sábado, 8 de junho de 2019



08 DE JUNHO DE 2019
MÁRIO CORSO

Síndrome do Impostor

"Um dia alguém vai me desmascarar. Todos saberão que sou uma fraude, que sei menos do que deveria, que não tenho talento. Eu sou um blefe que deu certo."

Quem se identificou com o parágrafo anterior sofre da síndrome do impostor. Caso você seja um desses, permanentemente acossado pela ideia de ser descoberto, tenho três boas notícias.

Primeiro: se serve de consolo, isso é mais comum do que se imagina. Você não está sozinho, dá para fundar um clube.

Segundo: geralmente quem sofre com essas dúvidas não é um impostor. Aquele que não está à altura de um cargo ou missão raramente desconfia que não agrada. Vocês já devem ter visto a surpresa com que algumas pessoas são tomadas quando levam um fora, ou são despedidas, ou ainda recebem uma advertência. O susto é genuíno, pois não percebiam a dissonância entre o que valem e o que imaginam valer.

Terceiro: essa inquietude está mais ligada a pessoas inteligentes. Os que sentem-se confiantes tendem a ser mais limitados. Pessoas complexas, com um repertório de experiências rico, com alguma teorização sobre o que fazem, são mais inseguras por perceberem a possibilidade de múltiplas leituras, logo, a delas seria só mais uma.

Geralmente encontramos os casos de síndrome do impostor quando o sujeito ocupa uma posição que socialmente não é esperada. Do tipo: mulheres em chefias, onde o comum são homens; negros com destaque em ambientes dominados por brancos; jovens talentosos que ascenderam, mas trabalham cercados de velhas raposas. Ou seja, o olhar externo que condiciona os lugares ainda pesa sobre os recém-chegados.

Portanto, caro sindrômico, você é apenas um sujeito contemporâneo, inseguro, não por defeito de autonomia, mas por contemplar que a dúvida nos é inerente. Você percebe o mundo como plural e tem uma exigência dura quando avalia a si e ao resto. Sofre por ter autocrítica em excesso e fazer disso uma neurose, mas o contrário é pior. Não por acaso, no deterioro cerebral e na loucura, a incapacidade de fazer uma autoavaliação sobre as próprias capacidades é o primeiro sintoma de que algo não vai bem.

O fato é que amamos as pessoas seguras. Elas nos passam confiança, facilmente lhes damos crédito para que nos guiem. Claro, nem toda pessoa segura é simplória, mas toda pessoa de raciocínio simples arranja mais seguidores. Dá para fazer metáfora com a "cabeça oca": nos espaços vazios, as parcas ideias fazem mais barulho. Não tem muita coisa lá dentro, então ressoam com mais força as palavras vindas do cérebro unidimensional.

O problema é que não adianta tentar simplificar a realidade no grito, a vida segue enigmática e instigante. Nos resta aprender a enxergar a sabedoria em quem duvida e não nos profetas da certeza.

MÁRIO CORSO

08 DE JUNHO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

UMA VITÓRIA DO PAÍS

Decisão do STF de desobrigar o governo federal de fazer licitação e de ter autorização do Congresso para vender subsidiárias de estatais diminui insegurança jurídica

Um dos incontáveis nós das amarras que turvam o ambiente de negócios no Brasil e trazem insegurança jurídica para investidores começou a ser desatado com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), finalizada na quinta-feira, de desobrigar o governo federal de ter de fazer licitação prévia e contar com autorização do Congresso para vender subsidiárias de estatais. É um avanço para o país. 

A posição da Corte, que avaliava uma questão mais ampla sobre o grau de independência dos governos para privatizações, vai repercutir na prática na análise do caso da alienação da Transportadora Associada de Gás (TAG) pela Petrobras, que foi barrada por liminar, mas voltará a ser avaliada pelos ministros do STF na próxima semana. É uma transação de R$ 33 bilhões essencial para o processo de redução do endividamento da petroleira, que nas últimas décadas inchou e se meteu em áreas que não eram a sua especialidade original.

A sinalização também é positiva para a intenção da Petrobras de vender parte de suas refinarias, prosseguindo em sua estratégia de focar nas áreas de exploração e produção de petróleo e gás. É uma medida salutar por trazer maior competição ao setor, hoje monopolizado, e sinalizar aos possíveis interessados que o tema tem um entendimento firmado pelo Supremo. Embora a decisão do STF deva ser celebrada, o desejável seria que o tema nem sequer chegasse a ser judicializado. Mas foi, pelo sindicalismo que ainda resiste à modernização do país e apenas se agarra aos próprios interesses corporativos para manter privilégios.

O entulho, porém, não foi totalmente removido. Governo federal, Estados e municípios ainda precisam de aval legislativo para se desfazer de estatais. Assim, permanecem os obstáculos às tentativas do Executivo de se livrar de empresas públicas que, em grande parte, têm tamanho excessivo e hoje servem mais à cobiça política do que à sociedade. Em um momento de crise fiscal, acelerar desinvestimentos e obter receitas extras é essencial. Permite ainda que o poder público possa centrar suas atenções em áreas prioritárias para o contribuinte, como saúde, educação e segurança.

Apenas o governo federal tem hoje mais de 130 empresas. A maioria é controlada por Petrobras, Banco do Brasil, Caixa, Eletrobras, Correios e BNDES. Sob a batuta do ministro da Economia, Paulo Guedes, o país tenta empreender um esforço desestatizante. Há apetite pelos ativos brasileiros, principalmente por parte do capital estrangeiro, que pode trazer ao país os recursos novos, necessários para a retomada dos investimentos em áreas cruciais como infraestrutura. É o ponto de partida para destravar a roda da economia e começar a reação do emprego. Resta aos poderes da República garantir regras claras e minimizar o risco de surpresas negativas para quem acredita no Brasil.

OPINIÃO DA RBS


08 DE JUNHO DE 2019
SCOLA ENTREVISTA

"É preciso produzir mais, entregar melhores resultados ao cidadão"

ENTREVISTA | FABIANO DALLAZEN, Procurador-geral de Justiça do RS

Reconduzido ao cargo para um novo mandato, o procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, Fabiano Dallazen, ficará à frente do Ministério Público (MP) por mais dois anos com o desafio de tornar a instituição mais eficiente sem elevar gastos. A ordem é fazer mais com menos, com foco em temas que tenham impacto direto em assuntos de interesse público.

Qual deverá ser a marca da sua segunda gestão?

A prioridade primeira será a consolidação de uma cultura de gestão estratégica, para que a gente enfrente as dificuldades financeiras e orçamentárias do Estado e do país. É preciso produzir mais, entregar melhores resultados ao cidadão nas áreas prioritárias (segurança, saúde, educação, sustentabilidade e proteção social de vulneráveis), sem aumento da estrutura física. Para isso, vamos investir em gestão e tecnologia. O Ministério Público vai poder trabalhar e produzir mais desde que tenha uma cultura de estabelecimento de prioridades e gestão dos seus recursos humanos e materiais.

Isso significa que, em alguns casos, o MP se ocupa com assuntos que não dão resultado?

O Ministério Público tem uma gama muito grande de atribuições. Na área criminal, por exemplo, desde controle externo da atividade policial, investigações, atuação durante o processo, execução penal na fiscalização dos processos e dos presídios, política pública de segurança. Na área especializada: consumidor, urbanismo, meio ambiente, patrimônio público, patrimônio cultural. A verdade é que temos de estabelecer prioridades, que são aquelas com maior reclamo e aquelas em que a gente pode produzir impacto social maior. 

A nossa prioridade não é produzir número. Então, determinados processos em que não é tão necessária a presença do Ministério Público ficam de fora dessa prioridade para que a gente possa concentrar esforços e recursos nessas áreas e, principalmente, em uma atuação extrajudicial preventiva, desafogando o Poder Judiciário e produzindo uma solução para o conflito sem ficar anos e anos em uma disputa judicial.

O senhor pode dar um exemplo de como o MP será mais eficiente?

Posso dar vários. No ano passado, tivemos mais de 1,5 mil recomendações e firmamos mais de 2 mil termos de compromisso. São acordos feitos com a outra parte em ações quanto ao patrimônio público, em ações ambientais, consumidor. São acordos antes da judicialização. Tivemos 2,3 mil acordos completamente cumpridos, que foram firmados em outros anos. Isso significa 3 mil ações civis públicas a menos em 2018 no Poder Judiciário. E o problema que seria levado para ser discutido nessas ações foi resolvido com diálogo e o estabelecimento de um cronograma de prazos, cedendo alguma coisa. 

Quem acaba ganhando é o cidadão, porque a resolução fica mais rápida. Em todas essas áreas, seja com entidades privadas, empresas, prefeitos ou outros órgão do poder público, essa forma de resolução do problema extrajudicial e preventiva é mais barata e mais rápida. Portanto, mais eficiente. O poder público precisa ter eficiência e, para isso, precisa entregar um resultado com menor custo e em menor tempo ao cidadão.

O cenário estadual é de dificuldade financeira e necessidade de enxugamento nos gastos públicos. Qual é a contribuição do MP?

O Ministério Público, quando fala da sua autonomia financeira e administrativa, da qual a gente não pode abrir mão, vem implementando uma gestão austera há um bom tempo. Os números mostram que estamos diminuindo a nossa participação na receita corrente líquida do Estado e, mesmo assim, produzindo a cada ano melhores resultados. Então, a gente vem colaborando sucessivamente com essa austeridade. O Ministério Público nunca se negou. 

A prova disso é que nos últimos quatro anos, praticamente em três deles, se criou um acordo apenas para o crescimento vegetativo com o congelamento nas verbas de custeio e crescimento. Com muita gestão e sem aumentar o número de membros e servidores, apenas com reposição, estamos conseguindo produzir bons resultados para a sociedade. Então, podemos concordar e trabalhar como a gente vem fazendo até o limite em que não prejudique o serviço que a instituição presta ao povo gaúcho.

A Operação Pulso Firme foi uma das ações mais marcantes do MP na área criminal nos últimos anos no Rio Grande do Sul. É possível fazer outra operação nos mesmos moldes para atingir o topo da pirâmide das organizações criminosas?

A questão agora talvez não seja no sentido de fazer uma grande operação, mas, pontualmente, aquelas lideranças que forem sendo formadas possam ser isoladas. Isso vem acontecendo. O segundo grande passo é a criação de um regime disciplinar diferenciado no sistema penitenciário do Rio Grande do Sul, para que a gente possa, aqui mesmo, isolar as lideranças das nossas facções.

Como seria feito isso?

Ou você constrói uma área separada dentro dos novos presídios ou pega um dos presídios que tem hoje e naquela área monta uma estrutura que quebra completamente a comunicação dos presos e permite aquelas questões do regime disciplinar diferenciado: menos tempo de sol, comunicação com familiares absolutamente restrita, comunicação com o mundo externo muito limitada e monitorada. É um regime de exceção aplicado àqueles presos. Não são todos os detidos. Mas você veja, o Rio Grande do Sul tem 40 mil presos. 

Desses, 28 foram para presídios federais. São as grandes lideranças que têm de ser cortadas completamente seu contato com o mundo externo. Poderíamos fazer isso e manter esses presos isolados aqui mesmo. Esse seria um grande passo. E a descapitalização, que a gente vem trabalhando com a Polícia Civil para coibir a lavagem de dinheiro.

Em seu discurso de posse, o senhor fala em moderação. Como avalia o papel do Ministério Público no contexto de polarização do país?

Hoje, mais do que nunca, precisamos de uma política séria e de instituições fortes. Não podemos cair na tentação, e a história nos mostra, de radicalizarmos, enfraquecermos as instituições ou buscarmos outras vias que não a política. A democracia requer instituições fortes e uma política séria. As instituições têm de ter compromisso com os valores da Constituição: liberdade de expressão, religiosa, de imprensa. 

A aplicação desses valores dentro de uma democracia tem de ser feita com moderação. O radicalismo, muitas vezes, acusa os moderados de serem fracos, a verdade para ser ouvida não precisa ser violenta. Ela tem de ser pelo convencimento, pelo diálogo, pela ponderação, para que a gente possa avançar. Então, me parece que hoje a amplificação pelas plataformas digitais desse debate raso e pouco racional não pode suplantar o que está na lei, na razão e na essência da democracia. E as instituições têm de preservar isso, sob pena de perecimento das instituições e da própria democracia.

DANIEL SCOLA

08 DE JUNHO DE 2019
INFORME ESPECIAL

O HERÓI INVISÍVEL E ESQUECIDO DESSA CENA


O manifestante que parou em frente ao tanque não é o personagem mais intrigante dessa imagem - símbolo da resistência à ditadura chinesa durante os protestos na Praça Tiananmen de Beijing, em 5 de junho de 1989.

Durante a semana, quando os 30 anos do fato foram lembrados, a cena emergiu dos arquivos analógicos e digitais para ganhar vida novamente.

O homem que enfrentou os blindados nunca teve a sua identidade confirmada. Não se sabe também o que aconteceu com ele logo depois daquele dia. Recebeu os apelidos de "manifestante solitário" e "homem do tanque".

Cada vez que revejo o vídeo, quem me fascina é um outro personagem: o motorista do primeiro blindado da coluna que avançava pela praça. Me pergunto o que teria acontecido com ele se apenas tivesse seguido em frente. Talvez até recebesse uma condecoração pelo estrito cumprimento do dever.

Corajoso é também o homem que tem essa força descomunal ao seu dispor e sinal verde para usá-la, mas decide frear e desviar diante de um semelhante. Foi um gigantesco ato de heroísmo, desprezado pela narrativa míope para a grandeza plena daquele instante. O momento é carregado de uma humanidade extrema, em ambos os gestos - o de antepor o corpo ao blindado e o de deter o avanço dele, como reação.

Também o soldado que conteve as toneladas de aço foi forte. Talvez nunca receba o reconhecimento que merece porque, nesse caso, a História é contada pelos vencidos.

Uma história com dois personagens. Um homem e um tanque? Não. Dois homens. Um deles invisível, mas tão admirável quanto o que ficou famoso.

TULIO MILMAN

sábado, 1 de junho de 2019



01 DE JUNHO DE 2019
LYA LUFT

Amigos à parte

De todas as relações que temos no mundo, na vida, ainda mais se for longa, possivelmente esta seja a mais essencial: a amizade.

Pois mesmo entre pais e filhos, e marido e mulher ou amantes, a amizade deve ser um traço de confiabilidade. Confio nele, nela, porque há entre nós, além de laços de sangue e amor, uma amizade que inclui respeito, entendimento, paciência, compreensão, alegria, bom humor. Amigo não tem ciúme, amigo não abandona, amigo não ofende conscientemente, amigo também procura não mentir ainda que doa, a não ser que a verdade fosse demais mortal.

- Que qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com quem pretende um relacionamento? - perguntou o jovem jornalista, e respondi: aquelas que se esperaria no melhor amigo. O resto, é claro, seriam os ingredientes da paixão, que vão além da amizade. Pode ser um bom critério. Não digo de escolha - pois amor é instinto e intuição -, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir.

Eu não quereria como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu.

Falo daquela pessoa para quem posso telefonar não importa onde ela esteja, nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: "Estou mal, preciso de você". E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for.

Mais reservada do que expansiva num primeiro momento, mais para tímida, tive sempre muitos conhecidos e poucas - mas reais - amizades de verdade, dessas que formam, com a família, o chão sobre o qual a gente sabe que pode caminhar.

Falo de pessoas para as quais eu sou apenas eu, uma pessoa com manias e brincadeiras, eventuais tristezas, erros e acertos, os anos de chumbo e uma generosa parte de ganhos nesta vida. Não uma escritora conhecida: sou gente. Com uma dessas amizades posso fazer graça ou fazer fiasco, chorar, eventualmente dizer palavrão quando me irrito ou quando esmago o dedo na porta. (Ou sempre que me der vontade, aliás.)

A amizade é um meio-amor sem o ônus do ciúme - bela vantagem. Ser amigo é rir junto, é dar o ombro pra chorar, é poder criticar (com carinho, por favor), é poder apresentar novo amor ainda que meio esquisito, é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação.

Quando mais uma vez o destino tirou de baixo de mim todos os tapetes e perdi o prumo, o rumo, o sentido de tudo, foram amigos, amigas - e meus filhos, jovens adultos já revelados amigos -, que seguraram as pontas - pontas ásperas aquelas.

Com amigos, sem grandes conversas nem palavras explícitas, aprendemos solidariedade, simplicidade, honestidade, e carinho. Com eles a gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo complicado e desanimador, deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo.

LYA LUFT


01 DE JUNHO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Em busca de um diagnóstico

Em um espaço de um mês, minha mãe foi internada duas vezes no mesmo hospital e recebeu alta em ambas sem saber direito o que teve, mesmo estando sob o cuidado de excelentes médicos e enfermeiros, e de ter sido minuciosamente examinada. Na falta de um diagnóstico preciso, passei a refletir a respeito desse universo com que tinha pouca familiaridade.

Do ponto de vista do paciente, é uma chatice, claro. Hospital, na maior parte das vezes, está relacionado à doença. A pessoa entra fragilizada, com dor, sem saber se sairá viva e a mercê das escolhas de estranhos - que remédios tomar, de quantas em quantas horas, se pode levantar, o que deve comer: o oposto do livre arbítrio. 

Tem que dar adeus ao pudor também. Seu corpo não lhe pertence mais. Será apalpado, investigado, perfurado. Seu sono será interrompido no meio da noite para que colham seu sangue, tirem sua temperatura, questionem sobre seu cocô. Parece ruim, mas é o paraíso, pois é evidente que o paciente em questão tem um plano de saúde que cobre um quarto individual. Bem diferente da maioria da população, que leva meses ou anos para ser atendida, muitas vezes no corredor mesmo, por falta de leito.

Voltemos ao hospital em sua versão idílica. Um ambiente silencioso, higienizado e distanciado de tudo o que se conhece como realidade, aquela constituída de hábitos, rotinas e compromissos. Dentro de um hospital, não existe sexta à noite, terça de manhã, Dia dos Namorados. É um exílio sem calendário. Um território neutro, ativo 24 horas, onde plantonistas se revezam, médicos entram e saem, doentes se curam ou falecem. Uma amostra condensada da dinâmica da vida.

Sobre a experiência do paciente, acabo de especular. Sobre a experiência do acompanhante, falo com mais propriedade, já que passei muitos dias lá dentro. A questão é que não estamos doentes e há um turbilhão de tarefas aguardando por nós lá fora, além da nossa cama macia. Mas nossa mãe adoeceu. Ou nosso pai. Nosso irmão. Um filho. Você não está acompanhando um desconhecido, mas alguém por quem possui um sentimento grandioso - e com quem quase não conversava mais por falta de tempo.

Era onde eu queria chegar: nunca conversei tanto com minha mãe, nunca rimos tanto, nunca estivemos tão juntas durante os dias que se arrastaram naquele quarto impessoal. Um hospital pode ser um calvário, mas pode ser também o local em que você se liberta de papéis cumpridos mecanicamente e resgata a sensibilidade e a humildade diante da dor alheia. O diagnóstico, no fim das contas, às vezes é apenas este: ausência. E o remédio, presença.

MARTHA MEDEIROS

01 DE JUNHO DE 2019
CARPINEJAR

Apego misterioso

Não menospreze os objetos do outro. Nem julgue pela aparência. Podem ser de estimação. O valor emocional nunca está explícito na etiqueta. Assim, um tênis velho talvez seja o mais confortável. Um chinelo indigente talvez represente a liberdade do lar.

Não são objetos de méritos ostensivos, como relógio antigo e um colar de prata. Mas objetos quebrados, machucados, sofridos, enferrujados.

Meu avô Leônida, por exemplo, entrava em pânico quando não achava a sua tesourinha de aparar bigode, da época de sua adolescência na Itália. Ainda que tivesse uma crise nacional, greve geral, alta do dólar, ele não seguia a sua vida se não localizasse o seu apetrecho da barba. Não importava se o mundo estava em armas ou desalmado, se as trombetas de Jericó já haviam sido tocadas, só desejava desvendar o paradeiro de seu talismã. Suspendia a sua noção de realidade pela fixação da ideia. Não conseguia conversar e se relacionar antes de resolver o enigma.

Na raiva, falava em esperanto. Misturava as línguas e as pátrias, e ninguém decifrava o que dizia.

- Dove é la tesoura de podar bicote?

Às vezes, ele nem queria a tesourinha para usar na hora, era somente para se certificar de que permanecia no mesmo lugar que deixou.

Sua maior indignação foi quando desapareceu o seu pulôver amarelo, gola V, que repousava eternamente na cadeira de espaldar. Tamanho o apego, nem corria o risco de colocá-lo para lavar. Vestia a malha para cortar lenha de manhã, espécie de uniforme da neblina. Qualquer um o enxergava de longe rachando as achas de madeira com a machadinha no quintal.

Depois de procurar incansavelmente nas gavetas e armários, de esculhambar a casa como um assaltante apressado, de revirar o quarto sem compaixão, guardou o orgulho no bolso e teve que pedir ajuda em português soletrado. Chegou perto da nonna que encerava o piso e perguntou se ela não se enganou e pegou a peça por engano (mesmo ciente de que não há engano em casamento de mais de vinte anos). Ela nem necessitou responder.

Leônida enxergou o pulôver amarelo nos pés de sua esposa. De tão velho, havia sido aposentado à força e lustrava agora o chão.

CARPINEJAR

01 DE JUNHO DE 2019
PIANGERS

Escrever é fácil

Estava no corredor número oito do supermercado do bairro assistindo a minha filha pequena fazer um glorioso escarcéu anunciando para todos os clientes o quanto queria ganhar doces e o quanto o seu pai (o papai pop!) era péssimo ao não satisfazer suas vontades chocólatras. Ela gritava coisas do tipo "mas eu queeeeeeeerroooooooooooo" e eu me lembrava que, antes de ter filhos, jurava que jamais aceitaria que filho meu fizesse cena no supermercado, ele iria levar um tapa tão bem dado que ficaria desnorteado e jamais pediria nada nunca mais, pelo contrário, decidiria ali mesmo começar a trabalhar e se formaria em Medicina antes dos 18 anos. 

Pobre ilusão, o fato é que minhas filhas vieram e acabei incapaz de agredi-las, que bom que todas as pesquisas científicas comprovam que palmada é a pior atitude mesmo e o certo é explicar as coisas para a criança. Ufa.

Para piorar, toda vez que minhas filhas dão vexame, tem alguma pessoa que me reconhece por perto, todas as pessoas que leem esta coluna, e meus livros, e veem meus vídeos e palestras e esperam que eu seja o pai perfeito e minhas filhas tenham comportamento impecável. Óbvio que isso não acontece, primeiro porque não sou pai perfeito, pergunte à minha esposa, e segundo porque não existe criança que não faça algum tipo de drama quando quer ganhar alguma coisa.

Lá estava eu no corredor número oito do supermercado e um cidadão de bigode e óculos passou com seu carrinho, percebeu a cena que minha filha estava fazendo e disse: "Escrever é fácil, né?", enquanto eu tentava acalmar minha filha. Alguns leitores são muito desagradáveis, como podem ver. Tenho certeza de que não é o seu caso, mas foi o caso daquele senhor de bigode e óculos, que, se eu não me engano levava papel higiênico no carrinho e não era nem da marca mais cara.

Não tenho vergonha de dizer que aqui em casa minha filha de seis anos lava a louça de vez em quando, já preparou sua própria comida (fez arroz, fritou o bife e o ovo) e sempre que acaba de se alimentar coloca o prato na pia. Ela também escova os dentes e dorme cedo, faz a tarefa de casa e arruma o quarto sempre que pedimos. Considero-a uma menina muito obediente mas, como já disse, de vez em quando dá um show de indisciplina, geralmente em lugares públicos e quando alguém que me considera o melhor pai do mundo está vendo. 

Quando ela não quer ir embora da casa de uma amiguinha, por exemplo, lá estou eu ajoelhado implorando para que ela venha comigo enquanto peço desculpas aos donos da casa. Ou pior, quando estamos em algum restaurante e ela fica chateada de não ganhar sobremesa, todas as pessoas sentadas perto da nossa mesa ouvem os gritos e pensam: "Jamais permitiremos esta algazarra quando formos pais!". Rá, penso comigo mesmo. Faço votos de fertilidade.

Quando uma repórter me perguntou "como criar crianças perfeitas?" e eu respondi, rapidamente: "Não sei!". Não conheço crianças perfeitas, não conheço pais perfeitos e, certamente, não conheço adultos perfeitos. Conheço apenas aqueles que tentam acertar e que aprendem com os erros. Crianças farão pirraça, como fizemos eu e você. Em lugares públicos, minhas filhas colocarão em xeque minha fama de bom pai. Mas elas são comportadas quando ninguém está olhando. Eu juro que são.

PIANGERS


01 DE JUNHO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

MENSTRUAÇÃO

Ciclo biológico sempre foi cercado de tabus que dificultaram a realização de estudos dos transtornos causados por ele

Menstruar é uma característica humana, raríssima entre os mamíferos. Menstruam as mulheres, as chimpanzés, as fêmeas de algumas espécies de morcegos e do musaranho-elefante, animal africano do tamanho de um rato.

Enquanto nas demais espécies a camada que reveste a parte interna do útero (endométrio) é absorvida no fim de cada ciclo, e a fase fértil exibida por meio de inchaço dos genitais externos, de alterações comportamentais e de odores que atraem os machos, nas mulheres a ovulação é mantida em segredo. O único sinal visível de fertilidade é o sangramento vaginal, estrategicamente exposto nos dias em que não há óvulos a fecundar.

Virginia Sole-Smith faz uma revisão na revista Scientific American, na qual explica que o endométrio se espessa no decorrer do ciclo, em preparação para aninhar os óvulos fecundados. Mantê-lo nutrido indefinidamente em condições ideais para a nidação exigiria gastos metabólicos permanentes, evitados ao eliminá-lo para reconstruí-lo no ciclo seguinte.

A menstruação sempre foi cercada de tabus que dificultaram a realização de estudos dos transtornos causados por ela.

Publicada em 2018, uma pesquisa com 738 mulheres da Arábia Saudita revelou que 91% delas referiam pelo menos uma queixa menstrual: irregularidade, interrupção, dores, sangramento abundante.

Levantamentos conduzidos em outros países mostraram que: 1) uma em cada cinco mulheres tem cólicas menstruais fortes, a ponto de limitar as tarefas diárias; 2) uma em cada 16 mulheres sofrem as dores intensas da endometriose, doença em que sangue menstrual e restos de endométrio migram para o interior da cavidade abdominal, instalando-se nos órgãos pélvicos, nos intestinos e no peritônio; 3) uma em cada 10 mulheres apresenta a síndrome do ovário policístico, capaz de provocar irregularidades nos ciclos, problemas dermatológicos e infertilidade; 4) cerca de 80% das mulheres se queixam de sintomas do transtorno disfórico pré-menstrual (TPM) - irritabilidade, depressão, ansiedade - na semana anterior à menstruação, que persistem até o segundo ou terceiro dia depois que o sangramento se instala.

Menstruar 12 vezes por ano, durante anos consecutivos, é fenômeno moderno. Antes da segunda metade do século 20, as mulheres engravidavam cedo e as taxas de natalidade eram altas. Somados aos nove meses de gravidez os períodos de amamentação, cada filho significava dois a três anos de amenorreia. Estima-se que durante a vida fértil uma mulher do passado menstruasse cerca de 100 vezes, número incomparável à média de 400 menstruações atuais.

Além da tendência moderna de engravidar mais tarde e de dar à luz menos vezes, as meninas de hoje menstruam mais cedo. No Brasil e em muitos países, a menarca ocorre em média aos 12 anos de idade. Há apenas 20 ou 30 anos, acontecia seis meses mais tarde; no início do século 20, aos 14 anos.

Dietas com densidade calórica alta, obesidade infantil, sedentarismo, estresse e até fatores ambientais, como a exposição aos bisfenois e ftalatos contidos nos plásticos, explicariam essa precocidade.

O tabu da menstruação vem de longe. Em 1920, o húngaro Béla Shick assegurou ter observado que buquês de flores murchavam mais depressa em mãos de mulheres menstruadas. Concluiu que o sangue menstrual conteria uma espécie de veneno. Na Amazônia, há quem jure que o boto cor de rosa ataca as canoas que transportam mulheres "naqueles dias".

Nos anos 1950, pesquisadores da Universidade Harvard injetaram sangue menstrual em animais. As mortes ocorridas não foram interpretadas como resultantes de infecções bacterianas, mas provocadas por improváveis substâncias tóxicas, às quais deram o nome de menotoxinas.

Associar a menstruação às impurezas é crença presente em diversas culturas. O mesmo preconceito está por trás da dificuldade que as mulheres têm em tocar nesse assunto, em geral restrito à intimidade entre elas.

A falta de pesquisas para desvendar a natureza de um fenômeno biológico que interfere com o cotidiano de metade da população mundial, durante décadas, é reflexo do valor que a sociedade atribui ao sofrimento das mulheres e do comportamento autoritário que os homens insistem em manter para subjugar os desígnios do corpo feminino.

Se sofrêssemos, prezado leitor, as cólicas e os desconfortos comportamentais do período menstrual, aceitaríamos com passividade a justificativa de que "isso é coisa de homem"?

DRAUZIO VARELLA

01 DE JUNHO DE 2019
JJ CAMARGO


PERDÃO, O MELHOR COMEÇO DO FIM

As feridas da alma, tão avivadas com a proximidade da morte, precisam mais do que drogas injetáveis para serem atenuadas

O Alfredo era um homem velho, como são quase todos os Alfredos, e estava doente e escalado para ser um dos 800 mil brasileiros que naquele ano morreriam de morte anunciada. Do desfecho que se acercava, não havia nada que pudesse ser feito para evitar. Quando o soube viúvo, comecei a entender a sua solidão, mas ainda assim surpreendia a falta total de familiares, e me dei conta que o horário de visitas acentuava seu sofrimento solitário e silencioso, em contraste com a enfermaria ruidosa pela presença de numerosos visitantes dos outros pacientes.

Durante três dias, na mesma semana, aproveitei aqueles intervalos para conversar com ele e perguntar se havia algum parente a quem gostaria que avisássemos da sua condição de enfermo. Ele, meio acabrunhado, confessou que parentes ele tinha, mas os que viviam mais perto nunca vieram visitá-lo enquanto estava saudável e, então:

- Agora eu não preciso que venham só para descobrir como ficou minha pele encostada no osso! E o meu irmão Osmar, com quem eu precisava muito conversar antes de partir, mora lá pra cima, nesse Estado novo, que tem nome de rio!

Alfredo me entregou um papel meio surrado com um número de telefone e o DDD 63, que indicava a cidade de Palmas, no Tocantins. Naquela noite, fiz a ligação, confirmei que o Osmar atendia àquele número e me despedi depois que ele rejeitou a minha oferta de telemarketing propondo uma troca de operadora.

No dia seguinte, emprestei a Alfredo meu celular com o número do Osmar no visor. Uma hora depois, quando voltei, o Alfredo chorava, mas as lágrimas que escorriam não pareciam de sofrimento.

Quando cheguei, ele abriu um enorme sorriso e confessou:

- Acho que aquele filho da mãe não acreditou muito quando disse que tô alinhavado, mas o importante é que a gente se acertemos!

A impressionante redução das doses de analgésicos depois daquele dia em que ele, do seu jeito tosco, resolvera uma rusga estúpida, deixou claro que as feridas da alma, tão avivadas com a proximidade da morte, precisam mais do que drogas injetáveis para serem atenuadas. E que, no fim da vida, o perdão substitui qualquer sedativo.

Dias depois, com a serenidade de quem está pronto, ele me chamou para dizer:

- Ah, Dr. quase me esqueço de lhe agradecer por ter-me emprestado o celular, aquilo foi muito bonito.

- Que bobagem Alfredo, a ligação pra aquele Estado que tem nome de rio nem é cara! - respondi.

- Mas e o quanto custa aquelas visitas que o senhor me fez só para que eu não me sentisse sozinho com a enfermaria cheia de parentes dos meus colegas?

Nunca soube se o Osmar, de fato, planejara vir como o Alfredo disse que ele prometera. O certo é que jamais apareceu. Talvez ele pretendesse mesmo, mas vivia longe demais para saber o quanto a pele do irmão já se aproximara do osso.

JJ CAMARGO


01 DE JUNHO DE 2019
DAVID COIMBRA

Por delicadeza, perdi minha vida

Os americanos comem manteiga de amendoim. Eles adoram isso. Esta semana mesmo, a Gail, vizinha do térreo, saiu do apartamento dela levando, nos braços, um pote de manteiga de amendoim do tamanho de um balde. Eu estava no saguão, abrindo inocentemente a caixa de correspondência. Ela parou bem na minha frente com aquele pote na mão e disse:

- Trago manteiga de amendoim para ti e para tua família.

Tive vontade de dizer que prefiro um tratamento de canal a manteiga de amendoim, mas olhei para a Gail e vi que ela estava radiante por me dar o presente. Ela é uma senhora de uns 60 anos, embora pareça menos. Tem cabelos curtos, pintados de loiro. É muito simpática.

Gail foi casada a vida inteira com um homem bem mais velho do que ela. Eram felizes, tinham vida social intensa e um grupo de bons amigos, mas, quando ele entrou na casa dos 90 anos, entrou também em acentuada decadência física. De uma hora para outra, o velhinho não conseguia mais caminhar. Aos poucos, suas energias foram se esvaindo, até que só mexia, de fato, a cabeça, nem falar falava direito. Gail passou quatro anos cuidando dele com devoção. Nos Estados Unidos, serviços profissionais são muito caros. Então, ela mesma era enfermeira do marido. Trabalho pesado.

Um dia, eu entrei no prédio e a Gail veio correndo em minha direção, gritando:

- Me ajuda! Me ajuda! Meu marido caiu!

Corri ao apartamento dela. O velhinho havia escorregado da cadeira e jazia no chão da sala, imóvel. "Será que morreu?", pensei. Mas ele estava vivo. Levantei-o com alguma dificuldade e o acomodei em uma poltrona. Ele agradeceu bem baixinho, só uma réstia de voz. Falei para a Gail que, qualquer coisa, me chamasse. E me fui, sentindo pena dela.

Pouco tempo depois dessa ocorrência, nós nos preparávamos para viajar para o Brasil. Ficaríamos um mês fora. A Marcinha estava com um grande buquê de rosas em casa (sou um romântico, você sabe) e não queria pô-las no lixo. Decidiu dá-las para a Gail. Desceu até o térreo e bateu na porta do apartamento dela com o buquê nas mãos. A Gail abriu, viu as rosas, sorriu de lado e disse:

- Que delicado da sua parte?

O marido dela morrera naquele dia.

Lamentei pela Gail, mas ela reagiu bem. Começou a viajar de vez em quando e retomou a vida social. Volta e meia, passo pela frente de sua casa e vejo-a bebericando drinques com as amigas na varanda. Às vezes, ela vai aos convescotes do Jim, aquele meu vizinho que é louco pelo Bob Dylan e que faz churrasco todos os dias, depois que acaba o longo inverno bostoniano. O Jim é solteiro e deve ter a mesma idade que ela. Por que os dois não se juntam? Sempre cogitei isso (romântico, romântico).

Agora que a Gail estava me oferecendo aquele pote gigante de manteiga de amendoim, eu pensava: por que ela não entrega esse troço para o Jim? Ele é americano, ele decerto gosta de manteiga de amendoim. Porque eu, confesso, eu odeio. Manteiga de amendoim é uma pasta doce, mas DOCE, que você come uma colherada e se arrepia todo.

- Vocês gostam de manteiga de amendoim? - perguntou-me a Gail, toda animada.

- Claro? - respondi, tentando sorrir. 

Ela empurrou aquele pote na minha direção. Peguei. Era pesado.

- Quando visitar vocês, vamos comer sanduíches de manteiga de amendoim.

Senti um calafrio na espinha só de pensar naquela possibilidade. Agora estou com um maldito pote de manteiga de amendoim em casa. Não posso me desfazer dele. Vai que a Gail invente de bater aqui com um jarro de limonada, propondo um lanche com sanduíche de manteiga de amendoim. Lembrei-me de Rimbaud, que chorava:

"Por delicadeza, Perdi minha vida".

Ah, as convenções sociais! Ah, a noblesse oblige! O que temos de suportar para viver em civilização! Certas estão as novas lideranças mundiais, que trabalham para o Ocidente voltar à barbárie. Com mais um pouco da nova política, o baixo calão será elevado às alturas, ninguém terá de ir à escola e você não precisará fazer coisas como comer manteiga de amendoim para ser gentil com a vizinhança. Que a nova política salve o mundo da boa educação!

DAVID COIMBRA

01 DE JUNHO DE 2019
MÁRIO CORSO

Delícias da violência


Explicar o sucesso da série Guerra dos Tronos requer o mesmo número de páginas dessa obra enciclopédica. Vou pinçar uma das razões pelas quais essa história cativou tanto público: a violência maiúscula e onipresente do começo ao fim. Não há trégua para as mortes, torturas, decapitações, mutilações, estupros, castrações, assassinatos - inclusive de crianças. É uma série em que o mal impera e escancara suas possibilidades.

Falaria alegoricamente do nosso tempo? O senso comum pensa o século 20 e o começo do nosso como épocas bestiais. Afinal, tivemos duas guerras mundiais, bomba atômica, genocídios, totalitarismos brutais. Porém, se examinarmos dados sobre o conjunto de atos considerados crime, e o total de vítimas, estamos em declínio desde a Idade Média. O mundo está se pacificando. Não parece, mas é assim. Sugiro aos descrentes um livro de Steven Pinker: Os Anjos Bons da Nossa Natureza. Ele analisa o lento declínio da violência como um todo e o paradoxo de não acreditarmos no nosso progresso civilizatório.

O que mudou foi a sensibilidade para com a violência, agora mais aguçada. Hoje, qualquer manifestação dela é condenada terminantemente. O problema é que algumas boas almas, não satisfeitas em suprimir a agressividade real, julgam necessário exterminá-la também na virtualidade.

Para um raciocínio caricatural do politicamente correto, a violência ficcional, virtual, lúdica, onírica, enfim, de qualquer forma, seria igualmente nefasta. O ideal seria extirpar qualquer resquício de maldade. Só assim seríamos virtuosos. Falo dessas pessoas que condenam os videogames violentos, filmes de terror, são contra que as crianças brinquem com armas, como se esses produtos educassem para a violência.

Talvez essa boa vontade do higienismo da agressividade funcione em algum povo venusiano, mas certamente não em humanos. Nossa história foi imersa em violência e ainda estamos impregnados dela. Não sai na primeira lavada. Por sorte, progredimos, mas sonhamos com vinganças, na imaginação destroçamos quem nos atrapalha. É contraproducente negar o que resta em nós de primatas briguentos e nos forçar a parecer com anjos que não somos. A audiência da série é a desforra dessa tolice.

Ficções como Guerra dos Tronos espelham nossa selvageria íntima, como se a tirássemos de dentro para lhe conhecer a cara, ou melhor, as garras. Só depois de olharmos nosso chimpanzé interior nos olhos podemos domesticá-lo. É o cão que late e não morde.

Enquanto os reinos do escritor George Martin rosnam entre si, nosso lobo essencial uiva suas maldades. Depois de purgadas, esvai-se a vontade de morder os semelhantes. É difícil encontrar fórmulas para diminuir a violência, mas fazer de conta que ela não nos constitui apenas fecha a possibilidade de a arte sublimar parte dela.

MÁRIO CORSO

01 DE JUNHO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

O CAIS ENCALHADO

É fato que o atual ocupante do Piratini, ao avocar a si o protagonismo do anúncio do rompimento, aposta seu capital político na busca de uma solução eficaz para o impasse.

É louvável a preocupação do governador Eduardo Leite com a retidão jurídica no cumprimento das exigências do contrato que previa a revitalização do Cais Mauá, área privilegiada da capital gaúcha alçada a personagem principal de uma novela que se arrasta há décadas. 

O mais recente capítulo desse dramalhão foi o anúncio do rompimento da parceria com a empresa que tentava, outra vez, levar a cabo a empreitada de devolver as margens do Guaíba à convivência plena da população de Porto Alegre. Com base em um relatório da Procuradoria-Geral do Estado, o governador apontou pelo menos seis pontos que vinham sendo descumpridos pela concessionária.

Se tem inquestionável base jurídica, a posição do Piratini não encerra a celeuma. Os advogados da empresa, que se sente prejudicada, já emitiram sinais claros de que devem iniciar, em breve, uma batalha jurídica ao redor do controverso contrato. Seria injusto não registrar que o imbróglio não foi criado pelo atual governo. É mais uma das incômodas heranças cuja origem se perde no tempo e nas responsabilidades, não por acaso, difusas. Mas também é fato que o atual ocupante do Piratini, ao avocar a si o protagonismo do anúncio do rompimento, aposta seu capital político na busca de uma solução eficaz para o impasse.

A disputa judicial, que parece inevitável, não deverá se esgotar no curto prazo. Seu desfecho, a julgar pelos prazos e miríades de recursos à disposição dos litigantes, provavelmente não encontrará mais Eduardo Leite no Piratini.

Espera-se que, até lá, o Cais Mauá seja resgatado do naufrágio ocasionado pela omissão, pela ganância e pela incompetência de atores incapazes de exercer com o mínimo de talento e profissionalismo seus verdadeiros papéis.

Vencida a eventual disputa na Justiça, a iniciativa de revitalizar o Cais Mauá deve partir para sua concretização.

Passaram-se oito anos e cinco meses desde a assinatura com a empresa que agora tem o contrato rescindido. Espera-se que, a próxima, seja a tentativa derradeira. E bem mais célere, apesar da burocracia que teima em impor barreiras ao empreendedorismo no Estado. Envolver o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na construção do novo modelo pretendido pelo governo tem o mérito de trazer mais segurança, pela expertise da instituição na formatação de propostas do gênero. Os porto-alegrenses merecem uma reconciliação definitiva e uma convivência prazerosa com esse ponto de beleza ímpar e marco do nascimento e do desenvolvimento da Capital.

OPINIÃO DA RBS

01 DE JUNHO DE 2019
+ ECONOMIA

A BUSCA DO ANTÍDOTO PARA O DESEMPREGO

Não é só o já espantoso número de 13,2 milhões de desempregados até abril que assombram a crise sem fim da economia brasileira. Além dos que buscam trabalho, outros 28,4 milhões estão subaproveitados: querem trabalhar mais, mas não conseguem, e gostariam de encontrar uma vaga mas nem tentam diante da óbvia dificuldade. Esse contingente é o maior já registrado pelo IBGE desde o início da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (Pnad), em 2012.

Como o dado da Pnad foi atualizado um dia depois de o Brasil confirmar que andou para trás na economia entre janeiro e março, fica mais evidente a relação entre os números e o círculo vicioso em que o país está mergulhado. Com medo do desemprego, os brasileiros não gastam. Sem consumo, o comércio não faz encomendas. Sem pedidos, a indústria não eleva a produção. Sem perspectivas de fabricar mais, não há contratações, fechando a porta da armadilha da estagnação.

Desde que ficou claro que 2019 cumpriria a sina dos dois anos anteriores - um início cheio de expectativas, que foram definhando ao longo do período -, cresce o debate sobre o antídoto para a anemia econômica do Brasil. No governo, há uma combinação de falta de instrumentos e de crença no papel do Estado como indutor de desenvolvimento.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, acenou com liberação de recursos de PIS/Pasep e FGTS, advertindo que será apenas uma "chupeta de bateria", ou seja, não dura se o motor não pegar e voltar a alimentar em seguida. Economistas discutem desde a hipótese de uma depressão econômica até se instrumentos clássicos, como a redução no juro básico, ainda funcionam. Não é só o Planalto que bate cabeça.

A pressão por cortes no menor juro básico que o Brasil já teve, os atuais 6,5%, vai se intensificar. Até nos Estados Unidos essa expectativa aumenta, o que facilita a vida do Banco Central. Mas cortar a Selic da mesma forma como foi ocorreu até agora, sem que o efeito chegue na ponta também não vai funcionar.

=== MAIO TEM MÁ FAMA NO CALENDÁRIO DOS INVESTIDORES. NA HISTÓRIA RECENTE DO BRASIL, MARCA A EXPOSIÇÃO DA RELAÇÃO DO ENTÃO PRESIDENTE MICHEL TEMER COM A JBS E A GREVE DOS CAMINHEIROS.E QUAL FOI O MAIO DE 2019? MAIA.

OU MELHOR, O CONFLITO ABERTO ENTRE O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, JAIR BOLSONARO, E O DA CÂMARA, RODRIGO MAIA. MESMO ASSIM, A BOLSA FECHOU O MÊS NO POSITIVO PELA PRIMEIRA VEZ EM 10 ANOS.MAS FOI POR UM TRIZ: 0,7%.

=== A gaúcha Omega Engenharia atuou como consultora de uma empresa suíça no leilão de geração de energia para eliminar a dependência de Roraima da Venezuela. Ajudou a emplacar quatro usinas a biomassa de madeira com 10 megawatts cada, que deverão ser instaladas em Boa Vista. A Omega também tem um projeto no Estado, a UTE Cambará, já com licença de instalação.

MARTA SFREDO

01 DE JUNHO DE 2019
CARTA DO EDITOR

Um RS que inspira

Um grupo de estudantes está agitado na Escola Estadual Maranhão, em São Marcos.

- Pega o capacete! - Quem leva o foguete?

- Pega óculos de proteção pra mim? 

Feito o checklist, a turma sai da escola, em uma tarde de outono, em direção a um descampado, distante cerca de três quadras do colégio. Sob a orientação do professor Marcos Grizzon, é lá que eles costumam complementar as aulas de matemática e de física construindo e lançando... foguetes!

A história do talentoso professor Grizzon e de seus alunos, contada pelo repórter Guilherme Justino e pelo fotógrafo Jefferson Botega em três páginas do caderno DOC desta edição, ilustra a nova etapa da seção RS que Inspira, publicada desde o início do ano. O foco agora são iniciativas na área da educação.

As reportagens abrangem desde a educação básica até a universitária. Justino visitará instituições públicas e privadas para conversar com alunos e professores sobre ações inspiradoras.

Um dos principais critérios desta nova fase do RS que Inspira é a capacidade de os projetos serem reproduzidos: serão valorizados aqueles que possam ser replicados em outras cidades, outras escolas, outras universidades.

- Já estivemos em quatro cidades da Serra e do Norte, conhecendo iniciativas envolvendo tecnologia, inclusão, sustentabilidade. Ainda vamos a outras regiões conhecer projetos sobre leitura, robótica, música, economia. O leque é amplo - diz Justino.

Na primeira fase do RS que Inspira, a repórter Aline Custódio contou 15 histórias de pessoas que fazem a diferença em suas comunidades. Confira o impacto social das reportagens de Aline, apresentadas em ZH, em GaúchaZH, na RBS TV e na Rádio Gaúcha:

* Projeto criado por Nara Sonallio, a rede de solidariedade Criança Mais Feliz ganhou 40 novos 1397124194voluntários e mais de 700 seguidores no1397645907Facebook.

* Com mais doações, aumentaram em 30% as arrecadações da professora Rejane Rech, que junta, recicla e vende tampas plásticas para ajudar na defesa de animais em Caxias do Sul. O projeto ganhou 301397645907novos pontos de coleta.

* Voluntários se ofereceram para pagar o aluguel da casa onde funciona a ONG de Pelotas que atende jovens e aposta na música para evitar 1397124194o caminho da violência. Um professor de música 1397124194de Alvorada se ofereceu para doar instrumentos. 1397124194

* Pelo menos outras 15 cidades gaúchas 1397124194estão se organizando para criar o projeto que transforma caixa de leite em isolante térmico. 1397124194

* O físico de Sapiranga Cesar Eduardo Schmitt, que se transforma em Darth Vader para ensinar astronomia a crianças, ficou com a agenda lotada 1397124194de palestras este ano após a reportagem. 13971241941397124194Conheça todas as histórias da primeira fase do 1397124194RS que Inspira em bit.ly/GZHsingular

CARLOS ETCHICHURY

01 DE JUNHO DE 2019
INFORME ESPECIAL

REVOLUÇÃO NO TRANSPORTE URBANO DA CAPITAL


Cerca de 80% dos ônibus da Capital já estão com seus GPS instalados pela ATP, entidade que agrega as empresas do setor. A expectativa é que, até setembro desse ano, o sistema entre em operação. Quando estiver funcionando, mudará radicalmente a relação dos passageiros com os cerca de 1,5 mil ônibus que transitam pelas ruas de Porto Alegre.

Por meio de um aplicativo, qualquer cidadão poderá acompanhar, em tempo real, o deslocamento dos coletivos em uma tela parecida com a do Uber e a do Waze, o que reduzirá o tempo de espera nas paradas.

Também será possível programar alertas e ser informado, instantaneamente, se houver algum imprevisto com o veículo. O salto da qualidade do transporte público da Capital será gigantesco. É a maneira de enfrentar a concorrência dos aplicativos de transporte, que vem se popularizando nos últimos anos.

Com a informação exata da hora em que o ônibus passará, os usuários ficarão menos expostos ao calor, à chuva e ao frio, além de mais protegidos contra assaltos. Nesse item, as ações recentes da polícia, com auxílio da EPTC, reduziram em cerca de 70% as ocorrências nos últimos meses.

TULIO MILMAN

sábado, 25 de maio de 2019


25 DE MAIO DE 2019
LYA LUFT

Livro é filho?

Talvez eu não pareça simpática, mas, no meu caso, a resposta é não.

Filho, para mim, tem algo de tão transcendente e vital ao mesmo tempo, toma conta tão visceralmente de mim, eu toda, que nenhuma obra de arte que eu pudesse produzir se aproximaria dessa sensação. Nem livro, nem música, nem pintura, nem dança, nem nada. Eu não morreria por nenhum de meus livros: morreria, sim, por cada um dos meus filhos, e, hoje, cada um de meus sete netos e netas. Pois são parte da minha vida: essa história de carne da minha carne, sangue do meu sangue, tem proporções ainda maiores: alma da minha alma.

Sim, eu tendo a ser mãe desmesurada, já me disseram que minha verdadeira vocação nem é escritora, mas galinha choca. Imagino que minha razoável dose de bom senso não os tenha superprotegido, pois todos têm suas vidas, casamento, profissão, escolhas, bem determinadas e diferentes: médica, agrônomo, filósofo. Não fiz os temas por eles, não os protegi nem controlei neuroticamente, e, quando preciso, botei limites. Algumas vezes - me arrependo sim - perdendo a cabeça quando a zoeira era demais, e afinal mãe, tradutora, professora, motorista da família, está sempre à beira... não de um ataque de nervos, mas de romper as cordas da paciência. Preocupação, ansiedade (sou ansiosa, sim), mas enormes alegrias, orgulho, parceria, eventuais dissenções - que família não é santidade -, mas uma vida sem eles eu jamais imaginaria nem quereria ter.

Sim, o destino levou um deles, o do meio, com seu sorriso fascinante, seus prodigiosos olhos azuis, sua bondade, alegria, energia incrível, mas afinal ele continua aqui, conosco que o amamos tanto.

E os livros? Os livros não são filhos meus: são produtos. Do meu trabalho e do meu prazer, de algum dom que eu tenha, da imaginação, do conhecimento da língua, de habilidade em escrever depois de tantos e tantos anos, sobretudo lendo e traduzindo loucamente - melhor exercício para aprender qualquer idioma.

Mas, claro, tenho imenso cuidado com cada um deles. Em cada livro, cada página, sempre coloquei o melhor que podia... naquele momento, depois de reescrever, reler, rearrumar, muitas vezes. Mesmo assim, se por acaso releio (em geral se me pedem uma palestra sobre), encontro coisas que hoje talvez escrevesse melhor... ou algumas que me fazem balançar a cabeça afirmativamente, essa você acertou, guria.

É assim. É isso. Meus amados livros, meus amados produtos, acabam de aumentar com um novato que está na minha editora, a Record, para sair possivelmente no segundo semestre. O já anunciado As Coisas Humanas, reunião de textos avulsos, reflexões, poucas crônicas reescritas, retoma, enfim, aquelas conversas no ouvido do leitor, que me fazem tanto bem. Gostem dele, quando aparecer.

(Se não gostarem, não me digam.)

LYA LUFT

25 DE MAIO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Isso até eu faria


Jack Pollock, mestre do expressionismo abstrato, exercia o que se chamava de "pintura em ação": movimentos espontâneos, velozes, abusando da técnica de gotejamento. Ele usava até esmaltes para respingar a tela. Há quem se pergunte por que raios Pollock é festejado por tanta gente e tem seu trabalho exposto nos maiores museus do mundo, já que, diante de seus quadros, a sensação é de "ah, isso até eu faria". Diante dos quadros do espanhol Miró, a sensação é idêntica. Miró pintava bonequinhos, manchas coloridas, tudo muito inocente e lúdico. "Qualquer criança faz isso", escuta-se ainda hoje, entreouvidos, nos cantos das galerias.

Arte realizada aparentemente sem esforço. Se uma obra parece ter sido criada em 20 minutos, a avaliação não é tão generosa quanto a de outras que parecem ter levado décadas para serem concluídas. Que se caia de joelhos diante da Capela Sistina, compreensível: aquilo, sim, a gente não faria. Mas pintura abstrata? Bossa nova? Simples demais. Os presunçosos não perdoam.

Até hoje há quem não se conforme com o O Pato, de João Gilberto. "O pato vinha cantando alegremente, quém, quém". Como essa banalidade pode ser aplaudida? Uma natureza morta de Cézanne: maçãs sobre a mesa. Quanto tempo ele teria levado para pintá-las? Alguém responderá: "O tempo que se leva pra tomar um cafezinho no intervalo do expediente". É o que muitos suspeitam, mas não dizem, temendo passar por ignorantes.

She loves you, yeah, yeah, yeah. Nem o pai de Paul McCartney aprovou essa versão. Pediu ao filho que ao menos cantasse she loves you, yes, yes, yes, um "sim" britânico, classudo, mas Paul tinha menos de 20 anos, insistiu no yeah e pouco importa, a única certeza é que o verso é tão comum que um compositor de jingles faria melhor, não faria?

"Eles passarão, eu passarinho". Uma garota de 14 anos uma vez declarou que os versos que ela publicava em seu blog eram mais elaborados do que os de Mario Quintana. Se até alguns intelectuais consideravam Quintana infantil, é natural que muita gente despreze alusões a passarinhos, esperanças e espantos, assim como desdenham das bandeirinhas de Volpi e das letras de Roberto Carlos. A simplicidade parece muito fácil de ser executada. "Isso até eu pintaria". "Isso até eu cantaria". Mesmo? O mundo aguarda com ansiedade a entrada em cena desses inúmeros talentos secretos. Porque criticar, isso sim, qualquer um faz.

* * *
Aproveitando: quer começar a escrever pra valer? A premiada escritora Cintia Moscovich está abrindo novas oficinas de literatura a partir de 3/6. Informações pelo e-mail oficinasubtexto@gmail.com. Aprender não é simples, mas é a forma como todos começam.

MARTHA MEDEIROS

25 DE MAIO DE 2019

CARPINEJAR

Competição com o vizinho

Eu e o meu vizinho decidimos fazer uma competição de flores na varanda. Não combinamos nada, não apostamos, não acertamos as regras. Ele começou a frequentar floriculturas e comprar vasos de plantas, eu não deixei por menos: desenvolvi uma cisma em arborizar a frente de meu apartamento. Larguei a monocultura da samambaia pela diversidade exótica do jardim. Queria superá-lo, até porque ele havia virado referência para a minha esposa:

- Um dia seremos que nem ele! E eu respondia com ambição: - Que nem não, melhores!

Fui me especializando em plantas resistentes ao sol, virei um botânico nas horas vagas: cebola-da-mata, crássula, iúca, lança-se-são-Jorge, bulbine, moreia.

Estabeleci uma disciplina de irrigação, passei a adquirir fertilizantes e adubo para apressar os resultados. Não permitia que ninguém da família me ajudasse. Havia uma dinâmica rigorosa para regar - eu não brincava em serviço.

A princípio, a performance me surpreendeu. Eu me sentia um Burle Marx. Paisagismo estava no meu sangue, e desconhecia o meu dom. Arbustos, folhas, pétalas e cores repaginaram o nosso cantinho de chimarrão. Lembrava um quintal aéreo, um pedaço do interior no terceiro andar.

O vizinho piscava para mim, alheio à competição que eu inventava sem comunicá-lo. Talvez nutrisse contentamento pela sua influência do bem, orgulho que a sua iniciativa se estendeu para a porta ao lado e embelezou o edifício, mas eu não o via com bons olhos, identificava apenas inveja e soberba da parte dele. Afinal, enxergamos unicamente aquilo que temos em nós.

Todo investimento, que não foi pouco, quase o valor de uma reforma, vingava. Era o que eu achava. Qualquer varanda se mantém bonita nos primeiros meses. Depois é que o novo ambiente passa a fazer efeito nas espécimes.

Minhas plantinhas foram morrendo sem dó nem piedade, como uma maldição. Tornou-se lentamente um vale das sombras. Por mais que implantasse mudanças, não remedia a tristeza e a penúria. Os galhos secavam, varria montinhos cada vez maiores na área. Deduzi a invasão de alguma praga, porém não encontrei nenhum sinal de formigas e insetos. Perdi o concurso imaginário. Restava-me ser educado e cumprimentar o meu oponente pela vitória. Apertei a campainha, ele abriu, ofereceu café, eu entrei.

Permaneci um longo tempo em silêncio, sem saber como driblar o orgulho. No último minuto, antes de me despedir, a minha curiosidade falou por mim:

- Qual é o segredo das plantas?

Ele riu, e logo completou: - Talvez você não acredite, eu converso com as flores, conto toda a minha vida para elas. Confidências germinam. Só que não invente de dançar, senão elas morrem mais rápido.

Gargalhamos juntos.

CARPINEJAR