sábado, 5 de janeiro de 2019


05 DE JANEIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

O mais perto que cheguei do céu

No final de 2017, estava fora de Porto Alegre e não pude assistir ao show que Caetano Veloso fez ao lado dos filhos Moreno, Zeca e Tom. Pra minha sorte, a turnê tem sido tão exitosa que eles retornaram à cidade um ano depois e pude, em dezembro de 2018, assistir a Ofertório. Já vi Caetano cantando com os Doces Bárbaros, com Jorge Mautner, com Gilberto Gil, e muitas vezes sozinho - sempre comovente. Mas, desta vez, knock-knock-knockin? on heaven?s door. Acesso ao paraíso.

Entre uma música linda e outra ainda mais bela, fiquei olhando para aquele garoto de 76 anos que viveu, que amou, que deu tanto ao Brasil, e baixou em mim uma espécie de orgulho alheio. É muita bênção poder subir ao palco acompanhado de seus três filhos e cantar junto com eles as passagens de cada etapa de seu crescimento. "Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo." O tempo. O quinto elemento do show.

Instrumentistas, compositores, intérpretes: os quatro são tudo e são unos. A mesma sensibilidade e elegância. Quatro talentos a serviço da doçura, da sofisticação, da poesia. E pra contrabalançar o sublime, são homens de convicção, contestação. Sem fúria, mas com bravura, quatro homens inteiros, cada um doando o seu pedaço de vida até aqui.

Foi tão bonito. Tão bonito.

Mães carregam (arrastam!) seus filhos, são exaltadas, amam fazendo barulho. Pais são mais sóbrios, amam com sutileza, dão a mão. Eram, ali no palco, um pai cheio de ternura e três filhos discretos, mas nada disso impedia que dançassem, rissem, se posicionassem. Parceria que não nasceu de um contrato em três vias, e, sim, parceria gerada nas canções de ninar, nos castelos de areia na praia, em tardes chuvosas assistindo a um filme na TV. Uma banda chamada família. Brincando de serem os novos baianos, os novos Caymmi, os novos Jackson Five - os novos eles mesmos, instalando no palco a sua sala de estar.

No show, a parte mais conhecida da playlist é elevada à quarta potência. Leãozinho, de letra tão simples, amplifica-se no verso "de estar perto de você e entrar numa". Força Estranha fica mais forte ainda no verso "por isso essa voz tamanha". Trem das Cores cresce no verso "de um azul celeste celestial". Foi mesmo como bater às portas do céu, lá onde mora o sagrado, o divino maravilhoso.

Essa rasgação de seda não é apenas pela música (ainda que, só por ela, já se justificaria), mas porque, por meio dela, demonstrou-se possível a utopia de pacificar passado e futuro, unificar gerações, dar à família um sentido de fortaleza, o que nunca é fácil, sendo uma instituição diversa e tão caótica. Portar o mesmo sobrenome não é garantia de nada, mas portar-se com dignidade diante do belo e daquilo que nunca envelhece coloca o mundo de joelhos. Vida, doce mistério.

MARTHA MEDEIROS

05 DE JANEIRO DE 2019
PIANGERS

O incrível caso do bêbado que voou

No domingo, quando eu, Aurora e Flora, duas menininhas fofas que estão aprendendo a andar de skate e bicicleta, fomos tomar um caldo de cana para aliviar o calor tórrido de uma tarde de dezembro, o vendedor contava uma história. Pesquei sem querer. "Ah, achei que era mentira! Então é verdade?", disse o interlocutor, um cidadão de cara rosada e sorriso simpático, apesar dos dentes que lhe faltavam. 

O vendedor de caldo de cana confirmou. Era a mais pura verdade. Um furacão tinha arrasado sua cidade natal, no interior do Paraná, destelhando casas e fazendo cair árvores. O fato acontecera na semana anterior. O destaque da história, e neste momento o vendedor de caldo de cana fez uma cara muito séria, era que um bêbado da cidade, sem a prudência dos sóbrios, caminhava no meio da rua e foi levado pelo vento. 

"Ele foi mais ou menos daqui até aquele prédio", disse o vendedor de caldo de cana. "Aquele prédio", ele disse apontando para uma edificação distante uns 600 metros. Neste momento, fiz com o rosto aquelas caras de quem não tem muito o que dizer, olhos arregalados amistosamente e queixo empurrado pra frente, demonstrando que estava acreditando em tudo. Foi um daqueles casos em que a gente mente só com a expressão do rosto. "E a velha morreu do coração", disse o homem, sem explicar de onde tinha vindo a velha na história. 

Achei simpático perguntar. "A velha estava em casa e viu o bêbado voando e morreu do coração na hora", ele disse, novamente sem nenhum traço de constrangimento. Olhei bem nos olhos dele, e ele nos meus. Posso garantir que não percebi nenhuma ironia, pista alguma de que ele poderia começar a rir da minha cara no segundo seguinte por ter acreditado nesta história surreal. 

"É mesmo?", perguntei, tomando um gole de caldo de cana. "Verdade", me disse o vendedor. "Quanto saiu aqui?", perguntei. "Seis pila paga", me respondeu. Juntamos nossas três notas de dois reais, entregamos ao homem e nós encaminhamos pra casa. O tempo estava começando a fechar.

PIANGERS

05 DE JANEIRO DE 2019
ANA CARDOSO

Os Sem Presente

Existe um grupo crescente de pessoas que não trocam presentes no fim do ano. Que não os compram. Nem os fazem às pressas. São os Sem Presente.

Aplaudidos pelos economistas, eles não são de todo maus. Você deve conhecer algum. Não comem com as mãos nem arrotam à mesa. Mas não fazem sucesso com as crianças.

Alguns Sem Presente - há quem os chame de lunáticos - sequer comem o peru do Natal. Muitos são veganos, outros fazem jejum intermitente. Há os que fazem churrasco e são bem comilões. Tem de tudo. Não são muito populares, é verdade. Por enquanto.

Optar por não dar presente é uma escolha consciente e séria. Nessa decisão há um bocado em jogo. Como não ser convidado para algumas festas ou sentir a orelha fervendo até a véspera do Ano-Novo.

Por outro lado, a pessoa não precisa quebrar a cabeça para tentar lembrar de alguma pista de presente. E como é difícil acertar sob pressão. Uma coisa é comprar algo quando você se lembra da pessoa, num momento aleatório, outra é entrar em lojas lotadas com a missão de agradar.

O Movimento dos Sem Presente surgiu na casa de uma avó com muitos netos que estavam sempre disputando e chorando porque haviam ganhado menos presentes do que seus primos. Não importava a quantidade de pacotes. Nem o conteúdo dos embrulhos. Era só briga e reclamação.

Ao invés de curtir o presente de que mais gostou ou - valha-me Deus - o mais inusitado ou mais divertido, não. Cada neto só se importava com o fato de o irmão ou a prima ter ganhado mais pacotes. Essa avó, indignada, decidiu que não compraria mais Legos nem tricotaria meias de lã. Se engana quem apostar que a senhora passou a investir o dinheiro em contas de fintechs para os netinhos. Ainda que seja do tipo moderninha.

Tão moderna que fundou esse movimento. Para a tristeza geral das black fridays, aviso que o Natal Sem Presente está virando uma tendência. Antropólogos mais antenados dizem que não é novidade. Que nas periferias isso já é uma realidade há muitas décadas. Pois bem, no último ano foi registrado um aumento entre os praticantes dessa modalidade.

Antes que alguém se encante com esse grupo e queira saber mais, é preciso fazer uma ressalva: você está pronto para abraços desinteressados, sentar e ouvir as pessoas e ser generoso o ano todo? A doar seu tempo e não o seu dinheiro para melhorar a vida das pessoas? Se a resposta é não, é melhor nem tentar entrar para os Sem Presente. Corre pro shopping que é mais fácil.

ANA CARDOSO


05 DE JANEIRO DE 2019
CARPINEJAR

Não há milagre nas férias

Você confia que nas férias fará tudo o que não conseguiu ser ao longo do ano. Cumprirá finalmente o check-list de seus votos em uma tacada. Não sobrará nada pendente em 2019. Nada ficará para trás.

Na mala, coloca uma série de sutiãs esportivos e shorts para malhar, sendo que não compareceu à musculação nem um mês, apesar de pagar a inscrição antecipadamente na academia por um semestre.

Mas acredita que achará folga para correr na praia e desfrutará da aparelhagem do hotel antes do café da manhã, antes das 7h, horário em que jamais acordou na vida para se exercitar. Pretende aproveitar as chances e ser diferente. Mudará os hábitos num estalar dos dedos. Acredita mesmo que as férias são o buraco negro da existência onde os desejos retardatários se concretizam.

E também coloca roupa de festa na bagagem, aquele vestido vermelho de cauda, poderoso e pesado, para escandalizar. Além de providenciar um espaço ao salto e todos os seus acessórios.

Nunca pôde desfilá-lo, e custou uma fortuna. Haverá uma inacreditável recepção de gala e praticará o seu inglês ginasial com uma legião de turistas. Acredita que chegou a hora, porque são férias, a estrela cadente das férias cortará o seu céu.

E separa pares de sapatos, monta looks diferentes para 10 dias, acondiciona chapéus, embala a coleção de echarpes. Fantasia uma por uma das suas postagens no Instagram.

Imagina que terá um momento de frio e também se previne e reserva um par de botas e casacos de lã. E sonha com luau, lareira, piscina com borda infinita, mesa de sinuca, massagem, caipirinha, trilhas, windsurf, todas as estações, esquizofrenicamente, em uma semana e pouco. E põe o quimono que nunca estreou, o roupão que nunca testou, a minissaia de couro para balada que nunca contou com coragem para sair. Em caso de aguaceiro, levará a capa amarela de Cantando na Chuva.

Não esquecerá coisa alguma, situação nenhuma. Sua bagagem é praticamente o lado inteiro do armário que não usa. Mas agora vai acontecer. Idealizou tanto o descanso para pôr em prática o que nunca deu certo.

Reserva uma pequena biblioteca para o almejado descanso, com seis títulos, do suspense à comédia romântica, para se esbaldar culturalmente na espreguiçadeira, na rede, na cadeira de praia. Tudo bem que apenas conseguiu ler três livros em 12 meses. Sem o estresse do trabalho, dobrará a média, recuperará o tempo perdido.

Afinal, as férias servem para contrariar as expectativas. Só que não. Não existe milagre em tão breve período. Repetirá apenas o que sempre foi, o que costuma ser.

CARPINEJAR


05 DE JANEIRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

Férias cerebrais

A casa guarda ainda algum vestígio das festas de fim de ano, a geladeira está repleta de sobras e, finalmente, muitos de nós estão de férias ou têm o ritmo de trabalho bem diminuído. Este período é morto em termos de produtividade, salvo pela posse de novos governantes. Nada melhor do que aproveitarmos o tempo que (finalmente!) parece ser maior para colocar leituras em dia.

Muita gente prefere passar horas diante de um celular ou outra tela, em redes sociais, jogos eletrônicos, canais de streaming. Outros, que ainda lembram como é o mundo real, fogem para balneários, retiros e acampamentos. Todas as opções para relaxar são válidas, mas ler é ir a qualquer lugar sem precisar sair de onde está. Viajou?

Leia no avião, no ônibus, na cadeira de praia, na rede. Ficou em casa? Livre-se do smartphone por algumas horas e abra um livro. Jogue-se numa poltrona ou na cama e saboreie o mundo contido nas páginas a sua frente. Se o vício em telefones é muito grande, baixe um aplicativo que bloqueie outras atividades, um leitor de PDF ou de formatos de e-book e... voilà! Leia no bendito aparelho que não sai de suas mãos e entorta cada vez mais seu pescoço.

Está desatualizado ou sem prática? Vou recomendar alguns textos que me marcaram neste ano e alguns clássicos para sua quinzena que se abre. Meu sonho é que o bichinho da leitura lhe pegue e que a quinzena se abra para o ano todo de textos e de ideias. Por ora, meu desejo é que suas férias sejam cerebrais. Descansar o corpo exercitando a mente. Desejo dar vigor à massa cinzenta e aumentar nosso repertório cultivando o hábito de crescer pela leitura.

Como este foi um ano de política e de tentativas de imaginar futuros melhores, vou começar com Yuval Harari e suas 21 Lições para o Século 21. Sapiens mergulhou em nosso passado como espécie. Homo Deus, o livro seguinte (já insinuado no final de Sapiens), arriscava previsões de longo prazo para nossa espécie. Agora, o premiado historiador israelense nos provoca, refletindo sobre nossa atualidade e sobre o porvir imediato. Deus, guerras, terrorismo, fake news, imigração, pós-verdade, ignorância e trabalho. Esses são apenas alguns dos temas que o farão pensar antes de fazer votos para o ano novo.

Ainda na mesma toada, Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Um best-seller necessário para os dias atuais. Os autores apresentam os norte-americanos diante da ascensão (para muitos, inexplicável) de Donald Trump, analisam a política antidemocrática desde o nazi-fascismo nos anos 1920 e 1930, passam pelos governos militares na América Latina e chegam ao atualíssimo avanço da extrema direita na Europa. Nesse voo, Levitsky e Ziblatt percebem que as democracias, frágeis e necessárias como sempre, não morrem mais em tomadas de poder, nas mãos de ditadores com porretes nas mãos, mas sim em... eleições. Daí por diante, o que eu disser será spoiler. Corra para ler!

O filósofo germano-coreano Byung-Chul Han lançou os dois livros seguintes há alguns anos. As obras continuam a impressionar pelo exercício que promovem em nosso cérebro e por serem "fininhas": ninguém pode ter preguiça de lê-las! Não há ordem recomendada e ele tem outros livros muito bons, mas comece por A Sociedade do Cansaço e por A Sociedade da Transparência. Este ano conheci pessoalmente e pude dividir o palco com Gilles Lipovetsky, criador do termo hipermodernidade. Seus livros sobre moda são ótimos, entretanto fiquemos com o último traduzido para o português (Da Leveza: Para Uma Civilização do Ligeiro). Aqui, há uma análise precisa da arte, da cidadania (passando pela lógica da Netflix), para pensarmos nosso mundo e seu feitio hiperconsumista.

No campo da ficção, vamos a um clássico: Quarto de Despejo, escrito por Carolina Maria de Jesus, em 1960. A mineira radicada em São Paulo teve pouquíssimo estudo formal, mas manteve um diário descoberto por um jornalista e publicado na sequência. O cotidiano das favelas paulistas pela visão arguta, crítica, dolorosa e angustiante da autora. Tudo de forma objetiva, em linhas retas e linguagem informal. Uma origem similar a Geovani Martins, a grande descoberta do ano para quem gosta de contos. Nascido na periferia do Rio, formado em oficinas literárias, e já traduzido em nove idiomas, o carioca criou o ótimo O Sol na Cabeça, arrebatando vários prêmios literários.

Bráulio Bessa é um jovem e popular poeta cearense, inspirado pelo cordel e Patativa do Assaré. Tem gente que não gosta porque ele é pop. Eu o li justamente porque ele, em um campo quase abandonado da literatura, vende como pão quente e com ingredientes de qualidade. Seus temas são cotidianos e fazem pensar. Para quem não tem o hábito de ler poemas, funciona como porta de entrada.

Ainda difícil de encontrar, pois não foi publicado por grande editora, está a surpresa do prêmio Jabuti deste ano: outro cearense, Mailson Furtado, que escreveu o longo poema À Cidade, em 2015, fazendo também suas ilustrações e diagramação. O Brasil é um país de bravos e escassos leitores e autores.

Por fim, minha homenagem a Zygmunt Bauman, um dos pensadores com quem mais dialoguei nos últimos anos. Leia seu Retrotopia, escrito pouco antes de sua morte em janeiro de 2017. Um exame lúcido da cisão, do vasto oceano que existe entre o poder e a política em nossos tempos líquidos.

Revisitar clássicos (Diário de Anne Frank ou contos de Clarice Lispector) é sempre um prazer infalível. Em época de crise de livrarias, ler é quase um gesto de resistência. Um livro pode ser bem mais barato do que uma camiseta. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL, HISTORIADOR, PROFESSOR DA UNICAMP, AUTOR DE, ENTRE OUTROS, "TODOS CONTRA TODOS: O ÓDIO NOSSO DE CADA DIA".

05 DE JANEIRO DE 2019
COM A PALAVRA


"Astrologia é uma ferramenta que pode ajudar a pessoa a se conhecer melhor"

João Bidu - astrólogo, 71 anos O mais famoso "horoscopista" do Brasil fala sobre seu ofício e, é claro, sobre o que esperar de 2019.

Um dos astrólogos mais conhecidos do Brasil, o paulista João Carlos de Almeida, o João Bidu, habita há décadas os mostruários de produtos nos caixas de supermercados e as bancas com revistas que estampam seu nome e sua foto. Apesar da crise do mercado editorial, a "grife" João Bidu ainda é muito presente, indissociável das publicações populares que oferecem previsões para o amor, o trabalho e a saúde. 

Antes um produto para o público feminino, hoje o horóscopo é buscado também pelos homens, constata o autor. Neste início de 2019, aproveitando o mês que ainda concentra resoluções para o novo ano, ZH conversou com o simpático "horoscopista" - como Bidu era chamado no início da carreira - sobre sua trajetória, a crença de leitores nos desígnios revelados pelos astros e a sua relação pessoal com as mensagens enviadas pelos satélites e planetas.

SUA APROXIMAÇÃO COM A ASTROLOGIA COMEÇOU NO RÁDIO. COMO FOI?

Aos dois anos e meio, tive poliomielite. Não podia brincar com a molecada nas peladas lá na vila onde a gente morava. Embora com limitações, tive uma infância bastante divertida, alegre, caçava passarinho... Hoje nem passa pela nossa cabeça caçar passarinho! Onde já se viu? Brincava com a molecada para lá e para cá, mas na hora de jogar futebol não dava, não tinha condições de correr como eles. Aí resolvi ficar na beira do campo, como se transmitisse o jogo. As pessoas me incentivavam. 

A partir dos 15 anos, comecei a trabalhar em uma rádio em Bauru (SP) fazendo comentários sobre futebol varzeano. A carreira evoluiu, tive a oportunidade de começar a transmitir. Minha paixão sempre foi ser locutor esportivo. Aí fui para a Auriverde, onde estava feliz da vida, era uma rádio de boa audiência, reunia os grande profissionais da área em Bauru. Então o sócio-diretor da emissora resolveu criar o João Bidu, pegando o João do meu nome e o Bidu de uma gíria que já tinha passado, que significava "adivinhão", "claro", "lógico". 

Achei que não daria certo porque não tinha intimidade com astrologia. Ele me tranquilizou dizendo que eu seria apenas o apresentador de um programa astrológico, em que o astro principal era o Omar Cardoso, naquela época o maior astrólogo do Brasil. O João Carlos de Almeida narrava futebol, e o João Bidu falava de astrologia. Eu fazia uma voz um pouco diferente, enganava o povo, né (risos)?

E QUANDO O SENHOR COMEÇOU A FAZER SEU PRÓPRIO HORÓSCOPO?

Me empolguei, fui atrás de livros, peguei os anuários do Omar Cardoso, descobri rapidinho o esquema de casas astrais, os signos que combinam, os signos que não combinam, e, com outros livros, aprimorei meus conhecimentos. Em 1974, o Omar foi contratado pela Rádio Bandeirantes, de São Paulo, que tinha uma rádio em Bauru. Virei o horoscopista. Me deram o nome de Professor João Bidu. João Bidu era um nome muito popularesco e talvez não passasse credibilidade. E assim foi. Deu certo. Fizemos sucesso, a audiência continuou boa também. Com a morte do Omar Cardoso, as emissoras ficaram órfãs de um astrólogo. Naquele tempo, todas as grandes emissoras tinham o horóscopo na parte da manhã. Comecei a fazer programas para várias emissoras do Brasil.

O QUE A ASTROLOGIA PODE PREVER?

É uma ferramenta que sempre pode ajudar a pessoa a se conhecer melhor em termos de personalidade, principalmente quando você levanta o mapa astral, trabalhando com mais elementos, não só o signo solar que todo mundo conhece, mas com o signo ascendente, que está ascendendo no horizonte, no lado em que o sol nasce, e a distribuição dos planetas. Os planetas são muito importantes. 

Às vezes, a pessoa é do signo de Áries, mas tem uma influência grande de planetas no signo do ar, então ela vai ter características arianas, evidentemente, mas vai ter também uma forte influência dos signos do ar, que são Gêmeos, Libra e Aquário, que têm muita criatividade, poder de adaptação, facilidade de relacionamento, inteligência. Mas o público vê a astrologia, no fundo, como um guia para desvendar o futuro, para saber o amanhã. Todos valorizam essa parte da personalidade, que bate mesmo, mas, na verdade, a grande procura é pelo horóscopo, aquilo que pode acontecer amanhã, no ano ou no mês.

CERTAMENTE MUITAS PESSOAS CONDICIONAM SUAS AÇÕES AO QUE LEEM. QUE ALERTA O SENHOR DARIA A ELAS?

Tem gente que precisa daquela mensagem astrológica como se fosse uma muleta, um apoio. Normalmente, quem procura astrologia é a pessoa que está sem amor. Tanto que a astrologia, nas revistas, era um produto muito mais voltado para as meninas que tinham aquele sonho de encontrar o príncipe encantado. A partir do momento em que elas se casavam, deixavam as revistas de horóscopos porque já tinham realizado o sonho. Hoje as coisas mudaram.

COMO SE DEVE LER UM HORÓSCOPO?

O que está ali é uma dica, porque é muito genérico. Quando você está analisando o signo de Áries, e Júpiter está em Sagitário, Júpiter está então na nona casa astral de Áries. Provavelmente, as possibilidades são de que você tenha surpresas ou contatos com pessoas de longe, estrangeiras, assuntos relacionados a importação e exportação, uma influência muito grande da religião em sua vida, senso de justiça ou alguma coisa relacionada ao lado judicial. Evidentemente que isso é muito genérico e não vai acontecer com todo mundo, mas acredito que deve acontecer com muita gente. Falo que "deve" porque nunca fizemos uma pesquisa para saber. Caso contrário, há muito tempo a astrologia já teria sido banida, varrida para baixo do tapete.

ISSO SEMPRE ME INTRIGOU: COMO ACREDITAR QUE SEJA POSSÍVEL QUE UMA MESMA PREVISÃO DE HORÓSCOPO SE APLIQUE À VIDA DE MILHÕES E MILHÕES DE PESSOAS QUE O LEEM NUM MESMO DIA?

Não se aplica. A gente faz uma previsão genérica para todo mundo. Todo mundo lê. Vai acontecer com uns, não vai acontecer com outros. Tem uns que leem com fanatismo, como se fosse religião, tem gente que só dá uma passadinha e não se impressiona muito. Mas não tem como uma previsão que sai no jornal, na revista ou na televisão acontecer para todos. É uma dica, uma mensagem para tentar ajudar. Acredito que, quando consigo dar uma ajudinha para uma pessoa que vai tomar uma decisão, o trabalho já está valendo a pena. Está gratificado.

O SENHOR E EU SOMOS ESCORPIANOS. QUAIS AS CARACTERÍSTICAS DESSE NOSSO SIGNO DE TANTA MÁ FAMA?

Você é minha irmã astral. Realmente, Escorpião tem fama de ser violento, agressivo. É governado por Plutão, mas era governado por Marte. Depois foi descoberto Plutão, e hoje se descobriu que Plutão nem planeta é... Na verdade, Escorpião tem muita coisa de Áries, é realmente uma pessoa agressiva, impetuosa, precipitada, que nem sempre pensa para fazer as coisas, se entusiasma à primeira vista, pela primeira impressão. Mas é também uma pessoa muito emotiva, de coração generoso e que tem uma capacidade de transformar muito grande, de regeneração. Escorpião está ligado à oitava casa astral, aquela que tem relação com reorganização, reciclar, pegar alguma coisa e dar um visual diferente, transformá-la em algo mais atraente e, com isso, fazer sucesso. Me considero uma pessoa muito precipitada.

O SENHOR FAZ PREVISÕES PARA SI MESMO?

Faço. Quando vou realizar algo importante, sempre dou uma olhada, mas nunca deixo de fazer as coisas, mesmo quando a influência está negativa, só que aí tenho que redobrar a atenção. Não gosto de fazer as coisas no meu inferno astral, que são os 30 dias que antecedem o aniversário. Meu aniversário é 8 de novembro, então, de 8 de outubro a 8 de novembro, sempre tento evitar fazer as coisas. Mas ano passado tive um assunto muito importante, não tive como fugir, e graças a Deus deu certo. O inferno astral é um período perigoso, exige atenção especial, a pessoa pode estar desmotivada, um pouco deprimida, mas os 30 dias de inferno astral costumam trazer também surpresas muito positivas.

PELO QUE VEJO, AS PESSOAS ACREDITAM MUITO EM INFERNO ASTRAL, NÉ?

Bastante. Acreditam muito mais no inferno astral do que no paraíso astral. O paraíso astral é o quinto signo contando com o nosso. Por exemplo, para você que é de Escorpião: Escorpião (1), Sagitário (2), Capricórnio (3), Aquário (4), Peixes (5). Peixes é o seu paraíso astral. Teoricamente, há mais alegrias, prazer, vitórias e sorte no paraíso astral. Não sei por quê, mas as coisas ruins acontecem com mais facilidade. Pela minha experiência, já vi que muita coisa que está prevista no inferno astral acontece. E muita coisa que está relacionada ao paraíso astral acaba não acontecendo.

SEU SITE TEU UMA SEÇÃO CHAMADA PERGUNTE AO JOÃO BIDU. QUE TIPOS DE HISTÓRIAS APARECEM ALI?

Comecei a falar de sexo no rádio e lembro bem que tive que parar porque um dia um amigo meu falou: "Pô, João, você me deixou constrangido. Estava levando minha menina para o colégio e você falando de sexo". Pensei, vou tirar essa seção do ar. Eu já tinha virado um conselheiro sentimental, e de repente também me vi na condição de conselheiro sexual. Mas aí o dono da rádio me perguntou por que eu parei de falar de sexo. Expliquei. 

"Não, pelo amor de Deus, João, esse povão não tem informação! Você dava dicas importantes." Aí avisávamos, "daqui a cinco minutos vamos apresentar a seção sobre sexo", e a pessoa que estava ouvindo poderia trocar para não ficar constrangida. No "Pergunte ao João Bidu" aparece tudo o que você imaginar: a mulher que descobriu que o marido era gay, a mulher que gosta de um e está saindo com outro, a mulher que descobriu que o marido tem uma amante mas ela gosta dele e não sabe o que fazer - este caso é até recente.

O QUE O SENHOR RECOMENDOU NESSE ÚLTIMO CASO?

Se o homem teve esse caso foi porque, evidentemente, pintou uma grande atração. Então está faltando alguma coisa na relação dela. Se ela acha que pode recuperar e, principalmente, perdoar, o que é muito difícil, para não viver sempre com aquele fantasma na cabeça, então vale a pena tentar novamente. Na hora de responder, nunca gosto de decidir pela pessoa. Gosto de deixar para que ela tome a decisão. Dou uma opinião. Só que sei que é perigoso. 

Ela vê a minha resposta e, às vezes, quer fazer exatamente do jeito que estou falando, porque acha que eu sei tudo, que estou trabalhando com os astros e sei o que é melhor para ela. Às vezes, ela não consegue separar uma coisa da outra. Trabalho com público de diversas classes sociais, muitas são pessoas com pouquíssima informação.

VOCÊ TAMBÉM ANALISA SONHOS. QUAIS OS MAIS COMUNS?

Sonho com morte, que na verdade não significa a morte física, mas muito mais a ruptura de alguma coisa, de uma amizade, de um pensamento. Sonhar com cobra... A cobra é muito interpretada como traição, mas acho que é uma interpretação errônea dos antigos. A cobra não é um animal traidor, ela só reage quando se sente acuada, assustada. Antigamente, a cobra também era sinal de saúde. Conforme a cor da cobra, tem um significado. Sonho com sangue significa que algo de extraordinário vai acontecer em sua vida, modificando-a para melhor. As pessoas têm muito medo de ver sangue, mas o sangue também é vida. Sonho com traição também tem bastante. 

"Será que ele está me traindo realmente?" Sempre falo que o sonho tem várias funções. Muitas coisas que acontecem nos sonhos refletem nossos medos e nossos desejos. Se a gente tem medo de alguma coisa, é provável que, mais cedo ou mais tarde, acabe sonhando com aquilo. Ao mesmo tempo, quando a gente deseja muito uma coisa e não a consegue na vida real, muitas vezes a gente acaba sonhando com aquilo, realizando a fantasia no sonho. Segundo os estudiosos, isso serve para dar paz para nossa alma, para a gente aguentar as batalhas do dia a dia.

QUAIS AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS ASTROLÓGICAS DE 2019? O QUE SE PODE DIZER DESTE ANO?

É um ano de Marte. Ano de Marte normalmente é um ano de guerra, de competição, de muita luta. Marte é o planeta mais guerreiro, tem força, uma força às vezes até descomunal. As pessoas podem usar muito a força, e nisso daí podem se machucar e se dar mal. Então recomenda-se ter certa prudência, moderação em 2019. Usar a vitalidade, sim, usar a força física e mental, sim, mas com moderação, para não criar problemas em vez de encontrar soluções. Isso serve para todos os signos de modo geral, só que para cada signo depende da casa astral em que Marte está. 

Para você, de Escorpião, Marte representa a sexta casa astral, que tem relação direta com saúde e trabalho. Esses dois setores estarão protegidos e iluminados e podem lhe trazer muitas alegrias, mas vai depender muito da força que você imprimir, da impetuosidade, do jeito que você se dedicar a isso. Até porque tem aquele velho ditado: quem vai com muita sede ao pote acaba se afogando. É um ditado que serve muito para o ano de 2019. Tem que saber usar a força, é uma energia poderosa, mas às vezes ela constrói e às vezes ela destrói.

DO AMOR, PARA O MEU ANO, VOCÊ NÃO FALOU... NÃO ESTÁ EM ALTA, PELO JEITO.

Marte é o planeta do sexo, da paixão, muita paixão, mas que não significa casamento, relação forte e duradoura. Paixões devem explodir muito, não só para você, de Escorpião, mas para todas as pessoas de um modo geral. Marte tem relação direta com a paixão, enquanto Vênus, que é o planeta do amor, fala mais da parceria, de um relacionamento mais sério que pode se transformar em casamento.

TENHO QUE ME CUIDAR, ENTÃO (RISOS).

Sem dúvida alguma, porque pode ir com muita sede ao pote. E, geralmente, no amor, na paixão, quando a gente fecha os olhos e vai com tudo, aí é que a gente leva algumas boladas nas costas. Tomara que não aconteça nem com você, nem comigo (risos).

DEPENDENDO DO QUE ACONTECER, ENTÃO, VOU PEDIR UMA ORIENTAÇÃO PARA O SENHOR: PARA O BRASIL, O QUE SE PODE ANTECIPAR DESTE 2019?

O Brasil é do signo de Virgem (por conta da data de sua Independência, em 7 de setembro), e Virgem não está em um ano astral dos melhores, não. Marte representa a oitava casa astral, que é transformação, regeneração, essa parte é muito boa, oportunidade de transformar muita coisa, mas, ao mesmo tempo, pode haver também de perdas financeiras, principalmente em assuntos ligados a empréstimos, aposentadorias, consórcios, heranças, legados. 

Alguma coisa nesse sentido pode acabar tumultuando a vida do país. Júpiter está transitando em Sagitário, e, sempre que um planeta transita pelo signo que rege, sua influência é muito maior. Júpiter governa a nona casa astral, que é o mundo exterior, o internacional, então é bem provável que o mundo passe a olhar o Brasil de maneira diferente e que o Brasil consiga também atrair muitos investimentos estrangeiros. Isso vai ajudar a economia.

O SENHOR TEM 71 ANOS DE IDADE E 46 DE CARREIRA. GERAÇÕES ACOMPANHARAM O SEU TRABALHO. PENSA EM PARAR?

Não, não penso. Enquanto Deus me der saúde... Tenho 71 anos, mas não lembro que tenho 71 anos (risos). Para mim, é como se eu tivesse 50. Tem certas coisas que, evidentemente, não são a mesma coisa, mas como não lembro que tenho 71 e convivo com muita gente jovem, acho que isso me fortalece, me rejuvenesce para eu continuar trabalhando.

AS PREVISÕES PARA JOÃO BIDU, ENTÃO, SÃO BOAS, FAVORÁVEIS?

São favoráveis. Pelo menos o entusiasmo continua o mesmo de quando comecei.

LARISSA ROSO

05 DE JANEIRO DE 2019
CRISTINA BONORINO

TUDO

Uma teoria de tudo: é o que os físicos buscam para que possamos entender... tudo. Espaço. Tempo. Universo. É difícil conciliar tudo dentro de equações matemáticas. E olha que várias mentes brilhantes vêm tentando há tempos. A gravidade é uma força que descreve a interação de objetos em grande escala, como planetas orbitando ao redor do sol, ou a razão pela qual um golfinho que pula fora da água cai de volta. 

Einstein explicou matematicamente a gravidade como curvas na geometria do espaço-tempo. Mas como ela funciona em nível de partículas é mais complicado de entender, porque outras forças são mais potentes, como as interações eletromagnéticas descritas pela mecânica quântica que regem por exemplo as interações entre as partículas nucleares. Essas são mais fáceis de estudar, pois podemos medir e prever matematicamente a ação das partículas dessa força: os quanta. 

Mas partículas de gravidade, o que seriam os grávitons, ainda não foram identificados. As ondas de gravidade foram detectadas este ano, e todos já ouviram falar sobre a dualidade de ondas e partículas, então talvez estejamos próximos de identificar os grávitons. Por que isso é importante? Conciliar os princípios da gravidade e da mecânica quântica em uma equação será um salto gigante para a humanidade. Poderemos testar experimentalmente previsões sobre... tudo.

E não me diga que isso não é importante, que ciência não é espiritual, que o universo é regido por uma divindade e não devemos nos preocupar com isso. Você provavelmente está usando a internet agora, e sem antibióticos provavelmente não estaria vivo hoje, portanto, por favor. E esta é, na verdade, uma busca muito espiritual. No sentido original da palavra, relativo ao ar que respiramos, e, portanto, fundamental para a vida, e também no sentido de algo desapegado do material. Para nós, cientistas, a maior aspiração é compreender o universo. 

Discutimos apaixonadamente sobre quem tem a melhor fórmula, ou a melhor interpretação, ou faz o experimento mais elegante. Se física importa mais do que biologia, se matemática é a ciência maior. Mas todos paramos para admirar colegas que conseguem dar saltos nessa compreensão. Nos rendemos ao reconhecer quem torna o universo mais familiar - sempre com um restinho saudável de dúvida e questionamento, mas nos rendemos. 

Normalmente, a ciência inspira tecnologias, mas o reverso vem ocorrendo. Hologramas têm sido usados para estudar a gravidade quântica. A dualidade de um holograma, que codifica informações em 2D para que possamos perceber imagens em 3D, tem ajudado a modelar em pequena escala como funciona a gravidade em partículas, borrando as famosas fronteiras entre ciência básica e aplicada.

Então, não é ambicioso querer uma teoria de tudo, mas necessário. Assim, aqui vai meu desejo para 2019 - e para o futuro. Que todos tenhamos opiniões apaixonadas sobre questões diversas e possamos discuti-las. E que saibamos nos render frente à grandeza de certos assuntos, sobre o que é realmente melhor para todos, e não apenas para alguns. Que usemos esse cérebro conquistado com tanto custo durante a evolução. Para... tudo.

CRISTINA BONORINO


05 DE JANEIRO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

NOVOS TEMPOS

A pátria do zodíaco, do sistema duodecimal, da astronomia e de nosso sistema de calendário é a Mesopotâmia antiga, dos sumérios (III milênio a.C.), que fundaram tradições, dos babilônios (II milênio a.C.), que as levaram ao apogeu, e destes aos assírios (I milênio a.C.), que consolidaram e difundiram a uma tradição enciclopédica. 

Este legado chegou a nós através dos gregos, que aprenderam com os assírios, em um tempo, por volta dos séculos VII e VI a.C., em que a filosofia bebia em fontes orientais. O teu relógio de pulso (se ainda tiveres...) é testemunho deste legado, na ordem do tempo, nos números e no triunfo de um pensamento sistemático, que nos trouxe aos conceitos e às tecnologias modernas.

A principal festa dos mesopotâmicos antigos era o rito do a-ki-tu (ou a-ki-til, como o chamava Mircea Eliade), grande celebração da passagem do ano, no apogeu da colheita da cevada e junto ao equinócio primaveril. Era a festa de renovação cósmica, cujo clímax era a celebração das bodas entre o rei e a grande sacerdotisa, a famosa hierogamia (matrimônio sagrado), realizada publicamente no topo de um zigurate. 

Da força daqueles ritos, reforçada por muitas tradições culturais de renovação cíclica, provêm os afetos e costumes que nos fazem acreditar que o ano renovou-se, que há uma passagem e que são novos tempos, que podemos virar página, sepultar erros e desencantos, e entrar no ano novo de alma cândida, cheios de esperança e otimismo. As cigarras e os sabiás nada sabem disso, e os cães só o notam porque os atormentamos com foguetes inconvenientes. Todavia, é boa esta sensação de renovação, champagne entre amigos, bons votos, a força da esperança restaurada. Feliz Ano-Novo, caro(a) leitor(a)!

Quem mais festejava esta data era o rei, e, junto com ele, o corpo sacerdotal, em festa, poder renovado. Para os antigos, a bonança era justificada pela fecundidade proveniente destes ritos e da potência dos soberanos. Imperadores junto a cornucópias e governantes iniciando colheita ilustram moedas e propagandas, de Roma à marquetagem atual. Por um singular infortúnio, nós, brasileiros, realizamos a posse de novo(a) presidente eleito(a), a cada quatro anos, no dia primeiro do ano, misturada às festas em que brindamos com esperança. São novos tempos?

Não estamos à sombra de um zigurate. Separemos memória, religião e história atual. Temos pela frente tempos muito difíceis, de terríveis ameaças à democracia, no Brasil e no mundo, de irracionalidades que prosperam com a potência de parafernálias digitais dolosíssimas, de forças obscuras que experimentam momentâneo triunfo, e avançam vorazmente contra o legado humanístico, iluminista e democrático. 

Os novos tempos conclamam em nós a força de muitas primaveras, o amor e a abnegação de muitas campanhas em que não há lugar para descanso ou alienação. Já aprendemos que a democracia não funciona no modo automático, e sim por esforço coletivo, mobilizações de mães e pais, discentes e docentes, cidadãos conscientes - todos com energias renovadas e de mãos dadas para os novos tempos.

FRANCISCO MARSHALL


05 DE JANEIRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

CHARLATÃES

Todo charlatão que se preza alega receber eflúvios energéticos do além túmulo. Em busca de alívio para os mais variados males, os crédulos vão até ele.

Basta correr o primeiro boato de que o parente do filho do amigo de algum vizinho sarou ao receber um passe para que a fama do charlatão se espalhe. Em pouco tempo, começam as romarias em sua porta.

Se o espertalhão aprendeu certos truques há mais de um século desmascarados pelos mágicos, como enfiar tesouras em narizes, raspar córneas e fazer cortes superficiais através dos quais retiram falsos tumores sem que os incautos sintam dor ou se deem conta da prestidigitação, os testemunhos de poderes extrassensoriais correm o mundo. A credulidade humana não tem nacionalidade nem respeita fronteiras.

Ele se alimenta da insegurança do outro. Apregoa o dom de incorporar "entidades" que mobilizam energias transcendentais, capazes de restabelecer a ordem nas células do organismo enfermo. Ninguém questiona a natureza dessa energia: cinética, térmica, potencial, atômica? Ninguém estranha por que ela não faz um tapete voar nem ferver a água de um copo.

O prestígio do charlatão é potencializado pelas personagens públicas que consegue atrair. Cada médico, juiz, presidente da República, intelectual ou artista de renome que procura seus serviços atrai publicidade e lhe confere atestado de idoneidade espiritual.

As motivações que levam gente esclarecida a ir atrás do sobrenatural são as mesmas que mobilizam a pessoa mais simplória. Credulidade é condição contagiosa, não respeita escolaridade, posição social, cultura ou talento artístico.

Trato de doentes com câncer há 50 anos. Assisti ao desapontamento de inúmeras famílias que viajaram centenas de quilômetros com seus entes queridos - muitas vezes debilitados - atrás da promessa de curas mágicas que jamais se concretizaram. A vítima se aproxima do charlatão na esperança de um milagre. Poucos se conformam com a finitude da existência e aceitam as restrições impostas pelas leis da natureza: milagres não existem, são criações do imaginário humano.

Se existissem, em meio século de atividade profissional intensa com pacientes graves, eu teria visto pelo menos um, ainda que fosse uma redução ínfima nas dimensões de uma metástase. Cem por cento das chamadas curas espirituais que tive a oportunidade de avaliar não resistiram à análise racional mais elementar.

Como nem sempre estão bem definidos os limites de separação entre superstições, crendices e religião, quem ousa denunciar as artimanhas do charlatão é tido como contestador da religiosidade alheia e enfrenta a ira popular. Duvidar da eficácia de suas ações é afrontar a palavra do "enviado de Deus" e as convicções dos fiéis. Tentar convencê-los de que são ludibriados por um malandro que lhes incute esperanças vãs é considerado sacrilégio.

Veja o caso deste cidadão autodenominado João de Deus. Durante décadas iludiu, trapaceou e cortou pessoas com instrumentos inadequados sem o menor cuidado com a esterilização.

Para retirar um ponto cirúrgico de um paciente em meu consultório, preciso de autorização explícita da Anvisa, sem a qual posso ser multado pela fiscalização caso guarde no armário uma pinça e uma tesoura cirúrgica. Tanto rigor com os médicos e permissividade covarde e conivente com esses incorporadores de espíritos.

A menos que tenha mediunidade suficiente para imobilizar vírus e bactérias, quantas infecções locais e transmissões de hepatite B e C, HIV e outras doenças esse curandeiro provocou impunemente?

Agora, a sociedade fica chocada ao saber que ele abusou de centenas de mulheres indefesas. Sinceramente, só me surpreendi com o número: esperar comportamento ético de alguém que ficou milionário explorando a boa fé de milhões de pessoas doentes é ingenuidade pueril.

Veja você, caríssima leitora, a situação humilhante da mulher no Brasil: no decorrer de 40 anos, um homem branco e poderoso se aproveita sexualmente de mulheres em situação de vulnerabilidade, sob o olhar complacente de auxiliares que com ele convivem, sem ser denunciado à polícia. Não fossem os depoimentos apresentados no programa do Pedro Bial, quantas ainda seriam estupradas?

Que sensação de impotência, fragilidade, solidão e vergonha tantas mulheres viveram sem ter como reagir, com medo da opinião pública, acuadas pela influência religiosa e social de um criminoso desprezível.

DRAUZIO VARELLA

05 DE JANEIRO DE 2019
PAULO GLEICH

DEVOTOS DA MADRUGADA

Desde que me alcança a memória, sempre fui um ser notívago. Quando criança, isso era um problema, pois o horário de sono estabelecido pelos pais (para que eles tivessem seu descanso) era muito mais cedo do que a hora em que meu corpo estava pronto para apagar. As luzes tinham que estar desligadas, e o quarto, em absoluto silêncio.

Como não havia na época as geringonças que hoje nos tiram o sono, como smartphones e tablets, tinha poucos recursos à minha disposição para enfrentar as horas que separavam o toque de recolher do momento de adormecer. Restava-me fantasiar, enxergando formas e vultos na penumbra do quarto, imaginando outras vidas, fazendo planos para futuros próximos e longínquos.

Quando ganhei de minha avó uma pequena lanterninha portátil a pilha, esta passou a ser minha companheira nas noites. Na clandestinidade, sob o cobertor, me entregava à leitura até ser finalmente chamado por Morfeu. Usava as pilhas, que comprava com minha minguada mesada, até seu último suspiro, quando o fraco lume amarelo finalmente expirava, me deixando novamente apenas com as luzes da imaginação.

Já adolescente, proprietário orgulhoso de um walkman, fui avançando madrugada adentro, seguindo atento a programação do rádio, companheiro dos insones e solitários. À espera do sono, ampliava meu repertório musical e informativo e, quando havia abundância de pilhas, acompanhado também da leitura à luz da lanterninha. Acho que nunca fui flagrado em minha transgressão noturna, talvez contasse com a silenciosa complacência dos pais.

Jovem adulto, tomei posse da madrugada de vez: não havia mais horários controlados, gozava a noite como em uma desforra daqueles tempos de clandestinidade. Além da música e da leitura, passou a ser minha companheira a internet, na época discada, que ficava acessível após a meia-noite, quando se pagava um pulso por ligação. O nascer do sol era o toque de recolher e a manhã, o tempo de dormir.

Hoje, já não disponho mais das madrugadas como antes: os compromissos começam mais cedo, e o corpo, já menos flexível, se ressente da inversão de horários por muito tempo. Nos períodos de recesso e de férias, por alguns dias, volto ao meu hábitat natural: quando me dou conta, já é alta madrugada. Na volta às atividades, mesmo não tendo saído de Porto Alegre, há sempre algumas horas de jet lag a corrigir para retornar ao fuso normal.

Gosto da solidão e do silêncio, por isso a madrugada é uma companheira tão aprazível. Na cidade, somente a quietude da madrugada faz parar por algumas horas o constante ruído de fundo do qual já nem nos apercebemos. Diminuídos os estímulos externos, é momento propício para exercer a solidão criativa, seja ela a leitura, a escrita ou apenas devaneios. É também na madrugada que os insones se confrontam com sua escuridão, ofuscada pela luz do dia, que ali acaba exigindo passagem.

Confesso uma inveja ocasional dos diurnos, com sua inexplicável disposição matinal; porém reconheço minha impotência ante o chamado da madrugada. Sei que somos muitos os seus devotos, entre amantes do silêncio e angustiados solitários, e cabe-nos aceitar, resignados, o tributo que ela nos exige. Aos companheiros de madrugada, minha solidariedade e meus votos de que saibam aproveitar essas horas, que têm a vantagem de durar mais do que as do dia. Aos diurnos, fiquem tranquilos: nos ocupamos das sombras da madrugada enquanto vocês descansam.

paulogleich@yahoo.com - PAULO GLEICH

05 DE JANEIRO DE 2019
J.J.CAMARGO

A DIFERENÇA ENTRE INTENÇÃO E GESTO

Tem gente que acha o máximo dizer que pertence a um movimento social, como se o escudo escolhesse o soldado. E se for para defender uma minoria, melhor ainda, e se essa minoria morar em outro continente, nossa! Aí, então, não tem limites para a grandeza da alma dessa geração de generosos afeitos às causas tão abrangentes que se dispersam, sem individualizar o alvo.

Esses vocacionados para a generosidade indefinida nunca provaram o encanto da gratidão que, como se sabe, não se encerra no discurso, vai além, precisa do nome do ajudado, porque, diferentemente do mal, que se espalha a mancheias, o bem tem dedos finos. Depois de décadas de interação com pessoas tão pobres que carregam, nos olhos lassos, a tristeza de quem só finge que acredita, perdi definitivamente a paciência com a benemerência fajuta dos oportunistas, líderes de todos os protestos, mas alérgicos de morte a qualquer voluntariado. Uns tipos que defendem o sacerdócio na profissão dos outros, mas desligam a campainha nesta época em que os pedintes se multiplicam na fila dos famintos.

Outros, menos dispostos ao convívio com seres humanos miseráveis, malcheirosos muitos, carentes todos, dedicam-se com devoção a salvar a natureza e se dizem revigorados com a incomparável energia que recebem ao enlaçar uma árvore, sem nunca terem provado a intensidade carente do abraço de uma criança abandonada. Entre os indiferentes e os virtuosos, circulam, com ar desentendido, os fanfarrões, que só doam presentes de Natal para o orfanato se puderem colocar o logotipo da empresa na cesta. Azar deles que as crianças nem sabem ler e só estão interessadas no tamanho da barra de chocolate.

Valter não é o seu nome, mas foi o que ele escolheu para seguir como impõe: um anônimo. Pois esse Valter, descrente de milagres, só acredita em trabalho e, tendo ficado rico, quer ajudar, mas sempre com duas exigências: não revelar nem quanto nem quem doou. Depois, ele volta para ver o resultado, alisa a parede nova e mal contém a emoção ao admitir que "ficou bem bonito" e vai embora, fugindo da possibilidade que apareça alguém com um discurso de agradecimento. Ele gosta do velho pátio central da Santa Casa, com seus arcos famosos e suas árvores centenárias.

Despedimo-nos lá, na semana passada, com um abraço demorado, e ele seguiu, passo mais lento, pela avenida. Um dia desses ainda vou abraçar a velha castanheira que nos dá sombra em todos os encontros, sem pedir nada em troca. Não quero que ela se sinta excluída nem que me veja como um mal-agradecido.

J.J.CAMARGO

05 DE JANEIRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O ano pode mesmo ser novo

Meu avô, o velho sapateiro Walter, sempre dizia, quando escorriam os primeiros dias do ano:

- Não te ilude, David. A primeira semana de um ano novo não é diferente da última de um ano velho. Não é o dia que nos muda, nós é que mudamos o dia.

Meu avô era sábio, mas, nisso, concordava com ele apenas em parte. Foram os homens que colocaram o nome do dia de dia e o nome do ano de ano, mas ambos, dia e ano, são mais do que convenções humanas: são manifestações da natureza.

O dia se completa quando a Terra dá uma volta inteira em torno de si mesma, o ano se completa quando a Terra dá uma volta inteira em torno do sol. Oficialmente, sabemos desses movimentos desde Copérnico, há quase 500 anos, mas, na prática, os conhecíamos desde sempre.

Qualquer neandertal bruto podia observar que não há grandes variações no desenvolvimento do dia ou do ano. Em um lugar de clima clássico, como o nordeste dos Estados Unidos, os dias mais frios são cerca de 90 e os mais quentes outros 90. Entre eles, há mais ou menos 90 em que tudo floresce e se reanima e mais ou menos 90 em que as árvores perdem as folhas e se preparam para um novo frio que aí vem.

De verão a verão, o ciclo do ano é uma obviedade. Como é o ciclo do dia, de sol a sol.

Já disse que aqui, na Nova Inglaterra, as estações parecem seguir um roteiro ortodoxo. No verão, Boston é uma cidade brasileira: é verde das copas bojudas das árvores e amarela do sol. Então, chega a maturidade do outono e as folhas primeiro se pintam de vermelho, roxo, laranja e lilás e depois são sopradas pelo vento e montam tapetes coloridos no chão das ruas. É o que eles chamam de "foliage", e é lindo. Quando tudo enfim fica cinza, é hora do duro inverno que ruge, e a cidade se torna branca de neve. Passadas muitas semanas de dias curtos e gelados, a primavera fresteia. Os bostonianos repetem um lema: "The april showers bring the may flowers". Ou, em português e sem rima: as chuvas de abril trazem as flores de maio. E, de fato, as flores desabrocham em toda parte e o clima se faz ameno e toda gente sorri.

Como não compreender que há nessa rotina um ciclo fechado e que o ciclo, depois de se fechar, reabre novamente, sempre e sempre? Não é uma metáfora do renascimento; é o renascimento na prática.

Lavoisier disse que, na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. E é assim que é. Uma morte não é uma morte, é uma mudança de condição. Eu e você estamos mudando todos os dias, o dia inteiro, sem parar, envelhecendo, decerto, mas talvez também melhorando.

Heráclito ensinou que um homem nunca entra duas vezes no mesmo rio, porque, quando entrar novamente, ele e o rio serão outros. É assim que é. Pois tudo flui, meu amigo, a vida flui como a água do rio de Heráclito: corre para o mar, evapora com o calor, eleva-se às nuvens, cai outra vez no rio e, levada pelo rio, alimenta o mar.

Meu avô estava errado quando dizia que o ano novo é só um símbolo. É mais do que isso: é um ciclo que recomeça. É mais uma chance que temos. Exatamente por essa razão, ele estava certo quanto a nós e o que devemos fazer. Porque não é o dia que nos muda: nós é que mudamos o dia.

DAVID COIMBRA


05 DE JANEIRO DE 2019
MÁRIO CORSO


Milagres

Em sua coluna no caderno Vida desta edição, o doutor Dráuzio Varella afirma que em suas várias e densas décadas de clínica nunca viu um milagre. Correto. Mas como nos situamos frente a quem diz que experimentou um milagre?

Conto um caso de muitos anos atrás, que creio possa ser padrão de tantos. Não fui testemunha direta, sei por terceiro. Uma senhora, na casa dos seus 60 anos, recebe um diagnóstico de câncer. O mesmo que já vitimou sua irmã e outros parentes. O peso genético da doença, neste caso, se confirma.

Com esse diagnóstico, faz um tratamento longo e penoso. Consegue um êxito inicial, mas tem uma recidiva. Insiste nos conselhos médicos e obtém uma segunda vitória, dessa vez duradoura. Mas, entre as terapêuticas, foi visitar João de Deus. Volta encantada e diz a todos que a cura veio dele. O que pensar disso?

Não preciso lhes dizer que, entre os deuses em questão, acredito que a cura veio da equipe do hospital Mãe de Deus. Mas, como psicanalista, acreditaria nessa senhora, pois sempre existe uma verdade dentro de um engano. Minha questão seria mais saber por que ela desenvolveu esse mito sobre sua cura e menos culpá-la por ser ingrata com quem lhe devolveu a saúde. O palpite sobre o desfecho vem do meu informante e eu assinaria embaixo.

Quando caímos doentes de uma forma grave, temos uma queda não menos espetacular na condição psíquica. Surgem quadros que genericamente ficam classificados como depressões, e são, mas com marcas particulares. A ameaça de morte, a impotência em relação à doença, o corpo decaído e dolorido, a vida muito limitada, arrasam qualquer um. A urgência pede que se repense a vida e abre-se, involuntariamente, um momento de reflexão.

A senhora em questão deve ter feito um mergulho em si mesma e recuperou sua vontade de viver depois de ter passado em Abadiânia. Possivelmente se reconectou com suas raízes religiosas perdidas. Portanto, a experiência espiritual lhe curou "também". A questão é que ela sobrepõe uma cura à outra. Vale lembrar que sem a primeira cura não haveria a segunda.

Mas voltando ao milagre, que não é milagre, mas contado como tal. A experiência da doença nos deixa numa passividade absoluta, a fé instala-se como a parte ativa possível. É como se a pessoa dissesse: graças à força da fé, consegui me tirar do buraco, fiz a minha parte. Deus voltou a sorrir para mim.

Voltar das trevas da depressão, da desesperança completa, parece um milagre para quem passou por isso. É como um renascimento, cria-se um gosto pela vida, que se apresenta como nunca antes experimentado. Afinal, se forças ocultas nos destinaram a tanta dor, por que não poderíamos torcê-las ao nosso favor?

Ora, a gratidão que essas pessoas sentem é na verdade pela magia de ter voltado a desejar, pela esperança. A questão é que nem sempre agradecemos da forma correta.

MÁRIO CORSO


05 DE JANEIRO DE 2019

ARTIGO

O LADO ESCURO

A nave-robô da China que, pela primeira vez na História, pousou agora no desconhecido lado escuro da Lua para descobrir o futuro, me leva aos 20 anos de idade, quando lá passei 32 dias. Na China, obviamente, não na inabitável Lua…

Convidado pela Federação Panchinesa de Estudantes para as festas dos cinco anos da revolução comunista de Mao Tsé-tung, conheci o que fora extirpar a corrupção, vencer a fome e superar a pobreza pela contração ao trabalho e à pesquisa. Visitei escolas e universidades, fábricas, lavouras e granjas, desertos e terras férteis.

Comparadas a São Paulo, Rio, Porto Alegre ou meu Lajeado natal, as cidades chinesas eram "pobres". Sem carros, a rua era das bicicletas. Nas lojas, o ábaco manual substituía as caixas registradoras elétricas. Homens e mulheres vestiam-se iguais, calça e blusa de brim azul. Nas zonas áridas, filas quilométricas de homens passavam de mão em mão regadores de jardim para irrigar cultivos. Sem tecnologia, sobrava mão de obra. Com 600 milhões de habitantes, a China já era o país mais populoso da Terra.

O "modelo" do "socialismo a construir" era, então, a União Soviética, mas na China ouvi pela primeira vez a expressão "desenvolvimento autônomo". A política das "cem flores se abrindo", de Mao, buscava caminhos próprios. Anos depois, a ruptura ideológica com os russos abre a rota que desemboca nas reformas de Deng Xiaoping que levam à China do século 21.

- Se terminar com os ratos, não importa o miar nem a cor do gato! - dizia ele.

Encontrar "os gatos", porém, foi obra do perseverante trabalho solidário e da constante pesquisa profunda, não da folgança, menos ainda do preconceito. Assim, a desconhecida face escura da Lua (onde nem os EUA e a Rússia ousaram chegar) se abre hoje para um futuro que começou no recente passado.

Aqui, às avessas do novo século, o novo Brasil oficial faz do preconceito a nova meta. Olhar o futuro pelo espelho retrovisor não leva sequer a conhecer o passado para saber se devemos segui-lo ou evitá-lo. Conduz apenas a uma fantasia viciosa e estéril, que nada constrói.

Inventar situações que nunca existiram (como "libertar o Brasil do socialismo" ou "extirpar o marxismo das escolas") é fantasia infantil que, nos adultos, vira morbidez. E, nos governantes, faz do concreto uma perigosa fantasia.

Após os vendavais Lula, Dilma e Temer, o presidente Bolsonaro já tem à frente duros caminhos concretos. Inventar bodes expiatórios leva o país perigosamente ao abismal "mundo da lua", sem jamais chegar ao lado escuro, como os chineses.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES


05 DE JANEIRO DE 2019
INDICADORES

Viver muito, morrer rápido

Meu amigo uruguaio Benito Berretta diz que quer "viver muito e morrer rápido". Como não dá para controlar quando e como vamos morrer, ele tem uma "fórmula": sun, sleep, seeds, social, stress, soul. Aproveitar o sol, dormir bem, boa alimentação, cuidar da família e dos amigos, estar em paz com a alma e pouco fugir do estresse. Mas como chegar a isso, incluindo prosperidade e constante aprendizado? Difícil, mas uma bela meta a ser buscada.

Vejo cada vez mais pessoas insatisfeitas com seu modo de vida, correria, insegurança, falta de cortesia, gente que só pensa em si, doenças "modernas" aumentando. Na vida pessoal e corporativa, onde há disputa por cargos, falta de transparência e lealdade, tornam o trabalho pouco saudável. Por causa disso, muitos abandonam empresas e carreiras "promissoras", trocando por ambientes mais prazerosos e com propósitos que tragam benefícios para a sociedade. Mesmo que isso signifique menos (dinheiro). Esses são sintomas de uma sociedade que precisa encontrar internamente um equilíbrio que não está fora do indivíduo. O desafio é promover o equilíbrio pessoal em ambientes desequilibrados. E contagiá-los.

Viver bem depende de uma construção social com o outro, queiramos ou não. Mais a sustentação de nossos valores e princípios, sentimentos e ações. Dependemos de cada um de nós, da nossa disciplina diária de cada um em sustentar seus valores e princípios, sentimentos e ações para que o mundo que nos cerca seja prazeroso e próspero na medida do que construímos. Se usarmos energia efetiva, demonstrarmos nossa vulnerabilidade, reconhecendo estes pontos de forma sincera, poderemos avançar.

Não deixemos de ensinar nossos filhos o quanto é bom e belo viver, através de falas e ações em momentos exigentes, que saibamos criar pessoas fortes emocionalmente dentro de nossas casas, para que possamos esperar que elas encontrem outras pessoas com a mesma qualidade no mundo.

"Construir nossas agendas, incluindo quem mais gostamos, é a forma mais eficaz para que o amanhã seja mais próximo daquilo que um dia sonhamos viver", diz outro amigo, Rodrigo Bergami, que completa: "Construa em seu interior as forças necessárias para sustentar a convivência com os filhos, amizades, momentos de lazer, conversas sinceras e com propósito. Com isso, poderemos chegar ao dia em que podemos tranquilamente morrer".

Alfredo Fedrizzi escreve aos fins de semana, a cada 15 dias. 

ALFREDO FEDRIZZI

05 DE JANEIRO DE 2019
RBS BRASÍLIA

UMA GUERRA DE CADA VEZ


A cartilha da política em Brasília ensina que um novo governo, se quiser ter sucesso no Congresso, deve enfrentar uma guerra de cada vez. Isso quer dizer que o presidente Jair Bolsonaro terá de escolher entre a batalha da reforma da Previdência e a cruzada contra a Justiça do Trabalho, ou qualquer flexibilização dos direitos trabalhistas que dependa de votação no parlamento.

Essa segunda alternativa é bem mais difícil do que parece, porque pode ser considerada uma interferência em outro poder, além de depender de mudança na Constituição. Pura perda de energia. Na prática, o problema da geração de emprego está na necessidade de crescimento do país. E é aí que entram as mudanças no sistema previdenciário. Os primeiros dias da administração Bolsonaro foram muito bem recebidos pelo mercado e o desafio é garantir que o otimismo continue em alta. Para isso, o presidente precisa manter e afinar o discurso.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, já afirmou que a prioridade é a Previdência. Sem firulas ou devaneios, ele apresentou um roteiro claro de seus planos no comando da equipe econômica. Para isso, no entanto, precisa trabalhar para construir consensos, começando pelo próprio governo. Bolsonaro acerta ao defender a idade mínima e, como ex-parlamentar, alerta para a necessidade de um texto que possa ser bem recebido por deputados e senadores. Mas a proposta de 57 anos para mulheres e 62 anos para homens, com transição até 2022, é considerada light, se comparada à mudança originalmente encaminhada pelo governo Temer. Guedes ainda vai apresentar um projeto detalhado e, se depender dos técnicos, serão mudanças bem mais radicais.

O balanço da semana mostrou que é preciso maior sintonia entre o Palácio do Planalto e a turma da política econômica. O descompasso ficou claro com o equívoco de Bolsonaro, que se precipitou e chegou a anunciar medidas que não vão acontecer: aumento de IOF e revisão da tabela do Imposto de Renda. Para o imposto, que cobriria o aumento de gastos com incentivo às regiões Norte e Nordeste, foi encontrada outra solução e o necessário ajuste das alíquotas do IR só vai ocorrer depois que o país colocar as contas em dia. E não é segredo que o equilíbrio fiscal depende diretamente da reforma da Previdência. Isso quer dizer: uma guerra de cada vez.

CAROLINA BAHIA

05 DE JANEIRO DE 2019
INFORME ESPECIAL

O GATO QUE QUASE MORREU DE CALOR NA FREEWAY


Os termômetros marcavam 38ºC, com sensação de 46ºC. No porta-malas de um Nissan prata, um gato de pelo liso e preto agonizava, sem seus donos desconfiarem. A família - pai, mãe e dois filhos - vinha do Litoral em direção a Porto Alegre. Decidiram acomodar a caixa azul com o bichano na parte de trás do carro, sem se dar conta de que o ar-condicionado não chegava até lá.

Quando pararam para o almoço na Casa da Colônia, em Santo Antônio da Patrulha, o animal revirava os olhos azuis, já quase inconsciente. A veterinária Aline Montipo do Nascimento, ouvida depois pelo Informe Especial, explica que a temperatura corporal dos gatos gira ao redor dos 39 graus e que o calor excessivo pode levar à hipertermia, com consequências graves.

No caso do gato que viajava no porta-malas do Nissan, a morte foi evitada por detalhe. Quando os donos se deram conta do que estava acontecendo, entraram correndo no restaurante, abriram a caixa e começaram, com a ajuda de funcionários, a despejar garrafas de água mineral sobre o animal, fazendo assim baixar a temperatura do seu corpo. "Isso deve ser feito gradualmente, para evitar um choque térmico", recomenda Aline .

A água gelada formou uma espécie de piscina na parte inferior da caixa azul, cobrindo as patinhas do animal. Depois de alguns minutos, ele foi recuperando os sentidos, para alívio de todos. "Eu nunca tinha visto algo parecido", disse um dos filhos do dono do restaurante.

A veterinária, feliz com o final feliz, recomenda que, nos meses de verão, os animais sejam sempre transportados com todos os cuidados e obedecendo as leis de trânsito, em locais arejados. Passado o susto, a família pegou a estrada, com o gato aliviado, curtindo o ar-condicionado no trecho final da viagem.

TULIO MILMAN