sábado, 9 de fevereiro de 2019


09 DE FEVEREIRO DE 2019
POLÍTICA

UM OUTRO GOVERNO DENTRO DO GOVERNO

MILITARES OCUPAM CERCA DE CEM cargos na gestão federal, metade em posições estratégicas
Cerca de uma centena de pessoas com origem nas Forças Armadas ocupam postos em ministérios e estatais na gestão de Jair Bolsonaro. O número foi apontado por fontes de Palácio do Planalto consultadas por ZH. Desse total, 46 militares estão em posições estratégicas no organograma, com a palavra final sobre políticas decisivas, como extração de minérios, modernização de comunicações, construção de estradas, manutenção de hidrelétricas e questões indígenas.

Também atuam em gerências na Petrobras, Eletrobras e Zona Franca de Manaus, gestão de recursos hospitalares, segurança pública e agências de monitoramento e contraespionagem. A maioria está na reserva e foi nomeada como cargo de confiança (CC). Os da ativa ganharam função gratificada (FG). Para especialistas, na prática é um governo militar ungido pelo voto popular. A maioria desses ex-fardados desconfia de políticos e, mesmo sem verbalizar, considera-se reserva moral da nação.

O Exército concentra o maior número de quadros de primeiro, segundo e terceiro escalões. São pelo menos 32. Desses, 18 são generais e 11, coronéis, todos chamados oficiais-superiores. Mas não só o alto escalão das Forças Armadas foi prestigiado. Um tenente- coronel da reserva virou ministro (o astronauta Marcos Pontes, da Aeronáutica, que chefia a pasta da Ciência e Tecnologia) e dois capitães reservistas adquiriram status de ministro (Wagner Rosário, da Controladoria-Geral da União, e Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura).

A rigidez castrense não foi transportada de forma automática para o governo. Em algumas pastas, o ministro não é o mais graduado na hierarquia militar. É o que ocorre, por exemplo, na Infraestrutura. O ministro é capitão e estão sob as ordens dele dois generais: Jamil Megid Junior, secretário nacional de Transporte Terrestre e Aquaviário, e Antônio Leite dos Santos Filho, diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), além de um coronel, André Kuhn, diretor- executivo do Dnit. Em outras estatais, como nos Correios, a hierarquia foi respeitada. O presidente, Juarez Aparecido de Paula Cunha, é um general, que tem como principal assessor um coronel.

Existem pastas com status ministerial em que é usual o alto número de militares, como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que faz a segurança do presidente e controla a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Mas chama a atenção que, mesmo em ministérios não liderados pela caserna, exista maior número de militares em postos de comando do que de civis. É o caso da Secretaria-Geral da Presidência, chefiada pelo advogado Gustavo Bebianno, que está cercado por cinco generais.

CONTROLE DA MÁQUINA PÚBLICA, DIZ ESPECIALISTA

Três militares de alta patente estão na cúpula da Caixa. E a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), ligada ao Ministério da Justiça, é ocupada por outros quatro. O ministério tem também um militar da Aeronáutica como assessor técnico do ministro Sergio Moro. Todas as decisões da Senasp, que influenciam no planejamento das polícias federais e estaduais, passam por militares. São do Exército os coordenadores de Licitações, de Estratégia e de Políticas.

Funções estratégicas do governo estão nas mãos de pessoal dos quartéis, analisa Nelson Düring, editor do site DefesaNet.com, especializado em assuntos militares. Em alguns casos, há interesse em coibir a corrupção, como em Itaipu Binacional e Petrobras.

- É uma tentativa de colocar ordem no governo, monitorar compras e despesas, hierarquizar procedimentos. Por isso, mesmo quando o ministro é civil, está acompanhado de militares. Mas não só isso. Há preocupação em controlar a máquina pública, que historicamente está em poder de corporações funcionais. Ainda no governo Michel Temer, os militares perceberam o quanto isso é real e começaram a se articular - acrescenta Düring.

Quem são e onde estão

1º escalão

-Presidente: capitão do Exército Jair Bolsonaro

-Vice-presidente: general do Exército Hamilton Mourão

-Ministro do Gabinete de Segurança Institucional: general do Exército Augusto Heleno

-Ministro de Minas e Energia: almirante da Marinha Bento Albuquerque

-Ministro da Secretaria de Governo: general do Exército Carlos Alberto dos Santos Cruz

-Ministro de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações: tenente-coronel da Aeronáutica Marcos Pontes

-Ministro de Infraestrutura: capitão do Exército Tarcísio Gomes de Freitas

-Ministro da Controladoria-Geral da União: capitão do Exército Wagner Rosário

-Ministro da Defesa: general do Exército Fernando Azevedo Silva

Principais cargos no 2º e 3º escalões

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

-Diretor de Programa da Secretaria-Executiva: coronel-aviador da Aeronáutica Ricardo Roquetti

-Assessor especial do ministro: coronel do Exército Robson Santos da Silva

MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA

-Secretário-executivo adjunto: coronel do Exército Carlos Alberto Flora Baptistucci Secretário de Radiodifusão: coronel do Exército Elifas Chaves Gurgel do Amaral

-Chefe de gabinete do ministro: brigadeiro aviador da Aeronáutica Celestino Todesco

-Secretário de Políticas Digitais: tenente brigadeiro do ar da Aeronáutica Antonio Franciscangelis Neto

-Assessor especial do ministro: tenente brigadeiro do ar da Aeronáutica Gerson Nogueira Machado de Oliveira

-Diretor do Departamento de Serviços de Telecomunicações: coronel aviador da Aeronáutica Rogério Troidl Bonato

MINISTÉRIO DA DEFESA

-Chefe de gabinete: general do Exército Edson Diehl Ripoli

MINISTÉRIO DA INFRAESTRUTURA

-Secretário Nacional de Transporte Terrestre e Aqua- viário: general do Exército Jamil Megid Júnior

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE

-Secretário de Orçamento, Finanças e Gestão: general do Exército Nader Motta

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA

-Secretário nacional de Segurança Pública: general do Exército Guilherme Theophilo Oliveira

-Coordenador-geral de Estratégia da Senasp: coronel do Exército Freibergue do Nascimento

-Coordenador-geral de Políticas da Senasp: coronel do Exército José Arnon dos Santos Guerra

-Coordenador-geral de Licitações da Senasp: coronel do Exército Marcelo Lopes de Azevedo

-Assessor técnico do gabinete do ministro: suboficial da Aeronáutica Alexandre Oliveira Fernandes

SECRETARIA-GERAL

-Secretário-executivo: general do Exército Floriano Peixoto

-Secretário especial de Assuntos Estratégicos: general do Exército Maynard Marques de Santa Rosa

-Secretário especial de Assuntos Estratégicos adjunto: general do Exército Lauro Luís Pires da Silva

-Assessor especial: coronel do Exército Walter Félix Cardoso

-Secretário de Administração: coronel do Exército Gilberto Barbosa Moreira

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

-Porta-voz: general do Exército Otávio do Rêgo Barros

GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL

-Assessor: general do Exército Eduardo Villas-Bôas

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL

-Assessor: capitão de mar e guerra da Marinha Marcos Perdigão Bernardes

-Assessor: capitão de mar e guerra da Marinha Almir Alves Junior

-Assessor: brigadeiro da Aeronáutica Mozart de Oliveira Farias

CORREIOS

-Presidente: general do Exército Juarez Aparecido de Paula Cunha

-Assessor especial: coronel do Exército André Luis Vieira

DNIT

-Diretor-geral: general do Exército Antônio Leite dos Santos Filho

-Diretor-executivo: coronel do Exército André Kuhn

FUNAI

-Presidente: general do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas

ITAIPU

-Diretor-geral: general do Exército Joaquim Silva e Luna

PETROBRAS

-Presidente do Conselho: almirante da Marinha Eduardo Bacellar Leal Ferreira

-Gerente-executivo de Inteligência e Segurança Corporativa: capitão-tenente da Marinha Carlos Victor Guerra Naguem

SUPERINTENDÊNCIA DA ZONA FRANCA DE MANAUS

-Superintendente: coronel do Exército Alfredo Menezes

TELEBRAS

-Diretor administrativo-financeiro: general do Exército José Orlando Ribeiro Cardoso

EMPRESA BRASILEIRA DE SERVIÇOS HOSPITALARES

-Presidente: general do Exército Oswaldo Ferreira


HUMBERTO TREZZI

sábado, 2 de fevereiro de 2019



02 DE FEVEREIRO DE 2019
LYA LUFT

EDUCAR SEM MUTILAR

Não era montagem, não era ilusão. A foto de uma sala de cinema logo depois de uma sessão, possivelmente lotada, de filme para crianças ou adolescentes (ou daria na mesma). Entre as fileiras de poltronas, o tapete bordô parecia um campo florido. Lixo. Lixo. Lixo. Copinhos de papel, saquinhos de pipoca, guardanapos, papel de bala e chocolate, restos de bigmacs ou baurus ou seja o que for: inacreditável. Não alguns, não poucos, mas um tapete infeliz.

Ali tinham-se reunido crianças ou porquinhos? Jovens ou selvagens, crianças suinizadas e adolescentes sem educação?

Minha pergunta foi, na hora, feita a mim mesma depois de fechar a boca (tinha ficado boquiaberta): eles trazem de casa esse tipo de comportamento? Talvez fizessem isso por oposição a uma educação demasiado rigorosa em casa? (Isso, nem pensar.) Talvez fosse mesmo costume, ir largando tudo pelo chão, roupas, papel, restos, qualquer coisa, pois a mãe-escrava ou a empregada idem correria atrás para recolher?

Ou teria sido simplesmente essa espécie de idiotia coletiva que toma conta de alguns grupos, também adultos, quando se alegram, se exaltam? Acho que nunca saberei. Mas fiquei intrigada com a primeira questão: seriam assim também em suas casas? Pais com receio de controlar, de exercer alguma ordem e autoridade, pois poderiam traumatizar os filhotes - ou pais que não tinham tempo nem emoção suficientes para dar uma olhada nos comportamentos da meninada... ou ainda, como certa vez me disse o psicólogo de uma escola famosa, "eles em casa não têm pai e mãe, têm um gatão e uma gatinha"?

Não tenho resposta. Talvez professores e psicólogos tenham. Não quero nem devo culpar os pais: educar é difícil, parte desse processo é como amestrar uma foca. Horrível, eu sei, mas treinamento necessário: levantar a tampa do vaso para fazer xixi, por exemplo, não botar o dedo no nariz... A outra parte, que há de ser muito maior e melhor, é o afeto, a alegria, a curtição de ver essas criaturinhas que produzimos ou adotamos se transformando em pessoas. Isto é, em um ser humano com habilidades como portar-se direito, ser gentil, ser limpo, ter limites sem perder os sonhos, ter alguma lucidez sem perder as descobertas - que serão maravilhosas algumas, outras terríveis.

Talvez eu simplesmente esteja enganada: ninguém educa ninguém, apenas somos exemplo. Se a postura, o ambiente, em casa for cordial, gentil, amorosa, positiva, estimulante, não se precisará de mais do que algumas indicações do tipo: não falar com a boca cheia, não estapear o irmão menor, não mexer nas coisas dos outros, não entrar sem bater (essa serve para mãe também), não ser grosseiro com ninguém (nem professores...), mas também não enquadrar, não ensinar a ter sangue de barata. Ser alguém que possa viver neste mundo em razoável harmonia. Sempre um guerreiro pelas boas causas, pelos seus direitos, pela verdade.

Sei que estou esboçando uma paisagem idílica, mas bem que podia ser assim, mais vezes.

LYA LUFT


02 DE FEVEREIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Stand up: levante-se

Stand up é um termo inglês que significa "ficar de pé" ou "levantar-se". Popularizou-se quando surgiram as primeiras apresentações de comediantes que, sozinhos no palco, sem cenário, dispunham apenas de um microfone para fazer a plateia rir. Mais tarde, o termo passou a designar o remo em pé: stand up paddle. É uma modalidade antiga de surf, originária do Havaí, mas que hoje é praticada também longe das ondas - em rios, lagos e em alto mar, por profissionais e também por amadores que buscam equilíbrio, diversão e condicionamento físico.

Estamos em pleno verão e a menção a esse esporte já justificaria a coluna, mas quem me trouxe ao assunto foi Marcelo Yuka, compositor que fundou a banda O Rappa e que morreu há duas semanas, aos 53 anos, de infecção generalizada. Em 2000, ele levou nove tiros ao tentar socorrer uma mulher durante um assalto e ficou paraplégico. Afora a canção Minha Alma, sucesso que consagrou o verso "Paz sem voz/não é paz/é medo", eu conhecia pouco de seu trabalho, mas aprendi a respeitá-lo através da biografia Não se Preocupe Comigo, escrita pelo jornalista e amigo de Yuka Bruno Levinson. Conheço o Bruno e acompanhei suas manifestações depois que Yuka se foi. Bruno disse que Yuka sempre soube que morreria cedo. "Você já viu algum cadeirante velho?", perguntava Yuka para Bruno. "Não uma pessoa velha que tenha ido pra cadeira de rodas por fraqueza, mas uma pessoa como eu? Não. Nós não fomos feitos para ficar sentados".

Chegamos ao ponto. Não fomos feitos para ficar sentados.

Não fomos feitos para passar horas numa poltrona diante de um computador, horas afundados num sofá com um celular na mão, horas numa cama manejando um controle remoto, horas numa sala de espera enquanto não chamam nosso nome - e esta última situação uso como metáfora para milhões de preguiçosos que estão sentados numa "sala de espera" aguardando para entrar na vida, em vez de alcançá-la com os próprios pés.

Não fomos feitos para o sedentarismo, a pasmaceira, o tédio, a paralisia e os quilos extras que a inatividade traz. Considero vulgar a expressão "tirar a bunda da cadeira", mas é disso que se trata, grosso modo. É exasperante ver que muitos adolescentes com energia de sobra estão desperdiçando-a com um cansaço existencial que nada mais é do que medo de expandirem seu destino, de correrem atrás de projetos sem garantia, de se submeterem a aventuras incertas - como se tudo não fosse incerto. Aboletam-se, atrofiam-se e morrem cedo. Com o agravante de estarem presos a uma cadeira por livre e espontânea vontade, ao contrário de Yuka.

Pois eu, que estou longe dos meus 17 anos, venci a resistência que sempre tive a esportes náuticos: me pus de pé em cima de uma prancha e passei a remar, vacilante e valente ao mesmo tempo, como em toda estreia. Stand up! Levante-se também. Pela razão que achar que mereça, mas levante-se.

MARTHA MEDEIROS


02 DE FEVEREIRO DE 2019
PIANGERS

Uma vida incontrolável

Apenas três coisas irritam minha filha pequena: comer, dormir e tomar banho. Ironicamente, tudo o que eu mais gosto de fazer, depois de velho. Ela, não: basta falar uma dessas três palavras para que se jogue no chão ou comece a miar. Parece um gato, falando fino. Nunca está com fome (é claro, com minha esposa permitindo iogurte antes do almoço fica difícil!), nunca está cansada e nunca quer entrar debaixo do chuveiro. Obviamente, há desentendimento. Eu e ela discutimos. Esses dias, ela ficou tão aborrecida que me entregou um bilhete: "PAI QUERO QUE VOCE NAO FALE MAIS COMIGU HOGE".

Perguntou-me, na hora de dormir, porque ela não podia mandar nos outros. "Seria assim: tudo o que eu mandasse as pessoas fariam. Eu mandaria todo mundo brincar comigo, correr e me dar brinquedos", ela disse. Queria um mundo em que todos a obedecessem. Um mundo em que todos pudessem comer iogurte antes do almoço, dormir de madrugada e ter a sola do pé preta. Talvez fosse um mundo mais divertido, e me pergunto em que momento virei minha mãe e passei a considerar banho, sono e comida algo tão indispensável. Porém, um mundo em que podemos controlar tudo é também um mundo chatíssimo.

Imagine um mundo em que você é uma criança e pudesse controlar todas as pessoas. Em um primeiro momento, você faria apenas o que deseja, brincaria, comeria doces, dormiria tarde. Ordenaria que todos brincassem daquilo que você quer. No segundo dia, a mesma coisa. E assim por diante, até que depois de alguns dias você perceberia que todos fazem as suas vontades apenas por que você os controla. Você sentiria uma solidão. Ninguém estaria com você porque quer, mas por que é obrigado. Controlar tudo ao seu redor seria profundamente solitário.

Somos levados sempre a sonhar com um mundo controlável. Tudo acontece como planejado, meus clientes dizem sempre sim, os semáforos estão sempre verdes. Teríamos o trabalho dos sonhos, namoraríamos quem quiséssemos. A pessoa que você ama estaria agora ao seu lado, pois você a controla. Por mais divertido que fosse nos primeiros meses, cansaria. Uma vida perfeita é plástica, falsa, solitária. A surpresa é que nos emociona. A imprevisibilidade é que nos faz sentir vivos. Serendipidade.

Às vezes, as surpresas trazem uma dor. Um divórcio. Uma demissão. Às vezes, um sofrimento que parece que não vai acabar. Mas uma vida incontrolável é a única que nos surpreende com um amigo novo, que nos aponta uma nova carreira, que nos apresenta um novo amor. Uma vida incontrolável nos surpreende na esquina. Uma vida incontrolável é a única que vale a pena. Mesmo que, em algum momento da vida, você tenha seis anos de idade e seja obrigada a comer, tomar banho e dormir cedo.

PIANGERS



02 DE FEVEREIRO DE 2019
PAULO GERMANO

OS FANTASMAS DA GENTE

Sou tão fã de filme de terror, que tatuei um fantasma no braço. Minha tatuagem mais instigante, na verdade, é uma furadeira no outro braço, mas sobre ela eu falo outro dia, ainda que eu saiba que alguém, agora, já deva estar perguntando que tipo de idiota entalha uma furadeira na própria carne. Faz parte.

A questão é que o meu fantasma - alheio à virilidade que talvez o leitor espere - não é um demônio com punhal espetado na têmpora nem um monstrengo derretido por ácido: é daqueles que usam lençol, têm cara de bobo e não metem medo nem na minha mãe. Por quê? Porque são assim os fantasmas que eu quero: ainda que seja impossível se livrar deles, não é impossível que me assustem menos.

O bom filme de terror explora justamente essa dubiedade; ele se põe na fronteira entre o sobrenatural e o psicológico. Não é à toa que as casas mal-assombradas estão sempre caindo aos pedaços. Invocação do Mal 2, por exemplo: eis aí uma família emocionalmente arrasada - o pai largou a mulher e os quatro filhos, que sobrevivem sem um tostão. E a casa é uma manifestação física desse abandono: é tinta descascando, cano vazando, porão alagando, móveis se desmanchando.

Em um ambiente tão vulnerável, onde as paredes parecem vivas de tanto mofo, não surpreende que invasores piores do que fungos e limo também consigam entrar. Aí surgem os demônios. Claro: há sempre demônios à espreita quando a vida sucumbe à desordem. Os depressivos, por exemplo, costumam abandonar os cuidados com a própria casa porque, na prática, abandonaram a si mesmos.

Quer dizer: para um fã de terror (ou pelo menos para mim), acreditar ou não em alma penada importa pouco. Porque são esses fantasmas, os metafóricos - que habitam o nosso íntimo e se libertam com as nossas fraquezas -, a fonte de horror mais abundante. E o bom cineasta sabe disso: ele mostra que o mal pode vir de dentro, não de fora, e assim se intrometer aos poucos na normalidade até destruí-la.

A Maldição da Residência Hill, melhor série da Netflix do ano passado, faz isso impecavelmente. Uma das personagens é assombrada por um horripilante fantasma que, na verdade, é precisamente ela mesma - e, de fato, nada é mais assustador para ela, ao longo da série, do que lidar com a própria complexidade.

Cada um dos irmãos, atormentados ou pelas drogas, ou pelo medo de amar, ou por negar a verdade, ou pela relação com o pai, vive perseguido por aparições monstruosas que, no fim das contas, são expressões do que eles precisam resolver internamente. É sempre assim, na vida ou no cinema: os demônios nunca vão embora, mas, se o objetivo for enfrentá-los em vez de fugir, a tendência é que eles se tornem menos apavorantes.

Por isso o meu fantasminha com cara de bobo. Ele vai seguir ali, quietinho e inofensivo, desde que eu continue combatendo o que pode despertar sua fúria.

PAULO GERMANO


02 DE FEVEREIRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

O DESTINO AO NASCER

Li o livro de Lázaro Ramos há quase dois anos: Na Minha Pele (editora Objetiva). Com razão, a obra figura entre as mais vendidas do Brasil. Bem escrita e com uma história pungente, a narrativa biográfica prende do início ao fim. Comentei com ele a dúvida que tive ao final da leitura. Lázaro nasceu pobre na ilha do Paty, na Baía de Todos os Santos. 

O pedaço de terra isolado do continente era destituído de eletricidade, e as memórias giram em torno das quatro famílias, seus roçados, de dona Célia e seu Ivan, pais do artista. Apesar de Lázaro ter descrito passo a passo suas origens, sua luta em Salvador e, depois, em outras cidades, ficou a dúvida: Afinal, se você nasceu pobre e negro, ser hoje um dos mais respeitados atores do país é sinal de que o esforço é o caminho e quem deseja pode vencer? O caminho estaria aberto?. 

A pergunta é vasta e a resposta, complexa. Lázaro Ramos seria a prova de que o Liberalismo Clássico e sua ênfase na meritocracia estariam corretos? Cheguei a sugerir a ele que fizéssemos um livro sobre o tema. O próprio autor tem cuidado ao falar da sua trajetória, evitando dizer que o filho da cozinheira abriu um caminho acessível a qualquer um, bastando trabalho duro. Seria a brilhante exceção do marido de Taís Araújo a prova de que não é possível para todos?

Na contramão do Liberalismo, grande parte do pensamento de esquerda fala de caminhos interditados para a maioria, especialmente negros e negras pobres. Só com o auxílio de políticas públicas (cotas, por exemplo) poderíamos eliminar o fosso intransponível que marca nossa desigualdade econômica.

Lembro-me de uma piada de internet com toque mais à esquerda e menos meritocrática. O patrão apresenta aos funcionários um novo e reluzente carro importado. Diante da admiração dos subordinados, comenta que, se eles se esforçarem muito, se trabalharem duro, se atingirem metas e dobrarem metas, se perseguirem o estipulado como cenoura dourada a açular o esforço, no ano seguinte, ele, patrão... terá outro carro. Com esse final, a piada é de esquerda. Se terminasse dizendo que, se você se esforçar muito e buscar sua alma empreendedora, você terá um igual, daríamos uma guinada em direção a outro pensamento, mais ao estilo do livro/filme À Procura da Felicidade (2006, dirigido por Gabriele Muccino, com Will Smith no papel principal). Piadas e filmes, como tudo, são ideológicos.

Todo o debate gira em torno disso. É possível o sucesso apenas com o preço do esforço? Vamos ampliar o tema. Terminei o texto de Djamila Ribeiro: Quem Tem Medo do Feminismo Negro? (Cia. das Letras). Ela trata a questão de forma muito direta. O mundo brasileiro é racista ao extremo e, com as mulheres negras, é duplamente cruel. As portas estão fechadas e somente o "marco civilizatório" (expressão do livro) do feminismo negro poderia resgatar pessoas da prisão pétrea das estruturas sociais vigentes. Djamila analisa os modelos estéticos dominantes, as ausências de negros, a tolerância passiva com o racismo declarado, a violência cotidiana e a constituição, segundo o conceito de Grada Kilomba, da mulher negra como o "outro do outro", por ser "essa dupla antítese de branquitude e masculinidade".

Acredito no esforço. Acordo todos os dias às quatro da manhã. Trabalho aos sábados e domingos. Estudo e escrevo no meio de feriados. Fiz grandes sacrifícios pessoais para conseguir o que tenho. Porém, reconheci a outra amiga, Alexandra Baldeh Loras, que me considerava um "nascido salvo". Qual o significado de estar salvo ao nascer? Com pai político, professor, advogado e, acima de tudo, branco, a minha maratona da vida começou com 20 quilômetros de vantagem sobre outros competidores. Aos nove anos, tive minha primeira lição de francês e latim com meu pai. Tive família estruturada e proteína abundante na infância, estímulos de viagens e biblioteca em casa. Eu me esforcei? Muito, demais, em níveis quase inimagináveis para a média das pessoas. Mas, reconheço, eu nasci salvo. Nunca um segurança me acompanhou em uma loja com olhar desconfiado. Meus olhos claros gritavam slogans em silêncio. Eu me esforcei e corri muito, mas minha maratona não começou onde as mulheres negras da periferia analisadas por Djamila Ribeiro deram a largada.

Mas volto à questão. Uma mulher negra como a autora, nascida em Santos, fez excelente faculdade, fala línguas, fez mestrado e escreve com maestria. O que a levou até "lá" que estaria vedado a outras em situação similar? Aqui apenas minha percepção do caminho para responder a essa questão: em vez de consultar seu grupo de WhatsApp sobre feminismo negro, leia o livro indicado e forme sua própria opinião. Saia da zona de conforto, ignore o senso comum que permeia nossas conversas e dialogue com uma voz que, bem provavelmente, não está no seu grupo.

Permita-se pensar, mesmo que você não venha a mudar de ideia. As respostas são muito complexas e ajudam muito a buscar novas lentes. Lendo e conversando com Djamila, mudei muitos conceitos. As perguntas complexas são: quanto podemos mudar a partir do ponto de partida do meio de nascimento? A meritocracia é um bom princípio ou um disfarce ideológico para mascarar um jogo de cartas marcadas? Como funciona o racismo no Brasil? O que mudou entre Lima Barreto e Djamila? Permita-se pensar. Não tenho respostas para todas as questões. Tenho vontade de criar pontes de ideias e ações.

É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


02 DE FEVEREIRO DE 2019

DRAUZIO VARELLA

CORPO DA MULHER

Coisa mais difícil é ser mulher. Não bastassem as surpresas que a fisiologia lhes impõe, as sociedades criam regras para cercear-lhes a liberdade de ir e vir e padrões rígidos de comportamento e moralidade, que não se aplicam aos homens.

De todas as imposições sociais, a mais odiosa é a apropriação indébita do corpo feminino.

Não é por outra razão que cidadãos de mais de 20 países se dão o direito de mutilar os genitais de suas filhas na mais tenra idade. São cirurgias cruentas, sem anestésicos nem assepsia, a que o mundo assiste em silêncio acovardado, em nome do respeito às "tradições culturais".

Nós, que nos intitulamos "civilizados", não chegamos a esse nível de barbárie, no entanto, repreendemos a menina de dois anos quando leva a mão ao sexo ou senta com as pernas abertas. Na piscina de um condomínio de classe média alta, em Cleveland, nos Estados Unidos, minha filha foi admoestada pela encarregada da segurança por deixar minha neta sem a parte de cima do biquíni. O argumento? Provocar os homens presentes. Uma criança de cinco anos?

Na puberdade, com o cérebro inundado pela testosterona, jamais alguém ousou sugerir que minha iniciação sexual levasse em conta o amor, sentimento que mães e pais, que se consideram avançados, exigem das adolescentes. Sexo casual exalta a condição masculina, enquanto mancha a reputação da mulher. Não é preciso graduação em filosofia pura para expor o paradoxo.

Aos 12 ou 13 anos, idades em que o corpo ensaia com graça os primeiros passos em direção da mulher adulta, os interesses da indústria e da publicidade sexualizam, com mini-shorts e camisetas decotadas, o modo de vestir das meninas. Quando saem às ruas com as roupas da moda exibida na TV e nas revistas, elas são acusadas de provocadoras, portanto sujeitas às grosserias e ao risco de se tornarem vítimas dos instintos masculinos mais bestiais.

Ao ficarem adultas, são forçadas a atender a um padrão estético que privilegia a magreza doentia das top models. Sem levar em conta os caprichos da genética, a mulher moderna deve ser magra, sobretudo. A exigência de exibir a ossatura acaba por lhes distorcer a autoimagem. Passam a implicar com o pequeno acúmulo de gordura, com rugas insignificantes e com celulites só visíveis em posições acrobáticas sob o foco de luz.

No passado, demonstrar interesse por uma mulher era elogiar-lhe a beleza; hoje, dizer que está mais magra é meio caminho andado.

Nós, homens, somos complacentes com a autoimagem. O sujeito com 20 quilos a mais sai do banho enrolado na toalha, para na frente do espelho, bate no abdômen avantajado e se vangloria: "Tô simpático, tô bonitão". Está para nascer mulher com tamanha autoconfiança.

Mas é na gravidez que fica demonstrada a superioridade fisiológica do organismo feminino. Produzem apenas um óvulo, enquanto nos obrigam a ejacular 300 milhões de espermatozoides, para que se deem ao luxo de escolher o mais apto. Daí em diante, por conta própria, constroem uma criança de três quilos, sem qualquer participação masculina.

Na gravidez, nosso papel é tão desprezível que precisamos fazer exame de DNA para comprovar a paternidade. Apesar da irrelevância, contudo, nós é que aprovamos as leis que as consideram criminosas em caso de aborto provocado. O sofrimento e as mortes das jovens submetidas a procedimentos realizados nas condições mais desumanas que possamos imaginar não nos sensibiliza.

Depois de passar décadas espremidas em trajes incômodos e de andar mal equilibradas em saltos de um palmo de altura, só lhes restam duas saídas: a cirurgia plástica ou o suicídio, providências nem sempre excludentes. Antes operar o rosto, aspirar a gordura abdominal ou partir deste mundo do que envelhecer.

Às que ficam mais velhas não sobram alternativas: se deixam os cabelos embranquecer são rotuladas de velhas, se decidem pintá-los de preto ficam com cara de senhoras, se os tingem de loiro são xingadas de exibidas. Se vestem roupas em tons discretos são antiquadas, se acompanham a moda das mais jovens são ridículas, sem noção.

As leitoras que me perdoem, mas, na próxima encarnação, prefiro nascer homem, outra vez.

DRAUZIO VARELLA



02 DE FEVEREIRO DE 2019

DRAUZIO VARELLA

CORPO DA MULHER

Coisa mais difícil é ser mulher. Não bastassem as surpresas que a fisiologia lhes impõe, as sociedades criam regras para cercear-lhes a liberdade de ir e vir e padrões rígidos de comportamento e moralidade, que não se aplicam aos homens.

De todas as imposições sociais, a mais odiosa é a apropriação indébita do corpo feminino.

Não é por outra razão que cidadãos de mais de 20 países se dão o direito de mutilar os genitais de suas filhas na mais tenra idade. São cirurgias cruentas, sem anestésicos nem assepsia, a que o mundo assiste em silêncio acovardado, em nome do respeito às "tradições culturais".

Nós, que nos intitulamos "civilizados", não chegamos a esse nível de barbárie, no entanto, repreendemos a menina de dois anos quando leva a mão ao sexo ou senta com as pernas abertas. Na piscina de um condomínio de classe média alta, em Cleveland, nos Estados Unidos, minha filha foi admoestada pela encarregada da segurança por deixar minha neta sem a parte de cima do biquíni. O argumento? Provocar os homens presentes. Uma criança de cinco anos?

Na puberdade, com o cérebro inundado pela testosterona, jamais alguém ousou sugerir que minha iniciação sexual levasse em conta o amor, sentimento que mães e pais, que se consideram avançados, exigem das adolescentes. Sexo casual exalta a condição masculina, enquanto mancha a reputação da mulher. Não é preciso graduação em filosofia pura para expor o paradoxo.

Aos 12 ou 13 anos, idades em que o corpo ensaia com graça os primeiros passos em direção da mulher adulta, os interesses da indústria e da publicidade sexualizam, com mini-shorts e camisetas decotadas, o modo de vestir das meninas. Quando saem às ruas com as roupas da moda exibida na TV e nas revistas, elas são acusadas de provocadoras, portanto sujeitas às grosserias e ao risco de se tornarem vítimas dos instintos masculinos mais bestiais.

Ao ficarem adultas, são forçadas a atender a um padrão estético que privilegia a magreza doentia das top models. Sem levar em conta os caprichos da genética, a mulher moderna deve ser magra, sobretudo. A exigência de exibir a ossatura acaba por lhes distorcer a autoimagem. Passam a implicar com o pequeno acúmulo de gordura, com rugas insignificantes e com celulites só visíveis em posições acrobáticas sob o foco de luz.

No passado, demonstrar interesse por uma mulher era elogiar-lhe a beleza; hoje, dizer que está mais magra é meio caminho andado.

Nós, homens, somos complacentes com a autoimagem. O sujeito com 20 quilos a mais sai do banho enrolado na toalha, para na frente do espelho, bate no abdômen avantajado e se vangloria: "Tô simpático, tô bonitão". Está para nascer mulher com tamanha autoconfiança.

Mas é na gravidez que fica demonstrada a superioridade fisiológica do organismo feminino. Produzem apenas um óvulo, enquanto nos obrigam a ejacular 300 milhões de espermatozoides, para que se deem ao luxo de escolher o mais apto. Daí em diante, por conta própria, constroem uma criança de três quilos, sem qualquer participação masculina.

Na gravidez, nosso papel é tão desprezível que precisamos fazer exame de DNA para comprovar a paternidade. Apesar da irrelevância, contudo, nós é que aprovamos as leis que as consideram criminosas em caso de aborto provocado. O sofrimento e as mortes das jovens submetidas a procedimentos realizados nas condições mais desumanas que possamos imaginar não nos sensibiliza.

Depois de passar décadas espremidas em trajes incômodos e de andar mal equilibradas em saltos de um palmo de altura, só lhes restam duas saídas: a cirurgia plástica ou o suicídio, providências nem sempre excludentes. Antes operar o rosto, aspirar a gordura abdominal ou partir deste mundo do que envelhecer.

Às que ficam mais velhas não sobram alternativas: se deixam os cabelos embranquecer são rotuladas de velhas, se decidem pintá-los de preto ficam com cara de senhoras, se os tingem de loiro são xingadas de exibidas. Se vestem roupas em tons discretos são antiquadas, se acompanham a moda das mais jovens são ridículas, sem noção.

As leitoras que me perdoem, mas, na próxima encarnação, prefiro nascer homem, outra vez.

DRAUZIO VARELLA



02 DE FEVEREIRO DE 2019
TECNOLOGIA

UM NOVO ALIADO CONTRA O AVC

SOFTWARE ADOTADO PELO HOSPITAL MOINHOS DE VENTO PODE AUMENTAR CHANCES DE RECUPERAÇÃO DE PACIENTES

Segundos são preciosos na hora de prestar socorro a um paciente que sofre um acidente vascular cerebral (AVC), popularmente conhecido como derrame. Tecnologia que acaba de entrar em uso pelo Hospital Moinhos de Vento (HMV), em Porto Alegre, um software que faz uma leitura precisa de imagens do cérebro torna as intervenções mais seguras, precisas e eficazes, duplicando e até triplicando o tempo hábil de ação dos médicos. O e-STROKE Suite aponta, nas imagens resultantes das tomografias a que os pacientes são submetidos, onde ocorreu o entupimento de vaso sanguíneo e as áreas que ainda podem ou não ser salvas, conforme o tempo decorrido desde o início da manifestação dos sintomas. A instituição da Capital é a primeira da América Latina a adquirir o programa, aplicável principalmente a casos de AVC do tipo isquêmico.

Baseado na análise das imagens coloridas dos exames, mostradas na tela do celular, o médico decide como será a intervenção, capaz de definir o futuro entre a presença ou a ausência de sequelas (além da dimensão do impacto delas) e, inclusive, entre a vida e a morte.

- A cada minuto que passa, 2 milhões de neurônios morrem. É uma quantidade absurda. Cada minuto conta - comenta a neurologista Sheila Martins, chefe do Serviço de Neurologia e Neurocirurgia do Moinhos de Vento e vice-presidente da Organização Mundial de AVC.

O novo sistema está em operação desde dezembro. Até então, a avaliação das "fotografias" cerebrais era realizada da forma tradicional, a olho nu. Uma observação por vezes difícil - e mais demorada - de sutis gradações de cinza, muito dependente da experiência do médico encarregado de cada caso. Com o passar das horas desde a ocorrência do AVC, as partes em cinza vão ficando cada vez mais escuras, significando também que a situação está se complicando e se tornando irreversível. Ou seja, o médico perdia tempo até conseguir enxergar com clareza o que estava acontecendo e também corria o risco de intervir em uma área onde o dano já era definitivo, podendo inclusive provocar um sangramento fatal no paciente.

Com a interpretação do software, tudo ficou mais nítido. A cor vermelha representa a porção do órgão que já "morreu" devido à obstrução provocada pelo coágulo, e o amarelo, as zonas em sofrimento, que podem ser salvas se a circulação for restabelecida logo. Agora, mesmo profissionais com pouca experiência estão habilitados a operar o e-STROKE.

Até quatro horas e meias após o AVC, de acordo com as condutas regulares, é possível recorrer à trombólise endovenosa: a aplicação, na veia, de um medicamento que chega ao local do entupimento e tenta dissolver o coágulo. Com o auxílio do e-STROKE, esse tempo duplica, passando a ser de nove horas. Antes, em até oito horas, podia-se utilizar a trombectomia, espécie de cateterismo, procedimento semelhante ao utilizado na área da cardiologia. Em situação de AVC, faz-se uma incisão na virilha que vai até o cérebro, onde ocorre a desobstrução do vaso. Mais um benefício do e-STROKE: esse tempo foi multiplicado por três. Doentes elegíveis, daqui por diante, podem se submeter a uma trombectomia em até 24 horas após o início dos sintomas.

- Pacientes que chegavam 20 ou 24 horas depois já eram dados como perdidos. Agora, são muitos mais os que conseguimos tratar. É o que vem fazendo toda a diferença no mundo - destaca Sheila.

Derrames ocorridos durante o sono, que representam cerca de 20% do total, são considerados dos casos mais difíceis de serem tratados, dada a impossibilidade de se precisar o horário. O paciente estava bem ao ir para a cama na véspera, por exemplo, e, ao acordar, é encontrado paralisado e sem conseguir falar. Quando chega ao hospital, o familiar não sabe informar desde quando ele está com os movimentos e os sentidos alterados. Tratar esse paciente sem se ter ideia da hora em que o AVC lhe acometeu aumentava muito o risco de uma hemorragia no crânio. Essa dificuldade também é driblada pelo software, que mostra com clareza as zonas comprometidas, direcionando a conduta médica.

O QUE É O ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL

Popularmente conhecido como derrame, o AVC é o termo médico para descrever o surgimento súbito de um déficit neurológico provocado por um problema nos vasos sanguíneos do sistema nervoso central. Há dois tipos:

- AVC isquêmico: é o mais comum, correspondendo a cerca de 85% dos casos. Ocorre quando há a obstrução ou redução brusca do fluxo sanguíneo em uma artéria do cérebro, provocando falta de circulação. Entre as causas, pode estar o aparecimento gradual de material viscoso e gorduroso nas paredes dos vasos ou o deslocamento de um coágulo de sangue formado em algum lugar do corpo - ele se solta e flutua até os vasos cerebrais, onde provoca a obstrução da circulação.

- AVC hemorrágico: causado pela ruptura espontânea (não traumática) de um vaso. O sangue extravasa para o interior do cérebro ou para o espaço ao redor.

COMO FUNCIONA O E-STROKE SUITE

- O software, o mais moderno em utilização no mundo, avalia exames de imagem do cérebro, como tomografia, angiotomografia e perfusão por tomografia, em casos de AVC isquêmico, principalmente.

- O sistema é capaz de colorir as regiões do cérebro que foram comprometidas em decorrência do entupimento do vaso sanguíneo. Antes, eram observadas apenas gradações de cinza. O ponto exato onde ocorreu o AVC também é mostrado.

- Em vermelho, aparecem as regiões já "mortas" pela falta de circulação sanguínea, o que resultará em sequelas. Em amarelo, visualizam-se aquelas que ainda estão em sofrimento e podem ser salvas. À medida que o tempo vai passando, as zonas em amarelo vão morrendo também. O novo programa de computador dá mais agilidade aos médicos, que podem iniciar o tratamento antes e com mais precisão, evitando incapacitações permanentes e até a morte do paciente. A depender do caso, se as condutas são iniciadas com rapidez, o doente pode se recuperar plenamente.

FATORES DE RISCO

- Idade superior a 60 anos

- Hipertensão

- Tabagismo

- Alterações do colesterol

- Diabetes

- Fibrilação atrial (arritmia cardíaca)

- Sedentarismo

- Obesidade

- Má alimentação

- Abuso de álcool

SINTOMAS

- Paralisia total ou parcial dos membros (face, braço, mão, perna), geralmente em um lado do corpo

- Alterações de sensibilidade

- Impossibilidade de falar ou compreender o que é dito

- Dificuldade para enxergar (em um olho, nos dois olhos ou em metade de um olho)

- Dor de cabeça súbita e forte

- Tontura e perda de equilíbrio

O QUE FAZER

- Diante da constatação dos sintomas, é imprescindível ligar imediatamente para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu, fone 192). Os profissionais levarão o paciente até um hospital que disponha de um centro de atendimento de AVC.

- Caso não haja ambulância, um familiar ou outra pessoa deve transportar o paciente, informando, assim que chegar, que se trata de um caso suspeito de AVC. O atendimento é prioritário.

Fontes: Rede Brasil AVC e neurologista Sheila Martins

LARISSA ROSO



02 DE FEVEREIRO DE 2019
J.J. CAMARGO

CUIDE DO FUTURO. VOCÊ VAI PRECISAR DELE

Melhor ter cuidado com o que os afoitos chamam de futuro. Achar que tudo o que é novo significa progresso é deslumbramento, e compactuar com o que existe é comodismo. Alcançada essa fase da vida em que a crítica contundente e o elogio exagerado, de tanto andarem juntos, se fundiram, a convicção definitiva é que nada atrapalha mais o sossego da maturidade do que a cumplicidade silenciosa diante do que repudiamos.

Depois de batalharmos décadas em prol de uma medicina mais afetiva e personalizada, denunciando o distanciamento gradual dos pacientes que os estudantes já vêm experimentando, com as antigas discussões à beira do leito transferidas para a sala dos computadores, foi triste descobrir que estamos apenas iniciando uma nova era: a da medicina sem o paciente. A menos que alguém classifique como atendimento médico aquele diálogo meio esquizofrênico entre uma criatura ansiosa, porque se supõe doente, e um potencial terapeuta, mais preocupado em conseguir um bom foco do Skype, e a regulação do som ambiente, depois de resolvida a questão da validação dos dados do cadastro, incluindo a aceitação do número de parcelas no cartão de crédito.

Nem precisa ser muito criativo para imaginar a gama de situações embaraçosas, previsíveis nesse arremedo grotesco, que não consigo chamar de relação médico-paciente:

- Doutor, muito obrigado por aceitar incluir meu nome na agenda, assim de uma hora para outra. Estou vendo que o senhor é bem novinho. Estou meio nervoso, então pedi para minha mulher ficar aqui comigo, porque ela entende mais de doença e desse negócio do computador do que eu.

- Tudo bem. Mas o senhor entendeu que a consulta é para uma pessoa só?

- Sim, mas de vez em quando ela pode me ajudar, não pode?

- Vamos ser mais objetivos: qual é a sua doença?

- A doença o doutor vai ter que descobrir, o que sinto é uma coceira nas pernas, que me enlouquece quando esquenta o corpo!

- O senhor vai ter de colocar a câmera focada na sua perna. Sem ver o tipo de lesão não dá para receitar nada.

- Então vou pedir para a minha mulher calibrar esta coisa, momentinho. Paciência, doutor, ela está tentando, mas parece que o cabo está meio frouxo. Só um pouquinho.

- Bom, o que eu vejo aqui é uma perna lisa, bronzeada e sem lesão. Onde lhe coça, afinal?

- Bronzeada? Mulher, acho que a gente está mostrando a tua perna para o doutor!

- Desculpe, doutor. O suporte do aparelho está meio frouxo, mas já que o senhor viu a minha perna, pode me dizer se essas veias fininhas dá para esclerosar?

- Minha senhora, achei que tinha sido claro! A consulta é para um paciente com problema de pele. Na próxima vez, quando atenderem, peça cirurgia vascular. É o mesmo preço, e como será no nome de outra pessoa, acho que o plano não vai negar o reembolso.

Ou então:

- Doutor, deixei aí na clínica os exames que o senhor pediu na semana passada, e estou com um pressentimento ruim. Se for câncer, não me diga, doutor, sou capaz de me matar!

- Bem, eu, eu, eu acho melhor o senhor marcar uma consulta presencial, que é mais cara, mas a gente vai ter mais tempo de conversar. Se o senhor ligar agora, eu vou poder vê-lo logo depois do feriado da semana que vem. Boa tarde!

Tóin, tóin, tóin.

Não é possível que alguém ache que possa ser assim. Ninguém abraçará um computador ao sentir medo. Ficar doente já é ruim demais. Acrescentar solidão é crueldade.

Sabe por que não há outro jeito de ser médico? Porque a compaixão nunca será um sentimento virtual. Ela não se contenta em ser vista. Ela precisa ser tocada.

J.J. CAMARGO

02 DE FEVEREIRO DE 2019

MÁRIO CORSO

Smartphones na infância


Imagine um restaurante famoso, bom e popular. Preços acessíveis, os clientes saem satisfeitos, todos conhecem e comentam. Um dia você descobre que os parentes do dono nunca comem lá. Provavelmente você pensará: o que eles sabem que não sabemos? Qual o segredo indigesto que mantém os mais próximos afastados?

Mal comparando, mas nem tanto, os líderes da indústria do Vale do Silício não deixam seus filhos usar, ou usar apenas sob tutela, smartphones e tablets até certa idade. Geralmente permitem depois da infância, alguns apenas depois da adolescência. A pergunta é a mesma: o que eles, que passam a vida construindo e vendendo essas máquinas, sabem que não sabemos?

O New York Times publicou um artigo de Nellie Bowles sobre o assunto. Essa jornalista, especialista em cobrir o mundo da tecnologia, relata quão impopular, entre os profissionais que mais se destacam nessa profissão, é deixar seus filhos usarem tecnologia digital. Zero Hora reproduziu o artigo na edição de 5 de janeiro.

Seria uma cautela exagerada? Um protesto romântico contra a tecnologia na infância? Afinal, temos exemplos de tecnologias ou produtos culturais nos quais a geração anterior, que a conheceu apenas na idade adulta, ou nunca, teve dificuldades de aceitá-la para os seus filhos e imagina os piores vaticínios aos usuários precoces.

Lembrem que os quadrinhos destruiriam o hábito de leitura, a televisão imbecilizaria uma geração, os video- games incitariam à violência. Pesquisas sérias nunca encontram esses malefícios apocalípticos. Aliás, os pais adoram essas teses, pois, quando a educação falha, a culpa viria de fora. Não estaríamos diante de mais uma profecia tonta?

Creio que não. A preocupação deles é pelos mecanismos de prazer envolvidos. Os aplicativos são programados para viciar, dão recompensas na ilusão de que você comanda uma performance em que é comandado. Treinam o cérebro em circuitos de respostas positivas rápidas como as drogas. Isso cria um usuário de tiro curto, sempre esperando ganhos. Habituam o cérebro à facilidade e não à dificuldade. De onde vocês acham que vêm as raízes da hiperatividade infantil endêmica?

Ainda, o corpo fica ausente. As crianças precisam desenvolver proezas motoras. Há uma inteligência e graça do corpo que é adquirida nessa etapa através das brincadeiras de movimento. Excesso de atividade virtual desencoraja a real por ser mais árdua.

Um dos grandes desafios da infância é a socialização extrafamiliar. Desenvolver as sutilezas da aproximação com os outros. Você acredita que mergulhar os olhos obsessivamente numa tela ajuda?

Perceba o que esses gadgets fazem com os adultos. De fora é patético ver alguém mesmerizado pelo celular, ignorando o entorno. Você realmente gostaria de treinar o cérebro plástico do seu filho desde cedo para desligar-se da realidade?

MÁRIO CORSO

sábado, 26 de janeiro de 2019


26 DE JANEIRO DE 2019
LYA LUFT

Os desumanos


Uma amiga me pergunta se acho que os homens, no fundo, temem as mulheres. Não acho não, mas com certeza sermos diferentes provoca suspeitas às vezes irreparáveis.

Talvez na era dos trogloditas ou antes, essa criatura esquisita "que sangra todo mês e não morre", ou que de repente se retorce e dela brota um outro ser humano, deve ter causado muito assombro. Nunca saberemos. Estudiosos e entendidos falam até hoje desse estranhamento original. Teorias, desbundes, revoluções morais e imorais devem com certeza ter atenuado isso, ou liquidado de vez. Mas algo restou e ainda se revela seguidamente explodindo em violência.

Cada vez que ouço notícias de espancamento ou morte de mulheres - sim, feminicídio, usemos o termo já que ele existe -, me espanta como é possível que mulheres não débeis mentais nem fisicamente, suportem companheiros que ano após ano, dia após dia, as maltratam. E se (rarissimamente) conseguem uma ordem judicial de afastamento físico dele, o cavalheiro quase sempre a desrespeita: pois leis aqui são feitas para não se respeitar, e a punição quase inexiste. Algumas, que eu sei, depois de conseguirem afastar o truculento de casa, o chamam de volta porque não sabem viver sem ele. Dão chancela ao título de um livrinho que há muitos anos alguém me mostrou: Sou Infeliz, mas Tenho Marido.

O convívio com alguém grosseiro e violento pode ser a única saída que algumas divisam. Ou têm no fundo mais fundo algo de masoquista: apanho porque mereço, sou maltratada porque não valho grande coisa.

O assassinato de centenas, milhares de mulheres no Brasil me dá arrepios: me gela a alma saber que nos matam porque tomaram um porre, porque desejam outra, porque nossa presença, nossa voz, os irrita, porque estão de mau humor, perderam o emprego ou a amante, ou simplesmente, como disse certa vez um adolescente sequestrador de um amigo meu, "hoje a gente saiu de casa a fim de matar alguém". Quanto mais tempo - este meu tempo - passa, menos entendo muitíssimas coisas, entre elas está: o que falta em nossas leis, nossa cultura e moral, para que haja essa banalização de assassinatos de mulheres? O que sentem, pensam, os assassinos? Tive raiva, matei. Estava irritado, esfaqueei. Perdi o resto do salário no jogo, decapitei. Queria dormir e ela só reclamava, esquartejei.

Que chancela maldita dá permissão para esses horrendos fatos? Por qual parcela disso somos responsáveis, nós, mulheres, nós, vítimas? Humildade abjeta, solidão terrível, inércia, alienação, uma eterna culpa vil que nos faz oferecer o pescoço, o coração, ou a vida?

Não sei. Nunca entenderei. Mas não são só as leis profundamente falhadas, a segurança incrivelmente relapsa, a escolha trágica de parceiros monstruosos, que permitem esses crimes: alguma coisa em nós, emocional, cultural, psíquica, ancestral, nos faz vitimas fáceis?

Não sei. Não sei se quero saber. Mas, hoje, quando liguei a TV nos noticiários e mais uma vez, como quase todos os dias, ouvi falar de um assassinato de mulher por seu parceiro, não havia nada a fazer senão vir ao computador e escrever qualquer coisa para desabafar, para esbravejar, clamar, partilhar. O que há conosco, humanos tão desumanos?

LYA LUFT

26 DE JANEIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Tango argentino


Não lembro quem me disse, se foi um ex-namorado, se foi uma astróloga, se foi minha mãe (vai ver ninguém me disse, deduzi sozinha): "Você é um tango argentino". Naturalmente, a frase estava relacionada ao meu jeito de lidar com as emoções.

Elogio ou crítica? Acho que era uma crítica travestida de elogio. Alguém estava dizendo que eu era exagerada, dramática, densa - mas antes isso do que ser uma songamonga, concorda? Um tango é um tango. Inolvidable.

Não faz muito tempo, estive em Buenos Aires e assisti a dois espetáculos de tango: um mais tradicional, com bailarinos formidáveis e números de tirar o fôlego (Rojo Tango, no hotel Faena) e outro mais alternativo, um grupo musical (Orquestra Fernandez Fierro), composto por 12 tipos com pinta de roqueiros bárbaros, neanderthais manejando violinos e bandoneons ao lado de uma jovem intérprete que cantava com o nervo exposto, todos eles fazendo do tango não apenas uma declaração sofrida de amor, mas uma reivindicação social de uma amplitude quase presunçosa - o tango como expressão máxima do que nos transforma em fêmeas e machos, do que nos altera, nos encoraja, nos arrebata. 

O tango não só como manifestação sexual, mas também de cidadania, o tango como propulsor de uma mudança urgente que inicia na corrente sanguínea e acaba sei lá onde, acho que simplesmente não acaba: um tango puxa o outro.

Estava eu ali, sentada no escuro, em uma sala aconchegante e sofisticada no primeiro espetáculo, regada a vinho de muitos pesos, e em outra noite numa sala improvisada, sem ar condicionado numa noite fria, um muquifo com vinho barato e atmosfera perfeita para receber os aventureiros que transformam o mundo. Em cada um daqueles ambientes antagônicos, o tango seduzia, injetava sensualidade, dramaticidade, o inevitável chamamento ao coração. Como se dissesse: ei, você aí, não é hora de pensar. Sinta! Com força, hombre.

"Você é um tango argentino", lembrei. E concordei, em silêncio. Mas será que ainda sou um tango? Já chorei, acertei o passo, errei o passo, me iludi, me frustrei, insisti, fiz besteira, já dancei o que tinha que dançar - e fui o par perfeito para outros preencherem suas biografias com suor e lágrimas também. Somos todos amadores. Os que amam.

Hoje o tango não representa mais o que sou. Drama combina com palco, não mais com minha vida emocional. Adiós, tango. Passadas mais leves, rostos menos tensos, menos sangue, mais jinga, mais bossa, mais molecagem, mais sacanagem, mais hoje, menos eternidade. O vestido vermelho, o salto alto e o carão podem até ser usados numa mise-en-scéne, mas não durante o jantar de uma segunda-feira. Agora não saio mais da plateia. Prefiro ficar de mãos dadas com a paz, admirando os intensos protagonistas do tango a uma distância segura.

MARTHA MEDEIROS

26 DE JANEIRO DE 2019
CARPINEJAR

Chuva de arroz


O que tem no saleiro? Sal, dirá o mais apressado. Apesar da obviedade, o saleiro guarda grãos de arroz, que tiram a umidade, desfazem as bolas salinas e facilitam a saída do conteúdo.

Poucos percebem a importância do arroz para salgar a comida e não deixar ninguém pagando o mico de bater o pote histericamente na mesa, de um lado para o outro, a fim de desentupi-lo. Ele é essencial, mas invisível. Não obtém a simpatia, mas segura a barra.

Na relação, sempre destacamos o sal da vida, o sonhador, o louco, o visionário, o que não se limita à realidade. Não valorizamos em nada o arroz, aquela figura que enquadra o par, inspirando-o a colocar os pés no chão e concretizar os seus projetos um de cada vez.

Longe do arroz, o sal não sai. Desfalcado de uma pessoa mais objetiva e prática, o casamento não funciona, não será realizada coisa alguma. Haverá apenas rompantes e grandes ideias vazias. As fantasias desaparecerão com o tempo como meros impulsos.

O sal tempera a convivência com a sua criatividade e ousadia. O arroz possibilita que o sal crie condições para que venha à tona e se torne popular.

O sal inventa e não calcula as consequências. O arroz executa planilha Excel de todo gasto e evita dívidas. O sal prefere delirar; o arroz, pensar dentro do possível. O sal privilegia a intensidade; o arroz, a estabilidade. O sal quer o sucesso rapidamente, o arroz monta um plano de ação a longo prazo. O sal é a aventura, o arroz é a serenidade. O sal é destemido, o arroz é cauteloso. O sal é a superfície, o arroz é a base.

Os preconceitos recaem sobre o arroz, visto negativamente como o chato do casal. Tanto que a esposa ou o marido realista é chamado ironicamente pelos demais de "sem sal", já que ocupa o papel difícil da verdade dentro de casa e não esquece o lado ruim de qualquer quimera. Põe defeitos, previne os riscos e estraga o prazer do momento com conversas sérias sobre a longevidade de uma nova panaceia.

Porém, desprovido do arroz, o sal não será conhecido, não chegará à luz do sol, não atiçará a gula de ninguém.

Parece que brilhante é só o sal, jamais o arroz, que surge como um freio da espontaneidade.

O que não se pode esquecer é que, na saída da igreja, os noivos recebem uma chuva de arroz. Um sinal de que amor é esforço e de que a sua sorte depende de quem trabalha e refina o fluxo na sombra.

CARPINEJAR