sábado, 18 de junho de 2016



18 de junho de 2016 | N° 18559 
CARPINEJAR

Alma coletiva


Você pode estar julgando o outro por aquilo que você é. Você perdoa o outro por aquilo que deseja obter, a qualquer custo e não enxerga os contrastes e as diferenças gritantes das personalidades.

Você pensa pelos dois, ama pelos dois, suporta tudo pelos dois.

Acha natural que a sua felicidade será a felicidade de quem ama. Confia piamente na simbiose, na fusão, na complementaridade automática. Entretanto, os seus prazeres e sofrimentos são totalmente imaginários. Nada que crê costuma ser partilhado na prática. Na realidade, amarga um isolamento, amortizado pela ficção romântica.

Não contabiliza as provas objetivamente. Os fatos são contaminados pelas impressões e fantasias pessoais. A ânsia de agradar e a facilidade para encontrar a alegria nas pequenas coisas impedem que tenha discernimento e separe os desejos de cada um.

Você raciocina como casal, porém aquele com quem divide a vida raciocina como solteiro. Você festeja todo ato a dois, como raspar brigadeiro na panela e se agarrar debaixo das cobertas para espantar o frio, diferentemente de seu namorado, completamente imerso em seus interesses.

Jura que vem sendo correspondida porque não cogita a hipótese do ilhamento em suas vontades.

Aproveita o pouco do romance como muito (o importante é a cumplicidade), já quem você namora somente enxerga como esmola (o importante é não ser incomodado).

Compra orquídeas para embelezar a mesa da sala – o espaço precisava mesmo de flor – e a companhia só acredita que gastou dinheiro à toa. Convida ao cinema sob o pretexto divertido de disputar as mãos no saco de pipoca e a companhia só queria ficar no sofá mexendo nas redes sociais. 

Organiza um almoço familiar, cozinha e prepara uma torta com paciência de uma manhã inteira, e a companhia só queria beber com os amigos e ouvir pagode.

Prepara um final de semana idílico na serra, com hospedagem paga e banheira de hidromassagem, e a companhia só queria dormir até o meio-dia.

Em nenhum momento, duvida de que alguém pode não gostar de amar. Mas casar é vocação para pouquíssimos de alma coletiva. É trocar o egoísmo pela gentileza, é renunciar o conforto pela generosidade. É nascer a dois, no ventre do coração, independentemente do que diz a certidão de nascimento.


18 de junho de 2016 | N° 18559 
MARTHA MEDEIROS

Intuição



Todos têm, até os que a desconsideram. Também conhecida por sexto sentido, é algo abstrato que surge do nada e se acomoda no seu íntimo

Você não sabe explicar. Segundos antes de decidir se deve ou não se intrometer numa conversa, se deve ou não aceitar um convite, se deve ou não reagir, passa por sua cabeça um pensamento rápido que não chega a ser organizado em palavras. Antes de você considerar as opções usando a lógica, é atingido por um lampejo que prevê o desfecho antes mesmo de você analisar a situação. É como se alguém lhe assoprasse no ouvido: não vai funcionar, fique fora disso, não é pra você.

Você escuta essas frases ditas sem voz e vindas de um lugar sem nome. Como chamar essa percepção tão fugaz? Chame de intuição. Todos têm, até os que a desconsideram. Também conhecida por sexto sentido, é algo abstrato que surge do nada e se acomoda no seu íntimo, mesmo sem aplicação imediata.

A intuição não é soberana, dá suas furadas. Mas quando acerta, até assusta.

Não sou de ter muitas, não dou espaço, elas podem me deixar na defensiva, e, sinceramente, não tenho mais tempo a perder com medos infundados. Mas havia uma intuição que andava colada em mim há alguns anos. Uma intuição consistente. Eu não tinha motivo para pensar muito no assunto, ninguém me exigia um posicionamento, mas mesmo assim aquela intuição grudou em mim como se aguardasse uma convocação para qualquer momento. Eu sabia que seria difícil levá-la em consideração se a ocasião surgisse.

Surgiu. Eu precisava dar uma resposta durante um telefonema inesperado, sem chance de pedir cinco minutos para pensar. Estavam todos prontos para o meu sim. O meu sim era dado como certo. Não poderia haver outra resposta, só se eu fosse maluca. E como não sou maluca (não muito), respondi: sim.

Minha intuição ficou uma arara. Sentiu-se desprestigiada. Depois de anos me preparando para aquele momento, anos me dizendo em silêncio “não vá”, “não encare”, “não é pra você”, quando chegou a hora, não dei ouvidos a ela. Ora, se eu a obedecesse, nunca saberia o que viria depois. Ficaria me perguntando se eu não teria sido medrosa, se eu não teria sido uma boba. Por isso, disse sim, fechei os olhos e fui.

Bem feito pra mim.

Minha intuição não foi comigo assistir ao estrago, ficou em casa esperando eu retornar. Quando eu abri a porta de casa, estava ela esquentando minha cama com a sentença que eu não queria ouvir: “avisei”.

Subiu de escalão, minha intuição. Ela me conhece de um jeito que eu não me conheço. É comum a gente formular teorias a respeito de si mesmo e achar que isso basta. Só que teorias não sustentam nossas precariedades. Quando sentimos algum desamparo, vale dar mais atenção aos lampejos fugazes do que às nossas certezas pré-fabricadas.

A intuição nada mais é que um lembrete: respeite o que ainda há de inocência em você.

quarta-feira, 15 de junho de 2016


15 de junho de 2016 | N° 18556 
MARTHA MEDEIROS

O frio vencendo


São exatamente oito e meia de uma manhã siberiana em Porto Alegre – lá fora está 1°C. Um grau que me inspirou a transferir minha aula matinal de pilates para as quatro da tarde e a escrever este texto sobre o inverno, uma estação que para alguns brasileiros é ficção científica, para outros não passa de um pequeno alívio em meio ao calor tropical e para outros, ainda, é motivo para perder a noção do ridículo e calçar três meias, luva, gorro, cinco blusões e um casaco do exército – em casa. 

Uma estação que remete a vinhos, fondue, lareira, romantismo e elegância para quem vive dentro de um cartaz de turismo de Gramado e que para outros é associada à fila de hospital, nebulizador, descongestionante nasal, atchim.

Na dúvida entre comentar o charme da estação mais europeia do ano ou explicar as razões da contagem regressiva feita por quem já vem espirrando desde maio (faltam 99 dias para o início da primavera!), resolvi partir para um terceiro viés: inverno se resume a isso?

Na Flórida, 49 pessoas foram assassinadas à queima-roupa durante uma festa por terem cometido a ousadia de serem gays. Bastou um arrogante armado de ignorância e metralhadora para lembrar que o tal “avanço da civilização” empacou e deu meia-volta. Isso é inverno.

O estupro individual ou coletivo de uma menina, de várias meninas, e de meninos também, os abusos cometidos por trás de paredes vizinhas, dentro de sacristias e escolas, embaixo de nossos narizes, fazendo com que crianças se transformem em adultos com dificuldade de amar e de confiar. Isso é frio de verdade.

Donald Trump ter chegado tão longe. Brrrrrrrr. Me petrifica.

A corrupção, o foro privilegiado, as alianças indecentes feitas para manter o poder, políticos governando para si mesmos, a falta de comprometimento social, as delações canalhas da qual a Justiça se tornou dependente, a ausência de novos líderes, isso é que congela a alma e escurece mais cedo nossos dias.

Quinze graus é verão. Um grau é sopa. Abaixo de zero estão nossas perspectivas.

O que poderia nos aquecer? Solidariedade, tolerância, educação. Três palavras ao vento que, de tão repetidas, já quase perderam o significado. Mas vale teimar um pouco mais. Não é possível que seja tão difícil levar em conta os sentimentos dos outros, segurar uma agressão dentro da boca, compreender que se pode amar a si mesmo sem cair na vaidade de achar que todos os que não são iguais a nós estão equivocados.

Um pouquinho de humildade, menos pretensão, menos afetação, lutar por valores que sejam comunitários, que mobilizem, agreguem, aproximem pessoas. Por aí, quem sabe, a gente extraia algum calor bem antes de a primavera chegar.


15 de junho de 2016 | N° 18556 
FÁBIO PRIKLADNICKI

A MEMÓRIA DO PAI


Um dos aspectos mais estranhos de perder um ente querido é que você continua sonhando com ele como se estivesse vivo. No seu inconsciente, ele tem para sempre a mesma idade de quando morreu. Desde então, você lamenta não ter tido a oportunidade de acompanhar seu envelhecimento, essa etapa da vida que aprendemos a renegar.

Estamos acostumados a compartilhar histórias do crescimento e desenvolvimento dos filhos, e com isso revivemos nossa própria infância. É como se experimentássemos, ao mesmo tempo, três idades: a do presente, a do passado projetado nos filhos e a do futuro vislumbrado na vida dos pais. Mas esta terceira não é suficientemente celebrada. Pelo contrário, a etapa final da vida é uma ideia que preferimos não antever. Será que não podemos aprender com essa experiência assim como aprendemos com os filhos?

Sempre tive medo de ver o pai envelhecer. Olhando para trás, considero um medo bobo. Penso no tanto de coisas que mudaram no mundo desde que ele nos deixou, há quase seis anos. A consolidação das redes sociais (será que estaria no Face?), a crise econômica brasileira e os rumos que tomaram as vidas das outras pessoas da família. O que ele diria de tudo isso?

Algum tempo depois de sua morte, uma vizinha perguntou à minha vó se ela gostaria que um médium transcrevesse uma mensagem póstuma. A vó aceitou e guardou a suposta carta do filho com muita emoção. Recusei-me a ler, mas soube que o tal espírito trazia palavras de louvor a Jesus, o que confirmou minha suspeita de que deveriam ter contratado um médium judeu.

Resta-nos o exercício da memória, como fez o escritor polonês Bruno Schulz, que dedicou boa parte de sua curta e brilhante ficção à vida do pai doente, em registros autobiográficos que transitam entre um realismo mítico e o fantástico. Com a prosa de alta voltagem poética que lhe é característica, Schulz erigiu um monumento literário de excepcional dignidade que se contrapõe à decadência mental e física narrada nos textos.

Schulz teria motivos para evitar pensar no pai. Seu fim foi longo e doloroso e deixou a família em uma situação financeira delicada. Mas, pelo contrário, o escritor tem uma fascinação por aquela figura, a qual descreve com riqueza de detalhes tamanha que você não sabe onde termina a memória e onde começa a imaginação. De certa forma, Schulz fez o que todos gostaríamos de ter feito: uma verdadeira obra que retribui, à altura, o que recebeu do pai. Mesmo que isso nunca nos pareça o suficiente.

sábado, 11 de junho de 2016



11 de junho de 2016 | N° 18553 
CARPINEJAR

Até a ligação cair

Faço a ronda telefônica com os meus amigos: José Klein, Mário Corso, Voltaire, Everton e Eduardo Nasi. É a ala masculina da fofoca. Todo dia falo com eles antes de começar as atividades mais pesadas do trabalho. Eles são a minha fonte de notícias, ideias de crônicas, não me deixam alienado dos principais acontecimentos noturnos da cidade. Como também efetuam a minha manutenção emocional e dou, em contrapartida, um suporte para os seus amores e dissidências.

Não pulo nenhum deles da rotina matinal e do plantão sentimental. Qualquer homem de bem tem seu bar predileto e seus apóstolos. O compromisso está acertado pelo sangue do destino. Eu escreverei a biografia deles exagerando as suas proezas, eles escreverão o meu necrológio mentindo a meu respeito. Somos leais aos sonhos mais do que aos fatos.

O engraçado é que se a ligação cai ninguém telefona de volta. É uma etiqueta dos machos.

Diferente do tricô do timbre da mulher com as amigas, não há desespero ou mal-estar. Entendemos a fragilidade das operadoras, os vários pontos sem cobertura pelos bairros. Fazemos de conta que acabou o crédito, simples assim. Aceitamos generosamente o inesperado. O que não era para ser não será. Não confundimos a falta de retomada com indiferença e aspereza. Não nos penalizamos com hipóteses fatalistas de assalto e acidente. Não temos aquela paranoia de supor que o outro desligou na cara – coisa que só ocorre no início dos romances. Não cobramos um tchau e um aceno solene.

Eu acho que inclusive gostamos da roleta-russa da voz. É um suspense que acelera o raciocínio e previne a incontinência verbal.

Guardamos uma simpatia por não precisar enrolar com a despedida e sermos educados a ponto de ouvir o que não nos interessa.

Falamos até cair – é o nosso pacto. E vai cair, não há dúvida disso com o congestionamento caótico de linhas e sinais neste mundo.

O que não foi dito repassamos automaticamente para o próximo papo. Pendências não viram tragédias. Homem não sofre com o que ficou inacabado e imperfeito.

Para que insistir? Resumimos o que nos incomoda em 10 minutos, menos ainda. Talvez num grito ou num bah!

Amigo é econômico no afeto, mas sempre pontual na tristeza.


11 de junho de 2016 | N° 18553 
CARPINEJAR

Até a ligação cair

Faço a ronda telefônica com os meus amigos: José Klein, Mário Corso, Voltaire, Everton e Eduardo Nasi. É a ala masculina da fofoca. Todo dia falo com eles antes de começar as atividades mais pesadas do trabalho. Eles são a minha fonte de notícias, ideias de crônicas, não me deixam alienado dos principais acontecimentos noturnos da cidade. Como também efetuam a minha manutenção emocional e dou, em contrapartida, um suporte para os seus amores e dissidências.

Não pulo nenhum deles da rotina matinal e do plantão sentimental. Qualquer homem de bem tem seu bar predileto e seus apóstolos. O compromisso está acertado pelo sangue do destino. Eu escreverei a biografia deles exagerando as suas proezas, eles escreverão o meu necrológio mentindo a meu respeito. Somos leais aos sonhos mais do que aos fatos.

O engraçado é que se a ligação cai ninguém telefona de volta. É uma etiqueta dos machos.

Diferente do tricô do timbre da mulher com as amigas, não há desespero ou mal-estar. Entendemos a fragilidade das operadoras, os vários pontos sem cobertura pelos bairros. Fazemos de conta que acabou o crédito, simples assim. Aceitamos generosamente o inesperado. O que não era para ser não será. Não confundimos a falta de retomada com indiferença e aspereza. Não nos penalizamos com hipóteses fatalistas de assalto e acidente. Não temos aquela paranoia de supor que o outro desligou na cara – coisa que só ocorre no início dos romances. Não cobramos um tchau e um aceno solene.

Eu acho que inclusive gostamos da roleta-russa da voz. É um suspense que acelera o raciocínio e previne a incontinência verbal.

Guardamos uma simpatia por não precisar enrolar com a despedida e sermos educados a ponto de ouvir o que não nos interessa.

Falamos até cair – é o nosso pacto. E vai cair, não há dúvida disso com o congestionamento caótico de linhas e sinais neste mundo.

O que não foi dito repassamos automaticamente para o próximo papo. Pendências não viram tragédias. Homem não sofre com o que ficou inacabado e imperfeito.

Para que insistir? Resumimos o que nos incomoda em 10 minutos, menos ainda. Talvez num grito ou num bah!

Amigo é econômico no afeto, mas sempre pontual na tristeza.

sábado, 4 de junho de 2016



04 de junho de 2016 | N° 18547 
CARPINEJAR

Grandes histórias de amor


Amor não é preguiça. Amor é vencer a preguiça. Com filhos ou com esposa.

É trocar a paz pela dedicação. É sair do conforto para atender alguém. É abdicar do calor das cobertas em nome do cuidado, é se antecipar em gentilezas e enfrentar o frio do inverno e dos pés descalços na cozinha.

Quem deseja dormir passando do meio-dia como fosse um eterno adolescente, ficar assistindo a séries ou futebol sem ser incomodado, deixar a bagunça se acumular para a chegada da faxineira, não lavar a louça até não encontrar mais copos e pratos limpos, permaneça solteiro. Não se case, não seja pai. Não gozará do luxo de duas horas de tranquilidade para ler ou boiar com os pensamentos. O intervalo de distração é de três minutos.

Família é perder o controle dos próprios horários. É madrugadão. É o equivalente a trabalhar como vigia ou segurança noite adentro, é assumir a condição de taxista nos momentos vagos.

Quando o filho é bebê, você terá que atender às cólicas, usará o gogó para desfiar as canções de ninar da época da vó e dar colo de um lado para o outro, incessantemente, com os faróis dos carros iluminando as janelas da sala. Quando o filho é criança, é acudir os pesadelos e de repente levar o pequeno para a cama de casal. Quando o filho é adolescente, é esperar o chamado para buscá-lo de carro nas festas.

Não conhecerá trégua. Não conhecerá moleza. O sono vem aos surtos, aos goles, aos poucos, em curvas, não ocorre em linha reta. O alarme do celular é o melhor amigo do homem de família.

Há décadas que não sei o que é me espreguiçar lentamente, com os braços esticados para cima, ronronando, treinando posição de yoga e saudando o sol. Eu acordo de susto, com o coração aos pulos, determinado a cumprir tarefas. Nem penso muito, faço para depois pensar.

Tenho consciência de que amar é nunca mais ser egoísta, é renunciar ao individualismo e ao prazer de estar sozinho.

Foi uma decisão de uma vida feita na maior insignificância. Defini a minha paternidade e o meu casamento durante a segunda noite com a minha mulher. Ela estava com sede e pediu um copo d’água. Poderia fingir que não ouvi, poderia fingir sono profundo, poderia fingir que não era comigo, afinal a temperatura beirava os cinco graus. Mas empurrei o meu corpo para fora da cama, concluindo que ela merecia o meu esforço e que não custava nada oferecer um pouco de ternura.

Não duvide da banalidade. Levantar ou não para buscar o copo de água para a sua namorada é sempre onde começam grandes histórias de amor.


04 de junho de 2016 | N° 18547 
MARTHA MEDEIROS

Depois que o amor acaba


Depois que o amor acaba, entra em cena a isenção. Agora você pode, enfim, avaliar o que aconteceu por outro ângulo. “Pensando com mais clareza, agora vejo que aquela relação foi a experiência mais fascinante que vivi.” Oi?

Um ano antes, a mulher parecia um trapo encardido, passava chorando pelos cantos, lamentando a má sorte de ter se apaixonado por um Don Juan que só a humilhava e a fazia sofrer, e agora aquela dilaceração toda se transformou na experiência mais fascinante já vivida?

Sim. Qual o espanto?

Depois que o amor acaba, entra em cena a isenção. Você não faz mais parte daquela nhaca. Está desobrigada de administrar revezes, de procurar soluções para impasses, de fazer parte de um jogo maluco de sedução. Não há mais adoração, esperança, ódio, raiva, desapontamento. E não havendo nada, tampouco há interesse em descredibilizar o outro para tentar manter o que resta da própria dignidade. Não há mais risco. Ninguém mais precisa se salvar. Agora você pode, enfim, avaliar o que aconteceu por outro ângulo.

Então, dali de onde ela estava, de uma distância segura do passado, tudo se transfigurou. O amor não era mais analisado pelo o que havia sido, mas pelo o que agora representava.

O que antes era dilacerante virou uma bela experiência anexada ao currículo. O que antes era gigantesco foi reduzido a um tamanho médio. O que antes era definitivo virou passageiro. O que antes era pra sempre, encontrou um fim sereno.

Dimensionamos nossas emoções de acordo com a força do momento. Acreditamos nas definições que costumamos dar ao que está sendo experimentado, usando com orgulho as palavras “tudo”, “infinito”, “certeza”. Ficamos apalermados pelo vigor da experiência, pelo absoluto das nossas sensações, até que, depois de um longo tempo de crença, perde-se a aposta, o jogo termina e vamos para outra mesa do cassino, onde tudo recomeça.

É quando o passado ganha uma nova cara e novos significados. O que era desespero transfigura-se em infantilidade, o que era perturbador torna-se risível, o que era intenso parece frugal. Você acreditou que era personagem de um melodrama, era assim que enxergava a história de dentro. Pulou para fora e agora só vê a parte amena, só a beleza da sua inocência. Aquela não é mais você, aquilo deixou de ser um tour de force, agora você se dá conta de que, quando se está no epicentro de um acontecimento, tudo parece maior do que é.

Estando em meio ao dilúvio, é inevitável sofrer, emocionar-se, dilacerar-se, abraçar todos os sentimentos inerentes àquele mergulho: não há como antecipar o amanhã, só existe a asfixia do hoje. O consolo é lembrar que é só uma questão de tempo para tudo acabar num leve e agradecido “valeu!”.

quarta-feira, 1 de junho de 2016


01 de junho de 2016 | N° 18540 
MARTHA MEDEIROS

Uma mosquinha


Quando me chamaram para participar do Saia Justa gravado em Porto Alegre, pensei: adoro o programa, mas as garotas já estão afinadas, são ligeiras, como acompanharei o ritmo da conversa? Mesmo assim, aceitei o convite, honrada, e adivinhe o que aconteceu: o óbvio. Elas arrancaram risadas da plateia, encantaram a todos, enquanto eu me senti ligeiramente deslocada. Fazer o quê? Celebrar a experiência e tocar em frente.

A ótima Astrid Fontenelle, que comanda o talk show, em certo momento quis saber onde cada uma de nós se infiltraria caso pudesse ser uma mosquinha. Uma falou que gostaria de observar o que acontece na escola do filho, já que ele só fala por monossílabos. Outra entraria na casa do Tony Ramos pra saber como ele faz para ter um casamento feliz por 40 anos. 

Outra entraria na casa da Grazi Massafera pra saber se ela realmente come de tudo, sem fazer dieta. Respostas espirituosas pipocavam e eu suava frio: socorro, eu não gostaria de peruar os bastidores de ninguém. Quando chegou minha vez, em vez de dizer algo divertido, assumi: não é esse o tipo de voyeurismo que me atrai.

Então qual é, santa?

Respondi que me sinto uma mosquinha quando leio livros. Escutei alguém sussurrar “hum, interessante”, mas deviam estar pensando: o que essa gaúcha afetada está fazendo no meio da gente?

Não desenvolvi o assunto, não era tão interessante assim, mas pra você, que tem paciência comigo, vou adiante: sim, quando leio um livro, tenho um prazer quase erótico de mergulhar com o personagem naquela vivência inventada que me soa mais realista do que os posts das redes sociais. Durante a narrativa, sou apresentada ao protagonista, sei de onde ele veio, conheço os motivos profundos que o fazem se comportar daquele jeito, entro em seus pensamentos, ele compartilha comigo sua ansiedade, enxergo todas as nuances de sua vida complexa e contraditória. 

É uma relação a dois. Eu me comovo, me espanto, me apaixono. É dessa intimidade que extraio inspiração para realizar meu trabalho e também para lapidar minha história pessoal, já que estou constantemente in progress.

Poderia ter dito a elas que gostaria de ser uma mosquinha na cozinha do meu restaurante favorito, na hora em que o editor recebe meu novo original, na sessão de terapia dos meus ex-namorados, durante o happy hour das minhas amigas num dia em que não pude ir. Tudo mentira. Não sinto vontade de flagrar transgressões, antecipar acontecimentos ou descobrir o que falam de mim pelas costas. Há maneiras mais elegantes de bisbilhotar.

Todo mundo pode ser uma mosquinha quando lê. Você, por exemplo, agora.

sábado, 28 de maio de 2016


28 de maio de 2016 | N° 18537 
CARPINEJAR

A matemática do amor


Por mais que se perca a razão no amor, o sentimento guarda uma matemática secreta. Há uma equação escondida debaixo das tormentas do relacionamento. Ninguém levanta alicerces para o edifício das palavras e das juras a dois sem recorrer à trigonometria. Dentro da poesia aparentemente passional, caótica e temperamental da coreografia emocional, é possível localizar a precisão da engenharia e a sustentabilidade da arquitetura.

Na separação, eu realizo um cálculo objetivo que costuma funcionar. A felicidade sempre tem que pagar comissão para a dor. Não é uma taxa opcional – todos serão obrigados a participar.

É um coeficiente mínimo de esforço e sacrifício que cada um vai arcar para se desapegar do ex ou da ex. O separado precisa experimentar um isolamento e expiação proporcional ao tempo da relação. Se você viveu vinte anos com alguém, atravessará dois anos de luto. Se viveu dois anos com alguém, serão dois meses de luto. 

Se viveu dois meses com alguém, a conta de angústia fica em dois dias. Depois da alegria do banquete, cabe separar dez por cento da duração da união para o sofrimento. A saúde de um novo romance depende dessa estranha contabilidade. Encurtar ou alargar o período prejudicará o andamento das suas convicções – ou desistirá do romantismo ou emendará lastros com pessoas erradas e inoportunas.

O mundo adulto é feito de tributações. Onde predominou esperança restará um dízimo de frustração a quitar, onde reinou a ilusão sobrará o pedágio de desapontamento a superar, onde vigorou confiança aparecerão pendências para serem solucionadas. A fórmula da felicidade inclui tristeza e solidão com a ruptura. Depois de ser dois, voltar a ser um requer recuperar a metade doada.

O sofrimento é um garçom implacável de gravata-borboleta. Não achará forma de enganá-lo e fugir da dívida. Com o término do prazer e da idealização, ele estará diante de você com a caderneta preta da fatura na mão direita e a maquininha na mão esquerda:

– Crédito ou débito?

Melhor escolher o débito logo. Adiar o pagamento só aumentará os juros do recalque.

Mas há aquele que trai a objetividade e se separa dentro da relação. Parcela o fim em vinte e quatro vezes, a cada briga e discussão, e quando sai porta afora já não deve mais nada.


28 de maio de 2016 | N° 18537 
MARTHA MEDEIROS

Pés no chão

A simplicidade é o novo luxo. Aliás, sempre foi, apenas está recebendo o status merecido diante da falência econômica mundial

Saí de férias nas últimas semanas e não levei nenhum sapato de salto alto na bagagem. Nada contra, acho bonito, só que uso pouco. Salto agulha, só em festas de casamento e similares. Já um saltinho médio, tipo tacão, em botas e sandálias, ok. Mas dessa vez eu saí do país apenas com rasteirinhas e tênis e descobri que estava sintonizada com os atuais costumes, mesmo sem me dar conta. Depois de umas perambulações por lugarejos praianos e vilas medievais, passei três dias em Paris, meca da alta-costura, capital da elegância feminina, e não vi uma única mulher usando salto alto. Sério. Nenhuma.

Por alguma conexão cósmica, no mesmo dia em que percebi isso, li a notícia de que Julia Roberts havia circulado pelo tapete vermelho do Festival de Cinema de Cannes com os pés descalços, em protesto contra a expulsão de algumas mulheres que não seguiram o protocolo ano passado, enquanto que a jornalista Mauren Motta postava em seu perfil no Facebook o apoio à britânica Nicola Tharp, uma recepcionista de 27 anos que se recusou a trabalhar nove horas em pé usando salto e foi demitida.

Não sou partidária do desrespeito ao dress code estipulado por empresas e pelo bom senso: acho que vestir-se convenientemente, de acordo com a ocasião, é uma questão de bons modos. Mas nada impede que a gente repense a obrigatoriedade dos maiores ícones masculinos e femininos: a gravata e o salto alto. O uso de um e de outro deve ser facultativo, não uma imposição.

Posto isso, mudo de assunto, mas nem tanto. Voltei da Europa convencida de que o glamour tornou-se obsoleto. O mundo está em constante mudança, e é hora de sermos mais realistas e práticos. Glamour e ostentação não significam a mesma coisa, mas confundem-se. Tudo o que é over resvala para a cafonice. A simplicidade é o novo luxo. Aliás, sempre foi, apenas está recebendo o status merecido diante da falência econômica mundial.

Não estou falando apenas de consumismo, mas de atitude, de cultura, de estilo de vida. “Menos é mais” já deixou de ser uma tendência para virar um clássico. A Europa não é o paraíso: tem gente nas esquinas pedindo esmola, tem desemprego, tem greves, tem escândalos, nada está assegurado, o pulso pulsa.

Mas pulsa sem espalhafato. A Europa se manifesta num tom mais baixo e nem por isso deixa de ser escutada. Mantém a compostura. Não há celulares em cima das mesas dos restaurantes. Não há barulho excessivo. Não há cores gritantes. Não há tanto agrotóxico, maquiagem, pressa, televisão, grosseria, suores, botox. Não há tanto enfeite, não há tanta sedução ostensiva, não há tanto. As coisas funcionam sem os excessos. Há valores máximos dentro do mínimo.

Voltei sonhando (alto) com um Brasil mais pé no chão.

quarta-feira, 25 de maio de 2016


25 de maio de 2016 | N° 18534 
MARTHA MEDEIROS

Amor não retribuído

Basta uma mulher manifestar certa amargura e logo surge alguém para chamá-la, ofensivamente, de mal-amada. Pois então. É o que somos todas, mal-amadas. E todos os homens são também. De Norte a Sul, formamos uma população de mal-amados: o país não quer nada com a gente.

Desde que comecei a ter alguma noção de política (no meu caso, quando entrei na faculdade), mantenho uma relação de desconfiança com o Brasil. Sabia que ele havia feito sofrer muita gente antes de mim, um repressor sádico, que torturava entre quatro paredes. Eu o amei quando criança porque não o conhecia direito, até que cresci e ele pareceu crescer também, democratizando-se e passando a fazer promessas que eram tudo o que alguém apaixonado gostaria de ouvir.

O Brasil é um sedutor. No discurso, acena com reciprocidade. Necessidades básicas atendidas. Direito de ir e vir, liberdade de expressão, troca de ideias. Uma relação adulta, prazerosa, possibilitando que todos evoluam juntos. O amor ideal.

Mas o Brasil fala muito e faz pouco. O Brasil promete e às vezes chega perto de realizar nossos sonhos, mas logo reincide na cafajestada. Não sai da adolescência. Vive se deixando levar pela lei do menor esforço, querendo obter vantagens, sobrevivendo de conquistas rápidas e inconsistentes, deslumbrado pelo próprio poder e esquecido de suas obrigações. Um gargantão que às vezes dá a impressão de que virou gente grande, mas virou nada, é o mesmo moleque de sempre.

Diante desse descompromisso explícito por parte dele, nasceu nossa mágoa. O povo brasileiro, em sua maioria, hoje se comporta como quem levou um fora. Como quem teve seu amor recusado. E daí para ficar rancoroso é um passo.

A gente acreditou que iria dar certo. Acreditou que haveria futuro, uma relação sólida e para sempre. Que o visual exuberante, esse país tão belo, tinha também conteúdo, honestidade, ética, inteligência. Mas ficou só no desejo, não rolou. Todas as brasileiras são mulheres de bandido. Todos os brasileiros se envolveram com uma nação biscate. O Brasil não quer saber de relacionamento sério. É crau e fim. Não telefona nem manda flores no dia seguinte.

Cada um de nós ainda procura se apegar a algo que nos pareceu bom no início da relação com o país – o que pareceu bom pra você? Os militares? Sarney? Collor? Fernando Henrique? Lula? Deu em nada ou quase nada. Hoje estamos todos nos xingando mutuamente, numa ânsia desesperada de apontar culpados pela própria desilusão, sem perceber que temos algo profundo em comum: o ressentimento. Uma tremenda dor de cotovelo. Somos todos vítimas de um amor cívico que o país nunca retribuiu.

terça-feira, 24 de maio de 2016


24 de maio de 2016 | N° 18533 
CARPINEJAR

Aniversário da amizade


Comemoramos aniversários de namoro e de casamento e jamais lembramos os marcos das amizades.

A amizade repousa num tempo indefinido e vago, sem festa, sem torta e sem parabéns. É uma omissão injusta. Favorecemos as amarras do romance e descuramos dos laços da fraternidade.

Ninguém festeja a data do primeiro encontro com um amigo muito especial. Eu percebi a lacuna quando Eduardo Nasi, meu comparsa gaúcho radicado em São Paulo, lembrou-me de que em 15 de agosto completávamos 20 anos de amizade. Eu ri e logo suspirei:

– Já foram duas décadas, hein? Meu Deus, como passou rápido!

– Pois é, a gente se conheceu porque gostávamos de poesia e nunca deixamos de nos falar mesmo quando morávamos em cidades diferentes – ele respondeu.

Combinamos de jantar neste dia para vibrar com as bodas de porcelana da amizade. Um encontro bem bagual: beber até passar mal, quem cair pagará a conta. Um preço justo para a cara partilha de confidências, pois atravessamos lado a lado as crises dos 20, dos 30 e dos 40.

Amigo é algo tão sério, que deveríamos pedir o ombro do sujeito para os seus pais. Se pedimos a mão da mulher em casamento, o ideal é solicitar o encosto leal e fiel de nosso amigo com a mesma solenidade e tensão, olhando nos olhos dos progenitores e prometendo sinceridade e cuidado pela vida afora. Afinal, o ombro dele será nossa fortaleza nas tristezas e nas separações, nos tropeços e nas fraquezas, na saúde e na doença, até que a morte nos separe. 

Ele não é uma casualidade ou um golpe de sorte ou um resultado das circunstâncias. Amigo é destino, amigo é vocação, amigo é amor de anjo, amigo é inocência de intenção. Longe de um amigo, não há casamento que resista e profissão que se sustente.

Antes de ver quem é a mãe do outro, somos apenas conhecidos. Temos que frequentar a casa e a família, percorrer enterros e nascimentos, suportar a intimidade das contradições e oferecer conselhos com uma visão privilegiada de conjunto, antevendo de onde veio e quais são os seus problemas e lapsos de infância.

Pelo jeito, eu e Eduardo chegaremos às bodas de ouro. Faltam ainda 30 anos, mas não tivemos nenhuma discussão de relacionamento ao longo de nossa cumplicidade.

sábado, 21 de maio de 2016



21 de maio de 2016 | N° 18531 
CARPINEJAR

VOU TENTAR

“Vou tentar ser fiel.

Vou tentar não mentir.

Vou tentar melhorar.

Vou tentar mudar.

Vou tentar me entregar para a relação.

Vou tentar não me omitir.

Vou tentar cumprir os prazos.

Vou tentar não ser ansioso.

Vou tentar não ficar pressionando os filhos.

Vou tentar obedecer às leis.

Vou tentar não me indispor no trabalho.

Vou tentar vencer.

Vou tentar perdoar.

Vou tentar não reeditar os erros do passado.

Vou tentar atingir as metas.

Vou tentar assumir os meus compromissos.

Vou tentar parar de fumar.

Vou tentar parar de beber.

Vou tentar parar de incomodar.

Vou tentar parar de gritar.

Vou tentar parar de correr.

Vou tentar não discutir.

Vou tentar não brigar.

Vou tentar não ofender.

Vou tentar não magoar.

Vou tentar reclamar menos.

Vou tentar respeitar os meus limites.

Vou tentar não decepcionar.

Vou tentar dar um maior tempo para a família.

Vou tentar me organizar.

Vou tentar arrumar o armário.

Vou tentar ser feliz.

Vou tentar cuidar dos meus pais.

Vou tentar ser mais amoroso.

Vou tentar não cancelar encontros.

Vou tentar não me atrasar.

Vou tentar juntar dinheiro.

Vou tentar não gastar demais no cartão.

Vou tentar não desmarcar a terapia.

Vou tentar revisar a saúde.

Vou tentar estudar para concurso.

Vou tentar me concentrar.

Vou tentar voltar para academia.

Vou tentar telefonar para os amigos.

Vou tentar não me estender de noite.

Vou tentar acordar cedo.

Vou tentar emagrecer.

Vou tentar retornar com as caminhadas.

Vou tentar. Juro que vou tentar.”

Mas tentar são as aspas da preguiça. Tentar é faltar com a verdade.

Tentar é um falso começo.

Tentar é justificar o fim com o esforço.

Tentar é falar pelas expectativas do outro.

Tentar é fingir que é uma promessa quando é apenas uma confissão de culpa.

Tentar é deixar a vida passar.

Tentar é repetir os medos.

Tentar não é esperança, e sim uma ilusão para ganhar tempo para continuar do mesmo jeito.

Tentar é se desculpar por antecedência.

Tentar é um permanente adiamento.

Tentar é uma fantasia onipotente de criança, de quem não aceita o não.

Tentar é se ocupar com o que nunca será feito.

Tentar é não ajudar a si mesmo.

Tentar é evitar provisoriamente as cobranças.

Tentar é trocar as atitudes por lamentos.

Tentar é não dar o exemplo.

Tentar é não estar certo disso.

Tentar é não fazer.

Tentar é sempre fracassar."


21 de maio de 2016 | N° 18531
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

TRISTEZA NÃO TEM FIM...


As circunstâncias da vida, que os pacíficos atribuem ao destino, podem fazer com que um indivíduo, crescido na miséria extrema, perca gradualmente o alento para a indignação e passe a aceitar os atropelos da vida com uma naturalidade inconcebível e chocante.

Isso que JG de Araujo Jorge reconheceu como o drama das pessoas que “de tanto perder, quando chega o dia da morte, já nem tem mais o que morrer”.

Semana passada, convivi com um paciente que é o símbolo da nossa pobreza social: uma vítima de silicose, essa doença mutilante que escancara o desapreço com que as questões elementares de respeito ao ser humano são tratadas no nosso interior. Essa enfermidade, evolutiva e fatal, destrói os pulmões pela inalação repetida de pó de pedra, e mutila milhares de infelizes trabalhadores braçais, que buscam a sobrevivência cavando nas minas de carvão, de pedras preciosas ou simplesmente perfurando poços artesianos, sem nenhum tipo adequado de proteção.

Ouvindo-o relatar a sua história de perda sucessiva dos irmãos com a mesma doença, facilmente evitável pelo simples uso de uma máscara efetiva, o que mais chamava atenção era o conformismo com que ele descrevia a aceitação dos riscos, condicionado que estava a aceitar a miséria sem protesto e o destino sem redenção. A construção de uma vida indigna era mera consequência de gerações de ancestrais vitimadas pela pobreza genética que molda comportamentos pusilânimes, e sepulta os sonhos mais primitivos.

Não por acaso, a preservação da capacidade de indignação é considerada um dos mais confiáveis índices de desenvolvimento social.

Ao vê-lo ofegante, com os olhos sem brilho porque há muito perdera a esperança, não consegui dizer-lhe que o transplante pretendido, e pelo qual foi encaminhado do Ceará, é uma utopia, porque se for alcançado, ainda tenderá ao fracasso pelas más condições de habitação, higiene e saneamento em que vive. 

Há alguns anos, numa situação semelhante em que atendia um nordestino jovem, também vítima de silicose e que também já perdera três irmãos da mesma doença profissional, estupidamente lhe perguntei se não pensara em fazer outra coisa, considerando o que ocorrera com seus irmãos, e ele me impôs o castigo que mereci ouvir pela alienação: “O problema, doutor, é que no sertão nós somos muitas vezes obrigados a escolher entre a fome e a falta de ar. E acabamos escolhendo a falta de ar, porque a fome mata mais rápido!”.

Deprimente dar razão aos estrangeiros que, ao assistirem ao meu relato em Zurique sobre a experiência brasileira em transplantes pulmonares por silicose, se confessaram pasmos com um país que não consegue oferecer o cuidado elementar da prevenção, mas depois que os pulmões estão destruídos, dá a impressão de que se preocupa com eles ao oferecer-lhes um tratamento da complexidade e do custo de um transplante. Que estranho país esse!

Foi doloroso pensar naquele brasileirinho arfante que, como um zumbi, se arrasta pelas ruas por culpa de um sistema miserável, que não tem o mínimo apreço pelos seus cidadãos, mas que se perpetua pela nossa indiferença e permanente omissão. Difícil pensar no metrô da Venezuela e no porto de Cuba sem sentimento de culpa!


21 de maio de 2016 | N° 18531 
MARTHA MEDEIROS

Martha Medeiros está em férias. 

Esta coluna foi originalmente publicada em 16/01/2002.

Andróginos

Artista é o que toca no extremo. Catalogar um artista como homem ou mulher e a partir daí tirar conclusões é percorrer um caminho muito curto para a compreensão da obra de alguém

Uma das perguntas que mais fazem a escritores é sobre a diferença entre a literatura feminina e a literatura masculina.

Eu nunca senti essa diferença de forma gritante.

Em tese, TPM e parto podem ser melhor descritos por uma mulher do que por um homem, e assim entraríamos no terreno das vivências para diferenciar uma literatura de outra, mas acredito que, havendo talento, qualquer um escreve sobre qualquer coisa.

Como já disse Virginia Woolf, todo artista é um andrógino.

As pessoas se inquietam com essa afirmação, como se estivéssemos dizendo que todo artista é um androide, quando é justamente o contrário.

O artista não é programado para pensar como mulher ou como homem, para gostar de cor-de-rosa ou de azul, para ser mais romântico ou mais pragmático, segundo as generalizações impostas no berço.

O artista é o oposto do androide, é desprogramado de nascença, aberto a todas as correntes de pensamento, dono de uma antena que capta os sentimentos mais contraditórios.

O artista traz uma liberdade assustadora no peito e o ímpeto de expressá-la na sua dança, através de seus pincéis ou num palco.

Não há juventude e velhice no ato da criação, não há livros escritos por cabeludos que sejam diferentes de livros escritos por calvos, não é o alcoolismo de um músico que o diferenciará de um músico abstêmio, somos todos diferentes na nossa percepção individual e unos na nossa descrença em relação a verdades únicas.

Todo artista é ao mesmo tempo o louco e o sensato. Artista é público e solitário, é quem se dá e se recebe de volta, encarna e desencarna, fala por João, por Maria e pelos bichos todos que traz dentro.

Artista é o que toca no extremo.

Catalogar um artista como homem ou mulher e a partir daí tirar conclusões é percorrer um caminho muito curto para a compreensão da obra de alguém.

Fumamos charuto (somos homens ou mulheres?), sentimos a ausência de um filho (somos homens ou mulheres?), somos ciumentos patológicos (somos homens ou mulheres?), gostamos de cozinhar (somos homens ou mulheres?).

São apenas pessoas em busca do sentido da vida e que convidam a embarcar nessa viagem aqueles que não se preocupam de onde a viagem parte, mas para onde ela nos leva.

sábado, 14 de maio de 2016



14 de maio de 2016 | N° 18525 
CARPINEJAR

Oficina do diabo

Não sou terapeuta de minha mulher. Não sou o melhor amigo. Não pretendo resolver os seus problemas ou traumas. Não tenho a intenção de me sentir superior, disfarçar os meus limites e dar lição de moral.

Quando converso, é de igual para igual. Não há somente um desabafando e um segundo ouvindo e interpretando. Sou o seu homem, o seu presente, o seu futuro, o que significa que a nossa cama não é um divã, muito menos um mausoléu.

Não aceito, portanto, que fale de ex. Não falarei igualmente dos meus antecedentes criminais. Casal que passa a limpo antigos relacionamentos se prende ao passado. É um dos grandes erros da intimidade – achar que se deve contar tudo o que se viveu antes para se prevenir dos desacertos. O efeito é o contrário: desencadeia uma comparação ciumenta sem limites.

No par amoroso, acontece a predisposição de revisar os erros e explicar o que não funcionou, ainda mais quando as rupturas são recentes. Esquece-se que toda relação é um dialeto e o que se aprendeu num romance não é aplicável no próximo.

Desenganado, o casal atravessa a madrugada narrando a linha de tempo dos namoros, casamentos e separações. O que parece inofensivo é a oficina do diabo. As fragilidades serão testadas nas brigas: você sabe que a outra pessoa foi abandonada e ameaça largá-la como chantagem nas horas em que perde a razão, você sabe que a outra pessoa sofreu com as mentiras e abusa do excesso de detalhes para torturá-la nos momentos de crise, você sabe que a outra pessoa foi infiel e verifica a veracidade de seus compromissos. A maldade vem do poder e da informação.

Quando o casal está bem, é óbvio que os segredos permanecem preservados. Mas, quando está mal e inseguro, sai de perto, a confidência retorna distorcida. Aquilo que é soprado no ouvido e reservadamente termina repetido no megafone. No desespero, não há pudor para atacar o ponto fraco de quem nos acompanha – e os relacionamentos desfeitos representam um mapa propício para invasões de personalidade.

As indiscrições sobre o ex alimentam mágoas e ressentimentos, além de garantir uma sobrevida incômoda a uma ausência e ressuscitar um velho contato. O paralelo com os fantasmas é inevitável. Cria-se uma insegurança de que o nosso par já foi mais feliz ou amou melhor um dia. Não é improvável colocar na balança o que realiza para você e o que realizou anteriormente, sempre pensando que amarga uma desvantagem.

A amnésia é o anjo da guarda do amor. A memória tem que ser do aqui e do agora, fechando o espaço para as intrigas, rompendo vícios de vitimização e melancolia e abrindo-se para a porção da alma desconhecida e surpreendente de cada um.



14 de maio de 2016 | N° 18525 
MARTHA MEDEIROS
Vende frango-se


Vende carne-se, vende carro-se, vende barco-se. Não incentivo a ignorância, apenas cedo um olhar mais adocicado ao que é estranho a tanta gente, o nosso idioma

Alguém encontrou esta pérola escrita numa placa em frente a um mercadinho de um morro do Rio: Vende frango-se. É poesia? Piada? Apenas mais um erro de português?

É a vida e ela é inventiva. Eu, que estou sempre correndo atrás de algum assunto para comentar, pensei: isto dá samba, dá letra, dá crônica. Vende frango-se, compra casa-se, conserta sapato-se.

Prefiro isso aos “q tc cmg?” espalhados pelo mundo virtual, prefiro a ingenuidade de um comerciante se comunicando do jeito que sabe, é o “beija eu” dele, o “quer vim aqui casa?” de tantos.

Vende carne-se, vende carro-se, vende barco-se. Não incentivo a ignorância, apenas cedo um olhar mais adocicado ao que é estranho a tanta gente, o nosso idioma. Tão poucos estudam, tão poucos leem, queremos o quê? Ao menos trabalham, negociam, vendem frangos, ao menos alguns compram e comem e os dias seguem, não importa a localização do sujeito indeterminado. Vive-se.

Talvez eu tenha é ficado agradecida por este senhor ou senhora que anunciou-se de forma errônea, porém inocente, já que é do meu feitio também trocar algumas coisas de lugar, e nem por isso mereço chicotadas, ao contrário: o comerciante do morro me incentivou a me perdoar. Esquecer o nome de um conhecido, não reconhecer uma voz ao telefone, chamar Gustavos de Olavos, confundir os verbos e embaralhar-se toda para falar: sou a rainha das gafes, dos tropeços involuntários. 

Tento transformar em folclore, já que falta de educação não é. Conserta destrambelhada-se. Eu me ofereço pro serviço. Quem não? Sabemos todos como é constrangedor não acertar, mas lá do alto do seu boteco, ele nos absolve. Ele, o autor de um absurdo, mas um absurdo muito delicado.

Vende frango-se, e eu acho graça, e achar graça é uma coisa boa, sinal de que ainda não estamos tão secos, rudes e patrulheiros, ainda temos grandeza para promover o erro alheio a uma inesperada recriação da gramática, fica eleito o dono da placa o Guimarães Rosa do morro, vale o que está escrito, e do jeito que está escrito, uma vez que entender, todos entenderam. Fica aqui minha homenagem à imperfeição.

sábado, 7 de maio de 2016

07 de maio de 2016 | N° 18519 
CARPINEJAR

  • A esperança da mãe

    A morte demora a acontecer, mesmo depois da morte. É lenta e vagarosa quando se ama. A minha namorada Beatriz perdeu a sua mãe em março, vítima de leucemia, doença que a levou em apenas três semanas.

    Ia embora a sua pessoa favorita. As duas dividiam o apartamento, as caronas e as viagens de férias. Amigas a ponto de nunca esconderam nada uma da outra, por mais que preponderasse a diferença de idade e de geração.

    O enterro não foi a parte trágica da despedida. Era acenar para o corpo – e o hábito é acreditar que o corpo voltaria no dia seguinte. Complicado é se desvencilhar aos poucos da proteção e da confidência maternas. Avisar aos amigos que ela não estará mais aqui, fazer os mesmos caminhos e restaurantes e responder, com as lágrimas já domesticadas pelos cílios, as perguntas constrangedoras e repetidas de “como está a sua mãe?”.

    A sequência mais pesada estava por vir: esvaziar o guarda-roupa. Não há tarefa tão ingrata e dolorosa. Ainda mais para uma mulher que desfrutava de manequim parecido e partilhava as peças com a mãe. A roupa é o último reduto da saudade: onde o cheiro do colo e do cuidado emana como se fosse ontem.

    Trata-se do verdadeiro velório, aquele que é consumado sozinho, longe do amparo dos outros, no ritual de dobrar caprichosamente o fim do familiar na mala para uma viagem definitiva.

    Os olhos da namorada tinham medo do que podiam encontrar – sofriam a ansiedade de recolher um recado, um símbolo, um aviso pós-morte. Havia um cuidado vigilante na hora de revistar os bolsos sob o impacto de encontrar um bilhete com letra tremida que reabrisse a fé. Nada de assustador surgiu, a não ser as lembranças puras de quem ouvia restos das conversas de antigamente.

    – Este é o chambre que a minha mãe colocou na lua de mel.

    – Este é o casaco que ela comprou em Gramado.

    – Este é o cinto que ela trocou a fivela.

    – Esta é a camisa que ela roubou de mim e fingi que não vi.

    Ela controlava a sua dor, até perceber vestidos recentemente comprados e que não haviam sido usados. Ali, surpreendida pelas etiquetas, ela se ajoelhou na cama, soluçou o que deu, e percebeu que ninguém morre sem querer continuar vivendo.

    E teve que, corajosamente, enterrar a esperança de sua mãe.

7 de maio de 2016 | N° 18519 
MARTHA MEDEIROS

  • Saudade de sentir saudade

    Temos recursos, temos acesso. A saudade já não precisa ser tamanha, podemos torná-la comedida

    Telefonei para minha mãe hoje de manhã, e ela, ao ouvir minha voz, sussurrou com doçura: Filha, saudades.... Não fazia nem 48 horas que ela havia almoçado aqui em casa, sem contar os dois telefonemas que haviam sido trocados ontem, e ela já estava com saudades. Isso me fez sentir a filha mais amada do mundo e a mãe mais megera do planeta.

    Não vejo minha própria filha há dois meses (está morando ali na Nova Zelândia) e quando me perguntam se não estou derretendo de saudades eu digo que sim, claro, mas na verdade tenho falado com ela mais hoje do que quando ela dormia no quarto ao lado. O WhatsApp e o Facebook fazem com que minha saudade não mereça virar uma queixa e muito menos um sofrimento. Minha saudade é tolerável, ainda que o adjetivo tolerável não costume ser tolerado pelo passional universo materno.

    Lembro com certa nostalgia de quando a gente esperava uma carta, esperava para revelar uma foto, esperava para colocar os olhos no bebê que ainda estava dentro da barriga. Pois andaram me mostrando a ecografia de um feto de quatro semanas cuja resolução era incrivelmente parecida com a de uma selfie. Hoje em dia você pode dizer se seu filho puxou ao pai ou à mãe meses antes de ele nascer. Esperar é verbo condenado à extinção.

    Se não há mais espera, onde colocar a saudade? Posso ver e falar com quem eu quiser, na hora que quiser, em tempo real. Qualquer país do Hemisfério Norte está mais próximo do que a esquina aqui de casa. Longe é um lugar que não existe, confirmado. Caducou até mesmo a Teoria dos 6 Graus de Separação, estudo que prova que estamos a seis pessoas de distância de qualquer outra pessoa, até mesmo do Barack Obama. Ora, o Obama está no Twitter. E já falei com Mark Ruffalo pelo Facebook. Não preciso de intermediários. Daqui a pouco até Deus estará online (aliás, está: www.theconfessor.co.uk ).

    A saudade é provocada pela ausência, mas quem se ausenta, hoje? Aqueles que morreram, apenas – para a morte não há aplicativo. Já reclamar de saudade de quem está vivo virou apenas um afago verbal, uma declaração de amor, e não uma carência real de contato, a não ser que se esteja muito desanimado para ligar os apetrechos eletrônicos que nos conectam. Temos recursos, temos acesso. A saudade já não precisa ser tamanha, podemos torná-la comedida.

    Não estou falando da saudade entre amantes: beijos e seus derivados, só ao vivo mesmo. E para amenizar a saudade constante que minha mãe sente, ela que se nega a aderir ao mundo digital, só vejo um jeito: forçá-la a aceitar um smartphone de presente e convidá-la para almoçar mais vezes.