sábado, 9 de março de 2019



09 DE MARÇO DE 2019
DAVID COIMBRA

Sobre meninos, cachorros e lobos

Há duas criaturas que você não encontrará soltas e sozinhas nas ruas dos Estados Unidos: criança e cachorro. Quer dizer: criança você até vê, mas nunca em horário escolar. Na hora da escola, criança tem de estar na escola. Cachorro você não verá em horário algum. Não há vira-latas no país de Trump e Megan Fox. Ou, pelo menos, não aqui nessa esquina da Nova Inglaterra.

Outro dia, estava almoçando um clássico espaguete à bolonhesa na cantina toscana do meu amigo Andrea Ferrini e, de repente, estourou certa agitação no lugar. "Chamem a polícia!", bradavam os americanos, alarmados. "Chamem a polícia!".

- Que que foi? - perguntei, apreensivo.

- Tem um cachorro solto ali na esquina - respondeu um.

- Hein?

- Um cachorro sem dono! Um cachorro!

- E o que é que tem?

- Chamem a polícia!

E não é que eles chamaram mesmo a polícia? E não é que a polícia veio mesmo? Em menos de cinco minutos, as ruas estavam livres da ameaça.

Esse episódio me fez lembrar de uma entrevista que fizemos com o Lucas Mendes, no Timeline. O Lucas, você sabe, comanda o programa Manhattan Connection e vive há muitos anos em Nova York. Tempos atrás, porém, ele estava cogitando voltar para o Brasil. Foi visitar sua cidade natal, em Minas, e já no primeiro dia viu, vagabundeando pelas ruas, um pequeno vira-lata. A visão daquele cachorro sem dono a passear livremente pela cidade despertou-lhe um sentimento tão melancólico, tão sombrio, foi uma sensação tão ruim, que Lucas desistiu de imediato de retornar à pátria amada idolatrada salve, salve.

O cachorro vira-lata, para o Lucas Mendes, foi a representação do atraso do Terceiro Mundo.

Para mim, representa a glória. Tenho o maior apreço pelo vira-lata. Nelson Rodrigues dizia que nós, brasileiros, sofremos do "complexo de vira-lata". Isto é: nos sentimos inferiores aos povos de outras nações. Deveria ser o contrário. O complexo de vira-lata deveria ser um complexo de superioridade.

Li, certa feita, em uma revista National Geographic, que o vira-lata brasileiro é o animal mais inteligente do mundo. Sempre soube disso. O vira-lata é o ponto alto da evolução da espécie canina.

Foi um processo lento. Os cachorros, todos eles, descendem de nobres lobos. É que, no tempo em que éramos nômades, as alcateias seguiam os grupos humanos a fim de se alimentarem dos restos de comida deixados para trás. Eis que, em algum belo dia da pré-história, uma loba, sabe-se lá por qual razão, afastou-se dos filhotes, que foram adotados por crianças humanas. Esses filhotes cresceram, cruzaram e se reproduziram, como manda o Senhor. Suas crias nasceram no meio dos homens e a eles se adaptaram.

Não é à toa que se diz que o cachorro é o melhor amigo do homem. Porque ele, cachorro, moldou-se à imagem e semelhança dos seres humanos. O cachorro, na verdade, só existe por causa do homem e só sobrevive entre homens. Se da disputa entre russos e americanos sobrevier a III Guerra Mundial e a raça humana for extinta, os cães estarão sozinhos e, então, ocorrerá o processo inverno: eles voltarão a ser lobos.

Enquanto isso não acontece, os cachorros evoluem em outra direção: na direção do homem.

Mas nenhum, nenhum!, chegou aonde chegou o vira-lata brasileiro. Ele conhece a mente humana. Ele faz cara de coitadinho para nos comover. Ele não raro nos engana e nos usa, mas também sabe ser leal. Ele é brasileiro até no tipo físico: não é pequeno nem grande, tem em geral a cor do melado e o pelo curto, é ágil e cheio de manhas. O vira-lata é uma raça única, forjada ao relento, encostada às paredes externas dos prédios das nossas cidades, feita de acordo com nossa própria feição. Nós somos vira-latas! Com muito orgulho.

Mas o brasileiro, tristemente, não valoriza suas coisas. As famílias, o que elas querem? Cachorros "de raça", com pedigree e procedência. Meu amigão Potter, por exemplo, tem um lulu-da-pomerânia. Pode um brasileiro, ainda mais do Alegrete, ser dono de um lulu-da-pomerânia? Não, não pode. O Potter deveria abrigar em sua casa um guaipequinha amarelo, que roesse o osso da costela do churrasco e que uivasse de dor a cada gol levado pelo Inter. Os brasileiros deveriam rechaçar essas raças exógenas, deveriam salvar o vira-lata, essa instituição nacional. Assim, nós os tiraremos das ruas. Restarão apenas as crianças, sem escola, sem cuidados, sem dono. Como vira-latas. Como somos nós.

DAVID COIMBRA

09 DE MARÇO DE 2019
MÁRIO CORSO

Bons modos à fala



Dois generais caminham em sentidos opostos. Quando se encontram numa pinguela, surge o impasse: quem vai ceder a passagem? Os dois foram contemporâneos, têm a mesma idade, o mesmo número de estrelas. Quem cedeu?

Simples, o mais educado. Aquele que não está tomado na dinâmica de afirmação pessoal, portanto não necessita de episódios como este para saber de seu tamanho. A boa educação é mais que um conjunto de regras e geralmente envolve situações assim. Sabe esse pessoal que trata mal garçom, porteiro, agente de trânsito? Eles necessitam da assimetria social para fundar seu lugar. Ou seja, o desrespeito, arrogância e a prepotência são o palco de seu exercício de poder para ser alguém.

O politicamente correto é um movimento amplo, complexo e contraditório, mas a maior parte das críticas a ele endereçadas são por exigir respeito à diferença, em outras palavras, boa educação. A globalização dissolveu os consensos, a pluralidade é tal, que não há, como sempre houve, uma classe dominante, ou uma elite intelectual, a determinar os bons costumes. Como, então, orientar-se na nova Babel? O politicamente correto surgiu como instrumento imperfeito para minimizar os atritos. O desafio do nosso século é encontrar fórmulas de convívio para tantas e tão diversas tribos, isso exige ajustes. Até lá, teremos omissões e exageros. É certo que demanda trabalho e é cansativo, às vezes soa artificial, forçação linguística. Mas vocês me propõem o que em troca? O bom senso de quem?

A grosseria tem sido uma das saídas. Mandar tudo às favas e dizer o que vier à cabeça. E isso tem uma vantagem: soa verdadeiro. Por que motivo? Os psicanalistas sempre insistiram que por dentro não valemos nada. Somos um caldo agressivo e sexual que parcamente se civilizou. Deixados à própria sorte, sem as barreiras sociais, um Calígula está pronto a mostrar os dentes. O fascínio que a grosseria oferece provém disso. Ela revela algo que todos recalcamos, portanto parece autêntico quando vaza. Essa "verdade" não diz da realidade, mas do recalque, revela o preço que é viver em sociedade e a cobrança em dobro que é exigida em sociedades plurais.

Falar sem barreiras está na moda e ganha adeptos por causa do suposto valor da espontaneidade, que uns ousariam em nome dos calados coniventes. Como se a pessoa dissesse: isso me representa, também penso assim, mas sou impedido de expressar-me.

De fato, há uma repressão. Mas boa parte dos vetos é um pedido para que o sujeito guarde para si seus preconceitos, sua agressividade e seu provincianismo. É um constrangimento a não usar os ouvidos alheios como latrina e passar atestado de incapacidade de viver no século 21. Seu avô abriu mão do racismo ostensivo, seu pai do machismo exibicionista, faça sua parte.

MÁRIO CORSO


09 DE MARÇO DE 2019
REGIÃO METROPOLITANA

RS vai na contramão do país

Outro bom indicador do novo fôlego do setor privado de saúde é a retomada do crescimento no número de beneficiários de planos assistenciais, após três anos de queda nos contratos. De acordo com dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), 47,3 milhões de brasileiros - de uma população total de 208 milhões de habitantes - contavam com convênio médico (excluída a assistência odontológica) em dezembro de 2018. Ainda são 3 milhões de pessoas a menos do que o pico da década até aqui, registrado no final de 2014, quando 50,4 milhões de clientes tinham plano para acesso à rede particular, mas o número subiu em comparação com o ano anterior, 2017.

O Rio Grande do Sul, por outro lado, segue em ritmo de queda desde 2013. Com a retração da economia e o desemprego, os planos - um investimento permanente que, para muita gente, só é utilizado de fato em ocasiões eventuais - acabam sendo cortados da lista quando o orçamento doméstico aperta ou fica até mesmo zerado por um tempo.

Conexão com o Exterior é um salto nos degraus da excelência

Um ponto marcante da história recente do Moinhos de Vento foi a assinatura de um acordo de afiliação com a Johns Hopkins Medicine International, braço internacional da Johns Hopkins Medicine, iniciativa que congrega o corpo médico e científico da Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, no estado de Maryland, e o Sistema de Saúde Johns Hopkins, incluindo o hospital de mesmo nome.

- Se a gente quisesse ser igual ou melhor do que os hospitais de São Paulo, precisávamos dar um salto além - justifica Parrini.

Com essa conexão, há um intercâmbio de ideias e informações para aprimorar aspectos arquitetônicos, de fluxo interno e de pesquisa científica, além da capacitação de profissionais. Videoconferências entre o Brasil e os Estados Unidos são realizadas para discutir casos. Paralelamente, o HMV veio se preparando para se lançar no mundo acadêmico, com a Faculdade de Ciências da Saúde Moinhos de Vento, que neste semestre disponibiliza 50 vagas para a sua primeira turma de Ensino Superior, no curso de Enfermagem. Outras graduações e programas de mestrado e doutorado também estão no horizonte.

Em dezembro, a instituição colocou em operação um moderno software para o atendimento a pacientes que sofrem acidente vascular cerebral (AVC) do tipo isquêmico. O e-STROKE Suite aponta, nas imagens de tomografia, onde ocorreu o entupimento de vaso sanguíneo e as áreas que ainda podem ou não ser salvas, conforme o tempo decorrido desde o início da manifestação dos sintomas. Em imagens coloridas, o especialista pode decidir, com mais rapidez, como será a intervenção, tendo a chance de evitar sequelas e até a morte. Porto Alegre é a primeira cidade da América Latina a adquirir essa tecnologia. Nos R$ 70 milhões de investimento previstos para este ano, constam, ainda, a aquisição de um novo acelerador linear Truebeam para aplicação mais precisa de radioterapia e novas emergência cardiológica para pacientes graves e UTI de cardiologia e neurologia, entre outras iniciativas.

Está prevista para o final de abril a inauguração de uma nova emergência pediátrica, que recebeu R$ 12 milhões da família Vontobel, fundadora do grupo Vonpar. A Emergência Pediátrica Elone Schneider Vontobel, com área total de 500 metros quadrados e 20 leitos para pacientes em observação - atualmente são seis -, apostará na telemedicina, sistema que permitirá conectar o atendimento do doente em estado grave diretamente com a equipe da UTI, agilizando os processos.

Apenas nesta década, outras duas famílias tradicionais da sociedade gaúcha repassaram somas vultosas ao HMV para a implementação de melhorias, batizando os espaços com seus nomes. Em 2011, inaugurou-se a Maternidade Helda Gerdau Johannpeter (doação de R$ 25 milhões, em valores corrigidos), e, em 2016, o Centro de Oncologia Lydia Wong Ling (a família pediu confidencialidade, e divulgou-se apenas que os Ling contribuíram com parte significativa dos R$ 30 milhões totais).

09 DE MARÇO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

A MATURIDADE DA BANCADA GAÚCHA

É importante que a disposição atual dos deputados, apontada em levantamento feito por Zero Hora, se mantenha em relação ao projeto de reforma da Previdência

É promissor para o Estado que a bancada parlamentar gaúcha em Brasília, majoritariamente, demonstre maturidade em relação ao projeto de reforma da Previdência. Com essa atitude, que não exclui a necessária crítica e o debate, os deputados eleitos para representar os interesses dos eleitores do Rio Grande do Sul rejeitam o populismo fácil e o negacionismo irresponsável que afundaram as contas públicas e travaram o desenvolvimento do país.

Passado o Carnaval, chegou a vez de o novo Congresso, empossado em fevereiro, demonstrar até que ponto entendeu o recado de quem o elegeu. Uma reforma dessa relevância e magnitude não pode começar a tramitar com base em velhas práticas, rejeitadas nas urnas, como benesses e cargos. Mesmo eleitos com discursos contra a chamada "velha política", alguns legisladores ensaiam atitudes que lembram o condenável toma lá dá cá. Esse é o tipo de prática que não tem como ser tolerado.

Os legisladores precisam entender que ou as mudanças saem agora, ou o país se tornará inviável, pelo agravamento no déficit das contas públicas. Empurrar as saídas para mais à frente implicaria um custo elevado demais para ser bancado pela população. O Planalto precisa fazer a sua parte, colocando logo em prática uma campanha de esclarecimento e reforçando a defesa da proposta com base em argumentos objetivos e com o máximo de transparência.

Assim como o país, o Estado depende das mudanças para levar adiante os planos de equilibrar as contas do setor público. Nos últimos 10 anos, nada menos de R$ 99 bilhões, em valores corrigidos, foram repassados pelo Tesouro para cobrir o déficit com a aposentadoria de servidores. Só no ano passado, o rombo previdenciário consumiu quase 31% da receita corrente líquida, correspondente a tudo o que o Estado arrecada menos as transferências legais obrigatórias. Pelo bem do Rio Grande do Sul, é importante que a disposição atual dos deputados, apontada em levantamento feito por Zero Hora, se mantenha em relação à reforma da Previdência.

Muitas das adaptações previstas no texto da reforma do sistema de aposentadorias são bem-vindas, mas o Congresso precisa ter cuidado para não enfraquecer ou mutilar a proposta. A reforma da Previdência não é mais uma questão de opção, mas de necessidade. Quanto mais realista for o resultado final, menor será a necessidade de novas mudanças em um futuro próximo.

sábado, 2 de março de 2019


02 DE MARÇO DE 2019
LYA LUFT

Alegria, alegria


O mundo, a vida, são mesmo uma gangorra, ou montanha-russa (gangorra beeem maior). Num dia, numa semana ou mês, só desgraça: Brumadinho, o clube de futebol com meninos queimados vivos, o resto todo pelo país. O fora do Trump que caiu fora - mas, pelo menos de longe, para uma mera observadora e também espectadora de CNN, BBC e outras, ele tinha razão: o Foguetinho, como o chamou o americano, veio com exigências inaceitáveis. Nunca saberemos ao certo.

Vai daí que pelo Brasil se monta uma praça da alegria como poucas: o Carnaval. Nada tenho contra Carnaval (na minha adolescência, cheirava-se lança-perfume em público sem atinar com nada demais, aliás a gente não tinha muita ideia de nada e éramos felizes inocentes) nem festas nem celebrações, ao contrário. Acho que todos merecemos um brevíssimo delírio, desde que a gente se proteja do mal, amém.

Mas que é esquisito, é: há dias ou horas chorávamos pelos mortos de Brumadinho e pelos que continuarão emparedados na lama agora feita concreto, pelos familiares, pelas populações ribeirinhas do rio envenenado, que, como as de Mariana, talvez fiquem anos sem seu sustento, sua água, sua vida, ganhando - com sorte - dos responsáveis algo parecido com esmolas.

Há poucos dias, ou horas, a gente chorava pelos 10 meninos queimados vivos no clube de futebol carioca; também as famílias não parecem ainda ter recebido nenhuma compensação (se isso existe para a perda de um filho) ou oferta muito respeitosa pelas vidas cortadas daqueles que com certeza seriam, se já não eram, arrimo de suas famílias. Um dos meninos tinha dedicado seu primeiro pequeno salário a ajudar a avó a pagar o aluguel; outro pensava no futuro comprar uma casinha para a mãe; todos tinham, mais do que os comentados sonhos, vidas pela frente.

Mas passamos da lágrima ao rebolado com fantasia e tudo, numa alegria que, se for real, é bem-vinda - mas suspeito que em muitos casos possa ser máscara para encobrir os dramas maiores ou menores: dinheiro curto, saúde mal atendida, emprego escasso, esperança tremulazinha... Algum desconforto se espalha pelo país e nem sei direito por quê: talvez os anos de confusão tenham nos deixado impacientes.

Possivelmente porque tudo estava tão caótico que serão precisos anos de democracia com firmeza para consertar o que andava tão desconsertado.

Seja como for, do meu refúgio na Serra e no mato, darei pela televisão umas espiadas nos festejos. (Sim, eu vejo muita televisão e a cada dia descubro melhores programas: entrevistas, concertos clássicos, jazz, música brasileira, filmes, natureza - que muito me consola.) As estonteantes escolas de samba merecem ser admiradas.

No mais, acho que vou sambar mesmo com os bugios, as borboletas, e me alegrar com o pedaço da família que vai estar lá comigo. Para começar, as netas deslumbrantes. Essas que desde pequenas, junto com seus tantos primos, me diziam que eu era "uma vó muito divertida". E isso, para mim, era - e ainda é - uma celebração diária, muito melhor do que o melhor dos Carnavais.

LYA LUFT

02 DE MARÇO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Uma oração para os novos tempos


Que honremos o fato de termos nascido, e que saibamos desde cedo que não basta rezar um Pai-Nosso para quitar as falhas que cometemos diariamente. Essa é uma forma preguiçosa de ser bom. O sagrado está na nossa essência, e se manifesta em nossos atos de boa-fé e generosidade, frutos de uma percepção profunda do universo, e não de ocasião. Se não estamos focados no bem, nossa aclamada religiosidade perde o sentido.

Que se perceba que, quando estamos dançando, festejando, namorando, brindando, abraçando, sorrindo e fazendo graça, estamos homenageando a vida, e não a maculando. Que sejam muitos esses momentos de comemoração e alegria compartilhados, pois atraem a melhor das energias. Sentir-se alegre não deveria causar desconfiança, o espírito leve só enriquece o ser humano, pois é condição primordial para fazer feliz a quem nos rodeia.

Que estejamos sempre abertos, se não escancaradamente, ao menos de forma a possibilitar uma entrada de luz pelas frestas. Que nunca estejamos lacrados para receber o que a vida traz. Novidade não é sinônimo de invasão, deturpação ou violência. Acreditemos que o novo é elemento de reflexão: merece ser avaliado sem preconceito ou censura prévia.

Que tenhamos com a morte uma relação amistosa, já que ela não é apenas portadora de más notícias. Ela também ensina que não vale a pena se desgastar com pequenas coisas, pois no período de mais alguns anos estaremos todos com o destino sacramentado, invariavelmente. Perder tempo com picuinhas é só isso, perder tempo.

Que valorizemos nossos amigos mais íntimos, as verdadeiras relações para sempre.

Que sejamos bem-humorados, porque o humor revela a consciência da nossa insignificância - os que não sabem brincar se consideram superiores, porém não conquistam o respeito alheio que tanto almejam.

Que o mar esteja sempre azul, que o céu seja farto de estrelas, que o vinho nunca seja racionado, que o amor seja respeitado em todas as suas formas, que nossos sentimentos não sejam em vão, que saibamos apreciar o belo, que percebamos o ridículo das ideias estanques e inflexíveis, que leiamos muitos livros, que escutemos muita música, que amemos de corpo e alma, que sejamos mais práticos do que teóricos, mais fáceis do que difíceis, mais saudáveis do que neurastênicos, e que não tenhamos tanto medo da palavra felicidade, que designa apenas o conforto de estar onde se está, de ser o que se é e de não ter medo, já que o medo infecciona a mente.

Que nosso Deus, seja qual for, não nos condene, não nos exija penitências, seja um amigo para todas as horas, sem subtrair nossa inteligência, nosso prazer e nossa entrega às emoções que nos fazem sentir plenos.

A vida é um presente, e desfrutá-la com leveza, inteligência e tolerância é a melhor forma de agradecer - aliás, a única.

MARTHA MEDEIROS

02 DE MARÇO DE 2019
CARPINEJAR

A família longe dos contos de fadas


A família não é um conto de fadas, mas os contos de fadas não ajudam nem um pouquinho a família.

Cinderela é maltratada pela madrasta, o que todo mundo sabe, mas também pelas duas irmãs. Nem as irmãs inspiram confiança. O mesmo pode-se notar com os três porquinhos, que entram em uma competição para ver quem é melhor. O pai de Branca de Neve é omisso, e o da Bela sacrifica a filha para se salvar. Pinóquio não pode mentir senão perde a condição de humano. Lar é prisão, feito de inveja e ciúme.

As histórias só despertam suspeitas dentro de casa. Passa-se a mensagem de que o perigo dorme no quarto ao lado. A salvação vem de fora: ou com príncipes ou com anões, estranhos que devem resgatar as vítimas dos grilhões domésticos.

Talvez a avó de Chapeuzinho Vermelho seja uma exceção à regra, mas ela também sofre por ser boazinha.

Quem diz que as crianças não guardam essas ciladas imaginárias até dar o bote na adolescência? Como gostar da nova mulher que o pai casa ou do padrasto? Como não rivalizar com os manos? Como não se indispor com as tarefas, e não entender os encargos de arrumar a cama, faxinar e lavar a louça como exploração e castigo?

Na verdade, guarda-se o condicionamento de que é preciso suportar pai e mãe, aguentar os irmãos, para uma redenção externa, pessoal e egoísta. Alívio é se ver livre das próprias raízes e viajar o mundo.

Não existe noções de solidariedade e de completude nos laços de sangue. Ninguém ajuda ninguém a ser feliz ou superar os ritos de passagem. É a ideia que vigora nas construções maniqueístas ficcionais.

Não amamos a família. Pois colocamos na família a nossa culpa e fonte de problemas. Somos errados porque temos a referência traumática de tal mãe ou de tal pai, em completa e oportunista isenção de nossas responsabilidades e de nossas escolhas. Os desvios são debitados sempre em nossa origem. Quando acertamos, acertamos sozinhos. Os méritos são exclusivamente nossos. Quando falhamos, são os nossos provedores. É um jogo psicanalítico injusto para eles.

Ao ler os contos para os filhos dormirem, os pai não reparam, ingênuos que são, mas gradualmente vão virando os pesadelos de seus pequenos.

CARPINEJAR

02 DE MARÇO DE 2019
ANA CARDOSO

Carnavalizar a vida


Não sou careta nem conservadora, não tenho religião e talvez até não seja chata (isso são os outros que têm que dizer). Te garanto que você pode me contar a história mais esdrúxula do mundo que eu não vou te julgar, talvez só peça mais detalhes. Ao vivo, falo bobagens e palavrões e não me preocupo com a opinião moral dos outros. Mas é fato: não sou do Carnaval. Purpurinas, lantejoulas e glitter: olá, seres de outro planeta!

Eu morro de preguiça de pensar em fantasia, chegar tarde, fugir de confusão na rua, perder filho no bloquinho. E, quando uma amiga me chama: vamos levar as crianças no bailinho do clube, no sábado à tarde? Socorro, já logo aviso: nem que a vaca tussa. Barulho, confete por uma semana na corpo todo, criança chorando, querendo comprar espuminha pra jogar nos outros? Às vezes, nos olhos dos outros. Os atingidos choram, e você sabe que a culpa é do seu filho: tô fora.

Tenho uma amiga de Porto Alegre, engraçadíssima, a Camila, que passou tanto tempo na fila pra comprar batata frita, no ano passado, que já até montou seu kit 2019: uma sacola térmica cheia de comidinhas. Como sentem fome as crianças de hoje. Fome de comidas superfaturadas, principalmente.

Para mim, o Carnaval é só um feriadão que define o começo de um calendário que exige mais comprometimento dos viventes. Mas nem sempre foi assim. Quando eu era adolescente, amava os blocos de rua, as marchinhas, a permissividade geral e ter esse limite de "fim das férias" muito bem estipulado. Passado o Carnaval recomeçava o frio, a chatice, a rotina e entrávamos em contagem regressiva para a Páscoa. Que significava viajar para a praia de novo, fazer a manutenção do bronzeado, esquecer um pouco da escola, ou da faculdade e da vida na cidade.

Hoje, o Carnaval é viagem, trânsito, bicicleta, vinho branco e mais trânsito na volta. Estou naquele misto de inveja e incompreensão por quem vive a esperar tal data. De minha parte, que pouco aproveito, mas entendo o ponto de vista de um folião - sugiro: que tal diluir a brincadeira do entrudo no calendário do ano todo, reduzindo a seriedade e se permitindo fantasias e brincadeiras de janeiro a dezembro?

ANA CARDOSO


02 DE MARÇO DE 2019
ARTIGO

O país do DEPOIS

REFLEXÕES PROVOCADAS PELA SUCESSÃO DE TRAGÉDIAS NÃO NATURAIS NO BRASIL

Pela memória do jornalista Ricardo Boechat, morto em 11/2/2019

Tragédia natural: diz-se do evento que causa grandes danos (humanos, patrimoniais, ambientais) e cuja origem está ligada a fenômenos naturais. Terremotos, tsunamis, furacões ou tempestades se encaixam nesta descrição. Brumadinho, não. O evento não decorreu de nenhum desfeito da natureza à população e aos trabalhadores da mineradora: a barragem não era natural; os dejetos, embora minerais, também não o eram, pois lá não foram depositados naturalmente. E o rompimento sabidamente não se deu por terremoto, o que poderia ser o único motivo pelo qual o acidente pudesse, talvez, ser considerado natural.

Fato é que o país está acostumado a sediar - e, posteriormente, acompanhar suas coberturas midiáticas - catástrofes não naturais de grandes proporções. Estas, por definição, decorrem de ações ou inações do próprio ser humano.

Negligência, incompetência, imperícia, desonestidade e ganância são algumas das nuances vergonhosas de nossa condição humana que as causam. Temos então a primeira conclusão: catástrofes não naturais são catástrofes evitáveis - o que não quer dizer facilmente evitáveis.

Mas por que será que aqui ocorrem em tão grande número? O meu palpite mais forte: somos o país do depois. As pessoas, os governos, as empresas e a mídia só resolvem tomar atitudes depois que a merda aconteceu. Depois de Mariana, foram semanas e meses de "medidas urgentes" mirando outras barragens (as aspas são para, de fato, dar-lhes tom pejorativo, já que sempre tomadas a posteriori). Após terem sobrado do Museu Nacional apenas as paredes externas, choveram críticas sobre o descaso dos governos com o patrimônio histórico e cultural brasileiro. Precisou um prédio abandonado do centro de São Paulo, invadido e habitado por pessoas vulneráveis, pegar fogo, desabar por inteiro e deixar sete vítimas para que sociedade e a prefeitura acordassem para os possíveis riscos de tais invasões e habitações irregulares. E, sabemos, foi apenas depois da Kiss que assistimos a prefeituras e corpos de bombeiros cassando (quase indiscriminadamente) alvarás de bares e casas noturnas.

Coloquemos mais o dedo na ferida de nossa memória coletiva ao relembrar o Bateau Mouche. No último Réveillon, completaram-se 30 anos daquela trágica noite em que 55 morreram após o naufrágio de um barco cujo destino não poderia ser outro senão o fundo da Baía de Guanabara. O excelente documentário Arquivo N - Os 30 Anos do Naufrágio do Bateau Mouche explica muito bem a sucessão de ações e omissões humanas. Certamente houve medidas práticas, implementadas nos dias e semanas que se seguiram, com o intuito de que casos similares não se repetissem. Depois, como em Brumadinho.

Ser o país do depois não é uma conclusão, mas uma constatação. A lição que dela decorre é bastante óbvia, embora pareça que uma quantidade incrível de agentes da sociedade (os mesmos citados anteriormente) a desconheça ou a esqueça frequentemente. Se somos o país do depois é porque somos o país da negligência, da falta de atitudes preventivas. Soa ridiculamente óbvio? Vamos explorar um pouco mais o assunto para ver se o é tanto assim?

O aprendizado de bebês e crianças se dá principalmente através da tentativa e erro. Se por acaso um pai nunca ensinar a uma criança que fogo machuca, ela vai acabar aprendendo isso, mais cedo ou mais tarde. Na pele, literalmente. O approach brasileiro no gerenciamento de riscos costuma ser assim, infantil: só tomamos providências após já termos errado. Tínhamos, entretanto, plena capacidade para facilmente concluir, a priori do erro, que tomar providências era imperativo. Afinal, estamos no século 21: o conhecimento e tecnologias são vastos e disponíveis. Ou seja, não precisaríamos aprender errando.

Assim, depois do caso Kiss, buscou-se melhorar a segurança de casas noturnas, afinal são de fato estabelecimentos de muito risco (alta densidade de pessoas, som alto, luminosidade baixa, peculiaridade dos espaços físicos...). Mas e hospitais, também não têm especificidades que o tornam estruturas sensíveis? Ali temos produtos químicos inflamáveis, pessoas com extrema dificuldade de locomoção, edificações grandes, labirínticas e desconhecidas para boa parte dos indivíduos que lá dentro estão. Não é difícil de se imaginar o risco de perdas humanas que um incêndio de grandes proporções poderia gerar - sem falar nos danos potenciais de segunda ordem à comunidade, com o fechamento posterior, mesmo que temporário, da instituição.

E será que nossos estádios e pontes têm recebido a devida atenção preventiva? Ou precisaremos uma tragédia para entendermos que a força da gravidade existe e pode ser bastante impiedosa com quem a desafia? Brumadinho não teria ocorrido não fosse ela.

A cidade de São Paulo por exemplo, recentemente precisou ver um vão de um viaduto na Marginal Pinheiros ceder para se dar conta de que algumas de suas pontes e alguns de viadutos representam sério risco à vida de seus usuários. Pergunto-me se as outras prefeituras das grandes cidades do país e os órgãos estaduais e federais se mexeram ou apenas pensaram que "é um problema de São Paulo".

A limitação de visão do brasileiro é realmente impressionante! O acidente no CT do Flamengo gerou questionamentos sobre como estão as condições nos outros alojamentos na cidade do Rio (quiçá no Brasil), bem como a utilização de espuma de poliuretano em divisórias internas de contêineres de aluguel. Tais questionamentos precisam ser feitos? Claro. Mas ar-condicionado escolhe apenas alojamento de categorias de base de times de futebol do Rio de Janeiro para gerar curtos-circuitos e explodir? Arquitetos, engenheiros ou designers de interiores escolhem apenas contêineres de aluguel para prescrever divisórias com espuma de poliuretano?

Será que é tão, mas tão difícil fazer os diversos agentes da sociedade entenderem que risco se estima pela multiplicação da (1) probabilidade estimada de um evento ocorrer pelo (2) dano potencial - humano, material ou natural - que este evento poderá gerar? É uma definição/equação simplíssima, com duas variáveis. Porém extremamente poderosa.

Há muitos contextos em que incêndios podem gerar danos potenciais enormes. Assim, se se pretende de fato agir preventivamente daqui para adiante, assistir autoridades focando-se apenas em alojamentos de times de futebol de uma cidade - porque recém tivemos um evento em contexto similar - é gozar da capacidade crítica que um cérebro humano nos possibilita.

Moral da história: ser o país do depois significa, obrigatoriamente, não ser o país do antes. E não ser o país do antes significa que a nossa sociedade não dá bola para riscos relevantes os quais ela nunca vivenciou: somos incapazes de utilizar nossos cérebros para identificarmos a priori riscos potenciais controláveis e agirmos proativamente sobre eles.

O PAÍS DO ESQUECIMENTO

Mas o Brasil não é só o país do depois. É também o país do esquecimento - e aqui serei tão curto quanto é a memória da nossa sociedade. Passados os dias ou semanas de comoção nacional, a poeira baixa. As providências são tomadas enxergando apenas o que está em um passado próximo. Quando o fio do tempo vai passando por nós e aquela catástrofe maior já está lá longe, esquecemos. E, por conclusão lógica, se os agentes assim esquecem o que se passou, esquecidas também são as famosas "medidas" tomadas no pós-evento.

Interessante que esta falta de memória inclusive invalida a característica infantil (tentativa e erro) de nosso approach para gerenciamento de riscos. Afinal, a criança que se queima com fogo porque nunca a alertaram provavelmente nunca esquecerá, por toda sua vida, que fogo queima. Na Kiss, a fumaça e o fogo mataram 242. Será que as providências tomadas à época ainda estão sendo praticadas, fiscalizadas, melhoradas? Ou os agentes que de alguma forma têm responsabilidade sobre a segurança de casas noturnas (empresários, arquitetos, trabalhadores, frequentadores, órgãos fiscalizadores) esqueceram que fogo e fumaça em danceteria matam (e muito)?

THOMAS KEISERMAN

02 DE MARÇO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

OS IGNORANTES


No exótico reino de Lisarb, terra fadada à inversão dos fatos, ocorreu, em tempos hoje chamados de Ova Era, a mais terrível das catástrofes: a revolta dos ignorantes, que tomaram o poder. Terremotos e tsunamis parecem aurora com arco-íris, quando se vê o que fazem ignorantes com caneta e carimbo. Macacos tomaram a direção do ônibus, estavam em maioria, com poder legítimo, tinham alianças, megafones e forças de repressão. Balbuciavam escassas sentenças, refrões meio dementes e argumentos torpes, faziam mil trapalhadas e grosserias, e tripudiavam dos demais, enquanto jogavam enciclopédias pela janela e apedrejavam artistas, cientistas e professores. Como isso pôde acontecer, perguntavam-se os acuados sobreviventes. Afinal, quem eram os ignorantes, o que os produziu e como se livrar deste flagelo?

Há vários tipos de ignorantes. O mais singelo nem merece este nome quando designa quem não tem o conhecimento, mas respeita e ambiciona o saber. Neste tipo, há os que pouco ou nada sabem e os que querem tudo saber, e precisam sempre aprender muito; somos todos ignorantes em vários assuntos. Há, também, o que foi privado de condições de desenvolvimento e foi, assim, conduzido para uma penosa vala de exclusão cultural e social. Afora estes, há ignorantes com pedigree, que odeiam o conhecimento, e foram estes que produziram a inversão da ordem em Lisarb e em reinos vizinhos. Viu-se que uma frota de milicianos ignaros, com ganas, é capaz de chinelear uma nação diante de uma obra de arte, sem saber o que dá o Di, sem ligar para o beabá.

A complexidade da Era do Conhecimento assusta a muitos; acuados, cedem a opções temerárias, contra o que creem ser a causa de sua angústia, formas da modernidade. Cansam de explicações que não compreendem, de novidades desafiadoras, da diferença cultural e de alteridades, desconfiam da ciência, da educação e da democracia, e buscam refúgio sob as duas asas da pior ave de rapina, a religião e o patriotismo; a ave de rapina chama-se tradição, e devora o futuro nas entranhas do presente. Filme antigo: a modernidade, sem ser culpada, induz a refluxo e recuo histórico.

Em Lisarb, rompeu-se o tênue fio vital de todas as sociedades, que conecta ignorância e conhecimento. Parte da culpa vinha dos que detinham o saber, que não souberam se antecipar à sublevação ignara, e parte maior na forma suicida com que aquele reino construiu classes dominantes sem qualidade de elite cultural; no apogeu da revolta ignara, a oligarquia de Lisarb preferiu assumir-se como ignorante e tentar desfrutar de uma atrevida liderança de brutos sobre incautos, contra educados.

A democracia vive da relação produtiva entre ignorância e saber, promove disputa e aperfeiçoamento, requer partilha ecológica do conhecimento e da autoria. Enquanto rugiam os broncos em Lisarb, democratas tratavam de reconstruir o fio da vida, em jardins onde também os ignaros poderiam elevar-se e libertar-se de sua horrível condição. Aos poucos, voltariam a grafar o nome da nação no correto sentido, sem fraude patriótica, com todas as cores e amores de um belo Brasil.

FRANCISCO MARSHALL


02 DE MARÇO DE 2019
DRAUZIO

SUPLEMENTOS NUTRICIONAIS E CÂNCER

Pessoas que têm ou tiveram câncer costumam fazer uso de suplementos nutricionais. As razões são variadas: prescrição médica, indicações de parentes e amigos, esperança de melhora dos sintomas, da qualidade de vida e das chances de cura.

Os suplementos mais comuns costumam conter o abecedário de vitaminas, sais minerais, aminoácidos e extratos de plantas. Inquéritos internacionais mostraram que o consumo é mais frequente em mulheres com câncer de mama, e mais raro nos portadores de câncer de próstata.

Infelizmente, os estudos prospectivos e randomizados de acordo com critérios científicos rígidos sugerem que nenhum suplemento nutricional melhora o prognóstico ou a sobrevida nos casos de câncer. Pelo contrário, alguns deles levantaram a suspeita de que os suplementos aumentariam a mortalidade provocada pela doença.

Em 2006, uma avaliação conjunta de vários estudos (metanálise) mostrou que a suplementação com antioxidantes ou vitamina A, não foi capaz de reduzir a mortalidade associada a diversos tipos de câncer.

No Estado de Washington, o acompanhamento durante 10 anos de uma coorte formada por 77 mil pessoas, revelou que a suplementação com multivitaminas, vitamina C ou E não reduziu o número de mortes pela doença.

Em dois grandes estudos observacionais, o uso de diversos suplementos nutricionais ou multivitaminas em mulheres com câncer de mama em fase inicial não diminuiu o número de recidivas nem a mortalidade por disseminação da doença ou outras causas. Achados semelhantes foram relatados com a administração de multivitaminas nos casos de câncer de cólon em estágio inicial.

Um estudo com pacientes operados de câncer de cólon mostrou que a reposição de betacaroteno faz aumentar o número de adenomas intestinais (lesões benignas que podem se transformar em malignas) naqueles que fumam, consomem álcool ou ambos.

Num estudo prospectivo e randomizado, 540 pacientes com tumores malignos localizados na cabeça e no pescoço tratados com radioterapia, foram divididos em dois grupos: o primeiro recebeu 400 UI/dia de vitamina E; o segundo, somente placebo. Surpreendentemente, o grupo da vitamina E apresentou mais mortes por câncer e por outras causas.

Um estudo sobre prevenção publicado recentemente (Select) mostrou que os homens designados para receber selênio ou vitamina E apresentaram incidência mais alta de diabetes e câncer de próstata, respectivamente.

Uma revisão recém-publicada avaliou o papel da vitamina D em pacientes com câncer. Em nenhum estudo houve redução da mortalidade.

Esses dados falam contra as condutas antiquadas de receitar aleatoriamente suplementos para pacientes com neoplasias malignas. Embora pessoas com deficiências específicas possam se beneficiar da suplementação, aqueles bem nutridos não colherão benefícios e podem ser prejudicados.

A orientação da Sociedade Americana de Oncologia Clínica é clara: "Antes que os suplementos sejam prescritos e administrados, deve ser feito todo o esforço para que os nutrientes necessários sejam obtidos por meio da alimentação".

DRAUZIO

02 DE MARÇO DE 2019
LEANDRO KARNAL

LIVROS E TERAPIA



Franz Kafka tinha algo como 21 anos quando, em uma carta para um amigo, definiu por que vale a pena ler. Era uma resposta. Seu colega dissera que ler era algo que deveria ser feito para nos deixar felizes. Kafka dizia o oposto, que devemos tender à leitura daquilo que nos fere, nos machuca: Se o livro que estamos lendo não nos acordar com um golpe na cabeça, para que estamos lendo? Precisamos de livros que nos afetem como uma tragédia, que nos entristeçam profundamente, como a morte de alguém que amamos mais que a nós mesmos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado para o mar congelado dentro de nós. Essa é minha crença.

Meu sentimento não é tão trágico com o de Kakfa, mas quem sou eu perto do gênio... Humildemente, penso que livros ferem, curam, sossegam, inquietam, quebram o gelo dentro de nós, congelam a alma. Às vezes, esse efeito bipolar da leitura pode se dar em uma mesma obra. O fato inescrutável é que bons livros nos formam, nos transformam.

Essa regra é universal e por isso me dói pensar que somos um país com tão poucos leitores. O número deles cresceu, mas, em média, o brasileiro lê apenas 2,5 livros por ano (a maioria é de livros religiosos).

Estatísticas são escorregadias: dizer que lemos 2,5 livros em média por ano é omitir que 30% de nós nunca compraram um livro e que 25% dos que leram algo o fizeram por exigência da fé, da escola ou do trabalho. É uma pena. As soluções passam por melhorias na educação (dando maior capacidade de compreensão daquilo que se lê), acesso aos livros (bibliotecas públicas, doações, expansão das livrarias físicas e online). Essas são questões macroestruturais mais complexas. Mas há questões de hábito, que podem ser resolvidas mais facilmente, com a criação de um clube ou laboratório de leitura, por exemplo.

Meu amigo Dante Claramonte Gallian dava aulas de História da Medicina na Unifesp. Tratava de história da medicina e analisava grandes médicos do passado, como Galeno ou Harvey. Aquilo foi ficando estranho, não conseguia humanizar a medicina - que, em tese, deveria ser a quintessência do humano. Ele passou, então, a levar pequenos textos de autores antigos, medievais e modernos para que seus alunos lessem em primeira mão. A aula deu um salto A experiência cresceu e nasceu um laboratório de humanidades, que ganhou vida própria e se transformou no laboratório de leitura. Um clube de leitores. Ninguém precisa ler acompanhado. Nossos hábitos de ler são históricos e mudaram muito com o tempo, mas há séculos temos o costume de ler silenciosamente, como exercício introspectivo. Ler é solidão. Mas compartilhar a leitura é algo igualmente rico.

As experiências de ler como busca de conhecimento de si e do mundo, ler como terapia inclusive, viraram o livro A Literatura Como Remédio (editora Martin Claret). Dante desenvolve o uso de clássicos como forma de se reelaborar. O projeto hoje atinge empresas. Cada vez mais administradores percebem o valor de funcionários diferenciados pela leitura produtiva de clássicos.

Em chave distinta, Fernanda Sofio fez o texto Literacura - Psicanálise como Forma Literária (Editora Fap-Unifesp). Buscando a voz poderosa (e pouco conhecida, surpreendentemente) de Fabio Herrmann como guia, as ideias de Sofio buscam na sensibilidade da criação literária um caminho de compreensão. Minha leitura de Freud foi muito renovada pela capacidade de refazer seu caminho de ruptura (em detrimento do dogmático) a partir do que a Fernanda encontra na ficção, como na obra de Herrmann A Infância de Adão. Pelas mãos de Fernanda, li A Infância de Adão e, confesso, fiquei muito tempo tentando digerir todas as provocações do texto.

Em uma análise terapêutica, sofremos, rimos, superamos, perlaboramos, remoemos, destilamos, superamos traumas e passagens de nossa existência. Na leitura, fazemos o mesmo a partir do poder narrativo, da grandeza poética da pena de outra pessoa. Machado, Lispector, Pessoa, Kafka, Cervantes, Shakespeare, Austen e tantos outros nos formam, nos estruturam, nos fazem sair de nós mesmos para voltarmos diferentes, como em qualquer história de herói clássica: o retorno a nossa Ítaca nunca trará o mesmo Ulisses que partiu.

Quer pensar uma experiência desafiadora para 2019? Comece um grupo de leitura. Escolha pessoas interessantes. Talvez existam três delas entre todos os seus conhecidos. Adotem um clássico. Leia de forma pausada. Usem os métodos de Dante ou de Fernanda como guias, se desejarem. É preciso querer muito porque o entusiasmo inicial vai esbarrar nas agendas em breve. Se você tiver um bom clássico e possuir algumas pessoas interessantes capazes de repetir uma reunião semanal ou quinzenal, exulte! Você é uma pessoa privilegiada. O resultado da experiência é transformador e mais barato do que muitas soluções contemporâneas em busca de paz e de conhecimento.

Sugestões? O Livro de Jó na Bíblia, Macbeth de Shakespeare, Dom Quixote de Cervantes, Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, A Paixão Segundo GH de Clarice Lispector ou Memórias de Adriano de M. Yourcenar. Papel ou virtual? Irrelevante. Quantas páginas por semana? Subjetivo de acordo com o grupo, mas não mais de 50, para que se possa realmente aproveitar o debate. Digerir bem o texto é fundamental. Creia-me: tudo mudará no seu cérebro depois da experiência. Pensar é uma escolha metódica, é erguer uma cabeça acima do pântano e resistir ao frio externo. Pensar é sair das fogueirinhas acesas pelas bolhas sociais. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL

02 DE MARÇO DE 2019
PAULO GLEICH

EXCESSO DE PRESENTE


No dia em que saí em viagem de férias, fui uma das vítimas do drone que algum engraçadinho fez sobrevoar o aeroporto de Porto Alegre: meu voo atrasou, perdi a conexão e só consegui chegar no dia seguinte ao meu destino. Foi um começo torto para meus dias de descanso, rapidamente curado graças às águas límpidas e mornas do litoral baiano e à doçura de sua gente.

A reação dos passageiros ao anúncio do atraso e de sua causa oscilou entre a incredulidade e a raiva, por ser um motivo tão patético. Alguém mais exaltado bradava que se devia abater a tiros não apenas a geringonça como seu proprietário, com o ódio despudorado que em nossos dias tornou-se banal e até aceitável. Afortunadamente, não encontrou eco entre os demais, que apenas esperaram pacientemente até a normalização da situação.

Por graça do destino, que às vezes parece ter prazer em nos testar, o voo para o qual fui realocado também foi alvo de um atraso de mais de duas horas. Novamente, manifestações de indignação e raiva pipocaram entre os passageiros, mas antes que a onda avançasse começou o embarque e todos se acalmaram.

Na mesma semana, viralizou no Twitter uma história sobre um casal que distribuiu, no avião em que viajava, saquinhos com bombons entre os passageiros sentados próximo a seus assentos. Com os bombons, um bilhete pedia desculpas de antemão pelo possível incômodo causado pelo choro de seu bebê durante o voo. Muitos elogiaram o gesto dos pais, até que começou a circular a pergunta: por que é preciso se desculpar por algo tão natural como o choro de um bebê?

Ambas cenas colocam em jogo a intolerância com a frustração, que em algumas situações atinge ápices que beiram o ridículo. Sim, não é nada agradável ter seu voo atrasado por um motivo banal como um drone, mas imprevistos dessa e de outras naturezas são sempre uma possibilidade não só em voos como na vida. Quanto ao choro de um bebê, bem, não é nem um imprevisto: apenas um golpe do azar caso toque sentar perto do pequeno. Paciência.

Diz o senso comum da nossa época que vivemos demais no passado e no futuro, e que pouco estamos no presente. Discordo: tamanha intolerância à frustração revela um excesso de fixação no presente, sem possibilidade de ampliação da perspectiva. A exaltação com um atraso diz da impossibilidade de se descolar da situação atual, e a reação indignada reflete a necessidade de uma reação, mesmo que seus efeitos sejam estéreis - o voo não vai decolar mais rápido com os brados. No caso do bebê, ainda mais flagrante, ignora-se o óbvio: que todos nós já causamos incômodo com nosso choro, assim como o fazem ou farão nossos filhos.

Intolerantes às frustrações, somos insidiosamente invadidos por uma lógica que busca eliminá-las a qualquer preço: proibindo, censurando, excluindo e, em seu extremo, matando. Não se quer saber de causas, contextos, complexidades: apenas que a paz seja restaurada, e da forma mais simples e imediata. Acabe-se já com o que incomoda para restabelecer a paz - até que venha o próximo incômodo.

Os reflexos disso se veem em situações banais com as dos voos, mas também em outras mais sérias e graves, como os rumos da política e das questões sociais. Soluções imediatas são tentadoras para silenciar a frustração, mas não dão conta do principal: essa lógica nos faz reféns de nossas sensações imediatas - a mesma lógica, aliás, que rege a vida dos bebês e das crianças pequenas.

paulogleich@yahoo.com - PAULO GLEICH

02 DE MARÇO DE 2019
PESQUISA

UM TRUQUE PARA SALVAR VIDAS


CIENTISTAS AMERICANOS ESTÃO TREINANDO O SISTEMA IMUNOLÓGICO PARA ACEITAR NOVOS ÓRGÃOS

Não parecia um problema grave de saúde, apenas um sangramento no nariz que não queria parar. Por isso, em fevereiro de 2017, Michael Schaffer, que tem 60 anos e mora próximo de Pittsburgh, nos EUA, foi primeiro a um serviço de emergência local e depois a um hospital, onde um médico finalmente conseguiu cauterizar um pequeno corte que havia em sua narina. Então, o médico disse a Schaffer algo que ele nunca esperava escutar:

- Você precisa de um transplante de fígado.

Schaffer não tinha ideia de que seu fígado estava falhando. Até então, nunca tinha ouvido falar do diagnóstico: EHNA, ou esteato-hepatite não alcoólica, uma doença hepática gordurosa não relacionada a alcoolismo ou infecções. A doença pode não apresentar sintomas óbvios, mesmo se estiver danificando o órgão. O sangramento nasal era sinal de que o fígado de Schaffer não estava produzindo as proteínas necessárias para o sangue coagular.

A notícia foi acompanhada de outro susto: os médicos pediram a Schaffer que se tornasse o primeiro paciente a participar de um teste clínico que tentaria alcançar algo que os cirurgiões de transplantes vinham sonhando há mais de 65 anos. Se desse certo, ele receberia um fígado de um doador sem precisar tomar remédios agressivos que impedem o sistema imunológico de rejeitá-lo.

Antes de serem descobertos os remédios contra rejeição, os transplantes de órgãos eram simplesmente impossíveis. A única maneira de fazer com que o corpo aceite um órgão doado é suprimindo sua resposta imunológica. Mas as drogas em si aumentam os riscos de infecção, câncer, altos níveis de colesterol, doenças cardíacas avançadas, diabetes e falência dos rins. Em média, 25% dos pacientes morrem após cinco anos do transplante de fígado. Após 10 anos, esse número sobe para 35% a 40%.

- Mesmo que o fígado esteja funcionando, os pacientes morrem de ataque cardíaco ou falência dos rins. As mortes podem não ser causadas apenas pelos remédios contra rejeição, mas eles contribuem - diz Abhinav Humar, cirurgião de transplante do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh, que coordena o estudo de que Schaffer está participando.

Os rins, especialmente, são prejudicados.

- Não raro, precisamos fazer um transplante de rim em pacientes que já tinham transplantado o pulmão, o fígado ou o coração - informa Humar.

Normalmente, os pacientes sabem dos riscos oferecidos pelas drogas, mas a alternativa é pior: a morte, para aqueles que precisam de um novo fígado, coração ou pulmão; ou, para os pacientes renais, uma vida em diálise, que diminui ainda mais a expectativa e a qualidade de vida.

Uma luz no fim do túnel

Em 1953, o médico Peter Medawar e seus colegas realizaram um experimento na Grã-Bretanha que rendeu um Prêmio Nobel. Ele mostrou ser possível "treinar" o sistema imunológico de ratos para que eles não rejeitassem tecidos transplantados. O método utilizado não era exatamente prático. Envolvia injetar em ratos recém-nascidos, ou ainda fetais, células brancas do sangue de ratos sem parentesco. Quando os animais atingiam a idade adulta, os pesquisadores faziam um enxerto de pele dos ratos sem parentesco nas costas daqueles que receberam as células sanguíneas.

Os ratos aceitaram os enxertos como se fossem sua própria pele, sugerindo que o sistema imunológico pode ser modificado. O estudo levou a uma caça científica para encontrar uma maneira de treinar o sistema imunológico de adultos que precisem de novos órgãos. Essa se mostrou uma árdua tarefa. O sistema imunológico dos adultos já está desenvolvido, enquanto que o dos ratos bebês está ainda "aprendendo" o que é estranho e o que não é.

- Estamos tentando enganar o sistema imunológico do corpo, o que não é fácil - compara Humar.

Segundo James Markmann, chefe da divisão de cirurgia de transplante do Massachusetts General Hospital, a maioria dos estudos científicos até agora se concentrou em pacientes de transplante de fígado ou rim por diversas razões. Esses órgãos podem ser transplantados de doadores vivos, ou seja, as células do doador estão disponíveis para serem utilizadas na tentativa de treinar o sistema imunológico do paciente.

O rim lidera a lista dos órgãos de que as pessoas mais precisam. E esses rins transplantados raramente sobrevivem a uma vida inteira, sendo agredidos pelos remédios imunossupressores.

- Se você tem 30 ou 40 anos e recebe um transplante de rim, esse não será o único rim de que vai precisar - afirma Joseph Leventhal, que dirige os programas de transplante de rim e pâncreas na Universidade Northwestern.

Outra razão para dar preferência aos rins é que, "se algo der errado, não é o fim do mundo", ameniza Markmann. Se a experiência de libertar os pacientes dos imunossupressores falhar, a diálise é capaz de limpar o sangue. Já para outros órgãos transplantados, a rejeição pode significar a morte.

O fígado intriga os pesquisadores por diferentes razões. Ele tem menos chance de ser rejeitado pelo sistema imunológico do corpo e, se a rejeição realmente ocorrer, há menos perigos imediatos para o órgão. E, às vezes, após as pessoas terem vivido com um fígado transplantado por anos, o corpo delas simplesmente o aceita. Alguns pacientes descobriram isso sem querer, quando decidiram parar de tomar os imunossupressores por conta própria, normalmente devido aos altos custos e efeitos colaterais. Entre 15% e 20% dos pacientes que tiveram fígados transplantados e tentaram essa arriscada estratégia obtiveram sucesso, mas apenas após anos tomando as drogas.

Em um dos testes, Alberto Sanchez-Fueyo, especialista em fígado da King?s College London, relatou que 80% poderiam parar de tomar os remédios contra rejeição. Em geral, os pacientes eram mais velhos (o sistema imunológico fica mais fraco com a idade) e fazia tempo que estavam sob terapia de imunossupressão; a biópsia do fígado deles deu normal. Por outro lado, o dano causado pelas drogas imunossupressoras é cumulativo e irreversível, e prolongar seu uso por uma década ou mais pode causar prejuízos significativos. Mesmo assim, não há como prever quem vai conseguir ter êxito ao suspender a medicação.

O plano dos linfócitos T

Quanto mais os pesquisadores aprendiam sobre a sinfonia das células brancas do sangue que controlam as respostas a infecções e tipos de câncer - e órgãos transplantados -, mais esperançosos ficavam quanto à possibilidade de modificar o sistema imunológico.

Há muitos tipos de células brancas sanguíneas que trabalham juntas para criar e controlar as respostas imunológicas. Alguns pesquisadores, incluindo Markmann, optaram por concentrar esforços nas células chamadas de linfócitos T regulatórios. Essas raras células brancas do sangue ajudam o corpo a perceber as próprias células como não estranhas. Se há escassez dessas células regulatórias ou caso elas sejam deficientes, as pessoas podem desenvolver doenças em que o próprio sistema imune começa a atacar tecidos e órgãos.

A ideia é isolar as células T regulatórias de um paciente prestes a receber um transplante de fígado ou rim. Portanto, os cientistas vão tentar produzi-las em laboratório junto com as células do doador para, em seguida, inseri-las novamente no paciente. Os cientistas esperam que o processo ensine o sistema imunológico a aceitar o órgão doado como parte do corpo do paciente.

- As novas células T sinalizam para o resto do sistema imunológico que deixe o órgão em paz - explica Angus Thomson, diretor de imunologia de transplantes no Centro Médico da Universidade de Pittsburgh.

"viver até os 100 e morrer COM UM TIRO NA CAMA

Quando Schaffer, o paciente de Pittsburgh, descobriu que precisava de um fígado e que possivelmente seria o primeiro paciente do grupo de teste clínico, ele hesitou. "Alguém tem de ser o primeiro", desabafou. Ele começou a busca por um doador vivo, um parente próximo disposto a se submeter a uma cirurgia de grande porte para remover um lobo do fígado - ou um estranho disposto a doar e cujas células fossem compatíveis.

Os cientistas de Pittsburgh o orientaram sobre como proceder. Primeiro, perguntar à família imediata, depois a parentes, amigos e então colegas. Se não desse resultado, ele teria de começar uma campanha com flyers e posts no Facebook. Schaffer tem sete irmãos. Quatro tinham mais de 55 anos, muito velhos para enfrentar a remoção de parte do fígado de forma segura. Os três mais novos estavam com a saúde frágil. Ele passou a indagar sobrinhos. Três concordaram em doar, e uma, Deidre Cannon, 34 anos, que era compatível, submeteu-se à operação, que se realizou no dia 28 de setembro de 2017.

Após o procedimento, Schaffer estava tomando 40 comprimidos por dia para prevenir infecções e conter o sistema imunológico, enquanto o corpo aprendia a aceitar o novo órgão. Agora, só precisa de um, uma dose baixa de apenas um dos três medicamentos contra rejeição que tomava a princípio. E os médicos pretendem ainda suspendê-lo.

Esse caso pode parecer intrigante, mas Schaffer é apenas um paciente. Os cientistas pretendem testar o procedimento em outros 12 e, se tiverem sucesso, expandir o estudo.

Para Schaffer, tudo valeu a pena. Está ativo, trabalhando com o neto adolescente na troca dos azulejos do piso da cozinha. Tira neve e apara a grama para vizinhos e ajuda a cuidar dos netos depois da escola. Ele brinca:

- Meu objetivo é viver até os 100 anos e morrer com um tiro na cama disparado por um marido ciumento.

The New York Times - GINA KOLATA

02 DE MARÇO DE 2019
JJ CAMARGO

TER EM QUEM CONFIAR

Por que quase todos os sem-teto buscam o afeto de um cão e rua e fazem dele um parceiro de desdita e abandono

Que ninguém seja ingênuo de supor que se possa encontrar um poço de virtudes em um morador de rua. Por mais que tenha sido injustiçado, é frequente que este protótipo de solidão tenha sido construído com grande participação da vítima. Mas esse não é o ponto. O que interessa é que esse solitário padrão precisa de alguma maneira sobreviver, e isso significa encontrar algum objeto de solidariedade que seja confiável, apesar da completa ausência de atrativos. E então entendemos porque quase todos os sem-teto buscam o afeto, sempre confiável, de um cão de rua, e fazem dele um parceiro de desdita e abandono.

Como sempre, as amizades construídas na desgraça são mais resistentes, e, como combinam conformismo com reciprocidade, são mais calorosas e definitivas. Os responsáveis pelo resgate dos sem-teto, ameaçados de enregelamento nas noites implacáveis de inverno, referem a permanente resistência dos infelizes que se negam a abandonar os parceiros fiéis. Esses moradores de rua não se sentem nem um pouco seduzidos pela promessa de cobertor e comida quente se essas maravilhas não puderem ser compartilhadas com quem enfrentou tanto frio e fome sem latir em protesto.

De tanto enfrentarem essa resistência diante da oferta de albergue parcial, centros comunitários de algumas capitais passaram a oferecer o acolhimento duplo, e então, os dois amigos inseparáveis festejam a generosidade como modelos de um bloco único de pobreza e solidão.

É tão antiga esta relação entre o homem e o seu melhor amigo no reino animal, que a internet está cheia de vídeos, sempre emocionantes, como um recente que mostra um jovem oriental se preparando para viajar e explicando ao seu golden retriever da sua intenção, o que fez com que o bichinho primeiro se alojasse dentro da mala e depois, desesperado porque ficara pra trás, jogasse numa sacola todas as suas coisas, incluindo a bandeja de alumínio da comida, e saísse em disparada pela rua até alcançar seu dono que arrastava a mala pela calçada. A ternura do olhar no reencontro é de derrubar.

Aqui, na Avenida Getúlio Vargas, ao lado do Pão da Fé, a melhor padaria da cidade, há uma grande marquise, onde, nos dias frios, se acomodam os miseráveis famintos. Um dia desses, ao sair da padaria, fui chamado por um mendigo que pediu um dinheirinho porque estava "sem comer desde ontem". Como fome, feito frio, sempre mexe comigo, decidi voltar e comprar um sanduiche para garantir o melhor destino ao pedido. Quando fiz a volta para entrar no carro, percebi que depois de uma mordida generosa que consumiu metade do presente, ele ofereceu a outra metade a um vira-latas de olhos fundos que a devorou num instante, e em seguida lhe lambeu as mãos, de um jeito que os humanos civilizados não sabem agradecer.

JJ CAMARGO


02 DE MARÇO DE 2019
MÁRIO CORSO

Duro de morrer

Aos sete anos, nosso cachorro Bilbo, um buldogue francês robusto, teve uma convulsão e caiu duro no chão. Não se movia, não respondia a nada. Minhas filhas se desmancharam a chorar sua morte. Quando o desespero ganhou seu apogeu, ele bruscamente ficou em pé e saiu latindo para os cães que passavam em frente da casa, como se nada tivesse acontecido.

Dois veterinários, sem saber um do outro, olhando as radiografias do tórax, proferiram a mesma sentença: os dias estavam contados, talvez semanas de vida. Um coração agigantado oprimia os outros órgãos. Prescreveram uma dieta livre de sal, de gordura e de tudo mais que é bom. Compramos uma ração com gosto de gelatina de chuchu a preço de caviar russo. Bilbo a odiou e fez greve de fome por dias.

O conselho familiar reunido concluiu que, já que a morte era certa, que morresse feliz comendo o que gostava. Assim foi feito e ele viveu por mais oito longos anos comendo uma ração fuleira e gordurosa. Os veterinários não acreditavam no que viam, mas assim foi.

As síncopes seguiam. Várias por ano, mas na terceira ou quarta "morte" já nos habituamos ao Highlander. Em um dia infausto, no Carnaval de 2014, Bilbo morreu para sempre.

Minhas filhas, que aprenderam a andar sozinhas pelas ruas de Porto Alegre na sua companhia, sentiram-se órfãs. O porte dele lhes dava a segurança para o desafio da autonomia. Eu até hoje acordo com a ideia de sair para levar o Bilbo à rua.

Nas primeiras férias sem ele, estávamos na nossa casa no Uruguai na virada do ano. Meia-noite, fomos à praia apreciar os fogos. Um cão grande, de pelo lustroso e escuro, estranhamente insensível ao barulho dos foguetes, grudou no nosso grupo e nos acompanhou todo o tempo. As meninas o batizaram El Negro.

Na volta, nos seguiu até em casa e entrou antes de todos. Deitou onde o Bilbo deitava. Portou-se como se fosse seu lugar desde sempre. Quando as meninas foram dar mais um giro, ele as escoltou no passeio e retornou com elas. No outro dia, desapareceu como surgiu. Os vizinhos não sabiam dele. Ninguém nunca o tinha visto.

Sua aparição, tão empática como fugaz, deixou um rastro de fantasia. Nos enamoramos da ideia de que o Bilbo teria vindo nos fazer uma última visita antes de partir definitivamente para o céu dos cães. Era uma brincadeira, uma história para contar para os amigos. Afinal, cães de rua são dados a se fazer adotar preenchendo nossas carências com seus encantos.

Porém, um detalhe me inquieta. Quando entramos em casa, El Negro foi antes de mim ao lugar secreto no pátio onde escondemos as chaves. É um caminho não usual, um desvio do acesso natural. Como ele antecipou meu movimento?

Será que a experiência de morrer tantas vezes não teria ensinado ao Bilbo um truque extra, de driblar momentaneamente a morte para ver mais uma vez seus amados?

MÁRIO CORSO

02 DE MARÇO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

CARNAVAL NA PAZ

O clamor por mudanças não pode estar circunscrito à classe política, mas deve ser inspiração para o cotidiano de todos nós

A maior festa popular brasileira merece ser marcada apenas pela alegria e pela criatividade. Para tanto, não basta torcer pela redução das notícias sobre violência e sobre acidentes nas estradas. Mais do que uma questão de fiscalização, a segurança no feriado é uma responsabilidade de cada um dos brasileiros. Nossas estradas mal sinalizadas e com engenharia deficiente são um desafio extra no momento em que milhões de pessoas iniciam um merecido período de celebração ou de descanso. Se a combinação de álcool e direção for reprimida e evitada, certamente teremos manchetes mais leves e construtivas na Quarta-Feira de Cinzas.

Vale o mesmo para a venda de bebidas alcoólicas para menores de idade e para atitudes que possam configurar assédio contra qualquer indivíduo. Além de ilegais, tais práticas são incompatíveis com a expectativa de elevação ética revelada pelas urnas nas eleições passadas. O clamor por mudanças não pode estar circunscrito à classe política, mas deve ser inspiração para o cotidiano de todos nós.

O Carnaval não é um evento exclusivo de uma minoria social ou étnica, porque se confunde com a própria definição da identidade brasileira. Por isso, merece ser preservado e respeitado, assim como é feito com outras datas do calendário de festas e eventos nacionais. A redução drástica do investimento público nos desfiles e nas escolas de samba, em um contexto de cofres raspados, é um obstáculo extra, mas nem por isso intransponível.

Também é fundamental que o direito à diversão de muitos não atropele as normas básicas de conduta em espaços urbanos compartilhados. O Carnaval de rua, tradição que se renovou nos últimos anos em várias cidades gaúchas, é um teste para a civilidade de todos os envolvidos. Há necessidade de regras e de respeito aos horários de silêncio em regiões densamente habitadas. Cabe às autoridades uma presença ostensiva em regiões de grande concentração, dando segurança à maioria que deseja se divertir em paz. Tolerância e empatia são palavras-chave nesse contexto.

Até quarta-feira, quase tudo para. Reforma da Previdência, privatizações, projetos polêmicos. Vale também o reconhecimento aos que estarão trabalhando: policiais, salva-vidas, médicos, garçons, garis, jornalistas, motoristas e todos os profissionais necessários em uma sociedade estruturada. Neste Carnaval, devemos todos empenhar esforços para que, na quarta-feira, o Brasil acorde com apenas boas lembranças da festa e com ânimo renovado para encarar um ano de grandes desafios.