sábado, 3 de novembro de 2018



03 DE NOVEMBRO DE 2018
LYA LUFT

Onde quer que estejam

A maior homenagem que se pode fazer a alguém que morreu é tentar voltar a viver da melhor forma possível. Porque tudo é transformação. E a vida sempre chama. Eu acredito nisso. Mas só quem passou por esse trauma, e sobreviveu, sabe como é difícil de cumprir.

Por que falo nisso, o assunto que envolve dor, mistério, negação, desamparo e - se possível - coragem? Estamos nos tempos que se chamam Finados. Na minha infância, era, como Sexta-Feira Santa, dia de brinquedos sossegados, música só clássica até nas rádios, nada de pular, gritar, rir alto. Essas delicadezas fúnebres em geral acabaram, mas persiste o sentimento de que esses dias dedicados pelo menos à memória dos mortos reservem algum momento mais contemplativo, luxo para quem vive na correria diária pelo horário, o trabalho, o dinheiro, os compromissos ou a própria ansiedade.

Coincide com essa data o dia em que, há um ano exato, perdi meu filho André. Perdemos o nosso Alemão, nós sua família, seus tantos amigos, e acho que ainda estamos todos incrédulos. Ele? Logo ele? Aquele homem imenso, aquela vitalidade fascinante, aqueles olhos azuis prodigiosos, aquela alegria contagiante, aquele jeito acolhedor e amigo, aquela chama inquieta que o levaria para outros cantos do mundo, e talvez a desafiar limitações - o que finalmente o levou?

Seja como for, há um ano, todas as horas de todos os dias, pensei e penso nele. Ainda não acreditei inteiramente na sua morte. Ainda me surpreendo abrindo o WhatsApp e achando que é um daqueles seus recados diários, às vezes só pela alegria do contato, algo como "olha, mãe, que linda a lua da África", "repara que belo prato minha mulher preparou para mim depois de trabalhar ao meu lado o dia todo"... coisas desse tipo.

E por isso me permito transpor para cá, tirando a forma de versos, alguns trechos do livro O Lado Fatal, de 1988.

Não digam que isso passa. Não digam que a vida continua, que o tempo ajuda, que afinal tenho outros filhos, e família, e um amor, e amigos e um trabalho a fazer - pois tudo isso eu sei.

Não me consolem dizendo que ele morreu cedo mas morreu bem, fazendo algo que tanto amava ("Quem não quereria uma morte como essa?"). Não digam que tenho livros a escrever e viagens a realizar. Não digam nada. Pois eu vejo que o sol continua nascendo enquanto estou lambendo esta ferida sem cura, tentando disfarçar um pouco para que ninguém se constranja perto de mim. (Mas não me consolem: da minha dor, sei eu.)

Quando meu filho morreu, abriu-se em meu peito esse buraco: através dele arrancaram-me o coração e colocaram o estranho maquinismo cheio de lâminas e pontas que a um tempo me corta e preserva - pois se de um lado a morte me esmaga, do outro a vida me chama.

Se me tivessem amputado braços e pernas, ou furado o coração com finas facas, cegado meus olhos com ganchos - ou esfolado a minha pele como a de um pobre bicho -, nada doeria mais do que saber meu filho morto, depositado em cinzas pelos oceanos que tanto amava, mas mergulhado nesse poço de silêncio de onde, se me fala, não consigo entender suas palavras.

Quando foi bom o amor, os mortos pedem memórias doces que não os perturbem, e que a gente viva sem muito desgosto: mais nada. Pedem silêncio, e que - por mais que os amemos - os deixemos em paz. Os mortos precisam de mais espaço do que em vida: nesse seu novo posto, não devem olhar para trás com dor, nem carregar pesares. (Os mortos querem licença para morrer mais.)

LYA LUFT

03 DE NOVEMBRO DE 2018

MARTHA MEDEIROS

Neura


Faz alguns anos. Um desconhecido bateu na janela do meu carro enquanto eu estava estacionada em frente à escola da minha filha. Abri o vidro. Ele não apontou uma arma para o meu nariz e, sim, me contou uma história triste que envolvia uma criança, uma aflição paternal e falta de recursos. Pareceu convincente. Dei a ele uns R$ 30, e o cara sumiu como se fosse uma postagem apagada às pressas. Era fake news. Eu caíra na conversa de um charlatão, minha especialidade.

Acredito nas pessoas, sou dessas. O motivo é nobre e autoelogioso: se eu não sou capaz de enganar alguém, acredito que os outros também não sejam. Isso já teve um nome: fé na humanidade. Hoje, chama-se estupidez. Acorda, mulher.

Acordei com o sinal do WhatsApp. Uma amiga encaminhou uma foto e logo procurei sinais de uma provável montagem. Acordei com o alerta sonoro do Messenger. Era um áudio de um político dizendo coisas que destoavam de seu discurso habitual. Acordei com o telefonema de um funcionário do banco pedindo para eu digitar minha senha a fim de ter acesso a benefícios vantajosos. Acordei com o e-mail da viúva de um sheik árabe que herdou alguns milhões e me propunha uma sociedade. Acordei com uma postagem no Instagram de uma loja online que vende roupas 50% off com entrega em cinco dias, desde a China até meu bairro em Porto Alegre.

Acordei na marra, sacudida por uma avalanche de tentativas de extorsão, promessas falsas e notícias requentadas que se fazem passar por novidade. Sacudida por pedidos de amizade de pessoas mal-intencionadas, por confissões íntimas de "amigos de infância" com quem nunca troquei uma palavra ao vivo, por um universo paralelo que se instalou como se de verdade fosse. Não tenho (não temos) mais a prerrogativa de ficar distraídos, de manter a alma leve e a certeza das boas intenções: o mundo está nos exigindo vigilância 24 horas a fim de detectar arapucas. Para quem sempre foi confiante na boa índole alheia, ter agora que ficar de olho aberto contra tudo que chega via redes sociais é, para mim, uma amostra grátis do inferno.

Hoje, nas raras vezes em que me rendo aos apelos do comércio online, uso um aplicativo que permite que eu crie um cartão de crédito virtual que serve para uma única compra e logo desaparece - uma forma de evitar clonagens. Também já conheço de cor os números de telefone que são suspeitos, não atendo mais suas ligações. E durante a campanha eleitoral a qual acabamos de sobreviver, chegava a sentir enjoos diante de tanto boato se fazendo passar por fato.

Taí um efeito colateral da tecnologia: adeus, saudável inocência. Eu, que nunca fui desconfiada, acabei entrando também para a turma dos cabreiros.

MARTHA MEDEIROS


03 DE NOVEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Tempo de cachorro e de gato

O meu amigo Sílvio, de Curitiba, está namorando. Perguntei há quanto tempo. Ele me respondeu, envergonhado:

- Só seis meses! Não achei uma ninharia, como pensaria nos anos 1990. Antes, eu realmente diria que muita água passaria por debaixo da ponte, que ainda estavam apaixonados, que era cedo para tomar uma conclusão.

Perante a minha experiência atual, vejo que tudo mudou. Seis meses juntos são uma odisseia, uma monumental empreitada. Não é fácil seguir um relacionamento com a inédita superexposição das redes sociais, com a enlouquecida pressão por sucesso profissional, com a interação indiscreta de todos os amigos e parentes. Não mais amamos sozinhos, numa bolha. Casamos também com a sociedade a partir de postagens e posts.

É necessário encarar as fofocas, os medos e os desejos de frente, enfrentar cantadas e assédios, não ceder à liberdade sexual, não mentir por nada desse mundo, não ter o que esconder, ser carinhoso e dedicado em tempo integral, apesar das múltiplas obrigações. É tanta gente se metendo no destino do par que não há como sair ileso.

A separação tem como ser pedida a qualquer hora, por qualquer motivo. Desligar-se de alguém é um ato absolutamente trivial. Não há mais dotes, imposições, arranjos: a união parte unicamente da escolha e da felicidade.

Manter um namoro requer o dobro de trabalho e de obstinação em relação ao comportamento passado.

A contagem do amor é diferente da cronologia humana. Está mais próxima do tempo de vida dos gatos e dos cachorros, onde o primeiro ano equivale a 14 anos de uma pessoa.

Um ano de romance são bodas de cristal. Esqueça a hierarquia dos elementos dos aniversários do casório. O coração envelhece mais rápido do que o corpo.

A quantidade de experiências que pode ser vivida precocemente a dois cria uma avalanche de emoções como se conhecêssemos o outro há décadas. Antes da lua de mel, você já fez a lua de mel. Antes do altar, já palmilhou o mapa das famílias junto, já esgotou restaurantes e bares prediletos, já brigou escandalosamente, já decorou as manias e os defeitos de sua companhia, já se entrosou na cama, já se cansou no sofá, já tem um repertório de fotos e lembranças capaz de encher um museu.

Um dia de namoro é uma semana, uma semana é um mês e não existe mais como mensurar pela duração o que foi de verdade ou de mentira. A intensidade é quem manda no fim das contas.

CARPINEJAR


03 DE NOVEMBRO DE 2018
PIANGERS

Me desculpem, estou cansado


Já faz uns três anos que chega novembro e sempre - todo novembro! - eu estou completamente exausto querendo desistir de tudo e ir morar na praia. Novembro é o mês em que eu cansei de tudo: não aguento mais viajar; não aguento mais fazer check-in em hotel (especialmente aqueles em que você tem que preencher um papelzinho e depois o moço do balcão pergunta tudo de novo pra você porque não entendeu a sua letra); não aguento mais gente que manda áudio longo no WhatsApp; 

não aguento mais celular caindo naquele vão do banco do carro que não dá pra pegar de jeito nenhum; não aguento mais elevador que abre e você pergunta "Está descendo?" e uma pessoa lá dentro diz "Não, está subindo"; não aguento mais gente que insiste em colocar uma mala do tamanho de um contêiner no compartimento do avião enquanto todo mundo espera de pé sem entender a qual aula de Física que este cidadão faltou; não aguento mais garçom que pergunta se a água é com ou sem gás (é claro que é sem gás!); e não aguento mais gente reclamando que está cansado e que só quer desistir de tudo e ir morar na praia.

Em novembro, estou tão cansado que entro em um modo de conversa stand by. As pessoas falam comigo, eu respondo normalmente, mas, na verdade, estou com a cabeça longe, estou imaginando-me de calção, barriga branca e nariz vermelho, chutando a espuma do mar dos Ingleses, tomando drinks feitos no abacaxi debaixo de um guarda-sol, pendurando a conta no quiosque da praia, a brisa batendo e eu sem nenhum e-mail pra responder. 

Sem celular, sem wi-fi, sem grupo de WhatsApp. Cansei do formato do celular na minha mão o tempo todo. Cansei de olhar pra tela de três em três segundos. Só quero coisa analógica, quero ler jornal, sujar os dedos com a tinta preta, quero ler uma enciclopédia Barsa, datilografar em uma Olivetti, quero andar de bonde, não aguento mais nada. Não aguento nenhuma modernidade, Netflix, cupcakes, estampas de unicórnios. Não estou nem aí se alguém disse algo no Twitter, se o Instagram tem um novo filtro que tira todas as espinhas da nossa cara. Chegou novembro, e eu estou insuportável.

Cansei de coisas de que todo mundo gosta. Cansei de palavras em inglês, de startãps que fazem éps com faunding de vêntur céptalists, de amigos que estão analisando um bísnes, com o bãdjet apertado tentando alcançar o breique íven. Não sei nem se quero encontrar mais pessoas. Acho que já encontrei pessoas demais este ano, está bom assim. Eu deveria ter contado a quantidade de pessoas que eu encontrei. 

Acho que deveríamos ter uma contagem anual de pessoas que encontramos e, quando chegasse a determinado número, você seria mandado para uma praia deserta, poderia ficar lá até o Réveillon. Estou tão cansado que imagino um Réveillon sozinho. Eu leria um livro até as oito da noite, tomaria uma sopinha e iria dormir com protetores de ouvido para não ouvir os fogos. Coitados dos cachorros. Cachorros me agradam. Ainda não cansei de cachorros. Acho que não estou tão cansado assim.

PIANGERS

03 DE NOVEMBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL

O dilema do porco-espinho

Lancei, pela editora Planeta, O Dilema do Porco-Espinho. Por meses, ao longo do processo de escrever a obra, girei em torno do conceito de solidão, tema central do texto. A metáfora do título foi retirada do filósofo alemão Arthur Schopenhauer: porcos-espinhos, no inverno, sentem frio e buscam os da sua espécie para aquecimento mútuo. A proximidade traz calor e... espinhos. Incomodados, os animais se afastam e, voltam a sentir frio. O impulso de luta contra o frio do isolamento a dialogar com os atritos da proximidade é, metaforicamente, o exercício contraditório da nossa existência.

Muitas pessoas sentem um frio lancinante em um sábado à noite ou, pior, se necessitam passar uma festa como Réveillon sem companhia. Outros tantos, querendo fugir da angústia do inverno solitário da existência, fazem concessões e se aproximam de quem esteja disponível na ocasião, sem um critério seletivo rigoroso. A solidão pode ser tão terrível que a impomos como pena em solitárias ou exílios. Inegável também que é condição da existência: nascemos sós e morreremos sozinhos.

No campo das relações pessoais, naturalmente, ninguém é ideal para mim, assim como eu não sou perfeito para outra pessoa. No convívio dos humanos espinhentos, mesclam-se alegrias e incômodos. Amizades, casamentos, relações de trabalho, namoros e parcerias em geral são uma permanente negociação respondendo se os espinhos alheios superam o frio. A resposta da tensa equação indica se irei a bodas de ouro ou ao advogado do divórcio.

O desespero por companhia pode levar um Van Gogh a projetar em Gauguin todas as expectativas de romper o anel de ferro do seu isolamento. As telas em torno do tema "quarto em Arles" gritam a angústia em cores geniais. O francês fugiu para o outro lado do mundo, o Taiti, talvez assustado com a intensidade do holandês. Van Gogh continuaria seu voo brilhante e solitário até o fim, tendo como única fonte de calor seu amado irmão Theo.

Alguns casais ficam anos em situações mornas ou francamente agressivas porque as espinhadas causam menos terror do que o frio. Na balança que pesa frio e dor, é complexo encontrar a paz. Mais refinado ainda é perceber que as agulhadas podem fazer parte da zona de conforto que, bizarramente, a violência homeopática caseira consegue despertar. Parece que temos uma imensa capacidade de suportar a erosão cotidiana.

Claro que a solidão pode ser produtiva e até agradável. Usamos o termo solitude para mostrar uma face criativa e tranquila de estar sozinho. "Não é bom que o homem esteja só", afirma Deus no Gênesis. A partir do primeiro casal e da primeira família, instaura-se o tema em Adão e, igualmente, cria-se a desobediência e o homicídio dentro da primeira família. Curioso, como eu digo no livro, que Adão não tenha registrado queixas sobre estar sozinho. Quando Deus faz o primeiro recall da História e produz Eva, a percepção do isolamento é divina, não humana. 

A criação de Eva é uma lição: para fugir à solidão, é necessário que minha/meu interlocutora/interlocutor seja suficientemente igual para formatar o convívio (um ser humano como eu) e suficientemente diferente para que a relação não seja como um espelho apenas (ser mulher). Parece um segredo bem além da percepção apenas de gênero. Claro que dois homens e duas mulheres podem descobrir a fórmula do equilíbrio entre proximidade e distância. Quem eu escolho para borrifar a água da companhia no meu deserto interior deve ser parecido/parecida comigo o suficiente para que exista base para o diálogo e distante o quanto baste para não ser um xifópago.

Reconheçam, querida leitora e estimado leitor: você está casada/o há anos. Sua relação é boa e não existem queixas estruturais. Vocês planejam envelhecer juntos com um projeto amoroso que pode envolver filhos. Sua casa é seu refúgio e existe um sentimento forte de que o sim dado no casamento seria repetido hoje. Porém, contudo e não obstante, nesse quadro idílico há uma discreta contradição. 

Se sua cara-metade anuncia que precisa ficar fora alguns dias a trabalho ou por alguma questão familiar, um sentimento de alegria envolve toda pessoa que tenha um mínimo de honestidade consigo. Você sentirá saudade? Sim. Você ama? Muito. Você adorará o isolamento passageiro? Com certeza. Por alguns dias você estará livre para organizar seu tempo, sem concessões. Nada implica um grama de desafeto, apenas de uma necessidade humana para, de quando em vez, respirar em silêncio e ouvir sua voz de forma clara e sem barreiras. Isso é nossa contradição de porcos espinhentos, de humanos gregários e isolacionistas, de eremitas que buscam companhia sem abrir mão da sua caverna. 

Defendo no livro que a capacidade de encarar momentos solitários é uma mostra de sabedoria, equilíbrio interno e, no fundo, saber encarar o exercício complexo de sair de si para encontrar o outro. Para encerrar, muito importante: nunca confunda solidão com estar sozinho ou acompanhado. Solidão a dois pode ser a forma mais cruel de isolamento humano. Igualmente, ausência de outras pessoas não implica sofrimento. Consciência dos seus espinhos e do seu frio ajuda bastante. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


03 DE NOVEMBRO DE 2018

CLÁUDIA LAITANO

A POLÍTICA DO NÓS E ELES

Podemos dizer pelo menos duas coisas a respeito do fascismo sem medo de errar. A primeira é que ninguém gosta de ser chamado de fascista ou se reconhece como tal. A segunda é que nem todo mundo que usa a palavra sabe muito bem do que está falando. Já ouvi chamarem de fascistas fazendeiros, lojistas, o sistema de crédito social, punição corporal, caçadores de raposas, homossexuais e Gandhi, escreveu George Orwell em 1944.

Anos depois da morte do autor de 1984, ainda há muita confusão entre uma pessoa que pensa diferente e outra que age de forma a impedir que a diferença de pensamento seja possível - a primeira pode ou não ser fascista, a segunda certamente é. A boa notícia é que a bibliografia sobre o assunto tem aumentado muito. A má notícia dentro da boa notícia é que todos esses livros sobre fascismo e ameaças às democracias liberais não estão chegando às livrarias à toa.

Um dos melhores títulos dessa nova leva de estudos que ajudam os desconfiados a identificarem precocemente os sinais de que a vaca democrática pode estar indo para o brejo deve ser lançado no Brasil até o fim do ano pela editora gaúcha L&PM. Como Funciona o Fascismo: A Política do "Nós" e "Eles", de Jason Stanley, saiu nos EUA em setembro e chegou ao topo da lista dos livros mais vendidos na categoria filosofia política. O título da resenha publicada no jornal The New York Times ajuda a entender por que o livro anda fazendo tanto sucesso por lá: "Seria Donald Trump um fascista?".

A tese central de Jason Stanley é a de que o fascismo é, antes de mais nada, uma estratégia para conquistar o poder. Ou seja: o fascismo não tem ideologia e pode se adaptar a diferentes tipos de discurso. Estudando exemplos do passado e líderes do século 21, Stanley montou uma espécie de "kit fascismo" básico.

O primeiro ingrediente da receita é a ansiedade. O discurso fascista prospera em momentos de crise, instabilidade e corrupção. Deve-se eleger um inimigo público número 1 (um povo, uma raça, uma ideologia...) e culpá-lo por todos os males - além de insistir na fantasia de que, no passado, sem eles, a vida era bem melhor. Aliás, embaralhar verdade e mentira é outra técnica essencial do kit fascismo. Quanto mais as pessoas tiverem dificuldade para distinguir uma da outra, mais facilmente serão manipuladas. É importante também desqualificar professores, intelectuais, jornalistas, artistas, estudantes - porque, enfim, eles são imprevisíveis. Last, but not least, movimentos fascistas celebram a masculinidade tosca, de preferência armada, dos gestos gratuitos de violência e intimidação.

"O sintoma mais marcante da política fascista é a divisão. Destina-se a dividir uma população em ?nós? e ?eles? , apelando para distinções étnicas, religiosas ou raciais e usando essa divisão para moldar a ideologia e, em última análise, a política", resume Stanley. Não por acaso, o espetáculo conceitual, antifascista da primeira à última nota, apresentado por Roger Waters no Brasil ao longo do mês de outubro, chamava-se exatamente Us +Them ("nós e eles"). Depois de toda a polêmica do período eleitoral, a última frase da turnê brasileira de Roger Waters - dita em Porto Alegre, na última terça-feira - não foi de enfrentamento, mas um apelo ao desarmamento de corações e coldres: "Cuidem uns dos outros". Cordialidade, respeito, gentileza, amor: todos os bons sentimentos são, em essência, antifascistas. Cuidemos, pois, uns dos outros.

CLÁUDIA LAITANO


03 DE NOVEMBRO DE 2018

COM A PALAVRA

NÃO VEJO ESPAÇO PARA UMA AVENTURA AUTORITÁRIA NO BRASIL

Fernando Schüler afirma que a democracia brasileira está segura. O discurso, dissonante do que prega a esquerda e parte da intelectualidade do país, sustenta-se na aposta de que as instituições serão capazes de moderar a verve do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL). Para Schüler, o militar reformado adotará um tom bem mais leve enquanto ocupar o gabinete principal do Palácio do Planalto. Nesta entrevista, o professor e cientista político hidrata a teoria de que a democracia opera como uma máquina de suavizar posicionamentos. Doutor em Filosofia pela UFRGS e pós-doutor pela Universidade de Columbia, em Nova York, mitiga qualquer possibilidade de aventura autoritária no Brasil e chancela: mais complexo, o atual sistema político conformado no país também gera desconforto.

EM SEU PRIMEIRO PRONUNCIAMENTO COMO PRESIDENTE ELEITO, DISSE QUE DEFENDERÁ A CONSTITUIÇÃO. PORÉM, CRÍTICOS AFIRMAM QUE SUA VITÓRIA REPRESENTA UM RISCO À DEMOCRACIA. ESSA AMEAÇA É REAL?

É natural que isso aconteça. Acabamos de sair de uma eleição polarizada, na qual a tese do risco democrático foi o mote da campanha contra o presidente eleito. Agora, é hora de olhar para a frente. É preciso ficar alerta, mas isso independe de quem esteja na Presidência. Muitas vezes, subestimamos a força das instituições brasileiras. Isso é mais comum nos acadêmicos estrangeiros, que opinam muito sobre o país ultimamente. No fundo, muitos ainda enxergam o Brasil como uma espécie de república de bananas e tentam aplicar modelos abstratos, em geral, à luz de preferências políticas. Somos um país surpreendente. Temos todos os problemas imagináveis nos serviços públicos e no sistema político, mas nosso sistema de freios e contrapesos funciona. Temos um Judiciário forte e independente, uma Suprema Corte inconteste, Forças Armadas no seu papel constitucional e um Congresso que, com todos os problemas, conduziu dois processos de impeachment desde a redemocratização. Além disso, há o que chamo de instituições não formais da democracia, que são igualmente fortes: uma sociedade civil organizada e uma imprensa livre. Resumindo: não vejo espaço para uma aventura autoritária no Brasil. Venha de onde vier.

NO MESMO DISCURSO, BOLSONARO AFIRMOU QUE IRÁ TRABALHAR PARA CONCILIAR O PAÍS. DE QUE MODO SERIA POSSÍVEL REPACTUÁ-LO SE OS OPOSITORES DEFENDEM RESISTÊNCIA?

É função de um chefe de Estado falar para todos, preservar o diálogo. Para mim, o modelo foi Barack Obama e suas expressões como "não existem Estados vermelhos ou Estados azuis, mas os Estados Unidos da América.". À época, lhe custou caro, mas o fez um estadista. Não acho que Bolsonaro tenha esse perfil, tampouco imagino que a oposição deseje dialogar com ele. A polarização não vem de hoje. De certo modo, dá o tom na democracia atual. Mesmo um líder como Emmanuel Macron, na França, que surge como um político aglutinador, de centro, hoje propõe um programa de reformas que divide o país e vê a sua popularidade despencar. É provável que Bolsonaro enfrente algo similar quando disputar, no Congresso, a sua agenda econômica. É da natureza da democracia, e tudo ganhou escala na era digital. O Brasil vive sua pior crise fiscal e demanda reformas estruturais de baixo consenso na sociedade. Não se espere quatro anos de calma.

DA RETÓRICA DE CAMPANHA À REALIDADE DA PRESIDÊNCIA, O QUE DEVE SE ESPERAR DO FUTURO GOVERNO?

A democracia é uma máquina de moderar posições políticas. Obriga a negociação, o choque com as questões reais do poder, o diálogo com as instituições. A própria conformação do presidencialismo de coalizão leva a esse resultado. É preciso formar base no Congresso. Veja o que está ocorrendo. Paulo Guedes (anunciado ministro da Fazenda) falava em trocar o regime previdenciário para um sistema de capitalização e privatizar mais de cem estatais. Agora, o governo Bolsonaro fala em aprovar o que for possível, quem sabe ajustando a idade mínima para 61 anos, e preservar a área de produção de energia com o Estado. Minha intuição é de que Bolsonaro será um presidente mais pragmático e levado a posições moderadas pela força das circunstâncias e limitações do sistema político. Isso pode ser bom ou ruim, dependendo do ponto de vista.

ALHEIO AO PACTO DA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA, O PRESIDENTE PODE INTIMIDAR OS DIREITOS INDIVIDUAIS ADQUIRIDOS?

Não acho que isso seria possível dada a força da nossa Constituição e a vigilância do Supremo. Também não vejo o governo propondo, nem o Congresso aprovando, a supressão de direitos individuais. Vamos imaginar: o governo envia ao Congresso uma lei para regular a mídia. Em primeiro lugar, não passa. E, se passar, o STF derruba. É importante separar direitos individuais daquilo que representa uma política pública da qual eu, você ou qualquer um possa discordar. Por exemplo, a redução da maioridade penal. Eu sou contra, acho mais eficiente aperfeiçoar o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Mas não importa. Se o Congresso aprovar, com 308 votos na Câmara e 49 no Senado, em dois turnos, após um amplo debate, terá sido uma decisão da democracia. Faz parte aceitar resultados dos quais discordamos.

COMO UM OUTSIDER DA REDEMOCRATIZAÇÃO E UM DEPUTADO DO BAIXO CLERO, BOLSONARO SERÁ CAPAZ DE AMARRAR AS COSTURAS PARA UMA GOVERNABILIDADE DE COALIZÃO?

Bolsonaro não terá grande dificuldade de compor com todos os partidos presentes no Congresso, com exceção da esquerda e do PSDB. Esse processo já está em curso. Os partidos de esquerda, com os quais o governo efetivamente não poderá contar, somam cerca de 140 votos na Câmara. A grosso modo, há um universo de 350 parlamentares com os quais o governo pode trabalhar - o PSDB tende a votar com o governo na agenda econômica, mas dificilmente o fará em temas da chamada agenda conservadora. O contrário também se dá - muitos parlamentares conservadores têm um claro traço corporativo e são avessos à modernização econômica. O Brasil é mais complexo do que uma simples divisão entre esquerda e direita. Mas repito: Bolsonaro é um tipo mais pragmático do que muitos imaginam.

O NOVO CONGRESSO PODERÁ CONTRIBUIR PARA O SUCESSO DO GOVERNO?

O novo Congresso tem uma inclinação mais conservadora e possivelmente mais favorável a reformas modernizantes. O grande teste virá quando o governo tiver de aprovar reformas impopulares. Michel Temer conseguiu aprovar a PEC do Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista, mas não teve êxito na Reforma da Previdência e na capitalização da Eletrobras. Esse será o maior desafio do governo que entra. Precisa ter uma convicção quase obsessiva, uma agenda clara e uma enorme capacidade de dialogar com o Congresso e com a opinião pública.

O PRESIDENTE ELEITO DEFENDE CARTA BRANCA PARA POLICIAIS, PREGA A ASCENSÃO DE MILITARES AO PODER, SAÚDA A TORTURA, CRITICA OS DIREITOS HUMANOS E MISTURA POLÍTICA COM RELIGIÃO. DE QUE MODO ESSAS IDEIAS FORA DE MODA CONQUISTARAM 55 MILHÕES DE ELEITORES BRASILEIROS?

Há muitas coisas aí. Podemos não gostar, mas misturar religião com política não está fora de moda nas grandes democracias. A presença dos militares tampouco. Pesquisa recente do Datafolha mostrou que as Forças Armadas são a instituição com maior credibilidade do país junto à população. Talvez haja aí um tema interessante: é preciso sair da bolha em que vivemos para entender o que as pessoas querem. Quanto à tortura, é evidente que há uma relativização moral, na minha visão, inaceitável. Assim como a esquerda também relativizou ditaduras que praticaram a tortura nos últimos 30 anos. Nos acostumamos, no Brasil, a relativizações. O fato é que a violência cresceu e que vivemos uma sensação de falência do sistema político. Tudo isso gera uma percepção difusa de caos e torna atrativa a retórica da lei, da ordem, do sujeito que vai "passar o sistema a limpo". O antissistema. A campanha caminhou por aí.

POR QUE A ELEIÇÃO FOI MAIS MARCADA PELO COMPONENTE CULTURAL DO QUE PELO ECONÔMICO?

A revolução tecnológica trouxe o cidadão comum para o centro da arena pública. Gradativamente, descobrimos que a hierarquia de questões que movem as pessoas é diferente da agenda tradicional da elite política. No ano passado, passamos semanas discutindo uma exposição de arte contemporânea (Queermuseu). Discutimos os limites do humor, a estrutura da família e o tipo de educação sexual a ser dada às crianças. A retórica moral e mesmo religiosa invadiu a política, nos levando a um impasse. John Rawls construiu sua obra dizendo que a única possibilidade de um acordo, nas sociedades abertas, se dava no campo da política, não na ética ou na estética. O acordo é sobre as regras do jogo e os princípios básicos do ordenamento institucional. É sobre isso que deveríamos concentrar o debate público, não sobre as preferências estéticas. A guerra cultural nos leva a um impasse permanente. Em boa medida, explica a virulência atual.

BOLSONARO SE DECLARA DEFENSOR DA LIBERDADE DE IMPRENSA, MAS JÁ AMEAÇOU RETALIAÇÕES À FOLHA DE S.PAULO. A MÍDIA ESTÁ AMEAÇADA?

As liberdades de expressão e de imprensa são valores inegociáveis e estabelecidos no ordenamento institucional brasileiro. Não há a menor chance de que isso seja ameaçado. A regulação da mídia constava do plano de governo de Fernando Haddad, mas acho que nem mesmo o candidato levava isso a sério. Há um velho discurso que aposta no controle da mídia, mas isso é fantasia. O PT governou o país por 13 anos e não regulou. Bolsonaro também não o fará. Pode criticar esse ou aquele veículo, assim como já nos acostumamos a ver grupos ideológicos do lado oposto agredindo jornalistas. Tudo isso é triste para a democracia e requer vigilância, mas não vejo ameaça institucional à liberdade de expressão, como também não veria se o resultado das eleições tivesse sido diferente.

E QUANDO AFIRMA QUE OS MARGINAIS VERMELHOS SERÃO BANIDOS DA PÁTRIA?

Bolsonaro falou em banir os vermelhos, e Haddad chamou o seu adversário de "anti-humano" que "precisa ser varrido da face da terra". Tivemos uma disputa agressiva, mas a campanha terminou. Não é produtiva uma competição nessa direção. No final, Bolsonaro não citou Haddad, nem Haddad citou Bolsonaro. Nem telefonou. O melhor a fazer é aprender as lições da campanha feita à base da dicotomia amigo-inimigo e torcer para que façamos algo melhor no futuro.

O PT PRETENDE SE CONSOLIDAR COMO LÍDER DA OPOSIÇÃO. MAS ENFRENTARÁ A RESISTÊNCIA DE OUTROS CAMPOS DE ESQUERDA, COMO O PDT DE CIRO GOMES. QUAL SERÁ O PAPEL DA LEGENDA DE LULA NO NOVO GOVERNO?

O PT irá liderar a oposição. É o maior partido do Brasil, com a maior bancada eleita da Câmara e uma imensa base militante nos sindicatos, nas universidades e nos movimentos sociais. O PT acertou na estratégia eleitoral, levando a pré-candidatura Lula até o limite possível e fazendo a migração de votos para Haddad. O partido percebeu, com clareza, a força e os limites do lulismo. Ele foi suficiente para levar Haddad ao segundo turno. Hoje, o lulismo é, objetivamente, menor do que o bolsonarismo. Isso pode mudar ali adiante. Não entro no mérito se é bom ou ruim; é apenas um fato. O PT e a esquerda perderam a hegemonia política no país. Há muitas razões para isso. A esquerda se confundiu com o Estado na última década e meia.

No início do governo, Lula chegou a ensaiar um giro modernizador, fazendo uma Reforma da Previdência do setor público e incorporando a ideia da responsabilidade fiscal. Mas, depois, tudo se desfez. Após ser relativizado por Haddad, o programa de governo do PT deste ano era essencialmente reativo - não à Reforma Trabalhista, não à Reforma da Previdência, não à PEC do Teto. Na oposição, penso que reproduzirá esse padrão. Uma oposição intransigente, com velhos slogans e defesa do status quo do Estado. Há uma lição simples que parece não ter sido compreendida pela esquerda: os interesses do estamento público não coincidem com os interesses dos mais pobres. Mas é óbvio que haverá cisões. O próprio Haddad me parece um líder com potencial de renovação. Representa uma nova geração de líderes e tem abertura para dialogar para fora da esquerda e do PT.

CHEGOU AO FIM UM CICLO DE MAIS DE DUAS DÉCADAS DE POLARIZAÇÃO ENTRE PT E PSDB NA PRESIDÊNCIA. O QUE ESSE FECHAMENTO REPRESENTA PARA O PAÍS?

Durante duas décadas, assistimos a um embate entre duas vertentes da social-democracia brasileira. Agora, há um componente novo. Tivemos uma alternativa política majoritária nitidamente conservadora, assim como uma alternativa nitidamente liberal com o Partido Novo. De algum modo, Ciro Gomes abriu uma alternativa diferente em um campo de centro-esquerda e conseguiu expressar a visão de muitas pessoas que desejam um projeto social democrata, mas rejeitam a dualidade PT-PSDB. Hoje, nossa democracia é mais rica e complexa. O que, por certo, traz desconforto.

E A DERROTA DE NOMES TRADICIONAIS DA POLÍTICA BRASILEIRA NAS URNAS?

Mais do que a derrota desse ou daquele personagem, assistimos à derrocada de um jeito de fazer política. Discutimos a reforma política durante anos, mas, agora, penso que o caminho está de fato aberto. O financiamento estatal de campanhas, por exemplo, foi derrotado. A campanha de Bolsonaro custou R$ 1,7 milhão, menos do que muitos candidatos a deputado gastaram com dinheiro público. E o Novo elegeu o governador de Minas Gerais sem usar nada do fundo de campanha. Era para o dinheiro público gerar equidade, mas foi capturado pelas elites políticas e conspirou contra a renovação. Não dá, os partidos devem ser financiados por seus filiados e apoiadores. A tecnologia tornou as campanhas mais baratas. Precisamos oferecer igualdade real de competição a todos. Os financiamentos coletivos e voluntários vão nessa direção.

A DISSEMINAÇÃO DE FAKE NEWS PODE TER DEFINIDO OS RUMOS DA ELEIÇÃO?

A ministra Rosa Weber foi perfeita ao tratar desse tema: ainda não descobrimos o milagre sobre como combater as fake news. Minha intuição diz que não descobriremos. A maior fake news dessa eleição foi a de que só havia notícias falsas de um lado do jogo. Era curiosíssimo ler pessoas de ambas as bolhas sustentando essa tese absurda. Bastava visitar os sites das agências de checagem de fatos para saber que isso não era verdade. Gosto de pensar que as agências já fazem parte de uma reação que o próprio mercado produz espontaneamente ante a irresponsabilidade das pessoas na internet. As pessoas entraram em massa na política e tendem a agir como torcedoras. Não faz sentido, mas é assim que agem. Intuo que a mídia profissional tende a recuperar seu papel como provedora de informação confiável. Para isso, ainda é preciso andar muito. Boa parte da mídia profissional cedeu à tentação da adesão política nessas eleições. Por vezes, em nome das melhores intenções. Com o tempo, espero que melhoremos nisso.

DE QUE MODO A DEMOCRACIA DIGITAL CONTRIBUIU PARA A ELEIÇÃO DE BOLSONARO?

A internet e as redes sociais levaram a democracia a uma exuberância trágica. Há 30 anos, eram 10 mil, 20 mil pessoas protagonizando o debate nas instituições e na mídia profissional. Hoje, são 10 milhões, 20 milhões opinando, com acesso instantâneo e abundante à informação. É melhor, mas também produz mais barulho e instabilidade. Por vezes, me perguntam até quando irá essa instabilidade. Costumo responder: vá se acostumando, esse é o novo normal das democracias. (Francis) Fukuyama fala na explosão da vetocracia, isto é, da multiplicação e do fortalecimento dos grupos de pressão que reduzem a possibilidade de consensos e paralisam processos políticos. Há o risco do populismo eletrônico, que dispensa a mediação institucional. Bolsonaro aproxima-se desse perfil, mas não é o único. Tampouco pode-se dizer que não seja uma expressão genuína de um novo tipo, por vezes perturbador, de democracia.

ENTÃO, A RETÓRICA DE FIM DE MUNDO AINDA NÃO CHEGOU AO LIMITE.

Não. Isso é um traço característico da democracia digital, com seu incentivo à tribalização e à formação de bolhas de opinião. É um enorme paradoxo. Quando a internet nasceu, imaginou-se que contribuiria para aproximar as pessoas e melhorar a qualidade do debate público. Em alguma medida, isso aconteceu, mas trouxe uma série de consequências indesejadas: a guerra de todos contra todos em um espaço de baixa empatia que bem a define. É o que temos pela frente. Não há o que fazer.

DEBORA ELY

03 DE NOVEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

MALFADADA TECNOLOGIA

Já ouvi previsões equivocadas; como aquela, jamais. Estávamos no fim da década de 1960. No Centro Acadêmico da faculdade, um grupo de intelectuais da USP discutia como lidar com o ócio no ano 2000, época em que a tecnologia estaria tão avançada que as pessoas trabalhariam apenas duas ou três horas por dia. Como evitar que se entregassem à bebida e à depressão?

Aconteceu o oposto: os avanços tecnológicos vieram para aumentar a carga de trabalho.

No início dos anos 1980, eu estava num hospital em Nova York, quando chegou por fax um relatório médico enviado da Califórnia. Fiquei abismado. Assim que voltei ao Brasil, comprei um aparelho. Custava os olhos da cara, mas valia, os resultados dos exames que eu solicitava eram enviados diretamente para minha casa. Que maravilha, os pacientes não precisavam ir buscá-los no laboratório.

Um dia, ao acordar, o tapete da sala havia desaparecido. Estava encoberto pelos faxes que a maldita máquina vomitava sem trégua. Comecei a levantar mais cedo.

Depois, apareceu o e-mail. Sensacional. Aposentei o fax, tecnologia obsoleta, o e-mail resolveria meus problemas. Coisa mais civilizada, não gastava papel nem precisava perder tempo com preâmbulos ao telefone. Era o fim do tudo bem com você, e as crianças? E o reumatismo da sua mãe? Sua irmã largou daquele imprestável? Bastava escrever, clicar no envio e estávamos conversados.

Na euforia, não me ocorreu a possibilidade de que outros fizessem o mesmo. Em pouco tempo, a caixa postal ficou abarrotada. No período de trabalho, não conseguia vencer a enxurrada de mensagens; mal recebia uma, entrava outra. Quando dei por mim, os e-mails invadiam as horas dedicadas à família e ao sono.

Lembro bem do dia em que uma paciente me trouxe um presente de Natal embrulhado numa caixa com um laço de fita. Pelo tamanho, achei tratar-se de um par de sapatos. Era um telefone celular.

Naquela época, os pacientes se comunicavam com os médicos através de uma central que acionava o bip que carregávamos preso ao cinto da calça. Quando saíamos de casa, não podíamos esquecer as fichas telefônicas. Se bipassem, tínhamos que achar um orelhão, ligar para a central com papel e caneta na mão, prender com o queixo o telefone ao ombro, anotar o número da chamada e repetir a operação para falar com quem havia bipado. O perfume enjoativo impregnado no aparelho ficava no rosto da gente pelo resto do dia. Um colega teve problemas com a esposa ciumenta.

As companhias telefônicas fizeram de tudo para reduzir as dimensões dos celulares, de modo que coubessem no bolso, estratégia para deixá-los ao alcance da mão. Passamos a receber chamadas a toda hora, em qualquer lugar, inclusive nos instantes livres que ainda sobreviviam: no trânsito, no meio do jantar, na mesa do bar com os amigos, na privacidade do banheiro. A onipresença do celular tem o dom de criar tensão, mesmo quando ele não toca.

Nessa altura, Satanás, inconformado com a demora para receber nos quintos do inferno pecadores cada vez mais longevos, raciocinou: "Tem cabimento aguardar 80 anos para a chegada dos amaldiçoados, quando posso infernizá-los em vida?".

E assim, sob o comando de Lúcifer, o anjo da luz condenado ao fogo eterno por desafiar os desígnios de Deus, desenvolveram uma tela para o celular, de longe mais diabólica das invenções humanas. A tela conseguiu hipnotizar multidões de mulheres, crianças e homens mantidos online as 24 horas do dia. Antes, podíamos alegar não ter visto a mensagem enviada, por estarmos longe do computador. A tela jogou por terra essa possibilidade.

Não satisfeito, o Demônio criou o WhatsApp. Cinco minutos depois de enviar um e-mail, o inimigo manda um WhatsApp para cobrar a resposta. Desafetos mais ansiosos executam as duas operações simultaneamente.

Para enlouquecer ainda mais, há sempre um desocupado sádico que inclui você num grupo. Se sair, vão dizer que ficou importante, que agora não liga para os parentes nem para os amigos do passado. Você acorda, está lá o famigerado gatinho numa paisagem cafona dando bom dia ao grupo.

Não se iluda com a tecnologia, prezado leitor. Graças a ela, nós nos tornamos mais competitivos e eficientes no trabalho. Nada virá para nos dar mais tempo livre. Ao contrário: tudo o que surgir será para aumentar nossa produtividade. Vai ficar pior. Para regozijo do Coisa Ruim.

DRAUZIO VARELLA




03 DE NOVEMBRO DE 2018

J.J. CAMARGO

NA MORTE NÃO SE IMPROVISA

As circunstâncias em que convivemos com alguém interferem diretamente na possibilidade de conhecê-lo profundamente ou seguir sendo um desconhecido completo. Na saúde plena, podemos ser inexpugnáveis e seguir como estranhos pela vida afora.

Coloque uma doença na relação e a couraça se romperá numa velocidade proporcional ao medo que esta enfermidade provoca na sua vítima. O processo será violentamente acelerado se houver o risco, real ou imaginário, de morte. Quando esse medo se materializa, há uma verdadeira convulsão familiar, sacudida por uma mistura imponderável de revolta, angústia, culpa e remorso.

A percepção sempre traumática de amores não confessados, de afetos negligenciados ou de gratidão omitida explica por que alguém, muitas vezes subvalorizado no contexto de uma família considerada normal, ao adoecer, se transforma em catalizador das reações emocionais mais imprevisíveis, a demonstrar que ninguém adoece sozinho e que o efeito que essa situação desencadeia é revelador de como se viveu até então, porque ninguém vive de um jeito e morre de outro.

Recebi o Cezar para avaliar um quadro de aparente disseminação pulmonar de um câncer, de primário ignorado. A biópsia de um dos nódulos mostrou tratar-se de metástase de um tumor neuroendócrino indiferenciado, de origem em aparelho digestivo. Naquele ano, a quimioterapia, com sua agressividade inespecífica, recém começava a ser confrontada com a imunoterapia, indicada para pacientes portadores de determinadas mutações, e que revolucionou o tratamento oncológico com o surgimento de drogas novas, capazes de "ensinar" as células de defesa do organismo a reconhecer as células cancerosas como estranhas e a combatê-las, com resultados impressionantes.

Perfeitamente enquadrado no protocolo, o Cezar teve alta cheio de esperança, com um imenso alívio da ansiedade de todos. Passados quatro anos, recebi dele uma carta, com a delicadeza de ter sido escrita à mão e com uma letra de quem teve o privilégio de ter sido educado numa época em que a caligrafia era indicativo de sofisticação:

"Meu querido doutor, desejei muito que esta carta nunca tivesse chegado às tuas mãos. Como isto está acontecendo, é porque os meus temores se confirmaram. Mas, apesar do pior desfecho, a minha intenção é só agradecer. Desde aquela internação, vivi pelos menos três anos e meio muito bons. Organizei minha vida, viajei com meus filhos, fui a Praga duas vezes e até tive várias noites em que dormi sem pensar na minha doença, que me deixou crer que tinha sumido. O mais importante deste tempo conquistado foi a minha chance de reconciliação com a minha família, com Deus e, muito, comigo mesmo.

Há seis meses, senti uma tontura depois de um jantar em que tinha tomado meu sauvignon blanc preferido e atribui a ele aquele sintoma. Na noite seguinte, tudo se repetiu com água mineral e fui deitar mais cedo e não consegui dormir. O medo, que eu até esquecera, estava de volta. Bem cedo da manhã, já fiquei sabendo de uma metástase cerebral, as drogas foram substituídas e iniciei radioterapia do crânio. Estou escrevendo esta carta no último dia do novo tratamento e disse aos meus médicos que não estou bem, mas desisti de explicar que estou sentindo minha vida saindo de mim, porque percebi que eles já estão sabendo: nenhum dos dois me encarou. Obrigado pelo encaminhamento para profissionais tão competentes e carinhosos.

Eles são ótimos. Mas muito mais obrigado por teres sentado na minha cama, há quatro anos, e, com os laudos na mão, teres dito a frase que eu precisava ouvir naquele sábado do maior pavor da minha vida: ?Tenho uma boa notícia pra ti. Se estás pensando em morrer, prepara-te para uma grande decepção, porque não vais conseguir!?. Uma pena que aquela profecia tivesse prazo de validade, mas este tempo extra me permitiu planejar minha despedida. Ao portador desta carta, pedi que te contasse que eu morri em paz".

J.J. CAMARGO


03 DE NOVEMBRO DE 2018

DAVID COIMBRA

O que a comida diz de nós

Oescocês Niall Ferguson é um vizinho aqui de Boston. Ele é professor de História de Harvard e já escreveu alguns livros bem interessantes. Entre eles, Império, que conta "como os britânicos fizeram o mundo moderno", segundo o intertítulo. Logo no começo, na página 37, há um trecho que diz assim:

"A ascensão do Império Britânico, pode-se dizer, tem menos a ver com a ética de trabalho protestante ou o individualismo inglês do que com o gosto dos britânicos por doces. As importações anuais de açúcar dobraram durante a vida de Defoe, e isso foi apenas a parte maior de uma enorme explosão de consumo. (?) No fim do século 18, o consumo de açúcar per capita era 10 vezes maior do que o da França".

Ou seja: como os ingleses gostavam demais de doces e o açúcar era produzido fora da ilha, a Inglaterra foi buscá-lo lá fora e, assim, estabeleceu-se em outros países e os dominou e se tornou o império onde o sol jamais se punha.

O curioso é que os doces ingleses não são grande coisa. O clássico deles é um pudim de frutas vermelhas sem graça nenhuma. Tem também um biscoito servido com o chá que perde de longe para qualquer um dos nossos amanteigados.

Na verdade, a culinária inglesa é precária. Como a norte-americana. Tenho cá para mim que isso explica muito acerca dessas duas nações. Ingleses e americanos não perdem tempo à mesa ou na cozinha. Mas não por causa da "ética de trabalho protestante", como escreveu Ferguson. Os colonizadores ingleses dos trópicos não eram exatamente apreciadores do trabalho. Os indianos e os africanos é que se esfalfavam por eles. Eles, sabe o que eles faziam para queimar todo o açúcar consumido quando adoçavam o chá ou faziam aqueles pudins? Eles disputavam jogos com bola. Pode ver: quase todos os jogos com bola foram inventados pelos ingleses, que tinham de se distrair enquanto os nativos trabalhavam.

Já aqui, nos Estados Unidos, aqui, sim, os britânicos gastaram tempo e energia com trabalho duro. Tiveram de domesticar a natureza selvagem e bater-se com os índios, que não ficaram contentes ao ver suas terras tomadas por forasteiros. Nessa lida, os americanos empregaram doses elevadas de violência, e é por isso que os jogos deles, em vez de priorizar a habilidade, priorizam a força física: o futebol americano é disputado por mastodontes, o basquete por gigantes e o hóquei é só porrada. O beisebol parece mais pacífico, mas vá enfrentar um cara armado com aquele taco.

A comida diz muito de um povo. Os italianos, se não fazem a melhor comida do mundo, fazem a segunda melhor comida do mundo. Como, então, eles construíram um império que foi o formador do Ocidente moderno? Aí é que está: é que os legionários romanos viviam na austeridade dos quartéis. Eles se alimentavam, basicamente, de frutas, verduras e cereais. Carnes e molhos densos estavam reservados apenas aos patrícios, que moravam em villas nababescas, servidos às vezes por mais de mil escravos.

Meu amigo Andrea Ferrini, dono de uma agradável cantina toscana aqui de Boston, uma vez me emprestou um livro de receitas da rainha Catarina de Médici, uma das minhas personagens históricas favoritas. Catarina era florentina como o Andrea. Ao casar-se com o rei francês, ela levou para a tosca Paris toda a sofisticação de Florença. Foi então que os franceses aprenderam um pouco de modos à mesa. O uso do garfo, por exemplo, foi um dos ensinamentos de Catarina. Ela adorava comer. Tanto que, ao chegar à idade em que o metabolismo se torna mais lento, passou a engordar. E engordou e engordou e engordou e, um dia, foi montar em um cavalo magro e o coitado não resistiu ao peso e morreu amassado.

As receitas de Catarina, portanto, eram calóricas, mas deliciosas. O que corresponde ao quê? Ao Renascimento italiano, uma época de prazer dos sentidos, de culto à beleza e às coisas boas da existência. Viva a Itália!

O que a comida diria de nós, brasileiros?

Que houve uma transformação em nós. Tempos atrás, nós estávamos acostumados a sentar a uma mesa de bar e pedir uma cerveja para quatro amigos. Vinha aquela garrafa de 700ml, que era partilhada por todos. Havia congraçamento, havia harmonia. Agora, o que vem à mesa: quatro garrafinhas long neck. Cada um bebe a sua própria cerveja, ninguém mais enche o copo de ninguém. Individualistas, é nisso que nos transformamos. Tristes individualistas, fechados em nosso pensamento duro, em nossas opiniões imóveis, em nossa cerveja egoísta.

DAVID COIMBRA

03 DE NOVEMBRO DE 2018
COMPORTAMENTO

Só para mulheres

CONHEÇA QUATRO EMPRESAS com empreendedoras e empregadas que focam seus serviços apenas no público feminino
Existe uma Porto Alegre onde homem não entra. Ela é feita de mulher para mulher, por empatia, segurança e também confiança no talento feminino.

Negócios com essa veia têm pipocado em razão do crescente empreendedorismo feminino, destaca a presidente do Conselho Estadual da Mulher Empreendedora da Federasul, Michele Modelski:

- A mulher vem desenvolvendo um papel de protagonista. Elas estão se tornando empresárias e se capacitando mais. E fazer negócios para a mulher é um bom caminho, porque ela está à frente da tomada de decisões do consumo familiar e consome mais do que o homem.

Resulta também de um movimento histórico, destaca Liliane Basso, coordenadora da Núcleo de Voluntariado Estudantil da ESPM, e preenche uma lacuna de um mercado de trabalho que muitas vezes tinha aquela "pitada de machismo". É o que explica a crescente profissionalização feminina em áreas como construção civil, dominadas até então por homens. Em Porto Alegre e região, existe até uma plataforma que reúne mulheres que fazem serviços de hidráulica, elétrica e alvenaria.

Amigas de Aluguel

- Duvido que vão conseguir fazer.

Quando a frase carregada de presunção deixa a boca de algum homem, chega aos ouvidos das Amigas de Aluguel com tom de desafio. Que elas costumam vencer, a propósito.

A empresa da porto-alegrense formada em Psicologia Luciana Dorfman, 48 anos, é composta apenas por mulheres e faz reparos domésticos para o público feminino. Isso inclui coisas como conserto do registro pingando, troca de cano estourado ou sifão entupido, limpeza de caixa de gordura, instalação de chuveiro e pintura de paredes.

Luciana relata que o negócio nasceu por necessidade própria, há pouco mais de três anos: a filha adolescente telefonou relatando que estava com medo porque havia dois homens fazendo instalações dentro da sua casa.

- Tem isso de a mulher se sentir desconfortável. Já é ruim na rua, imagina dentro de casa - comenta.

A equipe é composta por quatro funcionárias fixas, uma eletricista volante e, em determinados períodos do ano, colaboradoras temporárias. Elas garantem que mandam tão bem quanto os homens nesse mercado dominantemente masculino.

- Às vezes, até melhor. Tem muito serviço de homem que a gente conserta - comenta Josiane Collares, 33 anos.

Cadê Amélia

No logotipo do Cadê Amélia, a famosa figura de mulher sisuda que virou símbolo feminista não arregaça a manga para apenas exibir o bíceps musculoso: revela um braço completamente tatuado.

A versão de Rosie, a Rebitadora recepciona as clientes no endereço do bairro Rio Branco que afirma ser o primeiro estúdio de tatuagem e piercing exclusivo para mulheres do Brasil. Glaura Inácio Gonçalves, sócia- proprietária, diz que, ali, "os meninos não são bem-vindos". Nem mesmo o sócio homem pode circular pelo estúdio - seu trabalho, mais relacionado ao financeiro, é feito a distância.

Glaura diz que o objetivo não é levantar uma bandeira feminista e que a decisão de restringir a mulheres o atendimento foi uma opção de mercado. Uma pesquisa mostrou que o público feminino sentia falta de um espaço com mais privacidade, até porque algumas tatuagens são feitas em partes do corpo que exigem que as mulheres fiquem seminuas no estúdio.

- A gente criou o espaço para elas terem privacidade, conforto, saberem que vão estar em um espaço de mulheres que as entendem - justifica Glaura.

Academia Curves

Entrando na Academia Curves, no segundo andar de um prédio comercial do Menino Deus, percebe-se que não é um espaço destinado ao público masculino. A parede lilás, os frascos de perfume nas prateleiras e uma caixa de sabonetes com formato de rosas no banheiro são algumas das pistas. Mas não se trata apenas de decoração: homens são, de fato, proibidos no local quando tem alguém malhando.

Franquia de uma rede criada no Texas nos anos 1990 e que se espalhou por dezenas de países, a Curves aceita apenas alunas e só contrata instrutoras.

- Tudo que nos rodeia ainda é muito masculino. Este é um espaço onde a mulher pode se sentir confortável - afirma Tatiana Schaedler, proprietária da unidade que existe há sete anos.

Lá, as alunas podem malhar glúteo de bunda para cima sem temer olhares ou comentários de algum homem. Além disso, a conversa rola solta. E num ambiente sem homens, algumas orelhas ficam vermelhas em casa. Talvez não pelo motivo que os namorados e maridos gostariam.

- A gente fala mal deles - ri Tatiana.

Nuwa

Uma frase em inglês na parede traduz o espírito da casa de 270 metros quadrados no bairro Santana, em Porto Alegre: "Ei, garota, a gente pode fazer melhor se levantar uma à outra".

Iniciativa de duas jovens publicitárias, Gabriela Teló e Gabriela Stragliotto, ambas de 27 anos, o coworking Nuwa foi aberto há pouco mais de dois meses. Conta com 10 associadas e mira principalmente em profissionais de áreas criativas (como design e comunicação social) e estudantes.

Cada cômodo do imóvel da década de 1950 recebeu uma decoração acolhedora e funcional para que as mulheres se foquem em negócios, sem deixar de conversar - a ideia é que as gurias criem um networking e colaborem com o crescimento da outra.

Em um dos cômodos, foi colocada uma poltrona confortável pensando em mães que querem amamentar. Em outro, há um espaço amplo sem móveis para a realização de meditações guiadas. E tem também a sala de reuniões, isolada por uma parede de vidro. É a única em que os homens podem entrar - e, ainda assim, por um acesso lateral, para não cruzar a casa.

- A ideia de não permitir parte do entendimento que, mesmo que nem todos os homens tenham comportamento machista, quando tem um homem na sala, uma mulher pode estar se sentindo oprimida por experiências vividas ou por empatia por outras amigas - explica Gabriela Teló. - A gente não quer separar, acha importante que mulheres e homens lutem junto por direitos iguais. Mas, para conseguir se sentir mais confiante, precisava desse lugar neutro e seguro só para mulheres.

JÉSSICA REBECA WEBER

03 DE NOVEMBRO DE 2018

OPINIÃO DA RBS

AS FUSÕES NOS MINISTÉRIOS


Uma equipe mais enxuta no primeiro escalão pode assegurar ganhos importantes para o novo governo federal. Basta que seus integrantes estejam afinados e preocupados com a qualidade da gestão.

A intenção do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) de reduzir o número de ministérios a quase a metade dos existentes hoje tem um significado importante, mais sob o ponto de vista político do que de redução de custos. Ainda assim, é uma sinalização positiva para um país que, no final do governo Dilma Rousseff, chegou a contar com um total de 39 pastas, reduzido hoje para 29 e que, a partir de janeiro, deve ficar em 16 ou 17, se as intenções do novo governo se confirmarem. Tentativas anteriores demonstram que nem sempre fusões e redução no número de ocupantes de primeiro escalão garantiram os resultados pretendidos. Por isso, as vantagens vão depender de como os planos forem geridos, já que o redesenho traz uma série de situações novas.

Uma das inovações é o chamado superministério previsto para englobar as áreas da Justiça e da Segurança Pública, sob o comando do juiz Sergio Moro, até agora responsável pela Lava-Jato em Curitiba. A outra é a concentração de poder em um só comandante da Economia. O indicado para a pasta, economista Paulo Guedes, passa a ser um fiador pessoal da estabilidade. O aspecto positivo, no caso, é que o Banco Central, embora não seja independente de fato, tem autonomia. Ainda assim, pairam temores relacionados à possibilidade de riscos no caso de conflitos com o próprio presidente da República.

Preocupações semelhantes estão ligadas à convivência entre os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. Depois de grande repercussão negativa, o presidente eleito desistiu de colocar as duas pastas sob a mesma batuta. A mudança de planos é, sem dúvida, acertada e torna ainda mais evidente a necessidade de eliminar os desencontros entre as duas equipes, fruto da falta de pulso nos últimos governos. A pasta do Ambiente é essencial, sobretudo, para o próprio agronegócio, sempre visto com restrições no Exterior em razão das ameaças às áreas de florestas e rios. A eliminação da pasta poderia, assim, gerar boicotes e novas barreiras a produtos brasileiros.

No caso do Meio Ambiente, o presidente eleito deveria se inspirar em Fernando Collor, que nomeou José Lutzenberger para a pasta, e Luiz Inácio Lula da Silva, que indicou Marina Silva no início do mandato - dois nomes especialmente vistosos no cenário internacional.

Uma equipe mais enxuta no primeiro escalão pode assegurar ganhos importantes para o novo governo federal. Basta que seus integrantes estejam afinados e preocupados com a qualidade da gestão.

OPINIÃO DA RBS

sábado, 27 de outubro de 2018



27 DE OUTUBRO DE 2018
LYA LUFT

Feridas e jacarandás

Não vi em minhas décadas de vida uma eleição, uma campanha, que resultasse em tanta ruptura, divisão, hostilidade, afastamento até de pessoas que se amam, ou são amigas, ou são famílias antes amorosas. Vários conhecidos meus relatam pessoas que simplesmente se afastaram da casa, das pessoas queridas, de alguns amigos, de hábitos com que foram criados, para aderir a um ou outro partido, uma ou outra ideologia. Muitas vezes sem sequer entender direito os termos usados, o histórico de tudo, a situação do próprio país. Claro, nem todos, nem a maioria, mas tenho amigos que declararam no Face, por exemplo, que, se eu votasse em que consideram o inimigo, deveria deletá-los: eu não estaria mais no seu círculo de amizades.

Pode isso? Pode, sim. Está acontecendo, e confesso que é difícil de entender. Como misturar afetos, às vezes longos e positivos, com política - essa nave incerta e insegura que já mudou de rumo e ainda vai mudar, porque a vida é assim, os povos são assim, a política, essa velha madrasta, age assim?

Talvez estejamos muito cansados de tanta decepção. Muito desiludidos, e muito iludidos. Talvez sejamos imaturos, não sofremos o suficiente. Talvez estejamos muito alienados, povo não educado é povo não informado, e serve de massa de manobra desde que a humanidade tenta se organizar em bandos, tribos, aldeias. Povo educado, ao contrário, faz escolhas mais tranquilas e racionais - sem esse monstruoso preconceito do "nós" e "eles". Alguém já disse que sou repetitiva: é intencional. Bato em assuntos que me interessam ou afligem, como família, educação, democracia. Por falar nisso, que democracia é essa que alija amigos ou família, que se julga dona da verdade e abusa da chibata da intolerância?

E tem os que resolvem partir. O mundo hoje é uma aldeia global etc, etc, etc. Mas: se os bons forem embora, quem vai tomar conta desta nossa pátria, que apesar de muitos atrasos e desmandos ainda é fascinante e acolhedora, e muito mais será quando se corrigirem tanto quanto possível a miséria, a ignorância, a doença, o isolamento - e estes ódios rasteiros, essa desinformação turbulenta, essa balbúrdia de conceitos e emoções? Quem sabe não estejamos nos levando suficientemente a sério: chibata verbal, conceitual ou emocional, a agressividade e o despudor como forma de protesto, a perigosa incitação à revolta estão sendo manejados como brinquedo de gigante em mãos de criancinhas. Podem machucar mais do que se imaginava. Podem quebrar, destruir, arrasar até o que nem de longe se pretendia.

Graças aos deuses, essa fase vai acabar. Talvez comecem outras batalhas, outras ignomínias, outros descaminhos e desconsertos, mas ainda paira no ar, com os jacarandás, as crianças, a lucidez e os afetos bons, a bela Senhora Esperança. (E talvez se curem as insensatas feridas destes tempos.)

LYA LUFT

27 DE OUTUBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

As consequências da avalanche

É um premiado filme sueco de 2015, chama-se Força Maior. Uma família (pai, mãe e um casal de crianças) tira seis dias de férias para esquiar nos Alpes. Na manhã do segundo dia, estão almoçando ao ar livre, no deck do hotel, cercados por outros hóspedes, quando, nas montanhas ao fundo, um filete de neve começa a escorrer. Não parece perigoso. 


Minutos depois, aquele deslizamento sem importância cresce em dimensão. Avalanches controladas são comuns, mas aquela demonstra estar ligeiramente descontrolada. Até que, de forma súbita, a neve fica prestes a invadir o deck. Pânico. Algumas pessoas gritam e muitas correm, incluindo o pai da família, que dispara sozinho a fim de se abrigar, deixando para trás a mulher e os dois filhos.



Poderia ter sido um acidente com mortos e feridos, mas não: apenas uma névoa seca cobriu o ambiente e, assim que se dissipou, os que correram retornaram aos seus lugares, inclusive o pai. A família prossegue com o lanche, mas dali em diante nada mais será igual. Descobriu-se que aquele homem, ao se desesperar, segue impulsos egoístas e se desgoverna.



Neste domingo se encerra uma avalanche. Nas últimas semanas, fomos soterrados por textos, vídeos, áudios, fotos, fake news, ofensas e postagens absurdas que invadiram as redes. O que se deseja, depois da esquizofrenia toda, é que o que se configurava uma tragédia demonstre ser apenas uma névoa seca que não deixe mortos e feridos pelo caminho. Se o presidente eleito tiver um mínimo de responsabilidade, será diplomático a fim de reunir todos no mesmo deck de novo, e a vida seguirá com suas avalanches controladas, e não fatais.


Mas será que nossas relações pessoais sobreviverão sem sequelas? No filme, a atitude inesperada e covarde do pai transfigura os laços e, dali por diante, inaugura um distanciamento difícil de transpor. Será que nós, que passamos os últimos dias trocando farpas com amigos e familiares por causa de nossos antagonismos, conseguiremos restituir 100% o afeto que havia antes?


A não ser entre aqueles que construíram uma base de amor e respeito muito sólida, creio que essa eleição tão polarizada fragilizará alguns vínculos. Não estávamos apenas defendendo um candidato ou outro, e sim diferentes visões de mundo, e com isso desnudando raivas, angústias, preconceitos, medos, maledicências, liberalidades, perversidades. Como não se espantar com pessoas que, no convívio social, pareciam ser afins, mas que, diante de um confronto sem precedentes, revelaram uma faceta bastante incômoda?


Ninguém sairá perdendo se o novo presidente conseguir restabelecer o crescimento do país sem colocar em risco a integridade de seus habitantes, mas uma baixa já ocorreu: a da admiração por pessoas próximas que, equivocadamente, julgávamos imunes a certas pequenezas.


MARTHA MEDEIROS