sábado, 3 de dezembro de 2016



03 de dezembro de 2016 | N° 18705
LYA LUFT

O grande silêncio


A maior parte das coisas nesta nossa vida não se explica, e não parece ter muito sentido. A morte é uma delas. Minha primeira experiência foi a pomba-rola congelada que encontrei nas lajes do pátio, certa manhã de inverno, há tantas décadas. O passarinho me enterneceu, levantei-o do chão, contente por ele não fugir, enfiei debaixo do casaco junto do peito para que não sentisse frio. Meu pai tentou me explicar que não adiantava: a avezinha estava morta. Melhor enterrar no jardim. “Ali, entre as roseiras da mãe.”

    No curso da vida, as mortes foram desfilando: tranquilas ou brutais, de velhos ou de crianças, os vivos entrando na sua alameda de mistérios. Mortes fazendo parte da vida. Já aos 35 anos, mãe de três filhos, perdi meu pai: minha vida se dividiu em antes e depois. Fora-se o meu chão fundamental, meu amigo, meu mentor, que estava sempre ali para mim e nunca falhava. No saguão da faculdade onde estava sendo velado, altas horas da noite, depois de viajarmos numa chuva gelada, o primeiro choque foram sua imobilidade e seu silêncio. 

Não adiantava mais chamar seu nome, acariciar seu rosto, seu cabelo grisalho tão igual ao de poucos dias atrás. Não adiantava a dor me rasgando, a incredulidade, a busca do apoio, do estímulo, de tantos significados. Nem um bilhete de despedida que, meio descompensada, procurei por vários dias entre seus papéis: não haveria motivo, uma vez que morreu de um modo fulminante. Suicidas deixam bilhetes; meu pai queria viver. As mortes que enfrentei depois foram silêncios se acumulando numa nuvem infinita que quase passa despercebida na maior parte do tempo.

Nestes dias atuais, de tão cruel tragédia que levou de uma vez dezenas de jovens e adultos, volta o vazio do silêncio fatal de tantas vozes. Numa hora dessas, a fatalidade enfia nossa cabeça nesse poço secreto: onde estão agora? Onde suas almas? Terão ficado perplexas, todas ali reunidas? No 11 de Setembro, muito imaginei aqueles tantos milhares de almas, e agora? Não estive mais em Nova York, mas quem foi me fala de uma sensação de sacralidade e intensa, embora tranquila, presença da morte.

Não só a perda, mas até a eventual possibilidade da perda de uma pessoa amada é uma sombra real sempre à espreita. Aqui e ali, como um raio, este aperto: este momento feliz não vai durar para sempre, essa pessoa também não, nem eu vou permanecer. O jeito é pensar que a vida é algo além de nascer, crescer, comer, procriar, trabalhar e acabar. Um pequeno consolo: depois de um bom tempo de puro horror, vamos entendendo: os que morrem, sendo amados, permanecem. Não só na memória, não só na nossa crença (para quem a tem), mas porque fazem parte de nós, de nosso afeto e nossa tristeza. Nossos medos, nossas lembranças boas. 

Nossa alegria também. Começamos a nos salvar, aliás, quando conseguimos comentar alguma memória engraçada, e rir. Ao menos, sorrir. A gente lembra da voz, das manias, das palavras, do rosto, do jeito de andar, ainda que mais esfumados, e nos inquietamos, como era mesmo? Porém, a morte também nos deixa uma dádiva: vontade de sermos melhores, de cuidar mais dos outros e de nós mesmos, de viver (ou inventar) alguma forma de permanência.



03 de dezembro de 2016 | N° 18705
PALAVRA DE MÉDICO | J. J. Camargo

As dúvidas que fingimos

A BUSCA PELA IMORTALIDADE é tão antiga quanto a certeza de que morreremos

A doença como ameaça e a morte como concretização do fantasma são temas tão inquietantes, desde sempre, que exercem um fascínio irresistível nos escritores que, manejando ficção ou realidade, descobriram nelas um veio inesgotável de emoção. E se servem deste filão emprestando-lhe inspiração e sensibilidade, ingredientes indispensáveis aos operários da palavra.

Aliás, tendo a palavra como instrumento em comum, escritor e médico usam-na à exaustão como ferramenta de criação estética de um e arma de consolo e solidariedade do outro.

Além disso, a quantidade de médicos que conseguiram destaque na literatura atesta o papel da emoção como um recurso sedutor na captação de novos e intangíveis leitores.

Alguns, mais escritores do que médicos, mas tendo a medicina como lastro e assoalho, se deram ao luxo de criar estilos que impactaram na literatura pelo brilhantismo e pela criatividade. Claro que estava pensando em Guimarães Rosa quando escrevi este parágrafo. Mas outros, como Pedro Nava, Moacyr Scliar e António Lobo Antunes, com textos singelos e diretos, foram igualmente encantadores.

Preparando uma conferência na Academia Nacional de Medicina sobre essa interface, deparei com uma população especial: escritores leigos abordando temas médicos da maior densidade emocional, com uma precisão e, às vezes, uma contundência nunca reportadas pelos profissionais do ramo.

A descrição do sofrimento emocional de Ivan Ilitch, devastado pela dor física da doença terminal e pela sensação de abandono multiplicada pela distância da família que misturava negação com otimismo mentiroso, e dos médicos que falavam um idioma que ele não entendia, é mais do que uma obra-prima, é o transporte do leitor para dentro do sofrimento do pobre homem, e compartilhado pela genialidade inconteste de Liev Tolstoi.

Quem não leu As intermitências da morte, de Saramago, terá apenas uma pífia ideia do assunto quando opinar sobre a naturalidade da morte. Ele concebeu um país onde, por um decreto imperial, a morte estava banida. Depois de uma euforia inicial, começaram os problemas. Primeiro, o que fazer com os agentes funerários, definitivamente desocupados. 

Depois, com os hospitais soterrados de moribundos, proibidos de morrer, mas não de adoecer. A situação vai se agravando até chegar no seio da família que, depois de um tempo, percebeu que o cuidado extremo dedicado aos seus amados não serviria para trazê-los de volta à vida útil e, sendo assim, talvez fosse preferível que eles simplesmente morressem para que a rotina plena dos saudáveis pudesse ser retomada.

Ninguém descreveu com tal brilhantismo o dilema afetivo em que a dor da perda e a exaustão do sofrimento se encontram e se digladiam. E a inexorabilidade da morte é a única vencedora possível, mesmo que a busca fantasiosa pela imortalidade seja tão antiga quanto a certeza de que morreremos. Por pura conveniência, tratamos a única certeza como se houvesse dúvida e trocamos a racionalidade do “quando” pela estupidez do “quem sabe”.



03 de dezembro de 2016 | N° 18705
MARTHA MEDEIROS

Seu terapeuta é feliz?

Ele não pode ter uma vida, apenas uma carreira. Tem que fixar residência no consultório e estar sempre a nossa espera de banho tomado e alma lavada

Outro dia acompanhei uma conversa instigante. Em meio a um grupo, uma mulher comentou o quanto havia ficado desconcertada ao saber que sua analista não era feliz. Havia se tratado com ela por três anos, nada sabia da vida íntima da profissional com quem tanto havia desabafado e agora, depois de muito tempo, havia descoberto que a analista tinha problemas pessoais e que inclusive havia tentado o suicídio uma vez.

A tentativa de suicídio me pareceu um acréscimo sensacionalista à história, mas, desconsiderando esse detalhe, me concentrei na fantasia que alimentamos a respeito desses profissionais.

Eles ajudam a amenizar nosso sofrimento emocional, a tomar decisões necessárias para que a vida destrave, a compreender e perdoar nosso passado, a vencer medos e traumas, enfim, fazem uma assistência técnica básica. Para que o processo dê resultado, contam com nossa sinceridade e confiança, e é por isso que despejamos, sem reservas, tudo aquilo que ocultamos até de nós mesmos. Declaramos abertamente nossas fraquezas, recalques, frustrações, taras, dificuldades. O que esperamos em troca? Que eles já tenham resolvido todas essas questões em suas próprias vidas para que possam se concentrar na nossa.

É um delírio, mas ficamos mais descansados assim.

Até que um dia descobrimos, sabe-se lá como, que aquela criatura que parecia acima do bem e do mal é uma pessoa que bebe muito, que não consegue manter relações afetivas por mais de seis meses, que já atropelou um cachorro e fugiu, que sofre até hoje por um grande amor perdido, que tem medo de andar de elevador, que coleciona multas de trânsito, que não fala com um irmão há sete anos.

Isso significa que ele não é feliz? Apenas significa que é mais parecido com um ser humano do que com Deus.

Eis a encrenca: ele não pode ser parecido com um ser humano, ou seja, conosco. Se não resolveu suas próprias tranqueiras, que habilidade terá para lidar com as tranqueiras dos outros? Não admitimos que ele enlouqueça de ciúmes, que tenha vaidades, que guarde segredos, que morra de sono no meio da tarde, que sinta tédio, raiva, claustrofobia. Não pode estar atolado em dívidas, não pode ter um botão faltando na camisa, não pode fumar, não pode atrasar, não pode chorar.

Ele não pode ter uma vida, apenas uma carreira. Tem que fixar residência no consultório e estar sempre a nossa espera de banho tomado e alma lavada. Encontrá-lo com um carrinho lotado de cerveja no caixa do supermercado exigirá de nós muito autocontrole.

Desejamos que nossos terapeutas sejam perfeitos, e é por isso que eles costumam acertar no nosso diagnóstico: no fundo, somos todos uns narcisistas.




03 de dezembro de 2016 | N° 18705
CARPINEJAR

Doce laquê

Nunca entendi a minha atração por salão de beleza.

Havia um mistério na neblina das escovas e dos secadores trabalhando, no adocicado do vento daquele refúgio de beleza.

Desde pequeno, quando acompanhava minha mãe, vinha a vontade irresistível de rondar as cadeiras na frente do espelho, onde as senhoras esperavam alegremente com seus bobes e revistas de fofocas. Não me entediava como a maioria das crianças, não queria retornar rapidamente aos brinquedos de casa. Agradecia a demora e o atraso do almoço. Nem a fome me incomodava.


O ambiente me hipnotizava, acreditava que fosse pelo brilho das tranças e pela altura surpreendente dos andares das cabeças femininas, mas abandonei a lembrança na caixinha de incompreensões da vida e segui em frente.

Quando a minha mulher apertou o spray fixador em seus cabelos antes de sairmos para uma formatura, eu quase tive um colapso de felicidade.

Discerni o feitiço: laquê. O que me inebriava no espaço dos cabeleireiros era o olor do laquê. As borrifadas de 15 centímetros de distância criavam uma aurora boreal em minha respiração.

Sou apaixonado por laquê. Melhor que incenso e aromatizador. Melhor que os toldos dos jacarandás na primavera porto-alegrense.

Por que não trocaram o nebulizador pelo laquê para curar a minha asma? Por que não me dispensaram das aulas de natação e das maçãs diárias?

Gastaria um laquê para perfumar a residência. Jogaria um laquê em cima de minhas roupas.

A vontade é ser um traficante de laquê. Viajar para a fronteira de Uruguaiana ou Santana do Livramento contrabandear laquê. Desviar todo o salário na compra de caixas de laquê. Forrar as prateleiras do banheiro de laquê.

Escrevo compulsivamente laquê, repito laquê freneticamente, em pleno turbilhão de viciado.

No salão, o laquê paralisava os penteados das mulheres e também o meu olfato. Eu planava no ar como um beija-flor ou Dadá Maravilha.

Pena que descobri tarde demais para um reposicionamento de carreira. Eu me daria bem salvando as tranças e os coques das clientes. Imagine o que seriam os meus penteados?

sábado, 26 de novembro de 2016



26 de novembro de 2016 | N° 18699 
CARPINEJAR

O QUÊ?

A velhice vem aos goles. Nunca se bebe o tempo num único sorvo.

A visão é a primeira a não corresponder inteiramente aos seus comandos. Você enxerga com dificuldade, mas não aceita e adivinha mais do que reconhece com rapidez. Assim tem os seus primeiros constrangimentos sociais. O neto exibe as fotos da visita ao zoológico e você comenta: “Que araras azuis bonitas!”.

E o neto retruca que não são araras, mas macacos. Você acabou de demonstrar que é um analfabeto ecológico para a nova geração da família.

Sua teimosia em deduzir no lugar de enxergar vai lhe colocando em situações incômodas, como a de embarcar no ônibus errado, estacionar em vagas de portadores de necessidades especiais ou de realizar perguntas óbvias.

Depois é a memória que fraqueja e rasteja com esforço. Começa a brincar do jogo da forca com as lembranças. O bonequinho recebe contornos a cada lapso e sempre termina com a cabeça a prêmio.

As palavras são apenas figuras. Ou seja, aparece a figura sem a palavra, o raciocínio é próprio de livro colorido para bebês.

O que lembrava instantaneamente custa a vir à tona. Sem wi-fi das ideias, retrocede à internet discada do pensamento. Esquece primeiro o nome das pessoas, os filhos são as cobaias prediletas. Troca os nomes dos guris, Pedro chama de Felipe, Felipe de Pedro e não acerta mais quem se aproxima. No início, dedica horas se explicando, argumenta que o filho confundido deve estar pensando em você, mas a recorrência faz com que perca a credibilidade.

Em seguida, erra o nome trocando o sexo dos filhos, Felipe chama de Gabriela, Gabriela chama de Pedro, a confusão está instalada. Resta rir e levar os acidentes de gênero na brincadeira.

A caduquice cobra os juros. O pior se avizinha. Após falhar o nome das pessoas e não conciliar rosto com legenda, passa a tropeçar na identificação dos objetos. Liquidificador chama de secador, micro-ondas de máquina de lavar, televisão de aspirador de pó, até se contentar com o genérico Coisa: – “Liga a coisa!”, “Alcança a coisa!”, “Onde está a coisa?”.

Por fim, apaga o nome das ruas, das praças, das cidades, do país, até se tornar um cidadão do mundo. Do outro lado do mundo.


26 de novembro de 2016 | N° 18699 
MARTHA MEDEIROS

EU INTERMINÁVEL

A cada dia, eu vou assimilando novos elementos à minha identidade, essa identidade que nunca se conclui

Quando parece que já sabemos direitinho quem somos, um novo dia amanhece e traz hesitação: fica claro que não, que não existe essa história de estar completo, finalizado. Eu sei quem sou até este exato instante em que escrevo, mas antes de terminar este texto há uma chance de tudo mudar. Pode o telefone tocar e eu ser convidada para algo que nunca fiz, ser procurada por alguém que vai mudar minha vida ou golpeada por uma notícia que me amadurecerá. 

E serei um pouco mais (ou um pouco menos) do que sempre fui, este sempre fui tão cheio de ondulações e curvas minha vida é uma estrada quase sem retas e sem uma pista para acostar.

A cada dia, um fato vira memória, uma pessoa volta do passado, uma ilusão se desfaz, outra desperta, o céu troca de cor, um plano ganha avalista, as vontades confabulam, e eu vou assimilando novos elementos à minha identidade, essa identidade que nunca se conclui. Queria tanto saber quem sou, mas como arriscar uma definição se ainda me restam três ou quatro parágrafos e um punhado de anos pela frente?

Tenho duas dúvidas a tirar com um colega com quem iniciei um novo projeto, uma declaração ensaiada para quando estiver frente a frente com alguém que nunca ouviu de mim certos verbos, uma alegria ao antever o encontro com uma amiga que está longe dos meus abraços, fome de algumas coisas que ainda não provei e umas incertezas que doem e para as quais não há cura enquanto eu não acabar de me entender, e eu não acabo nem quando me deito e durmo.

Eu apago e acordo no sonho, no delírio etéreo de uma noite povoada por desejos inconscientes e mensagens que decifro com dificuldade, há alguma coisa em mim ainda sendo construída, e quando desperto de fato, este dia a mais de vida me encontra ainda mais indefinida.

Então abro a janela e o céu está com uma luz diferente, tenho um receio que não tinha antes e um problema a menos a resolver, um compromisso apressa meu banho e o reflexo do espelho revela que emagreci, descubro uma saudade ampliada de alguém e um desdém que não estava ali, o dia não é o mesmo de ontem e eu já não sou também.

E ao ligar o computador para responder à pergunta de um estudante de Jornalismo que pede para que eu me revele, que eu explique, afinal, quem sou, de preferência com poucas palavras e precisão, invento qualquer bobagem que justifique a que vim, que esclareça como fui parar aqui e ser assim, enquanto trato de espiar as previsões astrais para o meu signo, de lidar com os espantos e o mistério que ainda não elucidei – e diante de tanto “não sei” me deformo, me reformo, me amoldo, me dilato e admito, ao menos para mim, que sou isso, um eu sem fim.




26 de novembro de 2016 | N° 18699 
LYA LUFT

“Ser feliz”

Certa vez, em lugar de “perdas” escrevi “peras”, num texto qualquer. Ao revisar, eu ia corrigir, mas achei que seria bem mais interessante deixar como estava. Pois, lendo aquilo, as pessoas um dia talvez pensassem: “O que será que ela quis dizer?”. Afinal, o interessante nos fascina e o desinteressante nos entedia. Salvem-nos as surpresas, de preferência as boas...

Essa “ilogicidade” da arte me encanta, embora nem todos os artistas concordem, como minha querida amiga e mestra Lou Borghetti, em cujo atelier uma vez por semana me recupero, tentando pintar – entre diálogos deliciosos e estimulantes –, da hoje assustadora situação deste país. No mágico clima da arte, ainda que aprendiz tardia no campo da pintura, aprendo um pouco mais essa ilogicidade a que me refiro com minhas peras: digamos que se trata antes de liberdade. 

E cada vez mais mergulho, agora com mais tempo, em uma das minhas formas de ser feliz: ler, ler, ler. De momento, uma rara biografia de Confúcio, cuja vida foi, segundo o autor, um relativo desastre, mas cujas ideias embasam a incrível cultura chinesa e fascinam os ocidentais.

O que buscamos afinal, em nossas breves e ilusórias existências? Fama, sucesso, ser magro, ser atlético, ser famoso e rico, enfim “ser feliz”, seja lá o que isso signifique para cada um – objetivo que muda em cada fase da vida. Quando criança, eu queria ser adulta, pois para eles me pareciam existir as coisas interessantes. Adolescente, eu queria entender o mundo, para isso lia feito desesperada para susto de minha mãe, que muitas vezes me mandou sair com as amigas: ler demais me deixaria “pateta” e, além disso, afastaria candidatos, “porque homens não gostam de mulheres muito inteligentes”. 

Adulta, quis ter uma família, filhos, que sempre foram meu maior e mais ardente desejo: o que seria de mim sem essas criaturas tão amadas, mesmo que eu fosse bela, magra, rica e famosa? Sempre quis muito ter uma relação pessoal positiva e boa e, embora duas vezes viúva, tive isso como dádiva do destino, agora mais uma vez – curtindo há bom tempo o aconchego de uma relação já mais para outono do que para primavera.

Nesta fase atual da vida, quase invernosa, o que desejo para esse “ser feliz” tão falado? Além dos afetos já citados, quero sossego: há algum tempo parei de correr pelo país e fora, em palestras, encontros, seminários. Foi quando um jornalista perguntou qual meu maior “sonho de consumo”, e respondi sem refletir: “Ficar quieta”. No avião, voltando para casa, indaguei de mim mesma: “Então por que você não fica quieta?”.

Reformulei muita coisa e tenho conseguido – o máximo possível sem virar uma estranha eremita – ficar sossegada com meus livros, este computador, meus afetos, sabendo que a família melhora este mundo pela sua decência e talentos, os amigos estão perto, ainda escrevo com alegria, curto a paisagem da minha cobertura mais rústica do que chique, e com meu parceiro escapo nos fins de semana para outro refúgio simples, na Serra. Mas confesso que, nestes estranhíssimos e inquietantes tempos, a alma se aflige mesmo quando a vida está boa: o que estão fazendo com este Brasil? E isso, meus amados leitores, não deixa ninguém “ser feliz”.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016



23 de novembro de 2016 | N° 18695 
MARTHA MEDEIROS

Embriagado pela vida

Não é a primeira vez que escrevo sobre o cineasta Domingos Oliveira e o efeito que ele provoca em mim. Não consigo distingui-lo do seu trabalho, é como se homem e obra fossem uma coisa só. Seus filmes são extensões do seu corpo, ele fica de mãos dadas com cada um da plateia.

Domingos é uma declaração de amor ambulante. Um hedonista, um libertário, um filósofo, um ser pulsante que alterna erros e acertos sem o menor constrangimento porque sabe que a vida é assim mesmo e tentar enquadrá-la como algo plano e sensato seria uma hipocrisia.

Fui assistir ao seu premiado BR716 e saí do cinema com minha admiração confirmada. Domingos já está em seus 80, mas sua alma não tem idade, não acusa o passar do tempo, ele ainda é aquele morador de Copacabana que vivia embriagado de álcool e de enlevo pelas belas garotas que circulavam pelo seu apartamento – BR não é a sigla de uma rodovia, e sim as iniciais da Rua Barata Ribeiro, onde ele morou no início dos anos 60, pré-golpe militar, dando uma festa atrás da outra enquanto tentava escrever um livro. O que não deixa de ser uma viagem.

Caio Blat, que interpreta o alter-ego de Domingos, está perfeito em sua caracterização, melhor do que os atores que interpretam o alter-ego de Woody Allen e chegam lá medianamente. No início, o seu jeito de falar soa estranho, mas logo a gente acostuma. Sophie Charlotte humilha: nunca esteve tão linda, sexy e cativante. Sergio Guizé, no papel de um ativista político regado a algumas doses extras, faz rápidas e definitivas aparições – carisma puro. 

A fotografia em preto e branco é colossal, mas funciona também quando é apenas simples. Os ângulos passam de óbvios a surpreendentes numa piscadela. É tudo dessa forma irregular, incongruente e absolutamente natural. Domingos é Nouvelle Vague e Cinema Novo, é profundo e é comédia, foco e desfocagem intercalando-se.

Como não se deixar seduzir? Seus filmes não parecem filmes, parecem uma pessoa, com caráter e defeitos. Não há sexo explícito, e sim paixão explícita, verdade explícita: Domingos mostra mulheres e homens contraditórios, malucos, românticos, confusos. As falhas não são deletadas, e sim assumidas. Vale tudo, porque o tudo é desse jeito mesmo, múltiplo. Somos amorosos e cafonas, inteligentes e ciumentos, sérios e divertidos. Não existe a supremacia de um aspecto sobre outro, o meu ponto de vista versus o seu. Viver é um projeto coletivo, aberto ao transitório, em que só o que importa é o movimento dos nossos desejos.

Parece um elogio ao filme, mas é um elogio ao ser humano, ao Domingos e a nós todos, no que restou da nossa saudável embriaguez dos sentidos.

sábado, 19 de novembro de 2016



19 de novembro de 2016 | N° 18692 
CARPINEJAR

Máfia siciliana


Pretende se defender de um canalha? Simples, elementar, ele aparenta ser um homem do lar, que cultiva temperos em horta e cheira rolhas de vinho, mas vive na rua, não distingue a rúcula do radici e apenas come fora.

A propaganda do primeiro encontro é redondamente enganosa.Receberá você no apartamento espaçoso, brilhando, com amplo sofá e vista para o oceano de prédios, entretanto o local de orgulho doméstico é um matadouro higienizado, acabou de se livrar dos resquícios da última conquista. 

Tudo está arrumado e nos trinques como se fosse um maníaco por limpeza, porém não se engane, pagou faxineira para fingir status de rapaz sério e dedicado. Ele fará questão de abrir a porta de avental e mangas dobradas da camisa xadrez, testa suada e cabelo caprichosamente desleixado.

Estará ocupado em lhe agradar e demonstrar os dotes no fogão. Fechará a porta da cozinha para intensificar os segredos e a surpresa. Dirá que é uma receita familiar, que não expõe para qualquer um, que realmente é uma homenagem. Colocará jazz de música ambiente, apesar de vibrar e conhecer de cor as letras do sertanejo universitário.

Os livros de arte em cima da mesa são de fachada, não vê diferença em Jackson Pollock e no desenho de seu sobrinho.

Só que todos os canalhas cometem um erro. Preparam um único prato: risoto de limão siciliano. Fica como um padrão de psicopatia amorosa. É uma marca da maldade, talvez um pré-requisito do sindicato.

Sugerem que cozinham bem mais do que aquele arroz empapado, a questão é que não avançam no livro de receitas. Não entendo o motivo: todo canalha faz risoto de limão siciliano. Por que não estrogonofe? Por que não uma massa de camarão? Por que não um salmão?

Sempre risoto de limão siciliano. Como uma assinatura, um código da cafajestada.

Levam em consideração que a mulher não resiste, que a combinação não agride o regime, além de servir como preliminar para o sexo (não provoca mau hálito).

Cheiro de alecrim fresco e limão no ar é cheiro de crime, saia correndo. Não espere o dia seguinte para descobrir que ele não telefonará.



19 de novembro de 2016 | N° 18692 
MARTHA MEDEIROS

Pense antes de dar um flagra

Redes sociais são parques de diversões. Alguns não sabem a hora de saltar do brinquedo e se atrapalham

Enquanto ele me contava sua história, eu ia lembrando outras histórias semelhantes, em especial a de uma amiga que teve os e-mails devassados pelo marido. O que foi descoberto? Apenas que ela conversava com um ex-namorado. Claro que havia no ar um clima amistoso de quem já dividiu lençóis e lembranças, mas não estava acontecendo nada. Eram provocações, insinuações, enfim, as inofensivas seduções das quais adultos se valem quando querem se divertir redes sociais são parques de diversões. Alguns não sabem a hora de saltar do brinquedo e se atrapalham, porém outros conseguem manter a suavidade da troca erótica sem provocar fissuras em seu status oficial.

Até que alguém desconfiado e ciumento crônico invade o que era para ser privado.

Eu continuava escutando meu amigo contar sua história. Ele tinha feito a maior burrada da vida: entrado no Facebook da namorada. Ela era seu grande amor, mas ele não havia gostado do jeito maroto com que ela havia cumprimentado um sujeito num bar e foi corroído por uma imaginação mortal. Em um dia que ela foi viajar, ele aproveitou para rastrear suas conversas inbox. Não encontrou nada que a condenasse, a não ser o conhecido tom jocoso que muitas vezes usamos em bate-papos particulares. Quando ela retornou de viagem, olhou para ele calmamente e disse adeus. Nem deixou que ele explicasse. Já estava sabendo que ele havia vasculhado sua correspondência.

Meu amigo estava desnorteado. Perguntava: você acha que eu ainda tenho chance com ela? Pouca. Não apenas porque ele havia sido invasivo, mas também porque a invasão dele fez a namorada sentir-se envergonhada da própria frivolidade e das emoções incoerentes que regem a ela e a todos nós, mesmo quando já somos maduros. O namorado a enxergou despida de um jeito que ninguém poderia.

Não foi o flagra de uma traição, que afinal não havia, e sim o flagra da carência existencial que poucos superam, e de uma vaidade também sem controle. Podem não ser qualidades honrosas, mas são absolutamente humanas.

Se alguém está se sentindo inseguro com seu par, que pergunte diretamente a ele sobre o que está acontecendo e conforme-se com a resposta. Se não se conformar, separe-se, pois ninguém merece viver torturado pela dúvida. Separar é uma saída mais digna do que bisbilhotar: encontrando ou não as pistas que busca, o fim do relacionamento será iminente, pois um limite foi transposto. Tentar trazer à tona, na marra, os segredos e fantasias do outro, é violar um espaço que pode não ser belo, mas é sagrado.

Meu amigo aprendeu a lição, mas terá que testar esse aprendizado com seu amor futuro.



19 de novembro de 2016 | N° 18692 
LYA LUFT

A paciência e seus limites

Nem sempre as ditas virtudes são positivas: vejamos a humildade e a paciência. Humildade demais pode ser problema de baixa autoestima; paciência ilimitada pode ser fraqueza, negação da realidade, medo de prejudicar ou de perder.

Combinamos que aqui eu não escreveria sobre política, aliás para alívio meu, pois após vários anos fazendo isso, do jeito que as coisas andam, me dá uma certa alegria ser dispensada. Mas (Marta Gleich, “patroazinha” querida, me permita...) há coisas que não devem dormir na calada da noite do nosso silêncio. Quem tem voz e vez, o que acontece com jornalistas e seus colaboradores, vez por outra tem de sair do armário da discrição e falar. Ou escrever.

Parece que finalmente os brasileiros estão no limite de sua excessiva, longuíssima, humilíssima paciência: manifestações de toda sorte, inclusive aquela, assustadora embora pateticamente pequena, de cinquenta pessoas pateando em cima da mesa da presidência da Câmara dos Deputados, em Brasília, pedindo a volta da ditadura militar. Depois da longa sombra de sofrimentos para conquistarmos a democracia, isso pode parecer aberração passageira, mas há quem receie que se propague feito mais uma epidemia, que não causaria microcéfalos mas seria por eles produzida.

Hoje nem sou lírica, nem romântica, mas queria manejar palavras como bisturis: onde esteve nosso sentimento de honra, que por décadas nos permitimos ser administrados e explorados, conduzidos como bois mansos nos pastos de uma corrupção nunca vista? E agora, chamados a pagar alto preço por nossa negligência, alienação, comodismo ou cumplicidade, como faremos? Tiramos o filho da escola, reduzimos a comida na mesa, empilhamos dívidas e angústias, nos desesperamos, fugimos do país, fugimos da raia, caímos no crime porque neste país de mais de 12 milhões de desempregados é mais fácil ganhar dinheiro servindo de avião para algum traficante na esquina?

Num país em que a impunidade reina quando se trata desses crimes pecuniários, e dos outros, como assassinatos, decapitações, esquartejamentos, mortes de jovens, de famílias, de mães ou pais e criancinhas, quem nos dará conforto, estímulo, amparo e esperança? Ou por desesperança viraremos todos criminosos?

Acho tudo isso tão extraordinariamente cansativo e com nuances suicidas. Espero que de verdade tenhamos chegado ao limite da paciência, do comodismo e da humilhação, e que a gente saiba reagir: sem violência se possível, sem destruição, sem manipulação de mentes inexperientes ou desinformadas. Mas de peito aberto e cabeça clara, reclamando nosso direito primeiro: decência e dignidade. Nem ditadura militar, nem gritaria de uma esquerda aviltada, aliás sem essa divisão arcaica e pouco inteligente: todos juntos querendo um país melhor, um futuro possível, um primeiro passo firme para fora desse poço de ignomínia em que nos lançaram esses poderosos que, aos poucos, recebem sua punição extraordinariamente demorada e imensamente merecida – que pode nos salvar.

É verdade: hoje nem lírica, nem emotiva, escrevo com a natural indignação de quem também chegou ao limite da sua desmedida e já inaceitável tolerância.

sábado, 12 de novembro de 2016



12 de novembro de 2016 | N° 18685 
LYA LUFT

Do fundo das águas secretas

“O que são essas coisas que ficam se mexendo dentro da minha cabeça?”, perguntou a criança ao seu pai, que riu e disse algo como “São teus pensamentos, são as palavras. Todo mundo tem isso, todo mundo pensa”. (Foi o que a criança respondeu quando a mãe mais uma vez repetiu seu refrão “criança não pensa”.)

Hoje muitas e muitas vezes me perguntam, a mim e a todos os que lidam com arte, de onde vêm as ideias, ou a chamada inspiração. Cada um vai dar uma resposta diferente, segundo seu jeito de ser, de viver, de trabalhar. A minha resposta, sincera, que no curso do tempo não mudou, tem sido: tudo vem de dentro de mim, impreciso mas real. Eu só elaboro, arrumo, enfeito (ou pioro). Pois “o vento sopra quando e onde quer”: posso ficar períodos sem nenhuma boa ideia, e de repente tudo começar a fluir. Não sou dos disciplinados, modelos para jovens escritores, que escrevem todos os dias. Quando nada tenho a dizer, fico quieta, que é, aliás, o que mais aprecio.

A chamada inspiração, palavra tão polêmica e questionável, é o movimento que nos leva a produzir alguma coisa. No meu caso, repito, está tudo lá dentro, no fundo das águas da mente, ou da alma, aqui a semântica pouco importa. Na verdade, tudo o que vivo, vejo, escuto, sonho, tudo o que me dizem, o que leio, o que vem em entrelinhas e no silêncio, as palavras duras e as amorosas, as alegrias e as injustiças, vai-se depositando no meu inconsciente (ou como quer que o chamemos), como aquela lamazinha no fundo de um aquário. 

Se ali mexo com um lápis (é só uma metáfora, gente...), esse depósito cria vida, se move, sobe à superfície. Em geral, é algo externo que de repente desperta o fundo das águas: um rosto, um telefonema, um movimento mínimo nas árvores, um sonho quando dormimos e do qual confusamente lembramos ao acordar, uma claridade na beira daquela nuvem. Move-se assim o material para a pintura, o romance, a música.

Assim são as ideias ou emoções que regem o que muitos artistas produzem: mas, embora vindo dessas águas escuras, não são necessariamente sombrias. Pois lá, junto com as pedras e perdas, estão depositados também os encantamentos que nos marcam para sempre. Não somos donos ou controladores dessa chamada inspiração: a palavra me incomoda, mas não tenho bom substituto. Por que me incomoda? 

Porque sugere algo caído do céu, uma luz que vem do alto, que nos faz sentar e trabalhar leves e alegrinhos. Às vezes, sim, escrevo com uma quase incontida alegria, se pudesse saía a dançar por cima dos telhados vizinhos (no meu caso, bastante improvável...). Outras vezes, me faz refletir, reescrever, desistir e deletar, andar pela casa, subir para o terraço, pensar em nunca mais escrever uma só palavra, depois voltar a este diminuto escritório e retomar a dura lida.

Assim emergem daquelas águas secretas os primeiros pensamentos sobre o Natal: a árvore que vou enfeitar depois do feriado, as comidas a encomendar pensando nos que vão chegar, o carinho que me aquece sempre que penso neles (e nos que estão distantes e não poderão vir). Emoções como vaga-lumes luminosos que alegram os dias nada fáceis para ninguém neste planeta – que anda bem esquisito.



12 de novembro de 2016 | N° 18685 
MARTHA MEDEIROS

Perdidamente

Estabilidade é ausência de emoções fortes. Quando um desejo, finalmente, se cumpre, aí é que a bagunça se instala e o tempo desenfreia-se

Amizades passam por fases, como os amores. Fase do grude, fase do silêncio, fase da demolição, fase da reconstrução. Tenho uma amigona com a qual eu andava na fase grude, só que ela se apaixonou e saiu de cena com o novo namorado. Hoje nós duas estamos na fase qual é mesmo o teu nome?, mas ela me mandou um WhatsApp dia desses dizendo que sente minha falta e que um dia irá voltar, como se estivesse num paraíso perdido. Ora, ela está o que é uma bênção. O que me comoveu foi a sua definição do momento atual: A felicidade anda me desorganizando.

A gente busca a felicidade como se ela fosse um pacotinho escondido atrás da Torre Eiffel, como se ela estivesse resumida a seis números de loteria, como se ela viesse dentro de uma bolsa de grife, como se sua chegada dependesse de uma foto no jornal, de uma capa de revista: cada um vai atrás da sua felicidade idealizada e acredita que só ao alcançá-la é que a vida finalmente entrará nos eixos.

É o contrário. Aí é que a vida ficará de pernas para o ar.

A cada manhã, levantamos da cama com a esperança de que o dia nos surpreenda, mas as surpresas não são cotidianas, não ficam tão disponíveis, elas são sorteadas aqui ou acolá, escapando de qualquer planejamento. Enquanto nada de especial acontece, a gente está no eixo, muito no eixo. Estabilidade é ausência de emoções fortes. Quando um desejo, finalmente, se cumpre, aí é que a bagunça se instala e o tempo desenfreia-se.

A felicidade (aqui traduzida por uma alegria incontida, não a felicidade da paz de espírito) nos desorganiza, de fato: minha amiga tem total razão, ela que deixou de ser regida pelo cérebro há alguns meses e se tornou ainda mais inteligente. A felicidade é carnavalesca, dança de um lado para o outro, se traveste, se fantasia, retira o relógio do nosso pulso, joga longe nossos sapatos, passa a ser regida por calafrios, não mais por conversas sensatas. Destrava, desalinha, e nós, seus portadores, desalinhamos juntos. Filhos, amigos, parentes: realidade demais, xô. 

Esse tipo de felicidade (repito: a do enlevo, do encantamento profundo) não tem laços vitalícios com ninguém, ela é uma chama, um raio, um cometa, intuímos sua efemeridade e queremos mantê-la acesa o máximo de tempo possível. Obediência a calendários e compromissos conduziriam ao fim deste fervor, mas tudo o que queremos é que este fervor permaneça, mesmo que ao custo do nosso despreparo para ele, mesmo que pareçamos fora do esquadro. Ok, pagamos o preço. Desorganizados, mas radiantes.

É possível ser feliz e ao mesmo tempo organizado, mas você entendeu: não estou falando da felicidade comum, aquela incluída em nossos afazeres diários, e sim do êxtase, esse adorável corruptor da nossa agenda.



12 de novembro de 2016 | N° 18685 
CARPINEJAR

FRIORENTA

Tem gente que fica irritada com fome ou com sono. Sei que está ligado a flutuações dos níveis de serotonina no cérebro, fenômeno que ocorre frequentemente quando você está de estômago vazio ou sem dormir.

A minha mulher tem um problema particular com queda de temperatura. Mineira, solar, primaveril, acostumada a tempos amenos, muda de temperamento se sofre com o frio. Fica estressada. Baixa a resistência. Enfraquece com ares juninos.

É um arrepio que cresce em calafrio que desemboca em friagem.

Sério! É encrespar o vento que ela torna-se ranzinza.

Fui percebendo aos poucos. Demorei para registrar a sua transformação.

É Porto Alegre atingir 12 graus que começa o sufoco. Ela que é doce e compreensiva passa a demonstrar uma impaciência incomum. Seus olhos congelam.

Ela não admite mais nenhuma brincadeira, nenhuma selfie, nenhuma palavra amorosa. Endurece como uma déspota. Dita regras, censura os meus hábitos, não quer ninguém perto.

Nem adianta fingir calor com camiseta de física e bermuda. Também não serve como atenuante tomar banho frio e reclamar do suor. Ela não cai mais em meus truques baratos de ilusionismo climático.

A gentileza tampouco sensibiliza. Procuro agradá-la oferecendo um casaco nos ombros ou uma coberta nas pernas e ela se irrita ainda mais com o excesso de ternura.

O problema de quem quer ajudar alguém irritado é que, ao temer a reação, perde a pose natural, exagera no carinho e bajula. Eu sinto que ela está nervosa e me aproximo com veemência quando o certo era me afastar e respeitar. Vejo que acontece o medo da contrariedade, que me impele a intensificar o meu esforço de ajudá-la e também a minha frustração de confortá-la.

O frio não é uma briga dela comigo. Mas parece que tenho culpa por ser gaúcho e trazê-la para cá e me responsabilizo por sua fragilidade, seja condenando, seja paparicando.

Não deveria sofrer junto. Ela simplesmente não nasceu para o nosso inverno, muito menos para as madrugadas gélidas e de neblina da Serra.

O que me resta fazer, dentro dos meus limites, é deixar o controle remoto do ar condicionado sob o seu domínio. Só seguro no momento de trocar as pilhas.

Isso que ela ainda não viu o que é o calor em Porto Alegre.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016


09 de novembro de 2016 | N° 18682 
MARTHA MEDEIROS

Cantadas musicais

Nunca fui boa de paquera. Sendo tímida quando garota, não conseguia sustentar um contato visual. Se olhavam para mim, virava o rosto, constrangida. E mesmo quando a conversa se iniciava, era uma travação só. A meu favor, digo que os garotos não eram muito melhores de papo. Falar sobre si mesmo, quando se é adolescente, equivale a um parto a fórceps. Como dizer abertamente quem somos, como narrar para alguém o nosso universo privado? Era preciso um truque, um subterfúgio.

O meu era gravar fitas K-7 (recorram ao Google, crianças) com minhas músicas preferidas e então dá-las de presente, torcendo para que não precisasse explicar mais nada: através delas, meu futuro príncipe (sempre romântica) descobriria por onde passava minha emoção, em que tom eu me comunicava com meus demônios internos, o que fazia minha imaginação voar, qual era a trilha sonora da minha intimidade – aquela intimidade que eu estava disposta a repartir.

Um dólar pelos seus pensamentos. Você também fazia isso?

Pode-se tentar o mesmo tipo de conexão emprestando livros, é também uma forma de dizer quem somos, mas selecionar pessoalmente cada música, fazer uma playlist especial para os ouvidos de uma única pessoa costuma ser um strip-tease bem eficiente – e encabula menos. Tanto funciona, que crescemos e mantemos o estratagema. Meu ex-marido me seduziu com seu espetacular gosto musical. A parte mais sofrida da separação foi a divisão dos discos (“pode ficar com o apartamento, o carro, as filhas, mas os álbuns são meus!”). Acabou deixando o mais importante comigo, sua amizade. Ainda trocamos dicas e curtimos o mesmo jazz.

Mas nem sempre tive essa sorte. Se eu não fosse perseverante, alguns romances não teriam prosperado. Um namorado foi viajar e retornou com um CD, o primeiro que eu receberia dele. Abri o pacote com o coração aos pulos: enfim, descobriria o que o comovia. O disco era do Dudu Nobre. Inúmeras mulheres teriam vibrado, mas, pela cara que fiz, ele tomou a decisão certa: passei a ganhar flores, o que garantiu a longevidade da relação.

Não faz muito tempo gravei um CD para alguém com quem começava a sair. Escolhi a dedo alguns blues de Buddy Guy, John Lee Hooker e outros nomes que combinam com uma noite regada a vinho tinto, mas a reação dele foi morna como um copo de leite. A pá de cal: dias depois ele me recomendou um cantor de bolero boliviano. Como é triste o fim de um amor.

Não é obrigatório ter o mesmo gosto musical, mas um relacionamento que se pretenda sintonizado ganha muito quando ambos conseguem escutar o que o outro está sentindo.

domingo, 6 de novembro de 2016




05 de novembro de 2016 | N° 18679
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

AS MARCAS ENCANTADAS

Uma das complexidades das relações afetivas, que justifica o porquê das duradouras serem pouco frequentes, é a necessidade de constante adequação dos personagens, a exigir que as diferenças inevitáveis sejam aparadas para que o convívio siga amoroso. E o preço desta adaptação não pode incluir o sacrifício do prazer de nenhuma das partes, porque isto implicaria, a longo prazo, cobrança e ressentimento.

Na primeira consulta, o Frederico e a Emília formavam um casal de velhos elegantes. Não lembro exatamente o quanto eram, de fato, velhos, mas como eu era muito jovem, aprendi a pensar neles assim. O que me impressionou naquela época era a permanente busca de um pelo outro, como se dar as mãos, por exemplo, fosse uma necessidade vital. E se tocavam sem olhar, como quem tem a certeza de que a âncora de afeto urgente estaria sempre onde devia estar.

O jeito com que ela cuidou dele no pós-operatório foi meio maternal, mas ele não parecia se incomodar com a autoridade dela. Pelo contrário, parecia um bebezão mimoso.

À medida que fomos convivendo, fui me apaixonando pela espontaneidade do afeto e pela inteligência debochada da dupla.

Vinte anos depois, com filhos resolvidos e netos encaminhados, sobraram os dois na casa enorme, com jardim de inverno deslumbrante e uma pilha de nós de pinho suficiente para alimentar duas lareiras em algum inverno canadense.

E, então, o Frederico foi dormir mais cedo, queixando-se de uma dor frontal que atribuiu à sinusite, e nunca mais acordou. Algum tempo depois, tendo o clínico referido que havia alguma secreção pulmonar, ela quis que eu fosse vê-lo. Encontrei-o emagrecido e desfigurado. O homem vigoroso não existia mais, mas ela seguia no comando e, enquanto me contava como tudo tinha ocorrido, alternava gestos de carinho com o cuidado de não permitir que a saliva escorresse da boca de lábios enviesados. Tudo parecia natural, a barba aparada, as unhas feitas e o cabelo grisalho e farto, que ela delicadamente penteava com os dedos finos.

Naquela hora e meia em que ficamos juntos não ouvi uma queixa, só um resmungo com a incompreensão dos filhos que queriam que comprasse um apartamento para ela e colocasse o pai numa clínica, já que não havia nenhuma chance de recuperação.

“Eu sei que a intenção deles é boa, mas não consigo fazê-los entender que, com ele aqui, nesta casa que foi tanto para nós, tenho a única certeza de que a minha vida não terminou. Eu era uma menina boba quando ele casou comigo, e teve uma paciência... 

Tudo o que eu prezo na vida aprendi com ele. Ele era tão generoso que me ensinava o que valia a pena e nem se importava se depois eu fazia pose de intelectual. No máximo, debochava de mim, quando ficávamos sozinhos. O único problema é que, porque nos bastávamos, fomos ficando um pouco isolados, mas eu tento compensar a falta que sinto dele antigo pelas lembranças maravilhosas do que vivemos. E nada disso é tão real quanto estar nesta casa, com os nossos livros e nossas músicas. 

O médico diz que ele não entende nada, mas eu sinto que sim. E, se não, como explicar todas as vezes em que ele chora ao ouvir a Maria Callas cantar Vissi d’arte? Então, eu pego a mão dele, fecho os olhos e me vejo no Teatro Colón assistindo à Tosca, de Puccini. E sou quase feliz outra vez. E quer saber, doutor? Tem muita gente que, mesmo que durasse 200 anos, não viveria metade do que vivemos juntos. Pode parecer egoísmo, mas eu preciso da presença dele aqui para ter certeza de que continuo viva! Por favor, me confirme que não é absurdo pedir ao menos isto.”

Não apenas os traumas deixam marcas definitivas. Os encantamentos também. Felizmente.

sábado, 5 de novembro de 2016


05 de novembro de 2016 | N° 18679 
LYA LUFT

Morte e renovação

Outro dia, falei com uma plateia muito simpática, de uma empresa que partilhava com funcionários um momento de inovações. Difícil não inovar nestes tempos tumultuados, de competições às vezes desvairadas, de necessidade de manter a cabeça à tona d’água, quando tanta coisa colabora para que a gente estagne. Para começar, nada se faz sem a inovação interior, pessoal, de cada um: querer mudar para melhorar ou para ao menos sobreviver direito. A cada momento, teríamos de nos renovar: impossível tarefa, pois não sobreviveríamos a essa batalha incessante e dura. É duro mexer na nossa zona de conforto (nem todas as expressões modernas são modernosas).

Às vezes, como tanto escrevi e falei, é preciso parar pra pensar, e vem a inevitável reação: “Parar pra pensar? Nem pensar! Se paro, eu desmorono”. Porém, sem uma eventual consciência de nós, do que somos (ou pensamos ser), fazemos, queremos e podemos (ou devíamos), nada vai adiante: a engrenagem acaba enferrujando, logo não teremos visão além da confusão de peças que funcionam desordenadamente.

Olho minhas duas cachorrinhas em casa: bicho, quando não tem o que fazer, fica quieto observando, ou dorme. Pessoa, quando não tem o que fazer, puxa angústia. Já senti uma secreta invejinha: poder só brincar, só cochilar, só ficar de olho no estranho mundo humano, curtindo a minha redoma de ser bicho. Não dá.

Então às vezes precisamos inovar, porque a vida pede isso, o trabalho exige isso, devemos isso a nós mesmos, pois a vida chama. E tem muita coisa simpática nesses movimentos que, para serem bons e produtivos, pedem consciência, inquietação, coragem, honradez, estímulo de outros se possível: dos amores, dos amigos, da família, da empresa, sei lá.

E como foi Dia dos Mortos, grandes transformadores nossos – porque dessa perda não saímos impunes –, lembrei de tantos que se foram, do quanto sofri com eles e por eles, e por mim mesma – que tão doloridamente os perdi. Até descobrir, com o passar do tempo (que nem sempre é inimigo), que na verdade continuam todos em mim: memórias, lições, exemplos, abraços, olhares, companhias. 

Que a espantosa dor da perda se adoça dentro do possível, e se torna suportável. E começamos a recordar mais os casos divertidos, os dias alegres, os conselhos que me deram ou dariam (pois seguidamente os interrogo aqui dentro, “e agora, o que faço?”, imaginando sua resposta, que às vezes me ajuda). Como a frase que meu pai repetia quando eu enfrentava algum dilema: “Olha, filha, se você for para esse lado, acho que vai se sair bem; se escolher o outro, corre mais perigo de quebrar a cara. Seja qual for sua escolha, vou estar sempre aqui”.

Muitas vezes, reclamei, “cadê você agora que tanto preciso?”. E ele estava. Todos estão. Apesar das nossas trapalhadas, das lembranças mais pálidas, dos esquecimentos e das impossíveis retratações, se não amamos direito, eles nos sustentam quando bate o vento das inovações arrebentando tudo, revolvendo a terra da nossa alma, derrubando as árvores da alegria e abalando a nossa segurança. Podemos nem saber, nem claramente sentir – mas aqui estão, imortais fragmentos amorosos.



05 de novembro de 2016 | N° 18679 
MARTHA MEDEIROS

Pedro o é

Escritores geralmente têm uma relação de amor e ódio com seu revisor

Tenho uma amiga escritora que mora em São Paulo e vive brigando com seus revisores não estou falando de corretores automáticos de aplicativos, esses demônios que puxam nosso tapete. Estou falando de profissionais competentes, todos dispostos a ajudar, mesmo quando atrapalham.

Escritores geralmente têm uma relação de amor e ódio com seu revisor. O amor, naturalmente, vem das inúmeras vezes em que o dito cujo nos livra do vexame de escrever uma palavra errada ou fazer uma concordância absurda. O revisor salva a nossa pele.

O ódio fica por conta da desobediência natural que certos estilos de escrita impõem: quase sempre, nosso erro é proposital. Faz parte do coloquialismo inerente ao gênero literário a que nos dedicamos. Crônica, por exemplo, parece uma conversa de bar, em que se tolera que frases comecem com pronome: “Me deram um chá de banco” em vez do correto “Deram-me um chá de banco”. Ou quando criamos um personagem fictício que não prima pelo português castiço – ninguém espera que um traficante use as mesóclises que encantam o Temer. Aliás, ninguém espera isso nem de um professor.

Essa minha amiga já passou por alguns perrengues. Uma revisora, certa vez, corrigiu todos os diálogos de um livro seu – todos! A personagem principal era uma adolescente que atendia num bar moderninho da Vila Mariana, mas a revisora implicou com alguns maneirismos de linguagem e colocou a moça falando como se fosse uma assistente social coletando donativos para a igreja. Não bastasse isso, a revisora corrigiu inclusive os horários que a moça saía do trabalho. Não gostava da ideia de ela deixar o bar depois da meia-noite – além de não pegar bem para uma menina tão nova, o metrô já estaria fechado, como ela voltaria para casa? 

Parece piada, mas até o horário do expediente da personagem a revisora tentou alterar. Minha amiga passou dois dias corrigindo a revisão da revisora a fim de manter tudo como estava no original, e depois de um stress que quase a fez desistir do lançamento, o livro acabou saindo como ela queria. A propósito: a personagem não pegava o metrô porque ia dormir ali perto, no cafofo de um bebum. Uma indecência que a revisora teve que engolir.

O revisor é nosso Deus e nosso Diabo. Graças a ele, escapamos de gafes, mas também pagamos micos. É uma relação bipolar, repleta de “muito obrigada pela correção, não percebi meu vacilo ao escrever assento da aeronave com c!”, mas também de “não acredito que você trocou a frase Pedro é por Pedro o é”. Pedro o é!!!

Como reclamar da vergonha que o revisor nos fez passar na página 154 se algumas páginas antes fomos socorridos pela colocação de um acento que faltava?

Neste caso, acento com c. O revisor (beijos!) confirmou.



05 de novembro de 2016 | N° 18679 
CARPINEJAR

Coração fixo dos pais

Quando você perde o celular ou ele estraga, entra em pânico. Não lembra de nenhum número de cor. Você apenas preserva os telefones no aparelho e não explora mais o raciocínio. A última vez que decorou algo com devoção foi a tabuada na infância.

Não tem mais a necessidade de anotar na palma suada da mão e passar a limpo com a ansiedade dos olhos. Não há rascunhos dos códigos.

O que você conhece da vida de seu amor e de sua família está alojada na pastinha dos contatos. Mesmo o celular da sua esposa e dos seus filhos estão lá. Vendemos a nossa memória para as operadoras. Recobraremos alguns números, mas não a ordem exata. Nossos melhores amigos encontram-se presos no chip. De um instante para o outro, o universo de referências desaparece e somos combinações de trotes e enganos.

Não existe como solicitar socorro e avisar que ficou sem comunicação. Mentaliza o desespero dos seus familiares buscando ligar freneticamente, e o seu celular mortinho. E a sua memória morta junto.

E se dará conta de que o único número que recordará será o fixo da casa dos pais. Exatamente o número telefônico que nunca mudou em sua história. Telefonará aos pais para o resgate afetivo de suas raízes.

– Mãe? Mãe? Que bom que está em casa, pode avisar a minha mulher que estou sem celular.

Engraçado que a mãe sempre está em casa quando você precisa. É a intuição materna provando a sua força.

Por mais que amadureçamos e nos tornemos independentes, jamais esqueceremos os pais. É para eles que regressamos quando precisamos de verdade. É para eles que reivindicaremos cuidados na amnésia e nos recomeços. Os pais são para sempre, mesmo que a relação seja fundada em brigas. No momento decisivo, os desentendimentos somem.

O único telefone que lembraremos é o da residência primeira, a residência onde prometemos um dia não voltar tarde.

O telefone fixo dos pais forma o escapulário nas lembranças que nos protege do mundo. Impossível de ser apagado ou de ser removido. Nenhuma tecnologia destrói a voz dos pais ensinando como discar para o endereço.

Lembro nitidamente o número ...333411... assim como lembro que sempre que caía um botão na minha infância, a mãe não pedia para entregar a roupa. Ela buscava a sua almofada negra de agulhas, sentava em um banquinho em minha frente e consertava a camisa na hora. Recriava o ventre por alguns minutos. Eu sentia a linha ziguezagueando próxima da pele. Acho que, no fim, ela costurou o número do seu telefone em meu corpo para que eu fosse devolvido são e salvo.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016



02 de novembro de 2016 | N° 18676 
MARTHA MEDEIROS

Só temos esta

Lido razoavelmente bem com a ideia da morte. Considero-a uma balizadora – diria até que uma aliada. Ter consciência tranquila da morte dá à vida um sabor menos azedo e nos faz valorizar cada pequeno milagre diário, em vez de esperar por uma guinada gigantesca que quase nunca acontece.

Confúcio, filósofo chinês, tem uma frase diabólica sobre esse assunto: “Nós temos duas vidas e a segunda começa no dia em que nos damos conta de que temos apenas uma”.

Cerca de 11 anos atrás, recebi uma notícia que poderia ter sido desestabilizadora: havia grande chance de eu estar com câncer. A certeza só viria depois de ter feito um exame minucioso cujo resultado sairia em três dias. Durante três dias, convivi com essa espada sobre a cabeça. Muitos talvez pensem que foi então que descobri que só possuía uma vida, mas não. Bem antes disso, eu já a desfrutava como sendo única. Por isso, quando surgiu aquela notícia que poderia ter sido desestabilizadora, não me desestabilizei. 

Já vivia como se fosse uma sobrevivente muito antes de esse diagnóstico chegar às minhas mãos. Estava satisfeita com o meu histórico até ali, e se tudo acabasse mais cedo do que o desejado, não seria perda total. Então, durante esses três dias, afora a preocupação com as minhas filhas, nada mudou. Não senti que estava passando por um divisor de águas. Quando o resultado do exame acusou nada de grave, suspirei de alívio e continuei a fazer o que estava fazendo. Não virei outra pessoa. Não nasci de novo.

A frase de Confúcio sugere que o momento de dar-se conta de que a vida é única pode também margear alguma data redonda da maturidade. Aos 40? 50? 60? São idades emblemáticas, em que a perspectiva do fim realmente assusta e tomamos decisões radicais que antes não tínhamos coragem: separar, tirar um ano sabático, fazer uma viagem ritualística, colocar em prática um projeto, casar de novo, enfim, o famoso “correr atrás” com o fôlego que resta. Mas a iluminação pode acontecer aos 18. Aos 21. Aos 26. Agora, por exemplo.

Não, não me venha falar em vida eterna. Deus me livre da vida eterna. Sinto calafrios só de imaginar que é possível que nada acabe, nem eu. Caso eu lhe pareça uma herege, seja misericordioso, me ofereça seu perdão e toque em frente. Nem perca seu tempo me enviando mensagens desaforadas ou tentando fazer com que eu mude de ideia. Sou um caso perdido. Dedique-se a quem ainda tem salvação.

Mas se você, como eu, acredita que um dia tudo terminará, não espere por um diagnóstico, não espere uma data redonda, não espere que algo grandioso aconteça para começar a fazer o que tem vontade. Ter nascido já foi grandioso o suficiente.