrugada, com os olhos arregalados mirando o teto. Sim, responde o Entusiasmo às nove da manhã, ajudando você a preparar as malas.

Será que esses dois não se desgrudam nunca? Você se divorciou. Está livre, leve, solto e mal-intencionado: bem-vinda solidão depois de anos amarrado. O Entusiasmo brinda com os amigos no bar, enquanto o Pânico chora escondido.

Seu primeiro livro foi concluído, agora todos finalmente saberão o que se passa em seu íntimo, o talento que você tem, o talento que você não tem, a pretensão que lhe sobra, a genialidade que escondia: o que irá prevalecer?

Sem colocar o livro na rua, nunca saberá. Distribuindo-o, saberá. Duas hipóteses igualmente tentadoras e apavorantes. Prometem ser fiéis na alegria e na tristeza? Escândalo e Pânico respondem juntos que sim e trocam alianças. Só a morte os separa, só a morte, que é quando o Entusiasmo some e deixa o Pânico na mão.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016



10 de fevereiro de 2016 | N° 18441 
MARTHA MEDEIROS

Para pensar

A ONU propôs que os países latino-americanos flexibilizem suas leis sobre aborto, a fim de que mulheres grávidas com ameaça de infecção pelo zika vírus possam interromper a gestação. O Brasil nem considera a ideia, mas não se pode perder a oportunidade de voltar a debater o assunto de forma mais ampla e sem sentimentalismo – uma das razões do nosso atraso.

Vou direto às questões recorrentes.

Como tens coragem de defender o assassinato de uma criança?

Não é uma criança e não é assassinato: trata-se de interromper a formação de um embrião, a fim de respeitar os motivos de quem chegou antes, a gestante. Numa hipótese absurda, quem usa a palavra assassinato para aborto poderia usá-la também em relação à doação de órgãos. Não se estaria matando antecipadamente o doador? Afinal, também há um coração batendo, se é esse o critério. Simplista, não? (Sou doadora, que fique claro.)

Quem é contra a legalização do aborto está protegendo os direitos humanos?

Ao contrário. A lei serve apenas para punir as mulheres. Nenhuma delas levará adiante uma gestação indesejada só porque o governo, que nem a conhece, quer que ela tenha um filho. Ela abortará de qualquer jeito, como provam as estatísticas. Se tiver dinheiro, o fará em boas condições. Se for pobre, poderá adoecer, ficar infértil ou mesmo vir a óbito. Por que a vida delas valeria menos do que a de um embrião?

É preciso repressão do Estado, pois quem engravida sem querer não teve acesso a informação e prevenção.

Gravidez é fruto do desejo e do sexo. Duas coisas que não primam pela racionalidade. Mulheres inteligentes e bem-informadas também ficam grávidas sem querer. O paternalismo não procede.

Em vez de abortar, por que a mulher não doa o recém-nascido para adoção?

Seria perfeito, num mundo ideal. As que conseguem, merecem admiração. Só que a mulher que interrompe a gestação está, na verdade, rejeitando a criação de um vínculo. Se levar a gestação ao término, o vínculo acontecerá, não importa a decisão que ela tomar depois. É um assunto profundo e difícil, pois transcende a lógica. O que se está interrompendo é a formação de um amor. Duro? Duríssimo, mas a vida não é um conto de fadas.

O que você acharia se sua mãe tivesse abortado você?

O mundo não perderia nada. Ninguém dá falta do que nunca existiu. Você chora por alguém que poderia ter sido o inventor de algo chamado, sei lá, infragiro? Você lamenta o não nascimento daquela que viria a ser a melhor amiga da sua filha?

Olhe para os lados. O planeta está em crise. Dediquemos nosso afeto e solidariedade aos bilhões que chegaram até aqui e que estão precisando muito uns dos outros.

sábado, 6 de fevereiro de 2016



07 de fevereiro de 2016 | N° 18438 
MARTHA MEDEIROS

As enjambradas


Sempre destoei em festas, e no Carnaval infantil não era diferente

Ela era uma menina do interior e nunca tinha ido a um baile de carnaval nem sabia direito o que era. Até que chegou o dia. Colocaram nela um vestidinho colorido, um adereço qualquer na cabeça, deixaram que ela se maquiasse um pouquinho e a levaram ao baile, não sem antes passar na casa das primas, que iriam juntas. 

Ao chegar lá, a menina deparou com duas rumbeiras trajadas com vestidos longos, muitos babados, brilhos, turbante, pedrarias. As primas pareciam que iriam a uma festa de gala, enquanto a menina estava apenas enfeitadinha para pular e dançar o que aconteceu com algum muxoxo, visto que todos os foliões também estavam neste nível Clovis Bornay de luxo, ao menos aos olhos dela, a enjambrada.

Sei bem o que ela sentiu. Quando criança, eu também era a enjambrada nas comemorações de São João do colégio. Enfiava um chapeuzinho de palha e bora ser feliz, mas como? As meninas iam todas vestidas de prenda e com tranças que caíam pela cintura (acho que já existia aplique naquela época). Enquanto isso, eu era a própria caipira, de fato.

Sempre destoei em festas, e no Carnaval infantil não era diferente. Quase em todos os bailes fui fantasiada de índia (physique du rôle) e não duvido que achassem que eu era mesmo da tribo dos caingangues, pois enquanto usava um pano cru, fazia umas pinturas no rosto e colocava uma pena na cabeça, as outras índias vestiam trajes 100% camurça e tinha índia até de cetim. Eu era como aquela menininha do interior a quem bastava o espírito da diversão para fazer a festa funcionar, até descobrir que a vida em sociedade não é bem assim. Aliás, comentei? Aquela menina do primeiro parágrafo era minha mãe.

E como cultura familiar é um troço poderoso, aconteceu de eu ter duas filhas que quando crianças também iam a festas à fantasia e adivinhe: por mais que eu tenha tentado romper o ciclo das enjambradas e as ajudasse a se transformar nas odaliscas e fadinhas mais lindas do universo, não adiantava: sempre havia as famigeradas “rumbeiras” soltando purpurina pelos ouvidos e ofuscando o resto da criançada com uma quantidade cavalar de paetês.

Até hoje, não me sinto eu mesma quando me arrumo para uma grande festa (em que toda mulher se “fantasia”, de certa forma). Sempre me acho mais bonita de jeans do que a bordo de um modelito Jessica Rabbit. Antes de sair de casa para uma cerimônia de casamento, uma entrega de prêmio ou qualquer coisa que exija um visual causador, me olho no espelho e penso: valeu a tentativa, garota. Só que a imagem não me reflete. 

Sou boa no quesito adequação, ou seja, sigo corretamente o dress code de cada evento, mas obediência, apenas, não adianta. Está no sangue a alma de menina enjambrada. Só a simplicidade traduz perfeitamente o que me vai por baixo da pele.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016



03 de fevereiro de 2016 | N° 18434 
MARTHA MEDEIROS

Sentimentalismo


Li um texto divertido sobre as praias gaúchas (ah, sempre elas, as vítimas clássicas de todo verão). O autor, Giovani Groff, descreve Hermenegildo, depois Cassino, até chegar a Quintão, Magistério, Pinhal, Cidreira, Mariluz, Tramandaí, Xangri-lá, Capão, Arroio do Sal e Torres – e mais o que existe no caminho entre elas. Claro que é uma pegação de pé danada, e mesmo quem já foi feliz nas areias do litoral gaúcho, como eu, deixa o sentimentalismo de lado e dá boas gargalhadas.

Só que resolvi ler também os comentários sobre o texto, e aí confirmei: essa história de deixar o sentimentalismo de lado não é uma de nossas qualidades – aliás, nem é considerada uma qualidade.

Houve quem, contrariado com o texto, enaltecesse nossa região serrana – que nada tinha a ver com o assunto. Teve quem aproveitou a oportunidade para esculhambar Santa Catarina por estar com algumas praias poluídas – o que também não vinha ao caso. Era só um texto engraçado, mas os advogados de defesa do Rio Grande não saem de férias, estão sempre de plantão.

Este pequeno e desimportante episódio da série “não falem mal das nossas praias” me fez pensar que o sentimentalismo barato não é exclusividade nossa. O Brasil inteiro é assim.

Não sou nenhum bloco de gelo e acho que, enquanto nos emocionarmos, há salvação. Mas a afetação excessiva geralmente desvia a criatura do foco. Um exemplo antigo, mas ilustrativo: a Seleção Brasileira na última Copa. Aquela choradeira dos jogadores. O hino cantado como se o time estivesse diante de um pelotão de fuzilamento. As camisetas e bandeiras homenageando Neymar, como se ele tivesse sido vítima do Estado Islâmico. Isso não é ser emocional. É piegas. Um pouquinho menos de passionalidade e a gente teria perdido por 3 x 1, bem mais razoável.

Os alemães são secos? Os ingleses são frios? Os franceses são antipáticos? Estereotipando, é verdade, assim como é verdade que os brasileiros são alegres e afetivos, um atributo louvável. Mas os alemães também se apaixonam, os ingleses se comovem e os franceses são gentis, então seria natural que os brasileiros também fossem sérios e racionais, não?

Não. É nesta busca de equilíbrio que a gente peca. Temos pavor de deixar o sentimento de lado em prol de um raciocínio lógico. É como se, ao abrir mão do nosso perfil emotivo, perdêssemos a identidade. Queremos fazer amigos em cada bar, queremos ser amados, queremos contagiar com nossa faceirice e simploriedade. A ideia é encantar e seduzir através do nosso gigantesco coração. Só que, calorosos desse jeito, a autocrítica, que nasce do intelecto, desaparece. Sem autocrítica, como amadurecer?

Um Brasil um pouquinho mais cerebral e seríamos outro país.