quarta-feira, 13 de julho de 2016


13 de julho de 2016 | N° 18580 
MARTHA MEDEIROS

Não pode ser em vão


Uma das lembranças mais nítidas e profundas da minha infância está relacionada à sala de estar onde meu pai se instalava para ouvir música depois de chegar do trabalho. Ele era o DJ da família. Com a mulher e os filhos em volta, colocava para tocar o melhor da MPB e também Burt Bacharach, Ray Charles, Astor Piazzolla e Beatles. Se comparado a outros pais da época, um homem antenado e de bom gosto, mas o que mais me surpreendia era a paixão que ele tinha por uma maluca de voz rasgada que usava óculos redondos e umas mechas coloridas no cabelo. Foi ele que me apresentou Janis Joplin.

Nesta semana, meu pai completa 80 anos e ainda é alucinado por música, apesar de hoje estar mais para Schubert do que para o rock e o blues. Um dia chego lá – na música clássica. Ainda estou presa aos rebeldes que cantam com o nervo exposto, e ao assistir ao documentário Little girl blue, sobre Janis, voltou tudo: a infância, minha adolescência, minha formação musical e a lembrança de como me tornei quem sou.

O filme só é recomendável para quem é fã da cantora. Os primeiros 20 minutos são enfadonhos e não é uma grande realização cinematográfica – vale pelo espólio artístico de Janis. A história da menina fora dos padrões, que se achava feia e que era esnobada pelos rapazes, mas que acabou se encontrando na música e através dela escancarou toda a sua carência, toda a sua necessidade de ser amada, toda a angústia e o medo de que sua vida fosse vivida em vão.

Sabemos como esta história terminou: ela foi mais um talento que saiu de cena aos 27 anos por causa de uma vida embalada por muita bebida e droga, a exemplo de Jimi Hendrix, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse.

Admiro os talentos de cara limpa (nem todos os meus heróis morreram de overdose, a maioria deles segue viva e sóbria), mas arrasto uma asa para aqueles que entregam a alma e dão saltos sem rede. Saí do cinema tentando lembrar quem são hoje os artistas vulcânicos, aqueles que realizam sua arte às ganhas, e, talvez por estar condicionada pelo filme, só me vieram à cabeça Cássia Eller, Cazuza, Renato Russo, Tim Maia, Raul Seixas. Os que já se foram.

Eu sei, os tempos são outros. Tanto aqui quanto lá fora, são inúmeros os artistas que superaram a fase das viagens lisérgicas e se mantiveram criativos e operantes (o que dizer de Keith Richards, que ainda enterrará a todos nós?), mas tenho um carinho quase maternal por aqueles que desceram muito fundo em busca de sei lá o quê. Os que não encontraram outra maneira de se conectar com suas emoções mais cruas, mais livres e incendiárias.

Janis Joplin, a exemplo de alguns de seus colegas doidões, não chegou nem perto dos 80 anos, mas, como eles, deixou um legado eterno.

terça-feira, 12 de julho de 2016



12 de julho de 2016 | N° 18579 
CARPINEJAR

Autoescola para condutores de guarda-chuva

Porto Alegre é maravilhosa, pena que foi construída embaixo de uma goteira. Mas o problema não é a chuva frequente, é a nossa falta de profissionalismo diante da chuva.

Deveria existir uma autoescola para quem dirige guarda-chuva, com o mínimo de 25 horas de aula prática. Deveria ser criada uma nova categoria na carteira de habilitação. Deveria existir um código de trânsito para se deslocar nas marquises, com preferência para os transeuntes de capa. Deveria existir uma tropa de azuizinhos fiscalizando as barbeiragens dos usuários, os esguichos de poças e o estacionamento em locais proibidos, em especial na saída aglomerada de lojas e de farmácias. A arrecadação de multas superaria a antecipação do IPTU.

As pessoas não sabem conduzir um guarda-chuva. As manobras são altamente perigosas. Conheço gente que nunca fez baliza para fechar um, nem sequer recua antes de recolher o seu objeto e acaba agredindo o rosto de vários pedestres desavisados.

Caminhar na chuva é um excelente psicotécnico. Pressupõe raro equilíbrio entre o dentro e o fora, o motorista necessita manter a cabeça ereta para apanhar o horizonte sem jamais deixar de reparar onde está pisando.

O guarda-chuva não é uma invenção filantrópica. Não poderia ser vendido indiscriminadamente. É uma bengala com ponta de lança. Uma vareta solta torna-se faca apontada da baioneta. Não é por menos que é arma de vilões como o Pinguim de Batman, não é à toa que foi proibido o seu ingresso em partidas de futebol.

Guarda-chuva requer manejos talentosos. Reivindica estudo e treino. Nas mãos erradas, há o sério risco de nocautear velhinhos, pisar em cachorros, subir em mendigos ou arrastar crianças.

Se não é brincadeira fora daqui, no Sul ainda é pior. As chuvas nos trópicos não são monótonas a exemplo da Europa. Não respeitam nem o estilo das estações. Mudam conforme o choque inesperado das frentes frias com as quentes.

Sair de casa significa enfrentar um inimigo qualificado. Não é possível segurar o cabo do mesmo jeito e com idêntica força.

Tem a chuva canivete, que exige uma leve inclinação de viseira. Tem a chuva ventania, em que a água parece vir de baixo, a única defesa é dançar frevo. Tem a garoa, invisível, na qual você dá carona para alguém, não vê a chuva vindo e a pessoa ao lado – coitada – fica toda molhada. Tem a tempestade, em que o guarda-chuva vira na esquina e sobe como um balão. 

Tem o dilúvio, que sindicaliza as bocas de lobo e mobiliza os esgotos e nos surpreende com uma correnteza de frente. Tem a chuva de pedra, em que o céu devolve todos os gelos que você deixou de repor nas formas da geladeira nos últimos 10 anos.

Durante o toró porto-alegrense, cuide ao atravessar a rua e cuide muito mais para não ser atropelado na calçada.

sábado, 9 de julho de 2016


09 de julho de 2016 | N° 18577 
CARPINEJAR

A casa no pátio

Nunca fiz nenhum piquenique, de preparar sanduíches, levar térmica de café e descansar debaixo das árvores, de estender uma longa toalha quadriculada e sentar à toa com amigos e familiares.

Não foi por falta de convite, acredito que quem gosta de piquenique são as abelhas e as formigas. Na melhor das hipóteses, sairei inchado de picada de mosquito. Minha pele é altamente alérgica. Sou urbano por uma questão de saúde.

Mas sempre fui devoto do pátio, com espaço para o trapézio das frutas e das aventuras nos muros e telhados. O grande dia da minha infância era o da faxina. Quando se esvaziava a casa inteira para dar conta da sujeira grossa, que não podia ser feita com a velha “feiticeira”.

Os pais carregavam os móveis para fora. Inventava que estava doente e ia sendo carregado junto. Contentamento de ser pequeno e confundir a mudança de hábitos com férias.

O sofá verde ganhava assento debaixo do abacateiro, finalmente lindo contrastando com a terra vermelha – eu deitava em suas almofadas por horas a fio, olhando os mínimos movimentos do tronco e descobrindo os ninhos dos pardais.

Eu também participava da surra dos tapetes nos varais. Eles apanhavam de vassoura por tudo o que esconderam ao longo do tempo. A poeira subia luminosa. Cena pungente e tocante. O pólen mágico dos sapatos acumulados caminhava para o céu.

As colchas, cobertas e travesseiros vinham tomar sol ao lado dos colchões, pertinho da horta. Eu deitava nos tecidos quentes. Entontecia de calor. Chegava a sonhar e perder a noção da realidade. Até que alguém chegava para estragar o prazer e me enxotar da súbita realeza.

Havia uma sensação de troca de endereço, de circo, de festa no meio da bagunça.

Os adultos estavam enlouquecidos limpando geladeira, segurando a mangueira, esfregando o rodo, aspirando os corredores, e eu contente com as cadeiras desobrigadas de suas funções, escalando montanhas imaginárias com os irmãos. Botava os casacos de meu pai, esquiava com os saltos da mãe, aproveitava as roupas lavadas para montar um teatro infinito de personagens. Não havia diversão igual – uma vez por mês tomava conta da residência.

Ao final, já de tardezinha, com o crepúsculo dourando as folhas, brincava de cama a céu aberto, testemunhando o vaivém das nuvens. Uma delícia ter um quarto sem paredes, ter o mundo suspenso, ter a liberdade de não precisar ser ninguém, ter a imortalidade do vento no rosto e absoluta ausência de pressa.


09 de julho de 2016 | N° 18577 
MARTHA MEDEIROS

Tocar a felicidade com os dedos

Entendi que a felicidade não é um alvo concreto atingido, e sim a conexão profunda que fazemos com uma emoção subitamente despertada

Quase consigo visualizar a cena. O músico e poeta Serge Gainsbourg está em Londres, o ano é 1971. Numa clínica privada, sua mulher Jane Birkin está em trabalho de parto. Ele alterna batidas aflitas na porta do quarto com idas ao bar do outro lado da rua. Até que nasce Charlotte, que, por uma série de contingências e burocracias, é proibida de ser visitada pelo pai. Quatro ou cinco dias depois, ele recebe a permissão e, após vê-la, sai em caminhada pelas ruas. É madrugada. Chove. Ele anda a esmo por duas horas, em total estado de encantamento. Mais tarde, diria sobre o episódio: Nunca fiz um passeio mais feliz na minha vida. Naquela noite, toquei a felicidade com os dedos.

Pincei esse relato do ótimo livro de entrevistas Entre aspas 2, de Fernando Eichenberg. Fiquei alguns minutos pendurada nesta frase. Tocar a felicidade com os dedos.

Não costumamos ser muito delicados com a felicidade. Geralmente queremos conquistá-la, agarrá-la, retê-la e sorvê-la: verbos antropofágicos que induzem a uma dominação ansiosa e sem chance de fuga. Estamos sempre famintos dela e, quando a chance aparece, nhac. Garantimos nosso quinhão.

Você compra sua felicidade em butiques, agências de viagem, mesas de restaurantes, e depois a fotografa e posta no Instagram e no Face. Está capturada sua felicidade. Enquadrada. Sobrevivendo através da memória.

Mas não através da poesia. A felicidade não retribui a assédios grosseiros. Não gosta de muito barulho. Tem sensibilidade a holofotes. Quem gosta de festa é a alegria. A felicidade prefere ser encontrada – e tocada – com mais discrição e leveza.

Sentada numa pedra diante de um lago, eu estava só. O ano era 1986. Foi talvez minha primeira impressão de felicidade absoluta – tudo que eu havia vivido antes eram alegrias. Naquele exato momento que não tinha nenhuma importância, numa data que não era alusiva a nada, eu entendi que a felicidade não é um alvo concreto atingido, e sim a conexão profunda que fazemos com uma emoção subitamente despertada.

Você inaugura uma nova etapa de vida. Não teme mais as interrogações. Descobre-se capaz de amar num estado de pureza plena. Você se perdoa. Você se cura. Você se reconhece. Consegue ser grato por coisas mínimas. E por bênçãos extraordinárias. Você perde o medo da vida. Você entende o que está acontecendo. Você sente a potência de um sentimento especial sem precisar segurá-lo com as mãos, sem retê-lo com as palavras, sem sofrer pelo seu inevitável desaparecimento. O simples roçar de dedos no sublime garante a eternidade do instante.

quarta-feira, 6 de julho de 2016


06 de julho de 2016 | N° 18574 
MARTHA MEDEIROS

Amor orgânico


Ontem à noite, participei de um encontro promovido pela The School of Life, no Rio, onde debati com o cineasta João Jardim sobre o amor nos dias atuais. Não posso dizer se nos saímos bem, pois ontem à noite esta coluna já havia sido enviada para o jornal, ou não estaria sendo publicada na edição de hoje, mas o assunto andou ocupando minha mente nas últimas semanas, e o que andei pensando compartilho aqui.

As coisas mudaram, como se sabe. O formato “feliz para sempre” não é mais um campeão de audiência, primeiro porque o “para sempre” tornou-se longevo demais para quem elegeu um grande amor já na segunda década de vida e também porque todo comprometimento com a eternidade cai na idealização, e idealizar é sofrer.

Óbvio que é possível ter uma relação amorosa que resista por décadas – muitos têm – mas duração não consta mais da lista de quesitos obrigatórios. E essa é uma das tantas libertações que estão devolvendo o amor à categoria dos prazeres da vida, e não das convenções.

Se antes existia apenas um único padrão de relacionamento (casamento + filhos (+ amante) + a morte que os separe), hoje cada pessoa cria o próprio padrão e está tudo certo. Já não existe amor errado, amor proibido, amor inadequado, amor frívolo, amor condenável. Ele voltou a ser um assunto íntimo e particular, e não uma satisfação à sociedade.

Um amor colorido artificialmente, com sabor industrializado, durando à base de conservantes: não. Um amor que é uma mentira a serviço da nossa imagem: não. Um amor que serve de esconderijo para nossas carências: não. Esse romantismo só existe como farsa e hoje queremos fugir de qualquer hipocrisia. 

Quanto mais percebemos a teatralidade das relações políticas, quanto mais somos abusados por impostos altos, pela burocracia e pelas limitações econômicas que impedem nossa realização pessoal, mais necessário se torna que ao menos no amor sejamos livres. Em algum setor da nossa vida, a verdade tem que ser plena.

Não somos obrigados a amar. O amor é uma sorte, não uma missão. É natural que ele aconteça, já que somos bilhões cruzando olhares diariamente, mas a qualidade e o arranjo das relações dependem de um desejo que se manifeste à vontade, e não sob a tutela de um código moral e social. Podemos ter vários ensaios de amor sem que nos sintamos diminuídos pelo fato de não termos vivido um arrasa-quarteirão com muitos anos em cartaz e sucesso de bilheteria. Nunca a plateia interessou tão pouco.

Devo estar sendo otimista, mas creio que finalmente o amor está retomando o lugar que o casamento havia lhe tomado.

sábado, 2 de julho de 2016



02 de julho de 2016 | N° 18571 
MARTHA MEDEIROS

Mulheres e palavras surradas


Estar consigo mesma é companhia suficiente. Uma mulher sem homem tem mais valor do que uma mulher com um homem babaca, covarde, pequeno

Estamos em plena revolução feminista parte 2. Depois de inúmeras conquistas resultantes do surgimento da pílula anticoncepcional e da nossa entrada no mercado de trabalho, pausamos, recarregamos as baterias e agora voltamos à luta, rebatizada de empoderamento e direcionada, principalmente, à violência contra a mulher.

Acho empoderamento uma palavrinha detestável: é por causa da atração pelo poder que o Brasil está metido em encrenca e vive no atraso. Poder é um verbete obsoleto no meu dicionário. Troco empoderamento por conscientização e autoestima – autoestima também não é das melhores palavras, tornou-se um clichê, mas é do que precisamos.

Por que as mulheres são agredidas? Porque se envolvem com homens brutos, ignorantes, machistas: resposta simples. A resposta complexa vai um pouco além. Violência não deixa de ser um contato. O homem que bate no seu rosto, que queima seu braço, que chuta sua barriga e que puxa seu cabelo está enxergando você, está interagindo – da maneira mais cruel, mas está. Eis o perigo: a violência cria a ilusão de vínculo.

Para algumas, a indiferença pode ser muito mais atroz.

Por que ela não cai fora no primeiro tapa? Mulheres seguras não levam adiante uma relação agressiva, suspendem o ultimate fighting assim que ele começa e partem para outra história que seja realmente de amor, e não de carência, de dominação, de submissão. O primeiro tapa tem que ser sempre o último. Mas não é o que acontece: ele gera o segundo. Que gera o terceiro. Que gera todos os outros até a situação ficar insustentável. Decorre um longo tempo até chegar ao ponto do “não aguento mais”. Por que se aguentou tanto antes?

Dependemos do olhar do outro. Queremos ser admiradas, amadas, desejadas. Mas isso não deve valer para o olhar perverso que nos vê como um objeto onde descarregar frustrações. O cara não se suporta e desconta em você – é justo isso? E você segura a onda porque acha que o empurrão dele também é uma espécie de toque. Ele, através da pancadaria, está se relacionando com seu corpo e reconhecendo sua existência. A ausência do olhar dele – e do ataque dele – a transformaria em nada.

É por isso que aquela palavrinha surrada (ela também) tem que ser reforçada: autoestima. Não precisamos temer a solidão. Estar consigo mesma é companhia suficiente. Uma mulher sem homem tem mais valor do que uma mulher com um homem babaca, covarde, pequeno. Nenhuma intimidação é romântica. Sofrimentos emocionais são inevitáveis, mas ter o corpo submetido à violência física não dá poema, não dá filme, não dá nenhuma canção bonita. Tem que dar cadeia, apenas isso.

A grande revolução feminista passa pela consciência de que a solidão não é humilhante, a renúncia à nossa integridade é que é.



02 de julho de 2016 | N° 18571 
CARPINEJAR

A rapidez insuportável na mesa


Não há motivos para ser um esfomeado. Mas põe um prato na minha frente que devoro em 10 minutos. Tenho uma rapidez de britadeira.

Quando estou num almoço de aniversário, eu fico perdido. Termino rapidamente a refeição enquanto os outros ainda estão começando. Surge o tédio, sou obrigado a me fixar no silêncio e na paciência e esperar o momento da sobremesa para reaver o valor da presença.

A passionalidade é resultado da mesa cheia da família. Disputava a comida com três irmãos. Não havia fartura, a mãe cozinhava exatamente o que precisávamos – nem mais, nem menos. Eu cortava o bife de olho no segundo bife, eu sugava a massa de olho na macarronada da bandeja, o meu radar estava sempre ciscando o andamento das vasilhas e controlando o desempenho dos manos. 

Eu não comia, ganhava ou perdia corrida. Meu principal adversário era o Rodrigo, que sempre se adiantava para repetir. Quantas vezes colocamos o garfo juntos no mesmo bolinho derradeiro? E a mãe vinha com a democracia do empate e pedia para repartirmos. Ambos baixávamos a cabeça constrangidos pelo egoísmo.

O terror gastronômico alcançava o seu pico com tortas e doces. Aquele que acumulava mais fatias se vangloriava a tarde inteira e flauteava os concorrentes. Eu não disfarçava a raiva de ser passado para trás, puxava briga e armava confusões.

Até hoje guardo o hábito de colocar o brigadeiro inteiro na boca para ganhar tempo e pegar o próximo. Não queira me encontrar em festa de criança. Nunca conheci as etapas do apetite, as preliminares, o antepasto, sou um ogro da voracidade. Menu degustação jamais funcionou comigo.

Grita a diferença de postura em relação à minha mulher. Beatriz come devagar, quase parando, saboreando, sem pressa alguma. Não sofre com o que é servido, não acha que está sendo injustiçada, não pretende se sentir favorecida mesmo quando está diante de uma lasanha ou uma iguaria predileta, não salta desesperada para as bandejas enquanto ainda não finalizou a primeira porção.

Eu sou uma partida de squash, ela é um jogo de golfe.

A lentidão vem porque ela é filha única. Não tem medo de faltar comida. Eu vivia sob o receio da panela vazia a qualquer momento. Não restaria esperança imediata de forrar o bucho, conquistaria uma nova chance somente no jantar.

Quem é filho único é adepto do slow food. Mastiga com calma, reverencia a fumaça do alimento, conversa alegremente, usa os talheres com elegância.

Quem é filho único jamais dirá que comeu demais ou comeu de menos.



02 de julho de 2016 | N° 18571 
MARTHA MEDEIROS

Mulheres e palavras surradas


Estar consigo mesma é companhia suficiente. Uma mulher sem homem tem mais valor do que uma mulher com um homem babaca, covarde, pequeno

Estamos em plena revolução feminista parte 2. Depois de inúmeras conquistas resultantes do surgimento da pílula anticoncepcional e da nossa entrada no mercado de trabalho, pausamos, recarregamos as baterias e agora voltamos à luta, rebatizada de empoderamento e direcionada, principalmente, à violência contra a mulher.

Acho empoderamento uma palavrinha detestável: é por causa da atração pelo poder que o Brasil está metido em encrenca e vive no atraso. Poder é um verbete obsoleto no meu dicionário. Troco empoderamento por conscientização e autoestima – autoestima também não é das melhores palavras, tornou-se um clichê, mas é do que precisamos.

Por que as mulheres são agredidas? Porque se envolvem com homens brutos, ignorantes, machistas: resposta simples. A resposta complexa vai um pouco além. Violência não deixa de ser um contato. O homem que bate no seu rosto, que queima seu braço, que chuta sua barriga e que puxa seu cabelo está enxergando você, está interagindo – da maneira mais cruel, mas está. Eis o perigo: a violência cria a ilusão de vínculo.

Para algumas, a indiferença pode ser muito mais atroz.

Por que ela não cai fora no primeiro tapa? Mulheres seguras não levam adiante uma relação agressiva, suspendem o ultimate fighting assim que ele começa e partem para outra história que seja realmente de amor, e não de carência, de dominação, de submissão. O primeiro tapa tem que ser sempre o último. Mas não é o que acontece: ele gera o segundo. Que gera o terceiro. Que gera todos os outros até a situação ficar insustentável. Decorre um longo tempo até chegar ao ponto do “não aguento mais”. Por que se aguentou tanto antes?

Dependemos do olhar do outro. Queremos ser admiradas, amadas, desejadas. Mas isso não deve valer para o olhar perverso que nos vê como um objeto onde descarregar frustrações. O cara não se suporta e desconta em você – é justo isso? E você segura a onda porque acha que o empurrão dele também é uma espécie de toque. Ele, através da pancadaria, está se relacionando com seu corpo e reconhecendo sua existência. A ausência do olhar dele – e do ataque dele – a transformaria em nada.

É por isso que aquela palavrinha surrada (ela também) tem que ser reforçada: autoestima. Não precisamos temer a solidão. Estar consigo mesma é companhia suficiente. Uma mulher sem homem tem mais valor do que uma mulher com um homem babaca, covarde, pequeno. Nenhuma intimidação é romântica. Sofrimentos emocionais são inevitáveis, mas ter o corpo submetido à violência física não dá poema, não dá filme, não dá nenhuma canção bonita. Tem que dar cadeia, apenas isso.

A grande revolução feminista passa pela consciência de que a solidão não é humilhante, a renúncia à nossa integridade é que é.

sábado, 25 de junho de 2016



25 de junho de 2016 | N° 18565 
CARPINEJAR

Sou um homem do rádio


Eu me arrepio quando vou ao estádio e vejo alguém com radinho de pilha grudado na orelha. Nenhuma tecnologia, nenhum fone, nenhum wi-fi do celular, com o radinho mesmo, do tamanho de um tijolo, carregado até a cabeça.

Lembro de meu pai.

O meu pai com o seu rádio velho ajeitando a antena de um lado para o outro, mexendo no dial com a precisão de um cofre. Ele levantava um haltere permanentemente com seu braço esquerdo. Não praguejava o incômodo. Colocava o volume ao máximo, feliz com seu aparelho de estimação, aquele que, acreditava, se esquecesse em casa, seu time perderia o jogo.

Havia sempre uma arte de estar em dois lugares ao mesmo tempo, sintonizado na narração e também atento aos sons de ebulição do estádio. Um fanático de um clube que não se isolava em si mesmo, não se fechava na cabine tecnológica, capaz de entoar os cânticos da torcida e colher as informações com os comentaristas quando não enxergava direito o que aconteceu num lance.

Da mesma forma, apesar dos aplicativos que me facilitam escutar qualquer música sem interrupção, prefiro as estações do rádio. Sou ligado ao improviso, à possibilidade de ser surpreendido por uma canção inesperada, algo que não sei ou não tinha noção. Fico no carro ou na residência navegando em minha estação predileta, deixando o coração suspenso pelos próximos acordes.

Não recrimino os comerciais, não censuro os boletins noticiosos, aguardo que venha uma melodia do acaso, potente o suficiente para me despertar lembranças longínquas e me inspirar a cantar alto refrões que não suspeitava recordar. É a adrenalina de reaver a memória amorosa por trás das camadas das idades. Recupero uma reunião dançante, a trilha de uma viagem, um hábito de infância. Exercito um descontrole generoso da vida. Penso que aquela música aparecendo do nada é um sinal de que devo telefonar para um amigo esquecido. A rádio é o interurbano que recebo diretamente do destino.

Hoje existe um controle excessivo dos ouvidos. Ouvir tudo o que se quer é surdez.

A rádio quebra as obsessões e me abre para a diversidade. Trata-se de um lançamento de um ritmo que nunca descobriria em meus filtros, de uma cantora que jamais tomaria conhecimento, de uma banda que passaria despercebida entre as modinhas.

O que quero mesmo é ser incomodado pelas emoções, ser levado para um destino espiritual que estava dentro de mim e é absolutamente desconhecido para o meu GPS.



25 de junho de 2016 | N° 18565 
MARTHA MEDEIROS

Fator de descarte 2

Já me apaixonei por quem escrevia feito um poeta, mas também por quem escrevia “quizer” e “denovo”. Meu fator de descarte, nestes casos, é a boa ou a má vontade em aprender

Anos atrás, escrevi uma crônica chamada Fator de descarte, em que eu perguntava qual seria o deslize fatal que desmotivaria o prosseguimento de uma relação. Na época, dei o exemplo de uma amiga que estava no carro com o rolo novo e que o dispensou assim que ele, ao ouvir uma canção do Tom Jobim, disse que não suportava aquele xarope.

Amor não é coisa que tem dado sopa por aí, então, mesmo o cara tendo péssimo gosto musical, convém dar mais uma chance a ele – eu daria. Porém, nem todos são tão complacentes. Um amigo me disse, outro dia, que estava começando a trocar mensagens com uma garota, até que ela escreveu que adorava percorrer a orla de biscicleta. Biscicleta com sc foi o fator de descarte dele.

De fato, é grave, mas nestes tempos em que todo mundo tem iniciado relações através das redes sociais, sendo obrigado à escrita, é bom reduzir o grau de exigência, senão adeus cobertor de orelha para atravessar o inverno.

Erros clássicos proliferam: “despretencioso”, “encomodar”, “excessão”. Recentemente, uma escritora escreveu de forma errada a palavra exceção em seu Facebook: quem nunca? Na pressa em digitar um post contra a bandalheira do país, escapou um erro ortográfico sem revisão. Pelo mesmo motivo (a política), um músico escreveu que estávamos no fundo do posso. Ó, céus. Se até com eles, que dominam o português, acontece, imagine com quem não tem o hábito de ler livros, que é a maioria.

Muitos leitores me mandam e-mails bacanas e, ao final, pedem desculpas antecipadas por alguma eventual mancada na digitação. Quase sempre, são justamente eles que não cometem mancada alguma. Digo para relaxarem, pois costumo ficar mais ligada no conteúdo do que na forma. Eu mesma, em mensagens ligeiras, escorrego. E inclusive nas nem tão ligeiras: outro dia, numa crônica, troquei “sobre” por “sob” e não me conformo, como deixei passar? Vacilei. Não me descartem por isso, tenho defeitos piores.

Escrever corretamente é uma obrigação. Nada causa melhor impressão do que um texto limpo, claro e bem escrito, mas diante da falência da nossa educação e do lamentável índice de leitura do país, melhor ampliar nosso crédito amoroso para com os descuidados. Já me apaixonei por quem escrevia feito um poeta, mas também por quem escrevia “quizer” e “denovo”, assim, tudo junto. 

Meu fator de descarte, nestes casos, é a boa ou a má vontade em aprender. Se a pessoa aceita e agradece quando é carinhosamente corrigida, está salva, é sinal de que é inteligente. Mas se fica ofendida, aí o problema não é o erro gramatical, e sim a falta de humildade e a tacanhice em não querer melhorar. Pra essas, condescendência zero – agora sim, com sc.

quinta-feira, 23 de junho de 2016



22 de junho de 2016 | N° 18562 
MARTHA MEDEIROS

Recuperando o foco


Em Barra Mansa, RJ, um rio divide um bairro em duas partes, mas em apenas um lado há posto de saúde. Os moradores do outro lado precisavam caminhar dois quilômetros para circundar o rio a fim de chegar ao posto, e por isso vinham solicitando à prefeitura a construção de uma pequena ponte. Ela foi orçada em R$ 270 mil e nunca foi feita, então os moradores reuniram doações e em mutirão construíram a ponte eles mesmos – por R$ 5 mil e em oito dias. Os dois quilômetros de caminhada foram encurtados para 24 metros e agora todos vivem melhor.

Se fosse no Japão, o prefeito da cidade daria um tiro na própria cabeça, de vergonha.

Também graças a doações, jovens voluntários da Teto construirão 50 casas populares entre 23 e 28 de julho em comunidades pobres de Campinas. Isso mesmo: em seis dias. Por que o governo leva tanto tempo para entregar um lote habitacional, para consertar uma estrada, para reconstruir uma ciclovia, para terminar uma obra? Por que não há seriedade com questões como aproveitamento de recursos e cumprimento de prazo?

A política brasileira está caindo de podre e em breve, espero, haverá renovação, mas, além de novas lideranças, precisamos de uma nova mentalidade. O provincianismo do Brasil está em focar apenas em grandes feitos a fim de ostentá-los. Isso não é riqueza, e sim estupidez.

Num país rico e elegante pra valer, as pessoas (políticos inclusive) vão para o trabalho de metrô e bicicleta, as crianças estudam em ótimas escolas públicas, todos os membros da família se ocupam do serviço doméstico, as festas não custam o preço de um apartamento, as pessoas envelhecem sem abusar de cirurgias estéticas e arte é de primeira necessidade. Por que não somos esse país rico e elegante? Não é por falta de dinheiro – somos milionários. Dinheiro nunca faltou para roubos, desvios, superfaturamentos.

O problema é que trocamos eficiência por desperdício. Não sabemos focar no que importa de verdade. Valorizamos mais a fantasia (o discurso, a retórica, as aparências) do que a realidade. A gente se ilude com uma “ponte de R$ 270 mil” que nunca sairá do papel em vez de concretizar a humilde ponte de R$ 5 mil que resolve.

Estamos em crise, e uma crise forte, sem prazo pra acabar. É obrigatório cair na real e viabilizar um Brasil onde todos tenham uma casa que não desabe na primeira chuva, onde as escolas sejam lugares lúdicos e estimulantes, onde os caminhões que escoam a safra possam chegar ao destino sem quebrar por causa de um buraco no caminho, onde, em vez de molhar a mão de corruptos, as prefeituras mantenham dinheiro em caixa para pagar policiais, médicos, professores e demais profissionais que fazem uma nação existir como tal.

Todos nós, brasileiros, precisamos recuperar o foco imediatamente e extrair da simplicidade a nossa evolução.

sábado, 18 de junho de 2016



18 de junho de 2016 | N° 18559 
CARPINEJAR

Alma coletiva


Você pode estar julgando o outro por aquilo que você é. Você perdoa o outro por aquilo que deseja obter, a qualquer custo e não enxerga os contrastes e as diferenças gritantes das personalidades.

Você pensa pelos dois, ama pelos dois, suporta tudo pelos dois.

Acha natural que a sua felicidade será a felicidade de quem ama. Confia piamente na simbiose, na fusão, na complementaridade automática. Entretanto, os seus prazeres e sofrimentos são totalmente imaginários. Nada que crê costuma ser partilhado na prática. Na realidade, amarga um isolamento, amortizado pela ficção romântica.

Não contabiliza as provas objetivamente. Os fatos são contaminados pelas impressões e fantasias pessoais. A ânsia de agradar e a facilidade para encontrar a alegria nas pequenas coisas impedem que tenha discernimento e separe os desejos de cada um.

Você raciocina como casal, porém aquele com quem divide a vida raciocina como solteiro. Você festeja todo ato a dois, como raspar brigadeiro na panela e se agarrar debaixo das cobertas para espantar o frio, diferentemente de seu namorado, completamente imerso em seus interesses.

Jura que vem sendo correspondida porque não cogita a hipótese do ilhamento em suas vontades.

Aproveita o pouco do romance como muito (o importante é a cumplicidade), já quem você namora somente enxerga como esmola (o importante é não ser incomodado).

Compra orquídeas para embelezar a mesa da sala – o espaço precisava mesmo de flor – e a companhia só acredita que gastou dinheiro à toa. Convida ao cinema sob o pretexto divertido de disputar as mãos no saco de pipoca e a companhia só queria ficar no sofá mexendo nas redes sociais. 

Organiza um almoço familiar, cozinha e prepara uma torta com paciência de uma manhã inteira, e a companhia só queria beber com os amigos e ouvir pagode.

Prepara um final de semana idílico na serra, com hospedagem paga e banheira de hidromassagem, e a companhia só queria dormir até o meio-dia.

Em nenhum momento, duvida de que alguém pode não gostar de amar. Mas casar é vocação para pouquíssimos de alma coletiva. É trocar o egoísmo pela gentileza, é renunciar o conforto pela generosidade. É nascer a dois, no ventre do coração, independentemente do que diz a certidão de nascimento.


18 de junho de 2016 | N° 18559 
MARTHA MEDEIROS

Intuição



Todos têm, até os que a desconsideram. Também conhecida por sexto sentido, é algo abstrato que surge do nada e se acomoda no seu íntimo

Você não sabe explicar. Segundos antes de decidir se deve ou não se intrometer numa conversa, se deve ou não aceitar um convite, se deve ou não reagir, passa por sua cabeça um pensamento rápido que não chega a ser organizado em palavras. Antes de você considerar as opções usando a lógica, é atingido por um lampejo que prevê o desfecho antes mesmo de você analisar a situação. É como se alguém lhe assoprasse no ouvido: não vai funcionar, fique fora disso, não é pra você.

Você escuta essas frases ditas sem voz e vindas de um lugar sem nome. Como chamar essa percepção tão fugaz? Chame de intuição. Todos têm, até os que a desconsideram. Também conhecida por sexto sentido, é algo abstrato que surge do nada e se acomoda no seu íntimo, mesmo sem aplicação imediata.

A intuição não é soberana, dá suas furadas. Mas quando acerta, até assusta.

Não sou de ter muitas, não dou espaço, elas podem me deixar na defensiva, e, sinceramente, não tenho mais tempo a perder com medos infundados. Mas havia uma intuição que andava colada em mim há alguns anos. Uma intuição consistente. Eu não tinha motivo para pensar muito no assunto, ninguém me exigia um posicionamento, mas mesmo assim aquela intuição grudou em mim como se aguardasse uma convocação para qualquer momento. Eu sabia que seria difícil levá-la em consideração se a ocasião surgisse.

Surgiu. Eu precisava dar uma resposta durante um telefonema inesperado, sem chance de pedir cinco minutos para pensar. Estavam todos prontos para o meu sim. O meu sim era dado como certo. Não poderia haver outra resposta, só se eu fosse maluca. E como não sou maluca (não muito), respondi: sim.

Minha intuição ficou uma arara. Sentiu-se desprestigiada. Depois de anos me preparando para aquele momento, anos me dizendo em silêncio “não vá”, “não encare”, “não é pra você”, quando chegou a hora, não dei ouvidos a ela. Ora, se eu a obedecesse, nunca saberia o que viria depois. Ficaria me perguntando se eu não teria sido medrosa, se eu não teria sido uma boba. Por isso, disse sim, fechei os olhos e fui.

Bem feito pra mim.

Minha intuição não foi comigo assistir ao estrago, ficou em casa esperando eu retornar. Quando eu abri a porta de casa, estava ela esquentando minha cama com a sentença que eu não queria ouvir: “avisei”.

Subiu de escalão, minha intuição. Ela me conhece de um jeito que eu não me conheço. É comum a gente formular teorias a respeito de si mesmo e achar que isso basta. Só que teorias não sustentam nossas precariedades. Quando sentimos algum desamparo, vale dar mais atenção aos lampejos fugazes do que às nossas certezas pré-fabricadas.

A intuição nada mais é que um lembrete: respeite o que ainda há de inocência em você.

quarta-feira, 15 de junho de 2016


15 de junho de 2016 | N° 18556 
MARTHA MEDEIROS

O frio vencendo


São exatamente oito e meia de uma manhã siberiana em Porto Alegre – lá fora está 1°C. Um grau que me inspirou a transferir minha aula matinal de pilates para as quatro da tarde e a escrever este texto sobre o inverno, uma estação que para alguns brasileiros é ficção científica, para outros não passa de um pequeno alívio em meio ao calor tropical e para outros, ainda, é motivo para perder a noção do ridículo e calçar três meias, luva, gorro, cinco blusões e um casaco do exército – em casa. 

Uma estação que remete a vinhos, fondue, lareira, romantismo e elegância para quem vive dentro de um cartaz de turismo de Gramado e que para outros é associada à fila de hospital, nebulizador, descongestionante nasal, atchim.

Na dúvida entre comentar o charme da estação mais europeia do ano ou explicar as razões da contagem regressiva feita por quem já vem espirrando desde maio (faltam 99 dias para o início da primavera!), resolvi partir para um terceiro viés: inverno se resume a isso?

Na Flórida, 49 pessoas foram assassinadas à queima-roupa durante uma festa por terem cometido a ousadia de serem gays. Bastou um arrogante armado de ignorância e metralhadora para lembrar que o tal “avanço da civilização” empacou e deu meia-volta. Isso é inverno.

O estupro individual ou coletivo de uma menina, de várias meninas, e de meninos também, os abusos cometidos por trás de paredes vizinhas, dentro de sacristias e escolas, embaixo de nossos narizes, fazendo com que crianças se transformem em adultos com dificuldade de amar e de confiar. Isso é frio de verdade.

Donald Trump ter chegado tão longe. Brrrrrrrr. Me petrifica.

A corrupção, o foro privilegiado, as alianças indecentes feitas para manter o poder, políticos governando para si mesmos, a falta de comprometimento social, as delações canalhas da qual a Justiça se tornou dependente, a ausência de novos líderes, isso é que congela a alma e escurece mais cedo nossos dias.

Quinze graus é verão. Um grau é sopa. Abaixo de zero estão nossas perspectivas.

O que poderia nos aquecer? Solidariedade, tolerância, educação. Três palavras ao vento que, de tão repetidas, já quase perderam o significado. Mas vale teimar um pouco mais. Não é possível que seja tão difícil levar em conta os sentimentos dos outros, segurar uma agressão dentro da boca, compreender que se pode amar a si mesmo sem cair na vaidade de achar que todos os que não são iguais a nós estão equivocados.

Um pouquinho de humildade, menos pretensão, menos afetação, lutar por valores que sejam comunitários, que mobilizem, agreguem, aproximem pessoas. Por aí, quem sabe, a gente extraia algum calor bem antes de a primavera chegar.


15 de junho de 2016 | N° 18556 
FÁBIO PRIKLADNICKI

A MEMÓRIA DO PAI


Um dos aspectos mais estranhos de perder um ente querido é que você continua sonhando com ele como se estivesse vivo. No seu inconsciente, ele tem para sempre a mesma idade de quando morreu. Desde então, você lamenta não ter tido a oportunidade de acompanhar seu envelhecimento, essa etapa da vida que aprendemos a renegar.

Estamos acostumados a compartilhar histórias do crescimento e desenvolvimento dos filhos, e com isso revivemos nossa própria infância. É como se experimentássemos, ao mesmo tempo, três idades: a do presente, a do passado projetado nos filhos e a do futuro vislumbrado na vida dos pais. Mas esta terceira não é suficientemente celebrada. Pelo contrário, a etapa final da vida é uma ideia que preferimos não antever. Será que não podemos aprender com essa experiência assim como aprendemos com os filhos?

Sempre tive medo de ver o pai envelhecer. Olhando para trás, considero um medo bobo. Penso no tanto de coisas que mudaram no mundo desde que ele nos deixou, há quase seis anos. A consolidação das redes sociais (será que estaria no Face?), a crise econômica brasileira e os rumos que tomaram as vidas das outras pessoas da família. O que ele diria de tudo isso?

Algum tempo depois de sua morte, uma vizinha perguntou à minha vó se ela gostaria que um médium transcrevesse uma mensagem póstuma. A vó aceitou e guardou a suposta carta do filho com muita emoção. Recusei-me a ler, mas soube que o tal espírito trazia palavras de louvor a Jesus, o que confirmou minha suspeita de que deveriam ter contratado um médium judeu.

Resta-nos o exercício da memória, como fez o escritor polonês Bruno Schulz, que dedicou boa parte de sua curta e brilhante ficção à vida do pai doente, em registros autobiográficos que transitam entre um realismo mítico e o fantástico. Com a prosa de alta voltagem poética que lhe é característica, Schulz erigiu um monumento literário de excepcional dignidade que se contrapõe à decadência mental e física narrada nos textos.

Schulz teria motivos para evitar pensar no pai. Seu fim foi longo e doloroso e deixou a família em uma situação financeira delicada. Mas, pelo contrário, o escritor tem uma fascinação por aquela figura, a qual descreve com riqueza de detalhes tamanha que você não sabe onde termina a memória e onde começa a imaginação. De certa forma, Schulz fez o que todos gostaríamos de ter feito: uma verdadeira obra que retribui, à altura, o que recebeu do pai. Mesmo que isso nunca nos pareça o suficiente.

sábado, 11 de junho de 2016



11 de junho de 2016 | N° 18553 
CARPINEJAR

Até a ligação cair

Faço a ronda telefônica com os meus amigos: José Klein, Mário Corso, Voltaire, Everton e Eduardo Nasi. É a ala masculina da fofoca. Todo dia falo com eles antes de começar as atividades mais pesadas do trabalho. Eles são a minha fonte de notícias, ideias de crônicas, não me deixam alienado dos principais acontecimentos noturnos da cidade. Como também efetuam a minha manutenção emocional e dou, em contrapartida, um suporte para os seus amores e dissidências.

Não pulo nenhum deles da rotina matinal e do plantão sentimental. Qualquer homem de bem tem seu bar predileto e seus apóstolos. O compromisso está acertado pelo sangue do destino. Eu escreverei a biografia deles exagerando as suas proezas, eles escreverão o meu necrológio mentindo a meu respeito. Somos leais aos sonhos mais do que aos fatos.

O engraçado é que se a ligação cai ninguém telefona de volta. É uma etiqueta dos machos.

Diferente do tricô do timbre da mulher com as amigas, não há desespero ou mal-estar. Entendemos a fragilidade das operadoras, os vários pontos sem cobertura pelos bairros. Fazemos de conta que acabou o crédito, simples assim. Aceitamos generosamente o inesperado. O que não era para ser não será. Não confundimos a falta de retomada com indiferença e aspereza. Não nos penalizamos com hipóteses fatalistas de assalto e acidente. Não temos aquela paranoia de supor que o outro desligou na cara – coisa que só ocorre no início dos romances. Não cobramos um tchau e um aceno solene.

Eu acho que inclusive gostamos da roleta-russa da voz. É um suspense que acelera o raciocínio e previne a incontinência verbal.

Guardamos uma simpatia por não precisar enrolar com a despedida e sermos educados a ponto de ouvir o que não nos interessa.

Falamos até cair – é o nosso pacto. E vai cair, não há dúvida disso com o congestionamento caótico de linhas e sinais neste mundo.

O que não foi dito repassamos automaticamente para o próximo papo. Pendências não viram tragédias. Homem não sofre com o que ficou inacabado e imperfeito.

Para que insistir? Resumimos o que nos incomoda em 10 minutos, menos ainda. Talvez num grito ou num bah!

Amigo é econômico no afeto, mas sempre pontual na tristeza.


11 de junho de 2016 | N° 18553 
CARPINEJAR

Até a ligação cair

Faço a ronda telefônica com os meus amigos: José Klein, Mário Corso, Voltaire, Everton e Eduardo Nasi. É a ala masculina da fofoca. Todo dia falo com eles antes de começar as atividades mais pesadas do trabalho. Eles são a minha fonte de notícias, ideias de crônicas, não me deixam alienado dos principais acontecimentos noturnos da cidade. Como também efetuam a minha manutenção emocional e dou, em contrapartida, um suporte para os seus amores e dissidências.

Não pulo nenhum deles da rotina matinal e do plantão sentimental. Qualquer homem de bem tem seu bar predileto e seus apóstolos. O compromisso está acertado pelo sangue do destino. Eu escreverei a biografia deles exagerando as suas proezas, eles escreverão o meu necrológio mentindo a meu respeito. Somos leais aos sonhos mais do que aos fatos.

O engraçado é que se a ligação cai ninguém telefona de volta. É uma etiqueta dos machos.

Diferente do tricô do timbre da mulher com as amigas, não há desespero ou mal-estar. Entendemos a fragilidade das operadoras, os vários pontos sem cobertura pelos bairros. Fazemos de conta que acabou o crédito, simples assim. Aceitamos generosamente o inesperado. O que não era para ser não será. Não confundimos a falta de retomada com indiferença e aspereza. Não nos penalizamos com hipóteses fatalistas de assalto e acidente. Não temos aquela paranoia de supor que o outro desligou na cara – coisa que só ocorre no início dos romances. Não cobramos um tchau e um aceno solene.

Eu acho que inclusive gostamos da roleta-russa da voz. É um suspense que acelera o raciocínio e previne a incontinência verbal.

Guardamos uma simpatia por não precisar enrolar com a despedida e sermos educados a ponto de ouvir o que não nos interessa.

Falamos até cair – é o nosso pacto. E vai cair, não há dúvida disso com o congestionamento caótico de linhas e sinais neste mundo.

O que não foi dito repassamos automaticamente para o próximo papo. Pendências não viram tragédias. Homem não sofre com o que ficou inacabado e imperfeito.

Para que insistir? Resumimos o que nos incomoda em 10 minutos, menos ainda. Talvez num grito ou num bah!

Amigo é econômico no afeto, mas sempre pontual na tristeza.

sábado, 4 de junho de 2016



04 de junho de 2016 | N° 18547 
CARPINEJAR

Grandes histórias de amor


Amor não é preguiça. Amor é vencer a preguiça. Com filhos ou com esposa.

É trocar a paz pela dedicação. É sair do conforto para atender alguém. É abdicar do calor das cobertas em nome do cuidado, é se antecipar em gentilezas e enfrentar o frio do inverno e dos pés descalços na cozinha.

Quem deseja dormir passando do meio-dia como fosse um eterno adolescente, ficar assistindo a séries ou futebol sem ser incomodado, deixar a bagunça se acumular para a chegada da faxineira, não lavar a louça até não encontrar mais copos e pratos limpos, permaneça solteiro. Não se case, não seja pai. Não gozará do luxo de duas horas de tranquilidade para ler ou boiar com os pensamentos. O intervalo de distração é de três minutos.

Família é perder o controle dos próprios horários. É madrugadão. É o equivalente a trabalhar como vigia ou segurança noite adentro, é assumir a condição de taxista nos momentos vagos.

Quando o filho é bebê, você terá que atender às cólicas, usará o gogó para desfiar as canções de ninar da época da vó e dar colo de um lado para o outro, incessantemente, com os faróis dos carros iluminando as janelas da sala. Quando o filho é criança, é acudir os pesadelos e de repente levar o pequeno para a cama de casal. Quando o filho é adolescente, é esperar o chamado para buscá-lo de carro nas festas.

Não conhecerá trégua. Não conhecerá moleza. O sono vem aos surtos, aos goles, aos poucos, em curvas, não ocorre em linha reta. O alarme do celular é o melhor amigo do homem de família.

Há décadas que não sei o que é me espreguiçar lentamente, com os braços esticados para cima, ronronando, treinando posição de yoga e saudando o sol. Eu acordo de susto, com o coração aos pulos, determinado a cumprir tarefas. Nem penso muito, faço para depois pensar.

Tenho consciência de que amar é nunca mais ser egoísta, é renunciar ao individualismo e ao prazer de estar sozinho.

Foi uma decisão de uma vida feita na maior insignificância. Defini a minha paternidade e o meu casamento durante a segunda noite com a minha mulher. Ela estava com sede e pediu um copo d’água. Poderia fingir que não ouvi, poderia fingir sono profundo, poderia fingir que não era comigo, afinal a temperatura beirava os cinco graus. Mas empurrei o meu corpo para fora da cama, concluindo que ela merecia o meu esforço e que não custava nada oferecer um pouco de ternura.

Não duvide da banalidade. Levantar ou não para buscar o copo de água para a sua namorada é sempre onde começam grandes histórias de amor.


04 de junho de 2016 | N° 18547 
MARTHA MEDEIROS

Depois que o amor acaba


Depois que o amor acaba, entra em cena a isenção. Agora você pode, enfim, avaliar o que aconteceu por outro ângulo. “Pensando com mais clareza, agora vejo que aquela relação foi a experiência mais fascinante que vivi.” Oi?

Um ano antes, a mulher parecia um trapo encardido, passava chorando pelos cantos, lamentando a má sorte de ter se apaixonado por um Don Juan que só a humilhava e a fazia sofrer, e agora aquela dilaceração toda se transformou na experiência mais fascinante já vivida?

Sim. Qual o espanto?

Depois que o amor acaba, entra em cena a isenção. Você não faz mais parte daquela nhaca. Está desobrigada de administrar revezes, de procurar soluções para impasses, de fazer parte de um jogo maluco de sedução. Não há mais adoração, esperança, ódio, raiva, desapontamento. E não havendo nada, tampouco há interesse em descredibilizar o outro para tentar manter o que resta da própria dignidade. Não há mais risco. Ninguém mais precisa se salvar. Agora você pode, enfim, avaliar o que aconteceu por outro ângulo.

Então, dali de onde ela estava, de uma distância segura do passado, tudo se transfigurou. O amor não era mais analisado pelo o que havia sido, mas pelo o que agora representava.

O que antes era dilacerante virou uma bela experiência anexada ao currículo. O que antes era gigantesco foi reduzido a um tamanho médio. O que antes era definitivo virou passageiro. O que antes era pra sempre, encontrou um fim sereno.

Dimensionamos nossas emoções de acordo com a força do momento. Acreditamos nas definições que costumamos dar ao que está sendo experimentado, usando com orgulho as palavras “tudo”, “infinito”, “certeza”. Ficamos apalermados pelo vigor da experiência, pelo absoluto das nossas sensações, até que, depois de um longo tempo de crença, perde-se a aposta, o jogo termina e vamos para outra mesa do cassino, onde tudo recomeça.

É quando o passado ganha uma nova cara e novos significados. O que era desespero transfigura-se em infantilidade, o que era perturbador torna-se risível, o que era intenso parece frugal. Você acreditou que era personagem de um melodrama, era assim que enxergava a história de dentro. Pulou para fora e agora só vê a parte amena, só a beleza da sua inocência. Aquela não é mais você, aquilo deixou de ser um tour de force, agora você se dá conta de que, quando se está no epicentro de um acontecimento, tudo parece maior do que é.

Estando em meio ao dilúvio, é inevitável sofrer, emocionar-se, dilacerar-se, abraçar todos os sentimentos inerentes àquele mergulho: não há como antecipar o amanhã, só existe a asfixia do hoje. O consolo é lembrar que é só uma questão de tempo para tudo acabar num leve e agradecido “valeu!”.

quarta-feira, 1 de junho de 2016


01 de junho de 2016 | N° 18540 
MARTHA MEDEIROS

Uma mosquinha


Quando me chamaram para participar do Saia Justa gravado em Porto Alegre, pensei: adoro o programa, mas as garotas já estão afinadas, são ligeiras, como acompanharei o ritmo da conversa? Mesmo assim, aceitei o convite, honrada, e adivinhe o que aconteceu: o óbvio. Elas arrancaram risadas da plateia, encantaram a todos, enquanto eu me senti ligeiramente deslocada. Fazer o quê? Celebrar a experiência e tocar em frente.

A ótima Astrid Fontenelle, que comanda o talk show, em certo momento quis saber onde cada uma de nós se infiltraria caso pudesse ser uma mosquinha. Uma falou que gostaria de observar o que acontece na escola do filho, já que ele só fala por monossílabos. Outra entraria na casa do Tony Ramos pra saber como ele faz para ter um casamento feliz por 40 anos. 

Outra entraria na casa da Grazi Massafera pra saber se ela realmente come de tudo, sem fazer dieta. Respostas espirituosas pipocavam e eu suava frio: socorro, eu não gostaria de peruar os bastidores de ninguém. Quando chegou minha vez, em vez de dizer algo divertido, assumi: não é esse o tipo de voyeurismo que me atrai.

Então qual é, santa?

Respondi que me sinto uma mosquinha quando leio livros. Escutei alguém sussurrar “hum, interessante”, mas deviam estar pensando: o que essa gaúcha afetada está fazendo no meio da gente?

Não desenvolvi o assunto, não era tão interessante assim, mas pra você, que tem paciência comigo, vou adiante: sim, quando leio um livro, tenho um prazer quase erótico de mergulhar com o personagem naquela vivência inventada que me soa mais realista do que os posts das redes sociais. Durante a narrativa, sou apresentada ao protagonista, sei de onde ele veio, conheço os motivos profundos que o fazem se comportar daquele jeito, entro em seus pensamentos, ele compartilha comigo sua ansiedade, enxergo todas as nuances de sua vida complexa e contraditória. 

É uma relação a dois. Eu me comovo, me espanto, me apaixono. É dessa intimidade que extraio inspiração para realizar meu trabalho e também para lapidar minha história pessoal, já que estou constantemente in progress.

Poderia ter dito a elas que gostaria de ser uma mosquinha na cozinha do meu restaurante favorito, na hora em que o editor recebe meu novo original, na sessão de terapia dos meus ex-namorados, durante o happy hour das minhas amigas num dia em que não pude ir. Tudo mentira. Não sinto vontade de flagrar transgressões, antecipar acontecimentos ou descobrir o que falam de mim pelas costas. Há maneiras mais elegantes de bisbilhotar.

Todo mundo pode ser uma mosquinha quando lê. Você, por exemplo, agora.