sábado, 1 de dezembro de 2018



01 DE DEZEMBRO DE 2018

CARPINEJAR

Seria o seu filho de qualquer jeito

Quando você aceita o amor dos pais é que finalmente amadureceu e se aceitou. Corresponde a uma alta na terapia familiar.

Uma observação simples que guardo, agora adulto, no estojo das convicções.

Quando você não sente mais vergonha de abraçar e beijar os pais em público, quando você não sente mais vergonha de suas piadas na mesa, quando você não sente mais vergonha do que eles falam de você para os amigos, quando você não sente mais vergonha de seu completo despreparo para localizar a câmera no celular ou mandar uma foto, quando você não sente mais vergonha de alguma roupa antiga ou de algum sapatinho colorido ou de alguma bolsa cafona, quando você não sente vergonha de apresentar o namorado tatuado ou a namorada de piercing, quando você não sente mais vergonha de folhear os álbuns de fotos, quando você não sente mais vergonha do pai aplaudindo um pouso difícil de avião ou da mãe gritando "Bravo!" em um filme no cinema, quando você se vê livre dos preconceitos que adiam a paz e participa junto do vexame infinito que é viver.

Neste momento, você, tão acostumado a criticar, também passa a confiar nos elogios dos pais. Quem somente presta atenção no lado ruim dos outros não é capaz de identificar o lado bom.

Eu nunca admitia nenhuma declaração de amor deles porque eu não conseguia me declarar. Achava ridículo me declarar. O eu te amo subia até a garganta e engolia de volta, como uma gripe educada. Partia do princípio de que os pais sabiam telepaticamente de minha afeição, e era dispensável o testemunho.

A mãe sempre pairou acima das minhas suspeitas da juventude e da invariável incompetência emocional. Mesmo diante da cara amarrada e do desconforto, costumava declarar que seria filho dela de qualquer jeito.

Se eu não tivesse saído de seu ventre, eu sairia de seu coração. Se não tivesse sido fruto de sua gestação, seria árvore de seus caminhos. Se não tivesse partido de sua carne, ainda nos reconheceríamos na rua e no parto de seus olhos.

Eu acreditava que ela exagerava, dramatizava, extrapolava a cota normal da pieguice. Hoje acredito. Hoje sei o quanto é verdade.

Existem pessoas tão generosas que vêm ao mundo com duas almas. Como a minha mãe Maria Carpi.

Quando eu perdi a minha alma, ela me emprestou a sua e ainda avisou que não havia nenhuma pressa para devolver.

CARPINEJAR


01 DE DEZEMBRO DE 2018
PIANGERS

Estes somos nós

"Como é estar morrendo?", ela perguntou ao senhor com câncer. "Parece que estou cercado de pequenos pedacinhos de vida", ele disse. "Estes pedacinhos de vida estão voando ao meu redor e eu estou tentando agarrá-los. Quando minha neta dorme no meu colo, eu tento agarrar a sensação da respiração dela em cima de mim. Quando eu faço meu filho rir, tento agarrar o som dele rindo, o som do ar saindo do seu peito".

"Mas os pedacinhos se movem rápido demais agora. E eu não consigo agarrar todos. Sinto eles escapando pelos meus dedos. Em breve, onde costumava ter minha neta dormindo e meu filho dando risada, não vai sobrar nada", disse o senhor. "Sei que quando você é jovem parece que você tem todo o tempo do mundo. Mas você não tem. Eu digo: pare de ficar fingindo o tempo todo. Agarre os momentos da sua vida. Agarre enquanto você é jovem e ágil, porque antes de você perceber será velho e lento. E não haverá mais momentos pra agarrar".

É um diálogo de um seriado chamado This Is Us. Um seriado que me faz chorar em todos os capítulos. Demorei um tempo pra assistir, não tem na Netflix, imaginei que era só um drama familiar bobo. Talvez seja. Mas me conquistou. Fala sobre um filho que morre no parto, um pai que se foi, uma mãe que guarda segredos, uma avó que recebe uma segunda chance. Fala sobre irmãos gêmeos que se amam, um filho adotivo, um pai que abandonou e depois se arrependeu. Fala sobre as perdas que sentimos, e as que nem sentimos mas nos farão lamentar um dia. Fala sobre irmãos que estão sempre competindo, dificuldade de perder peso, melhores amigos que ficam com a sua mulher, um pai adotivo que se sente inseguro o tempo todo. E acho que tem um pouco de cada um em todos nós.

Acho engraçado quando perguntamos para alguém que está morrendo qual é a sensação. Quais os arrependimentos? O que faria diferente? Perguntamos para pessoas que estão desenganadas o que fariam, pois pensamos que nós mesmos poderíamos fazer algo diferente. Nosso erro é perguntar para as outras pessoas. Esquecemos que todos estamos morrendo.

"A vida é cheia de cores e cada um de nós chega e adiciona um tinta, uma pincelada. Mesmo que não seja muito grande, a pintura vai sendo pintada por todo mundo, pra sempre, em todas as direções", diz um personagem em outro episódio. "Essas cores que colocamos serão misturadas com as cores que outras pessoas pintarão. Até que não somos mais cores diferentes, somos uma coisa só. Uma pintura. Pessoas vão morrer nas nossas vidas, pessoas que amamos, no futuro, talvez amanhã, talvez em alguns anos. E se uma pessoa morre não quer dizer que não está mais na pintura".

Suas cores continuam lá. Aquilo que fazemos todos os dias contribuem para essa pintura coletiva que é a vida. Que seja um quadro bonito.

PIANGERS

01 DE DEZEMBRO DE 2018
LUÍS LAMB

HORIZONTES 

Historicamente, o ser humano mostra fascinação com sua forma de pensar. No Ocidente, pelo menos a partir de Aristóteles (aliás, influente até hoje), Leibniz, Boole, Frege, Russell, Gödel e Turing dedicaram parte de suas brilhantes vidas à análise do pensamento. Foram além, e imaginaram construir máquinas que melhorassem a capacidade da nossa mente, como vislumbrou Leibniz. Sobreviveram a inúmeros debates e frustrações, ainda maiores, acerca das inconsistências do pensamento, da lógica e de suas próprias existências. Não obstante, a busca pela construção de máquinas que pensassem prosperou.

Diante da urgência da II Guerra Mundial, coube à Grã-Bretanha a liderança contra o nazismo na Europa. Para esta hercúlea missão, conceberam a Station X, em Blechley Park. Lá, a partir do trabalho de Turing e de centenas de mentes lógicas brilhantes, construíram os primeiros computadores, entre eles o Colossus, destinados inicialmente a decifrar os códigos secretos alemães. Churchill posteriormente exaltou os esforços desses pioneiros da Ciência da Computação que, segundo o grande estadista, reduziram a guerra em pelo menos dois anos, salvando milhões de vidas.

Após o esforço de guerra, Alan Turing refletiu sobre a possibilidade de construir thinking machines - máquinas que pensassem. Ao final de sua trágica e curtíssima vida de apenas 42 anos, publicou os primeiros artigos sobre inteligência de máquina, deixando um grande legado e questões em aberto. Pouco tempo depois, em 1956, foi organizado o primeiro seminário sobre Inteligência Artificial (I.A.) em Dartmouth, com participação de luminares da ciência, entre eles Herbert Simon, Prêmio Nobel de Economia em 1978, e Marvin Minsky, que seria consultor do cineasta Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Simon viria a prever que as máquinas poderiam realizar, em 20 anos, qualquer trabalho humano. A previsão foi, certamente, muito otimista.

Nos anos 1960, a corrida espacial, alimentada no ambiente da Guerra Fria, impulsionou o surgimento de computadores ainda mais poderosos. Pari passu, a evolução da Ciência da Computação mantinha acesa a chama da questão proposta por Turing: será que máquinas podem pensar?

Limitada pela tecnologia dos computadores nos anos 1970 e 80, a I.A. atravessou alguns invernos, veio a confrontar, perder e, finalmente, derrotar o gênio do xadrez Gary Kasparov em 1997 e chega aos dias de hoje como temática da ONU e do Fórum Econômico Mundial de Davos; notadamente, há grande preocupação sobre o futuro do trabalho. Inúmeras profissões simplesmente desaparecerão; muitas outras, baseadas no conhecimento, ainda nem existem.

No século 21, a I.A. aprendeu a jogar pôquer e derrotou seres humanos no popular programa de perguntas e respostas da TV americana conhecido como Jeopardy!. Em 2016, o programa conhecido como AlphaGo, concebido pela inglesa DeepMind (hoje adquirida pela gigante Google), surpreendeu e assustou chineses e coreanos aos bater os melhores jogadores do mundo de Go, um jogo de tabuleiro culturalmente associado à inteligência humana no Extremo Oriente. Atualmente, os melhores programas de I.A. para jogos de tabuleiro simplesmente dispensam a interação com seres humanos, aprendem de forma autônoma e competem entre si. Esses programas apresentam desempenho "super-humano", muito além das nossas habilidades. Cogito, ergo sum.

Mas o progresso da I.A. vai muito além dos desafios lógicos. Todas as montadoras (associadas a grandes empresas de tecnologia) hoje investem nos veículos autônomos; a indústria farmacêutica aderiu à aprendizagem de máquina e à ciência de dados para desenvolvimento de medicamentos; o setor bancário hoje é denominado fintech, e quem não for fintech, dizem, simplesmente estará fora do mercado. Estamos provavelmente vivendo um momento análogo ao surgimento da web, que revolucionou as relações sociais, culturais e econômicas. Desta vez, estima-se que o impacto da I.A. sobre a humanidade, em todas as áreas, será ainda maior do que o surgimento da web.

O progresso e impacto econômico, social, cultural e político tem sido tão espetacular que mais de 30 países já têm estratégias e políticas nacionais de I.A. Se no passado havia políticas industriais, hoje temos a urgência das políticas de I.A. Os países líderes na área - EUA, China, Reino Unido, Canadá e Israel - têm agendas de longo prazo. Os Emirados Árabes Unidos estabeleceram o Ministério da Inteligência Artificial. Em março deste ano, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou plano de 1,5 bilhão de euros, dizendo não querer formar talentos que emigrem para os polos de I.A. Agora em novembro, a Alemanha apresentou sua estratégia nacional, com um investimento de 3 bilhões de euros.

Morto recentemente, Stephen Hawking temia pelo futuro da humanidade na sociedade da I.A.; Bill Gates, no entanto, acredita que a I.A. nos permitirá fazer mais com menos. Sejamos otimistas. Turing concluiu seu artigo pioneiro sobre inteligência de máquina afirmando que enxergava uma curta distância à sua frente, mas que havia muito por fazer. A história recente mostra que há muito a fazer e que Turing estava certo. Mas não sabemos ainda o quanto caberá, a nós, humanos, ou se a I.A. fará pela humanidade. "Cogito, ergo sum."

PhD em Ciência da Computação pelo Imperial College London e Pró-Reitor de Pesquisa da UFRGS
LUÍS LAMB

01 DE DEZEMBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL

Há uma passagem no Evangelho de João que se tornou dito popular. Jesus ressuscitado aparecera aos apóstolos, mas Tomé não estava entre eles. Quando soube da inesperada e insólita visita, duvidou de seus companheiros. Como poderia acreditar que o homem que vira morto estava entre eles? Tomé, o incrédulo, tornara-se a base do nosso Ver para crer. Jesus daria nova chance a seu escolhido e apareceu mais uma vez. Na segunda visita, o Nazareno asseverou que, se Tomé vira e crera, benditos seriam os que não necessitavam ver para crer.

Hoje em dia, extrapolando o Novo Testamento, continuamos a ter as duas categorias de pessoa. Ainda há aquelas que acreditam em quase tudo. Não é necessário apresentar dados ou contrapor argumentos. A crença é prévia à visão. No outro extremo, há os desconfiados por natureza. Diante de uma novidade, quero provas de que se trata de um fato e não de um factoide.

A pimenta dá seu sabor ao prato quando pensamos que mesmo uma evidência pode ser adulterada. Historicamente, as falsificações sempre existiram. Caso notório foi a doação de Constantino, documento pelo qual se atestava a posse das terras papais. Ele seria um édito imperial, no qual o imperador romano doava ao papa Silvestre terras por todo o mundo conhecido. No século 15, um humanista, Lorenzo Valla, analisou minuciosamente o texto e percebeu que expressões e sintaxes do latim do documento seriam impossíveis no século 4.

O papado não fora pioneiro. Se eu pudesse adivinhar, diria que, em nossa história primitiva, alguém já deve ter feito isso em alguma caverna por aí. No Egito, no 14.º século antes de Cristo, houve uma reforma religiosa e política muito importante. O faraó Amenófis IV decide que apenas o disco solar Aton deveria ser cultuado (e ele, faraó, como representante da divindade solar). A experiência radical foi efêmera.

Morto o herético governante, seu projeto foi sendo abandonado em favor de Amon, o velho deus, de seus sacerdotes. Um século depois, Ramsés II mandou expurgar de vez a memória do "herege" antecessor: as imagens e textos mencionando a experiência monolátrica egípcia foram raspados, a capital - já em ruínas - teve suas pedras removidas e levadas para a construção de monumentos a Amon em Hermópolis Magna. Ramsés II, aliás, preferiu colocar seu nome em todas as obras como se fosse o primeiro construtor da história. Inaugurava prática política popular entre nossos dirigentes.

Pulando séculos, vemos na coroação de Napoleão outro "photoshop histórico". A cerimônia ocorreu em Notre Dame, em 1804, e buscava recriar cenas da Antiguidade, mesclando-a ao rito real do Antigo Regime. Havia, igualmente, intenção de recompor aliança com a Igreja (rompida no início da Revolução Francesa). Jacques-Louis David, pintor oficial, começou a trabalhar na tela que imortalizaria o dia. O problema real pôde ser corrigido: a mãe de Napoleão não comparecera à cerimônia. Era uma gafe familiar. Embaraço? Nada que um pincel hábil e servil não pudesse corrigir: eis que Letizia Bonaparte está lá no quadro, linda e adereçada para todo o sempre, comodamente sentada e tudo vendo da cerimônia que nunca contou com sua presença.

O mundo do poder e da imagem seguiu em frente. São famosas as fotografias de Stalin ao lado de outros membros do partido ou as de Lenin ao lado de Trotsky. Mais famosa ainda é a remoção das personagens indesejadas quando a ditadura stalinista foi se intensificando. Como nos demais casos que apresentei, era o mesmo intuito de manipular o passado para criar um presente mais cômodo. Stalin mandou remover, na ponta do bisturi, desafetos das fotos, forjando novas memórias. É célebre o caso da foto de 1926, tirada em Leningrado, que mostra o homem de ferro ao lado de Nikolai Antipov, Sergei Kirov e Nikolai Shvernik. Há outras três versões da mesma foto. Em cada uma delas, um companheiro a menos. Na última, Stalin estava sozinho naquela reunião. Tente achar Trotsky em uma foto da época da Revolução. Terá de procurar originais nunca tocados pelo regime stalinista. O braço direito de Lenin caiu em desgraça, foi exilado e assassinado. Sua memória, apagada.

Nem as democracias escapam ao controle de imagens e da memória. Donald Trump fez o mesmo inúmeras vezes. Literalmente desde sua posse, quando as imagens oficiais foram falsificadas para dar a impressão de haver mais gente presente do que na posse do antecessor, Obama.

A tecnologia melhora a cada minuto. Logo, avançam as técnicas e possibilidades de alterar uma imagem, vídeo ou texto com o intuito de fazer valer minha versão sobre o passado ou o presente. Assistimos a um Photoshop histórico cada vez mais impressionante. Por outro lado, o mesmo avanço tecnológico, somado à liberdade de imprensa e de acesso à informação, nos dá melhor acesso a outras fontes. Podemos checar cada informação e imagem que recebemos. Em segundos. Se é inevitável cairmos em manipulações, permanecer no chão é questão de opção. Um pouco do apóstolo Tomé pode fazer bem a nossa busca de pensamento crítico. Necessitamos crer menos para ver mais. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL - Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".


01 DE DEZEMBRO DE 2018

COM A PALAVRA


COM A PALAVRA


Aos 62 anos, Scholastique Mukasonga é a escritora mais famosa de Ruanda. Nascida na província de Gikongoro ela era pequena quando começaram as primeiras tensões entre hutus e tutsis que três décadas mais tarde eclodiriam no genocídio praticado pelos primeiros contra os segundos. Estudante no sofisticado internato de Notre Dame de Citeaux, ela conviveu com o preconceito por ser tutsi. Quando o massacre teve início, Scholastique não vivia mais em Ruanda havia duas décadas. Ela e um de seus irmãos, André, haviam sido enviados pela fronteira do Burundi pela mãe, para preservá-los da tensão crescente. Em 1994, uma orgia de sangue resultou em 800 mil mortos ao longo de cem dias. Ao fim das hostilidades, ela havia perdido 27 familiares, incluindo seus pais e seus irmãos menores.

Scholastique tornou-se uma escritora conhecida transformando essa experiência no livro Baratas (2004), um relato da sua tentativa de compreender, uma década depois, o que levou à tragédia. O livro forma um tríptico com os romances A Mulher dos Pés Descalços (2008), uma elegia a sua mãe, e Nossa Senhora do Nilo (2012), novela sobre um grupo de alunas de um liceu de alta classe. De passagem por Porto Alegre para atividades na Feira do Livro, Scholastique conversou com ZH sobre as marcas do genocídio, a reconciliação e reconstrução do país e o discurso anti-imigração ao redor do mundo.

SEU PRIMEIRO LIVRO, BARATAS, NARRA A HISTÓRIA DE UMA MULHER QUE 10 ANOS DEPOIS DO GENOCÍDIO EM RUANDA ESTÁ ACERTANDO AS CONTAS COM A MEMÓRIA DE SEUS PARENTES E COM O DESTINO DE SUA FAMÍLIA. A SENHORA PODERIA FALAR SOBRE ESSE PROCESSO?

De fato, esses 10 anos foram o tempo necessário para eu ter esse "clic" e sentir essa vontade de escrever essa história, uma narrativa que fala principalmente sobre como a explosão de ódio e a escalada da discriminação que existiram naquele período começa nos anos 1960. É algo retirado das minhas lembranças, um livro 100% autobiográfico. É o livro que eu sentia que tinha a obrigação de escrever. 

Normalmente, eu não tenho um projeto definido para meus livros, mas esse eu sabia que precisava escrever, sobretudo com tudo o que estava acontecendo no país em 1994. Depois do genocídio, tive notícias, em Paris, da morte de muita gente de minha família. Então eu tinha esse grande número de mortos, mas não tinha os corpos. Escrever esse livro foi uma forma de ressuscitar como memória os corpos desses mortos no papel. Por isso costumo dizer que esse livro é um túmulo de papel para todos esses mortos que eu não pude sepultar.

FOI UMA FORMA ENTÃO DE ELABORAR O LUTO?

Não. Não é exatamente a palavra luto. Quando usamos essa palavra, estamos nos referindo a uma coisa natural. Quando falamos do genocídio em Ruanda, estamos falando de uma situação específica e particular, um massacre em que a vida das pessoas foi tomada à força. A necessidade de lembrar dessas pessoas é a única coisa que me faz levantar de manhã e seguir adiante, lutando por meio da escrita. Na verdade não é fazer um luto, é ter a força, a partir dessa memória, de continuar seguindo em frente a partir desse flashback do passado.

O luto parece trazer uma ideia de esquecimento. O que eu faço é lembrar e relembrar a vida de todas aquelas pessoas. No início, tive mesmo a impressão de que deveria fazer o luto, a partir do primeiro livro, Baratas, passando pelo A Mulher dos Pés Descalços e Nossa Senhora do Nilo. Mas aí senti como se estivesse roubando o luto das pessoas à minha volta. Não era de fato uma questão de fazer o luto, era de apresentar um contraditório. O que eu deveria fazer era trazer por escrito a memória daquelas pessoas e daqueles acontecimentos, porque quando você esquece, está matando as vítimas uma segunda vez. Não era o luto, era o contrário disso, era reviver o passado.

QUANDO O GENOCÍDIO EM RUANDA EXPLODIU, EM 1994, MUITOS PAÍSES DA COMUNIDADE INTERNACIONAL, ALHEIOS AO QUE SE PASSAVA NO PAÍS, SE DISSERAM SURPREENDIDOS PELA ESCALADA DA VIOLÊNCIA. SEUS LIVROS RECONSTROEM OS ANTECEDENTES DESSE PROCESSO. É SUA RECONSTITUIÇÃO DE UM PROCESSO HISTÓRICO?

Na verdade, eu sou uma escritora atípica porque nunca tive um processo muito claro em tudo isso. Comecei com a autobiografia, com minhas memórias. Depois que passei aos contos e romances, deixei um pouco esse espaço da memória, que poderia ser um tanto incômodo às vezes, para trabalhar com a ficção. Aí eu tive uma liberdade um pouco maior de lidar com o tema. No meu primeiro livro escrito nesses moldes, Nossa Senhora do Nilo, foi quando pude finalmente ter a liberdade de brincar com a distância daquele tempo.

Eu escrevi esse livro na praia, e ali eu podia ver esses personagens como se eles morassem no outro lado do Canal da Mancha. Pude de fato me transportar para aquele outro tempo, mas dessa vez com o prazer que a ficção me proporciona. Há três personagens que aparecem nesse livro que representam facetas minhas. Uma delas, em particular, Gloriosa, representa tudo o que eu vivi na escola em que estudei, Notre-Dame de Citeaux, mas eu pude brincar com a liberdade da ficção e descrever aquelas cenas com um elemento de humor.

NOSSA SENHORA DO NILO É UM ROMANCE SOBRE UM LICEU DE CLASSE ALTA EM QUE UM HOMEM BRANCO, ANTROPÓLOGO EXCÊNTRICO, DIZ A UMA DAS PROTAGONISTAS QUE ELA, TUTSI, DESCENDE DA NOBREZA EGÍPCIA. É UMA ALEGORIA DO PAPEL DO COLONIALISMO EUROPEU NO ACIRRAMENTO DAS DIFERENÇAS ÉTNICAS NO PAÍS?

Foi um livro que eu escrevi em três níveis. O primeiro foi esse que mencionei, do prazer da escrita. O segundo, o desse passado num internato que eu reconstruo. E, por fim, o que pra mim é a questão principal: esse é um livro sobre reconciliação. Aparentemente a gente pode ter a ideia de que é um livro brutal, mas na verdade, quem penetra no seu interior percebe que há ali uma mensagem de reconciliação dos personagens e que também se coloca para a Ruanda de hoje em dia. O Monsieur Fontenaille está ali para representar personagens reais, como os que começaram os conflitos étnicos com a adoção da carta de identidade étnica criada pelos belgas em 1961. Mas há também o personagem de Virginia, com o qual eu quero que, além dessa brutalidade que existe no livro, da qual todos são um pouco culpados, no fim se busca ainda uma reconciliação possível. Virginia é tutsi, e no final é salva graças a um hutu, o que mostra uma mensagem de esperança que eu quis enviar para Ruanda.

E COMO RUANDA PÔDE FAZER ESSA CONCILIAÇÃO?

Ruanda foi uma terra que sempre fascinou os exploradores que apareceram por lá, a começar pelos alemães. O que surpreendeu muito aos europeus que conheceram o país era a existência de um poder central muito forte naquelas terras. Havia de fato um rei, uma organização política muito potente na qual o povo podia se amparar e que precisava ser considerado em qualquer política de ocupação. A questão étnica foi uma bom pretexto. Tutsis e hutus originalmente tinham diferenças de ofício. Os tutsis eram pastores e criadores de rebanhos. E os hutus eram lavradores, cuidavam dos campos e das colheitas. Mas com a chegada dos europeus começaram a circular lendas sobre a separação entre os dois. Os tutsis eram descritos como muito mais altos, gigantes, ferozes, quase brancos. Hoje há uma preocupação em quebrar essa identificação entre etnias e reforçar que somos todos ruandeses. De tanto se repetir essa ficção de separação entre os dois povos, acabou-se mudando a realidade objetiva, o que terminou em sangue.

MAS COMO SE FAZ A CONCILIAÇÃO NA PRÁTICA, DEPOIS DE UM DOS MAIORES TRAUMAS JÁ REGISTRADOS NA HISTÓRIA DE QUALQUER PAÍS?

É muito simples, e ao mesmo tempo é muito perigoso eu afirmar que é muito simples, porque eu vou ter então que demonstrar que é. Essa reconciliação tem de ser baseada na reinclusão dos sobreviventes e dos que foram deportados do país. Porque essas pessoas chegaram ao fundo da situação: um genocídio não se faz da noite para o dia. Leva anos. Em Ruanda, levou 30 anos, de 1960 a 1994. Três décadas em que se fez a manipulação do status dos seres humanos. Eu me lembro de ser tratada não como ser humano, mas como barata.

Os tutsis foram tão condicionados nesse pensamento que eles próprios passaram a se enxergar como baratas. Eu mesma, quando mais nova, me olhei no espelho e não me reconheci como ser humano. E com essa circunstância, vinha também uma aceitação de que talvez devêssemos ser erradicados. O que surpreendeu algumas pessoas foi o fato de que em 1994 muitos tutsis não lutaram, pareciam haver aceitado e até mesmo esperarem a própria morte, porque foram condicionados a isso por 30 anos. À frente dos tutsis que aceitavam essa possibilidade de serem mortos havia os hutus, que também não viam seus vizinhos como seres humanos. Foram justamente os sobreviventes desse processo que fizeram e mostraram que era possível a conciliação.

A primeira coisa que foi pedida depois que o genocídio acabou foi que as crianças não vivessem mais essa situação, que se pudesse encorajar as pessoas a criarem essa unidade. Hoje, Ruanda de fato conseguiu fazer essa reaproximação a partir de quem sobreviveu. Um exemplo prático foi o que foi feito em julho de 1994, e foi chamado de "genocídio das carteiras de identidade étnica". Antigamente, os ruandeses carregavam carteiras de identidade dizendo quem era tutsi e quem era hutu. A primeira medida da reconciliação foi abolir isso. Não se vê mais essa separação.

HOJE, RUANDA É UM PAÍS COM BONS INDICADORES ECONÔMICOS, MAS COM UM GOVERNO CHEFIADO DESDE 2000 PELO MESMO PRESIDENTE, PAUL KAGAME, E QUE ÀS VEZES É ACUSADO DE AUTORITÁRIO E REPRESSIVO. TAMBÉM TEM 60% DE PRESENÇA FEMININA NO PARLAMENTO. COMO ESSAS REALIDADES SE CONJUGAM?

É uma questão ambígua. Como você mesmo comentou, 60% do parlamento é composto por mulheres. E em outros aspectos da sociedade, Ruanda também é um país modelo na questão da paridade homem-mulher. Eu não sou política, sou uma ruandesa com os olhos bem abertos para a realidade à minha frente. Muitas vezes o que há com relação à situação do governo em Ruanda é que se distorce o que está acontecendo porque há um hábito de se falar mal ou se colocar contra. Há pessoas que estão como impermeáveis à mudança.

Acho que há um bom governo agora em Ruanda. Quando houve o genocídio, fomos simplesmente abandonados como povo. Aquilo foi um golpe violento na nossa dignidade. E agora, há um governo que conseguiu colocar Ruanda de novo em uma direção a seguir. Há uma expressão francesa segundo a qual não se pode fazer omelete sem quebrar alguns ovos. Foi necessário o governo ser um pouco mais duro em algumas decisões para conseguir ir a alguma direção. Tem que se ter cuidado para não se confundir autoritarismo com rigor. As pessoas de fato precisavam pegar juntas para reconstruir o país. E outro ponto que não se fala é que Ruanda é um país em que não há corrupção no governo.

É POSSÍVEL UM PAÍS SEM CORRUPÇÃO NO GOVERNO?

Um exemplo que posso dar é meu irmão, André. Ele é médico. Morou muito tempo no Senegal, tinha uma casa muito boa, seus filhos iam para a escola num bom ônibus escolar, ganhava um bom salário. Ele voltou para Ruanda no início dos anos 2000 e tudo mudou. Na verdade, ele vinha de um sistema que era herança de um governo colonial, em que ele, como funcionário do governo, tinha bom carro, casa etc., e depois, quando ele voltou assim como muitos voltaram para Ruanda com a ideia de pegar juntos e reconstruir o país, não havia mais nada disso.

Ele se mudou para uma casa bem mais modesta, que não era gratuita, ele agora a paga, não é bancado pelo Estado com todos os privilégios que de certo modo tinha. Foi nesse momento que o governo de Ruanda percebeu que precisava fazer isso, deixar para trás esse sistema colonial do privilégio de uma classe para juntar recursos e construir as ruas, as estradas e, sobretudo, as escolas. E meu irmão, mesmo perdendo aquele padrão de vida, não se sentiu mal, porque havia a noção maior de que todos estavam trabalhando juntos para de fato mudar o país. Ruanda se tornou um país em que é exigida responsabilidade de todos os seus cidadãos de tentar mudar a realidade da nação.

SEU LIVRO NOSSA SENHORA DO NILO ESTÁ SENDO ADAPTADO PARA O CINEMA, CERTO?

O livro inspirou o diretor afegão Atiq Rahmi, que se mudou para Ruanda, está lá desde janeiro trabalhando na adaptação. Ele já está filmando. Levou também os atores europeus do elenco. Para mim, o que mais me encantou nesse projeto foi a ideia de Rahmi de usar atrizes locais, formadas no próprio país, como protagonistas. Minha grande ambição é que seja um filme ruandês, que consiga abordar Ruanda e seu povo.

E claro, uma segunda ambição é ver a obra no Festival de Cannes. Ruanda passa agora por uma nova explosão da francofonia. O filme será rodado com vários atores francófonos, sobretudo as jovens protagonistas. E atualmente, a presidente da Organização Internacional da Francofonia (OIF) é uma compatriota minha, Louise Mushikiwabo, a primeira mulher africana à frente da organização. Assim como eu, como escritora, ocupei vários espaços em que era a primeira mulher africana ali.

A SENHORA CONTA EM BARATAS QUE A IMIGRAÇÃO DECIDIDA POR SUA MÃE SALVOU SUA VIDA E A DE SEU IRMÃO. COMO VÊ A ASCENSÃO INTERNACIONAL DE UMA EXTREMA-DIREITA NACIONALISTA E DE DISCURSO ANTI-IMIGRAÇÃO?

Em primeiro lugar, eu condeno esse discurso, porque é contrário aos direitos humanos. É algo contra a própria humanidade e deve ser repelido. Sabendo que não se deve confundir otimismo com ser ingênuo, temos que ter a força do otimismo para lutar contra essa ascensão. Veja o que aconteceu nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que Trump é o presidente, a recente movimentação eleitoral mostra que pode existir um impulso de resistência, e que isso pode ser um pretexto de união. É uma pena que seja assim, mas parte da condição humana é sempre haver alguém para construir e um outro para destruir.

Eu escrevo sobre coisas trágicas e terríveis. Mas são essas coisas trágicas e terríveis que também podem servir para acordar as pessoas quando elas estão quase dormindo achando que está tudo bem. E aí elas despertam sabendo que precisam ir para o combate contra esses movimentos de negação do ser humano. Foi o que aconteceu em Ruanda, em que vi um pequeno país renascer das cinzas.

CARLOS ANDRÉ MOREIRA

01 DE DEZEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

SUICÍDIO ASSISTIDO


Gostemos ou não, o direito de dar cabo à própria existência é inalienável. A sociedade e as religiões podem criar regras, leis e princípios morais para condenar o suicídio, porém jamais conseguirão evitá-lo.

A função do Estado é proteger o cidadão do mal que terceiros possam causar a ele, não a de impedir os males que ele pode infligir a si mesmo. Fosse essa a pretensão, haveríamos de acabar com os medicamentos, vedar janelas, terraços de prédios, viadutos, destruir as armas e os objetos cortantes, entre outros cuidados tão inexequíveis quanto inúteis.

O apego à vida tem raízes evolutivas: na seleção natural, levaram vantagens reprodutivas aqueles capazes de lutar para preservá-la; os desapegados não deixaram descendentes. É consequência desse longo processo seletivo só nos entregarmos aos braços da terrível senhora exauridas as últimas forças.

O suicídio nos choca porque vai contra o instinto de defesa, essencial à preservação da espécie. Apesar de imaginarmos que deve ser desesperador o sofrimento por trás do ato tresloucado, o suicida desperta emoções contraditórias: compaixão, incriminação, culpa, desprezo.

Em 50 anos de oncologia, perdi dois pacientes por suicídio.

A primeira foi uma senhora de 60 anos, com histórico de várias internações psiquiátricas por depressão, que se atirou do sétimo andar, justamente no dia em que recebeu alta do tratamento quimioterápico.

O segundo era um homem HIV positivo sem nenhuma das manifestações da aids, que se trancou na cozinha com o gás do fogão, dois meses depois da morte do companheiro com quem vivera quase 40 anos.

Apenas dois casos ocorridos entre milhares de doentes com câncer que tratei me levaram a concluir que não vêm do corpo, mas dos padecimentos da alma, as motivações para o suicídio.

A tecnologia e os recursos terapêuticos à disposição da medicina moderna criaram os meios para que os limites da vida sejam alargados muito além do razoável. Quantas vezes deparei com a dúvida: o que acabo de prescrever vai prolongar a vida ou o calvário dessa pessoa?

Na realidade, nem a sociedade, nem nós, profissionais, estamos preparados para nos rendermos ao fato de que o corpo pode se tornar um fardo irreversivelmente insuportável, incapaz de oferecer o prazer mais insignificante, eventualidade em que a morte deveria ser entendida como desenlace natural.

Nessas circunstâncias, seria preciso colocar os doentes a par da gravidade e da irreversibilidade da doença, de modo que pudessem tomar a decisão informada de abreviar ou não a duração dos dias finais. Faltam as leis, mas não os meios necessários para lhes proporcionar o final digno que todos desejamos para nós mesmos.

Mais controvertidos, no entanto, são os casos daqueles que perderam a cognição. A longevidade atual vem acompanhada do aumento da prevalência de quadros demenciais; encontrar alguém que não tenha um parente desmemoriado, incapaz de executar tarefas mínimas é privilégio de poucos.

Mulheres e homens com Alzheimer e demais demências nos estágios em que a memória se extinguiu - e, com ela, a condição humana -, perderam a autonomia inclusive para dar fim aos suplícios que os atormentam.

Você, leitor, que morre de medo de chegar à velhice como um corpo inerte alimentado por sonda, sem reconhecer os entes mais queridos, os profissionais que lhe manipulam as partes íntimas, nem compreender por que lhe trocam as fraldas, não acha que a visita repentina da mais indesejável das criaturas viria como bênção?

Fiz um trato com dois colegas mais novos, de que eles me darão morte digna e rápida caso eu venha a perder a capacidade cognitiva para entender quem sou. Acho que eles cumprirão o combinado. Você, leitora, não gostaria de ter esse direito de escolha?

A faixa da população brasileira que mais cresce é a que passou dos 60 anos. A legião de pessoas alienadas do mundo que as cerca aumenta a cada dia. Todos querem viver muitas décadas, mas não a qualquer preço. A sociedade precisa trazer o suicídio assistido à discussão, sem ideias preconcebidas.

Embora não seja fácil, é possível definir critérios técnicos que sirvam de base para criar leis, a partir das quais seja viável decidir, enquanto temos saúde, em que eventualidades uma injeção letal ou outro procedimento pode pôr fim às nossas agruras.

Afinal, acabar os dias em estado vegetal é a derradeira surpresa da condição humana, como diria Machado de Assis.

DRAUZIO VARELLA

01 DE DEZEMBRO DE 2018
CHRISTIAN DUNKER

COMO ESCUTAR O OUTRO EM TEMPOS DE ACOLHIMENTO E INTIMIDAÇÃO?

Os últimos tempos, pré e pós-eleitorais, marcaram uma mutação expressiva da imagem que os brasileiros tinham de si. Sai o homem cordial e o jeitinho brasileiro, entra o novo tipo de fundamentalismo no qual todos são corruptos e privilegiados até que se prove o contrário. As imagens que temos de nós mesmos são, por definição, encobrimentos narcísicos diferentes do que realmente somos. Imagens dependentes do ângulo que se quer mostrar e das sombras que produzimos para nos proteger de nós mesmos. 

Aparências são importantes também no sentido simbólico, pois elas retratam nossa relação com a lei. Pense em como nos comportamos diante das "crianças" ou naquele casal em guerra pré-falimentar, mas que gasta suas últimas energias, psíquicas e morais, para manter as aparências. Quando abandonamos o "como se" e o registro da ficção, o que sobra não é a transparência autêntica, mas tão somente nosso desrespeito à lei simbólica.

O sentimento geral de que paramos de nos escutar, de que o debate tornou-se improdutivo e que daqui para frente o que vale é a força ampara-se nestes dois processos: o primeiro fixa a pessoa a uma imagem, depois disso, tudo o que ela disser só confirma a posição na qual ela foi colocada. O segundo exercita a estética tosca da liberalização das aparências, a partir da qual temos a ilusão de que estamos vendo por dentro as entranhas do poder. O ponto de junção entre estes dois processos é esta espécie de nova lei geral baseada na intimidação. Intimidar vem de íntimus, profundo, secreto e privado. Combina-se com intimação, ou seja, convocar o outro a responder. 

Intimidar é levar o outro ao limite de sua timidez ou reserva, produzir embaraço ou vergonha ou medo. Thyimós, em grego, era este órgão dos afetos, a voz de nossas disposições e incertezas, o lugar onde sentíamos raiva, inveja ou piedade. Neste sentido, intimidar é fazer com que alguém se reduza ao seu próprio timo, e assim escute apenas seus afetos. Sobretudo não exteriorizar mais do que a subordinação imposta pelo outro permite. Em suma, a intimidação é uma forma de silenciamento do outro, um modo de aprisioná-lo a ouvir apenas a sua própria voz, de impotência e constrangimento.

Escutar o outro nestas condições é inverter a intimidação em intimidade. Pensemos no valentão da escola, o protótipo do futuro assediador de maiores. Notemos como sua arte consiste em isolar ainda mais aquele que já se sente isolado, em expor aos outros o fato de que ele é sozinho e, enquanto tal, vulnerável. Em contrapartida, os que pelo silêncio ou pela adesão direta perfilam-se ao lado do intimidador compram segurança por pertencer ao grupo. 

Aqui está também o antítodo da escuta acolhedora. Ela não deve buscar apenas piedade ou solidariedade que no fundo oporá grupo contra grupo, fracos contra fortes, perdedores contra vencedores. Acolher é potencializar a solidão como fonte e origem de toda resistência. Acolher é transformar a solidão em solitude, fazendo do desamparo e da vulnerabilidade algo que não deve ser temido nem envergonhado, mas reconhecido. É assim que surge a resiliência que não precisa nem de esperança nem de otimismo para agir. Basta escutar a força e a suficiência de ser cada um.

CHRISTIAN DUNKER


01 DE DEZEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

O primeiro livro do mundo

Dias atrás, parei diante da Bíblia de Gutenberg, exposta na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Fiquei a parcos centímetros dela, mas não pude tocá-la. Ninguém pode. A Bíblia de Gutenberg, o primeiro livro impresso do mundo, está guardada em uma caixa de vidro à prova de balas. Pudera: cada um dos 48 exemplares que ainda existem vale US$ 300 milhões. Já pensou você ter em casa um livro que custa mais de R$ 1 bilhão?

Tudo, naquela Biblioteca do Congresso, é extremamente valioso. Ou quase tudo, porque descobri que eles têm até livros meus. Gostaria de me exibir mais por isso, mas seria desmascarado quando você fizesse uma pesquisa e descobrisse que a biblioteca contém inacreditáveis 155 milhões de itens, dos quais 40 milhões são livros. É a maior biblioteca do mundo. Você sabe o que Castro Alves faria se entrasse naquele palácio? Gritaria:

- Livros! Livros a mancheias!

O governo americano gasta mais de US$ 600 milhões por ano com a Biblioteca do Congresso, e é um dinheiro bem gasto, porque se trata de um patrimônio da humanidade. Naquela região de Washington, aliás, há vários patrimônios da humanidade, entre eles uma coleção de museus que você levaria um mês para percorrer inteira. Detalhe: em todos, a entrada é gratuita.

Essas relíquias são mantidas de duas formas: com recursos do Estado ou com doações. Nos Estados Unidos, há uma forte cultura de doações e de trabalho comunitário. Um dos critérios de ingresso nas universidades americanas é, exatamente, o tempo que o aluno dedicou a trabalhos comunitários durante o período em que estava na escola.

Harvard é a universidade mais rica do mundo, com orçamento de US$ 30 bilhões por ano. Deste total, 55% são doações, em geral de ex-alunos que se tornaram nababos e querem retribuir de alguma maneira o conhecimento adquirido na academia.

A Biblioteca de Harvard também é um expoente da cultura: é a maior biblioteca privada do mundo e a primeira da América. Tem 18 milhões de itens. Há, naquelas estantes vetustas, até livros encapados com pele humana. Se você for aluno de Harvard e pedir um livro, qualquer livro, eles provavelmente terão. Se não tiverem, compram. Se não houver no mercado, pedem emprestado a outra biblioteca.

Na verdade, essa biblioteca é um conjunto de bibliotecas, mais de 70. Uma das mais importantes foi doada por uma ricaça que, em 1912, viajava no Titanic. Quando o navio naufragou, o marido e o filho dela morreram, mas ela se salvou. Como o filho havia estudado em Harvard, a magnata deu a biblioteca de presente à universidade, com algumas condições: a arquitetura do prédio jamais poderia ser modificada e um dos salões deveria ser dedicado ao filho dela, lugar em que haveria flores trocadas todos os dias. Harvard cumpre as exigências desde 1915: as flores são trocadas diariamente e, para aumentar o prédio, ele cresce para baixo: são construídas salas subterrâneas.

Essas doações tão pródigas, feitas nos Estados Unidos, acontecem por formação cultural e desprendimento, sim, mas também porque, com isso, os doadores obtêm descontos ao pagar o imposto de renda. É algo normal e saudável. Porque a arte, historicamente, precisa de patrocínio. Precisa do mecenato. Mecenas, o homem que deu origem ao termo, era amigo e colaborador do imperador Augusto, vivia em luxo sibarita e, como compensação, patrocinava artistas, especialmente poetas. Virgílio, Horácio e Propércio eram sustentados por Mecenas, dele ganharam villas, a mando dele escreveram suas obras.

Pode-se dizer que praticamente toda a grande arte foi produzida sob essa lógica. Michelangelo pintou o teto da Capela Sistina por encomenda do papa Júlio II. Esse mesmo papa, chamado de Terrível, comprou obras de Rafael e Bramante. Leonardo passou a vida mudando de cidade para cidade na Itália e na França - ia aonde houvesse um governante disposto a pagar por seu trabalho. Machiavel escreveu O Príncipe para César Borgia, filho do devasso papa Alexandre VI e irmão da famosíssima, lindíssima e perigosíssima Lucrécia Borgia, com quem ele mantinha relações incestuosas.

São raros os exemplos de arte autossustentável na história do mundo. Só nos tempos atuais é que as indústrias da música e do cinema alcançaram algumas façanhas. Por isso, uma nação que pretenda valorizar minimamente sua cultura não pode prescindir de instrumentos como a Lei Rouanet. Há críticas procedentes à lei, mas ela tem de ser aprimorada, não extinta. A Lei Rouanet não serve apenas para financiar "artistas ricos de esquerda", como tem sido pejorativamente dito e repetido no debate político do Brasil. A Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro, por exemplo, só sobrevive graças à Lei Rouanet. O novo governo precisa ter cuidado, a sociedade precisa ter cuidado. Porque a pobreza de espírito, às vezes, é bem pior do que a pobreza material.

DAVID COIMBRA


01 DE DEZEMBRO DE 2018
J.J. CAMARGO

DOS NOSSOS LIMITES

A percepção de que se morre aprendendo tem seu lado bom, que nos empurra em direção ao novo, e este é um dos poucos estímulos que resistem à velhice: nunca sabermos tudo. E tem seu lado ruim, que é conviver diariamente com a nossa inevitável propensão ao erro, que, além de massacrante, consegue ser cruel, como quando percebemos que estamos repetindo erros antigos.

Em se tratando de ciências biológicas, ainda há uma imensidão de variáveis, muitas aleatórias e imprevisíveis, todas elas aparentemente concebidas para alimentar uma virtude: a humildade. Quem erra, como todos os normais, mas ainda assim conserva intacta a soberba, tem um problema sério, de difícil classificação, que presume-se, transita entre o narcisismo exacerbado e a idiotia exuberante.

Quando era jovem, percebi que as doenças se repetiam, mas que seus donos eram de uma variedade imensa. Ainda assim, alimentei a ilusão de que era possível me tornar um conhecedor de gente, se prestasse atenção nas pessoas. Adiante, percebi que não seria o suficiente, apesar de nunca ter desistido de tentar. Mas duas grandes lições estavam à minha espera:

u É possível alguém normal desistir da vida. Nada mina mais completamente a vontade de viver do que a percepção de que, independentemente de quem tenha sido a culpa, ele nunca teve, ou teve e perdeu, a reciprocidade de afeto. A vontade de seguir lutando pela vida até o limite é uma exclusividade dos que gostam de afofar porque têm alguém que lhes afofem.

Minha experiência inicial com candidatos ao transplante de pulmão, uns sofredores crônicos que eu imaginava que aceitariam qualquer desafio para voltar a respirar, várias vezes bateu de frente com uns tipos amargurados, para os quais o roteiro de sacrifícios não se justificava. Mais do que se isso, opunha-se a um sentimento que lhes tomara o espírito nos últimos tempos: estavam a caminho de se livrar, por uma causa natural, de uma vida miserável da qual eles tiveram desejo, mas não coragem, de fugir pelo suicídio. E então quase festejavam a proximidade do alívio sem culpados.

u Desejar a morte de um ser amado pode ser um gesto de compaixão. Todos nós consideramos razoável o sofrimento que tenha outro objetivo que não seja morrer. Seu Antonio era um português de olhos azuis, mansos e tristes. Com os pulmões destruídos por enfisema, tinha aquela fragilidade que anuncia um cadáver adiado. Qualquer mudança de temperatura, e lá vinha a dona Josita empurrando o carrinho do oxigênio que seu Antonio usava 24 horas por dia. Quando pensávamos que aquela seria a última internação, ele ressuscitava e, depois de uns dias, recebia alta hospitalar. A falta de entusiasmo da esposa arrumando a maleta foi o meu primeiro desconforto. Dias depois, estava de volta o Antonio, sua respiração estertorosa e uma expressão de sofrimento tão grande, que era difícil ficar por perto, por quanto o convívio significava um insuportável exercício de impotência médica. Naquele dia, na readmissão, a Josita me abraçou e disse: "Como ele está mal, não é, doutor? Acho que, desta vez, ele não escapa!".

Lembro da náusea que senti. Tinha aprendido a gostar muito do Antonio e fiquei chocado que justo sua mulher estivesse lhe desejando a morte. Meses depois, encontrei o filho único do casal, que me contou: "Minha mãe adorava meu pai, que tinha sido o seu primeiro namorado. E sofria tanto com a doença dele que, no inverno passado, ela me confessou que, durante as crises de falta de ar, pedia a Deus que o levasse, porque, sendo um homem tão bom, não merecia sofrer para morrer. Com a morte dele, ela ficou completamente perdida. No mês passado, ela morreu, sem doença que se soubesse. Acho que de tristeza!".

J.J. CAMARGO

01 DE DEZEMBRO DE 2018
MÁRIO CORSO


A bênção de São Francisco

No dia de São Fran-cisco, costuma-se levar os animais à igreja para ganhar a bênção. Berenice não pensava em outra coisa. A turma toda preparava-se para a função. Finalmente seu jabuti Osvaldo, orgulho dela e da família, seria conhecido na escola e, de inhapa, teria um olhar benigno do santo dos animais. Esses quelônios vivem bastante. Com água benta, mais ainda.

Um dia antes, a expectativa se esvaziou. Dona Gertrudes, vó de Berenice, vetou a excursão espiritual do animalzinho. Argumentou que a neta de seis anos não tinha idade para se responsabilizar por ele. Uma queda, e vai-se o casco do coitado, dizia.

Berenice murchou de dar dó. Além do mais, pensava, seria um desperdício de bênção. Vocês sabem, essa proteção é economia em veterinário. Impossível perder a barbada de trazer para casa algo tão bom. Nós estamos falando de São Francisco, santo de primeira grandeza.

No cérebro da menina, criou-se um plano B. Nas suas incursões ao sótão, já descobrira e brincara com uns habitantes clandestinos. Pegou uma caixa, agarrou o seu, nem tão de estimação assim, amigo e meteu-o dentro. Temendo novas intervenções superiores agiu discretamente, escondendo o parceiro e as intenções. Achou melhor mostrar apenas para o padre na hora da bênção.

Perfilou-se ao lado de meninas e meninos com canários apavorados dentro de gaiolas, de gatos inquietos nos colos, cãezinhos nervosos latindo, porquinhos- da-índia não entendendo absolutamente nada do alarido. Na sua vez, retirou um morcego da caixa. O padre tomou um susto. Mas fazer o quê? O que São Francisco faria? O próprio santo deve ter iluminado o sacerdote e, pela primeira vez na história da cristandade, um filhote de morcego foi abençoado.

As crianças não acharam tão estranho assim. Berenice ganhou pontos junto aos meninos, entusiastas da ideia de tocar em um morcego, que em seu sono diurno mal reagia. Quem não gostou foram a professora e a diretora. Mas não gostaram mesmo.

Inquiriram a menina, de forma nada suave, para saber como isso acontecera. De onde lhe ocorreu trazer justo esse animalzinho. Berenice achou que os passos do enredo, a interdição do jabuti, eram muito complexos. E também não gostava de ser considerada incapaz de cuidar do Osvaldo. Atalhou dizendo que trouxe o morcego por causa da avó. O que não é uma mentira.

No outro dia, a confusa avó estava na escola, dando explicações sobre o caso e levando um xixi por deixar uma menina ter acesso a bichos que transmitem doenças e coisa e tal.

O grande prejudicado, o jabuti Osvaldo, mesmo sem a graça de São Francisco, gozou sempre de boa saúde. Vai que a bênção é contagiosa...

MÁRIO CORSO

01 DE DEZEMBRO DE 2018
DUAS VISÕES

UMA TEMPORADA DE OPORTUNIDADES

A prática ocidental de troca de presentes movimenta bilhões de reais no país, cria oportunidades de emprego e gera renda. A tradição nasceu inspirada nos presentes dados pelos reis magos ao recém-nascido menino Jesus. Na ocasião, Baltazar, Belchior e Gaspar levaram ouro, incenso e mirra. Todos tinham significados bastante específicos, mas de forma geral materializavam o quão felizes eles estavam com a chegada do Messias. Hoje, nessa data, as pessoas presenteiam-se umas às outras com artigos de vestuário, brinquedos, calçados, eletroeletrônicos... 

Entretanto, o sentido continua sendo de lembrar àqueles que são presenteados que são pessoas a quem queremos bem ou a quem somos gratos. Há quem diga que o Natal virou uma data apenas comercial, eu, porém, tendo a discordar. Quando se compra um presente para alguém, e essencialmente isso que move o Natal, presentear o outro, também estamos mostrando que nos lembramos, que nos preocupamos com esse alguém. E isso movimenta a economia!

O Natal é a data mais esperada do ano pelos lojistas do sul do país. No mês de dezembro, as vendas do comércio varejista do Rio Grande do Sul, por exemplo, são, em média, cerca de 37% maiores do que as verificadas na média dos demais meses do ano. Isso se desenha a partir de uma oportunidade ímpar para as empresas: pessoas com mais renda (em virtude do 13º salário) e com disponibilidade de comprar. 


Assim, do outro lado do balcão é fundamental encontrar pessoas bem treinadas, produtos de qualidade e condições de pagamento adequadas. E para isso é preciso planejamento e estratégia. Um "Natal bom" é providencial para preparar o caixa dos varejistas para os meses de atividade mais baixa que se seguem e, de certa forma, são o prenúncio do ano que se inicia. Depois de três anos registrando queda nas vendas de Natal, o comércio gaúcho viu suas vendas natalinas crescerem em 2017 e deverá ver novo crescimento em 2018.

A preparação para o Natal começa lá nos meses de agosto e setembro, quando os pedidos dos varejistas chegam às indústrias. Especialmente a partir do mês de outubro, é a vez de o comércio começar a contratar para atender a essa demanda aquecida de fim de ano. Com isso, geram-se empregos temporários que podem virar permanentes. Como o varejo é notadamente o segmento que mais concentra população com menos de 24 anos na sua força de trabalho, o comércio varejista funciona como a porta de entrada no mercado de trabalho para a população jovem, em que se registram as taxas de desocupação mais altas.

E não é apenas o comércio que reflete o clima de confraternização. Os serviços também são impactados. Bares, restaurantes, hotéis, bem como o setor aéreo e o transporte rodoviário de passageiros sentem os reflexos desse sentimento de reunir-se, de encontrar-se com quem se gosta. E com isso também geram emprego e renda. Assim, o Natal abre uma temporada de oportunidades, que movimenta dinheiro, mas também esperança. Enfim, que neste Natal possamos ver nas ruas sacolas cheias de presentes e repletas de esperanças renovadas!

PATRÍCIA PALERMO Economista-chefe da Fecomércio-RS

01 DE DEZEMBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

O CRIME, SEM OXIGÊNIO

Hoje, a burocracia emperra o reinvestimento de somas e recursos importantes, que poderiam estar sendo usados com mais celeridade na construção de presídios, na compra de equipamentos e no treinamento das forças de segurança 

Apesar da resistência de alguns setores da Receita Federal, é positiva a sinalização de que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), hoje ligado ao Ministério da Fazenda, seja vinculado à área de Justiça e Segurança Pública, a ser comandada a partir de janeiro por Sergio Moro. O ex-comandante da Lava-Jato em Curitiba prepara-se para assumir o cargo com as atenções voltadas à luta contra a corrupção e à redução dos números da violência. O combate ao crime só é eficiente quando consegue sufocar financeiramente os cartéis e as facções, o que exige ações e decisões centralizadas, como as previstas agora.

O futuro ministro da Justiça tem fortes razões pessoais para colocar o Coaf sob o guarda-chuva da Justiça. Muitas movimentações financeiras atípicas realizadas durante o período em que o órgão esteve ligado ao Ministério da Fazenda não resultaram de fato em providências efetivas. A instituição, porém, tem como foco o combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo. A intenção, a partir do próximo ano, é fazer com que esses casos sejam acompanhados em tempo real, permitindo ações mais imediatas sempre que soarem os alertas.

Não é coincidência que, nos últimos anos, os controles sobre o sistema financeiro mundial tenham sido intensificados. Capitaneados pelos Estados Unidos, os esforços resultaram em expressivas vitórias sobre traficantes e terroristas. A operação de desmonte de um esquema bilionário de tráfico, realizada pela polícia em cinco Estados brasileiros nos últimos dias, é um sintoma positivo desse processo. A prioridade na área de segurança precisa ser o combate à lavagem de dinheiro. A ênfase vale tanto para o caso de crimes de corrupção quanto para o tráfico de drogas, com base na integração de policiais de todo o país.

Independentemente da necessidade de armas e viaturas, cada vez mais a Inteligência, expressa nesse caso pela capacidade de recolher informações e agir no sistema financeiro e no mundo digital, assume relevância. Outro aspecto que se impõe é a busca de maior agilidade no confisco e utilização de bens e valores recuperados nas ações policiais. Hoje, a burocracia emperra o reinvestimento de somas e recursos importantes, que poderiam estar sendo usados com mais celeridade na construção de presídios, na compra de equipamentos e no treinamento das forças de segurança.

OPINIÃO DA RBS

01 DE DEZEMBRO DE 2018
ACERTO DE CONTAS

FINANÇAS PESSOAIS EXPERIMENTE ANTES DE COMPRAR INVESTINDO DINHEIRO DO DIVÓRCIO

Com 192 lojas de artigos esportivos no país, a Centauro abrirá duas novas unidades em Porto Alegre em dezembro. A primeira será inaugurada no dia 6, no BarraShoppingSul. A segunda, no Iguatemi, começa a funcionar no dia 12. Com essas lojas, a empresa passa a ter quatro estabelecimentos na Capital. As duas operações serão do novo modelo da companhia, chamado de Geração 5, que reúne diversas tecnologias. Diretor de marketing da Centauro, Artur Dias (foto ao lado) conta algumas novidades que o consumidor encontrará nas lojas:

Uma leitora que prefere não se identificar pediu divórcio, recebeu sua parte e perguntou para a coluna onde investir o dinheiro. São R$ 135 mil já aplicados em ativos financeiros, além de uma casa que está à venda. Ela tem 63 anos e recebe cerca de R$ 2 mil de aposentadoria.

A primeira pergunta é se a renda da aposentadoria é suficiente ou precisaria de complemento. O objetivo das aplicações é uma informação essencial para a escolha de qualquer investidor. Além, é claro, de identificar o perfil da pessoa, que vai de conservadora a arrojada com o dinheiro.

Planejadora financeira, Letícia Camargo explica que, se for precisar do valor no curto prazo, o ideal é deixá-lo em investimentos conservadores e com boa liquidez, ou seja, que podem ser resgatados a qualquer momento sem grande perda de valor. São exemplos: fundos de investimento DI, CDBs de bancos com boa qualidade de crédito e Tesouro Selic.

- De qualquer forma, é importante deixar investido nesses produtos conservadores um montante entre seis a 12 vezes os gastos mensais. É uma reserva de emergência - afirma Letícia.

Se o dinheiro for para médio ou longo prazo, poderá correr um pouco mais de risco. Se o investidor não é muito conservador, a consultora sugere fundos atrelados à inflação ou os títulos Tesouro IPCA. Pode também incluir fundos multimercados e até fundos de ações ou papéis comprados diretamente na bolsa de valores.

- Mas só indico comprar ou manter as ações caso tenha conhecimento e tempo para estudar a fundo as empresas em que vai investir. Caso contrário, o ideal é terceirizar esse trabalho para um gestor profissional por meio de fundos de ações - diz.

Lembrando que não existe a melhor aplicação financeira. É preciso montar uma carteira de investimentos pensando no perfil e no objetivo de cada um com seu dinheiro.

-Provador inteligente A cabine identifica as peças escolhidas pelo cliente e uma tela mostra informações do produto. Consumidor poderá pedir outro tamanho sem sair do provador.

-Teste de calçados Tênis poderão ser provados em uma esteira conectada a telas que simulam circuitos de corrida do mundo todo, permitindo ao cliente testar pisadas.

-Emoção do futebol Grande tela interativa permite ouvir hinos e cantos de torcida dos times na navegação pelas opções de camisas. Chuteiras e estampas de camisetas podem ser personalizadas.

ACERTO DE CONTAS

01 DE DEZEMBRO DE 2018
INDICADORES

Rico mais rico, pobre mais pobre

Já escrevi várias vezes, neste espaço, sobre desigualdade. E o estudo da Oxfam divulgado esta semana me assegura que é bom falar mais. O documento chama atenção para o fato de o Brasil ser o 9º país mais desigual do mundo, sendo que, entre 2016 e 2017, não houve qualquer melhoria na distribuição de renda. E um dado particularmente impressionante é que, neste período, a metade mais pobre da população brasileira viu seu rendimento do trabalho cair 3,5% em média; já os 10% mais ricos tiveram um aumento de 6% em seu rendimento médio. Sim, o pobre ficou mais pobre e o rico ficou mais rico em meio à crise!

Para ilustrar um pouco melhor esses números, fiz um exercício com os dados da PNAD Contínua, do IBGE, do primeiro trimestre deste ano. Selecionei apenas as pessoas ocupadas com mais de 18 anos e calculei a renda domiciliar per capita (a soma da renda do trabalho de todas as pessoas no domicílio, dividida pelo número total de moradores, incluindo crianças). A média desta renda foi de R$ 838,25. Isso significa que, na média, uma família de quatro pessoas vive com R$ 3.353,00. Acontece que a média engana mais do que você supõe.

Metade dos trabalhadores brasileiros tem renda domiciliar per capita de no máximo R$ 466,66 - uma família de quatro pessoas vive com R$ 1.866,64, neste caso. Note que este número é praticamente a metade da média. E quando a renda per capita mensal do domicílio atinge R$ 1.875,00, ele estará entre os 10% mais bem pagos no Brasil. A diferença entre os 50% mais mal pagos e os 10% mais bem pagos é mais de quatro vezes.

A questão aqui não é a diferença, por si só. O elemento central é que a desigualdade é brutal e nenhum tipo de abordagem de meritocracia é capaz de justificar tamanho desequilíbrio na distribuição de renda do Brasil. Nem mesmo o argumento raso de que "o problema é a pobreza e não a desigualdade". Não há como reduzir significativamente a pobreza sem melhorar a distribuição de renda!

A retomada da economia é capaz de trazer algum alento, sim. Mas, não é suficiente para melhorar de fato a condição de vida dos mais pobres se não se observar a distribuição de renda. Olhar para as décadas de 1970 e 1980 com saudosismo do crescimento econômico, sem reconhecer que neste período a desigualdade e a pobreza se aprofundaram no Brasil, é pensar no país pela metade. Na realidade, pensar em bem menos da metade.

ELY JOSÉ DE MATTOS

sábado, 24 de novembro de 2018


24 DE NOVEMBRO DE 2018
LYA LUFT

Uma história de horror

Sou fissurada em notícias. As do meu país e tudo mais que aparecer e eu puder entender. Às vezes, preferiria não entender. Outras vezes, mudo de canal para não onerar ainda mais minha alma, que não anda lá essas coisas. Mas sou, sim, curiosa, interessada, assombrada, perplexa e às vezes maravilhada com as coisas do mundo. As Coisas Humanas, provável título de um novo livro meu, que talvez apareça em meados de 2019. Mas eu falo de notícias. Guerras, carnificinas, incêndios, terremotos, inundações, tiroteios, toda a trama que nos envolve e persegue e empurra há milhões de anos. Indignação, encanto, pasmo, se alternam em quem assiste. (E insiste.)

Então, noticioso correndo na tela, mas eu lendo e abstraindo de algum modo o filme das coisas humanas que passa na minha frente - mãe de família e trabalhando em escritório em casa, cedo aprendi a me concentrar, mesmo com o chamado rumor da família por perto -, levanto os olhos e foco um rosto de criança. Todos os traços de um ainda-quase-bebê, pode ter quatro anos, pouco menos ou mais. Linda menina, olhos enormes, melancólicos e perplexos. Ela não entende o que acontece ao seu redor, no campo de refugiados do Afeganistão, tendas espalhadas no areal sem um capim nem um poço à vista, só areia, vento, secura e rostos como máscaras de severidade ou dor. Nas crianças, ainda sombras de sorriso ou traquinices.

A menininha sentada, enfeitada com colares e brincos, ao lado da mãe, de um velho com turbante torto e barba com ar de suja e um menino - de 10 anos, fico sabendo depois. Até a curtida e experiente jornalista que os entrevistava parecia não encontrar palavras, enquanto eu, aqui do outro lado do mundo, não encontrava nem pensamentos claros. Resumo da tragédia: a mãe, cujo marido tinha sido morto numa escaramuça semanas atrás, viera ao acampamento com três ou quatro filhos, e a linda menininha sendo a menor. Não tinham mais o que comer, estavam famintos, acabariam morrendo ali mesmo.

Então, a mãe relata com ar severo mas decidido, sem encarar a entrevistadora: ela tinha resolvido vender a menina. Áquila, ainda com as bochechinhas inocentes de quase-bebê, tem seis anos. A mãe, magérrima e tisnada de muito sol e sofrimento, diz com simplicidade: "Ela ainda não entendeu, porque é muito pequena, mas foi vendida para esse senhor aí". O velho ao lado, turbante torto, lacunas entre os dentes da frente, se coça com vago desconforto e diz que sim, que ali não é grande coisa, que afinal a família morria de fome, e que ele vai pagar, em três anos, provavelmente, os US$ 3 mil pelos quais adquiriu a criança.

A mãe, remexendo-se, revela meio incomodada que até agora recebeu apenas US$ 70. A criança olha, pasmada, mãozinhas ainda de bebê postas no colo, imagem da inocência diante de um mundo brutal. A jornalista se levanta, a câmera é recolhida - eu desligo a TV e fico olhando o verde do parque lá fora, querendo ter, amar, abraçar, alegrar e cuidar, aquela menininha chamada Áquila pela qual até agora a mãe recebeu US$ 70, talvez mais do que os 30 dinheiros trocados por Cristo. Mudou o mundo, ou só ficou mais pesado porque dentro da nossa sala?

LYA LUFT

24 DE NOVEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Outra pessoa em casa

Volta e meia deparo com estatísticas de pessoas que moram sozinhas. Não lembro os números exatos, mas sei que são elevados. Jovens que deixaram suas cidades para estudar, idosos que viram a família seguir o rumo sem eles, homens e mulheres que se divorciaram, que enviuvaram ou que nunca se casaram, enfim, gente que, por escolha ou contingência, hoje habita só. Talvez um cão ou gato atenue a ausência de companhia, mas o fato é que não há outra pessoa na casa.

O rádio acaba virando a outra pessoa na casa.

Essa frase impactante eu pincei do livro da Katia Suman, que acaba de lançar as memórias da Ipanema FM, revelando os bastidores do estúdio em que trabalhou por tantos anos e nos ajudando a entender como uma rádio com equipamento precário, poucos funcionários e muito improviso conseguiu, de 1984 a 1997, conquistar ouvintes fiéis que interagiam diretamente com os locutores e que se sentiam representados por aquela bagunça pulsante, criativa, descolada. Uma turma independente que colocava no ar a nova cena musical e cultural do extremo sul do país. Fez história, logo, merece ser contada.

O rádio como meio de comunicação já teve sua extinção prevista "n" vezes, mas seu obituário continua adiado. Veio a tevê, veio o computador, vieram os home theaters, os celulares inteligentes, e que fim levou o rádio? Segue firme e forte no meio rural e urbano, no interior e na capital, tocando música, dando as horas, noticiando, informando, transmitindo futebol, debates, fazendo humor, promovendo encontros - sendo a outra pessoa dentro da casa enquanto lavamos a louça ou tomamos banho.

Sem imagem, o rádio se torna "alguém" por meio de vozes que a gente reconhece pelo timbre. É presença suficiente. Na cozinha, no pátio, na garagem, no banheiro, no quarto, na sala, um homem ou mulher invisível nos faz rir, nos faz refletir, nos comove, nos tira pra dançar. É diferente da televisão, que entretém com figurino, maquiagem e texto ensaiado, entregando uma fantasia. Rádio é emoção genuína, espontânea, de verdade. O exemplo mais célebre é o de Orson Welles com seu programa A Guerra dos Mundos, que 80 anos atrás, na véspera do Halloween de 1938, fez mais de 1 milhão de pessoas acreditarem que os Estados Unidos estavam realmente sendo invadidos por marcianos, instaurando o pânico. Por sintonizarem a transmissão no meio, muitos ouvintes não escutaram a abertura avisando que se tratava de radioteatro - e surtaram. Dê um Google para recordar. O episódio firmou para sempre a potência do veículo.

Como diz a Katia em seu livro: "por mais que avance a tecnologia, humanos continuarão falando e escutando". É o que basta. Enquanto existir rádio, a solidão terá um adversário à altura.

MARTHA MEDEIROS