sábado, 7 de dezembro de 2019


07 DE DEZEMBRO DE 2019
VARIANDO

Palavras erradas

Não consigo entender os gramáticos e filólogos. Explicam sobre tudo e mais um pouco da nossa língua, mas nunca enfrentam o tema das palavras erradas. Falo dessas palavras que não combinam com o objeto que definem, que nos remetem a um sentido descompassado, mostrando um divórcio entre o som e o significado.

Com isso perdem-se palavras boas para coisas equivocadas. Por exemplo, Clamídia é um nome maravilhoso para uma flor da família das crassuláceas. Consigo imaginar um buquê delas entre as astromélias, as margaridas e os gerânios. Mas não, desperdiçaram um belo nome floral com uma doença sexualmente transmissível.

Por favor senhores doceiros, já que os linguistas se omitem, salvem o profiterole. Nome de doce tem que ter luz, ternura e maciez. Pensa em quindim, baba-de-moça, papo-de-anjo, pastel-de-Santa Clara. Profiterole, palavra dura, ácida, no melhor dos casos soa como taxa de dosagem de exame de sangue. Consigo ver o médico falando: - Seu colesterol e os triglicerídeos estão bem, já o profiterole pede cuidados.

Intempestivo é um adjetivo sonoro, forte, mas imprestável assim como está. Pensamos num cara marombado que chega dando porrada, quebrando tudo. Intempestiva não soa como aquelas mulheres que fazem barraco do nada? Afinal, tem tempestade no nome. Mas não, é só algo fora de hora. Quem que vai usar isto certo? Põe no Enem e rodam todos.

Lêndea é outro nome mal aproveitado. Soa bem para um nome próprio. Imaginem três irmãs: Laura, Lívia e Lêndea. Mas não, com tanta palavra feia, sem serventia, usaram essa pérola, que serviria para uma alegre professora de piano, para nomear ovos de piolho.

Sopitar não é repetir a sopa que se gostou, é adormecer. Pode?

Pensem no diálogo que me contaram. A mulher colocou um vestido novo, um tanto quanto ousado. Perguntou ao marido o que ele achava e ele lhe disse: - Pulcra! Ela recuou um passo e ele acrescentou: - Pulcríssima! Brotaram lágrimas nos olhos dela. Magoada, ela o acusou de ser um machista ciumento e idiota. O homem, em sua defesa, disse que foi mal entendido. Tentou consertar: - Sua aparência está pudibunda, lhe asseguro.

O resultado é que não saíram aquela noite. Ele só foi perdoado no outro dia, depois de conseguir um dicionário. Teve que explicar que pulcra, embora remeta imaginariamente a égua xucra, quer dizer linda. Já pudibunda significa recatada, embora carregue, veja o paradoxo, uma bunda na terminação. Mas vamos à ciência: estatisticamente, qual é a chance de você levar uma bifa se disser a uma mulher que ela é pulcra ou pudibunda? (Não tente isso em casa.)

Neste casal os dois tinham razão, mas mais ela, ao meu ver. Quer dizer, ela errou em arrumar um namorado parnasiano. Mas por favor, escutem essas palavras e digam se não é para criar confusão. Senhores das letras, tomem tenência e arrumem essa bagunça.

MÁRIO CORSO


07 DE DEZEMBRO DE 2019
FLÁVIO TAVARES

O TITANIC AFUNDOU

O mistério do naufrágio do Titanic me seduz desde a infância. Só agora, enfim, sabemos quem afundou o maior, mais luxuoso e invulnerável navio do mundo, aquele que "nem Deus poderia afundar", como se dizia.

Foi Leonardo DiCaprio com o filme de anos atrás, premiado com todos os Oscars disponíveis em Hollywood, e tão realista que fez 1912 reaparecer como hoje. Com água jorrando na tela, saímos do cinema com a sensação de molhados em busca de toalha para nos secar.

Devemos o descobrimento às pistas que Jair Bolsonaro deve ter encontrado agora, após acusar DiCaprio de incendiar a Amazônia. Sim, pois quem - lá de longe - "dá dinheiro para queimar a floresta" só pode ter tido a ideia de culpar um iceberg por arrombar o casco de aço do navio.

Quando disparate e fantasia se fundem e incham, o tumor arrebenta e o absurdo se veste de "verdade", rápido para que ninguém veja que está nu. A invencionice ridícula tem mais poder do que a mentira dita com seriedade, pois faz rir e nos alegra por instantes. Só segundos depois, o absurdo surge.

Assim, vimos o presidente dizer que DiCaprio doou US$ 500 mil para que brigadistas de uma ONG de preservação do meio ambiente incendiassem a floresta para voltar a receber doações e, de novo, incendiar. Somar cobiça e sanha lembra um diabo vestido de anjo que nos leve ao inferno dizendo ser o paraíso.

No início, todos riram. Todo absurdo tem certa graça. Logo, porém, só fica o absurdo, que leva a pensar que - se Bolsonaro for adiante - vai concluir que DiCaprio financiou os incêndios e, antes, afundou o Titanic. Para o filme, especializou-se em navios e no Mar do Norte melhor do que a floresta que "fez incendiar" agora.

Esqueceu-se DiCaprio, porém, de guardar no bolso água, que entrou no Titanic, e, com ela, apagar o incêndio...

Quem já não cometeu alguma vez algum disparate na vida? O equívoco também é parte da humana sabedoria e, às vezes, atua como contrapeso nos sabichões que dizem conhecer tudo.

Um presidente da República nem seus ministros e serviçais diretos, porém, têm salvo-conduto para acumular disparates. Já basta o que tivemos antes! Lula repetia o óbvio com pompa, Dilma não completava as frases ou ideias, Temer rebuscava tolos lugares-comuns.

Bolsonaro hoje já não fala com ódio. Agora, faz rir em vez de transmitir confiança. Alguns ministros são mais realistas que o rei, o superam até. O novo chefe da Fundação Palmares (que promove a cultura afro-brasileira) diz que "no Brasil, a escravidão foi benéfica para os negros", mesmo ele próprio sendo negro e neto de escravos.

O ministro da Educação coleciona sandices, como o anterior. Neste ritmo, vemos que DiCaprio incendiou a Amazônia e, antes, afundou o Titanic, no mar que nos inunda.

FLÁVIO TAVARES

07 DE DEZEMBRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

PRESENTE NO FUTURO

Aquela sensação que começava a tomar conta de gaúchos e porto-alegrenses, de que o Estado e a Capital ficavam para trás na corrida pela inserção na nova economia, pode estar se dissipando. A nova injeção de ânimo, em boa hora, vem dos primeiros resultados e novos planos do Pacto Alegre, que durante a semana passada apresentou o balanço de seus projetos e as novas frentes que passarão a integrar a iniciativa que formalmente nasceu em maio com a missão de firmar uma união de esforços para dar um impulso à inovação, fomentar o desenvolvimento em bases sustentáveis e buscar uma melhor qualidade de vida na cidade, com o potencial de espalhar inspiração pelo Rio Grande do Sul.

Talvez os grandes méritos do Pacto Alegre, além dos frutos dinamizadores que poderão ser colhidos no futuro, sejam os de promover um rompimento com a paralisia e estimular o espírito de colaboração, consumado na parceria que o sustenta entre poder público, universidades, empresariado e entidades da sociedade civil. Antes mesmo de completar um ano, o compromisso que deu origem à ideia começa a se materializar, com projetos sendo colocados em prática, como o Saúde Digital, banco de dados unificado que já incluiu em um sistema integrado todos os hospitais e postos públicos da Capital. 

Ou então Crowdfunding POA, proposta de um novo modelo de financiamento para startups. Imagem da cidade, atração de talentos, educação digital e ambientes de negócios são apenas alguns dos eixos definidos e com ideias em andamento que, seguramente, farão de Porto Alegre um lugar melhor para morar e trabalhar, com reflexos positivos para toda a população.

A intenção de criar um ecossistema fecundo para a inovação ramifica. O hub da saúde, liderado pela PUCRS, é um exemplo de como a cidade busca se consolidar em uma vocação natural dos grandes centros, focando em serviços e tecnologia. Outra iniciativa a ser saudada é o projeto de lei da prefeitura, enviado no final do mês passado à Câmara, que prevê a criação de um fundo municipal destinado a promover o desenvolvimento de startups que apresentem soluções para os problemas da cidade. Como toda metrópole, complicações não faltam em Porto Alegre. Um campo fértil, portanto, para a busca de saídas criativas. São iniciativas como estas que farão Porto Alegre estar presente no futuro.

Converter a cidade em um ambiente melhor para se viver passa por outras transformações. Entre elas, perseguir formas de torná-la mais aprazível para seus moradores e visitantes. Assim como fez o Pacto Alegre, é preciso rever modelos equivocadamente enraizados, como a sujeira visual que hoje faz parte da rotina dos cidadãos. Neste sentido, também merece o apoio da sociedade o projeto de lei do Executivo para banir outdoors, painéis e outros tipos de publicidade que apenas poluem a paisagem urbana da capital dos gaúchos.

07 DE DEZEMBRO DE 2019
+ ECONOMIA

DNA gaúcho da roda-gigante do Rio

Apresentada como a roda-gigante mais alta da América Latina, a Rio Star foi inaugurada na sexta-feira no Rio de Janeiro. À frente do projeto está a empresa ARC Big Eye Parques Temáticos e de Diversão, que, além de dois investidores cariocas, tem um gaúcho e um holandês radicado em Gramado, Christian Dunnwald.

- Apesar da chuva (no Rio), o fluxo de público está na média que esperamos. Pela manhã, tivemos o primeiro pedido de casamento durante a viagem (na roda-gigante) e isso não foi planejado, pelo menos não por nós (risos) - brinca Dunnwald.

No Porto Maravilha, área da cidade recuperada para a Olimpíada de 2016, a roda tem 88 metros, 54 cabines com ar-condicionado para oito pessoas. Os ingressos custam R$ 49, na compra online, e R$ 59 na bilheteria do parque. Dunnwald explica que o grupo não disputa o edital para a roda-gigante de Porto Alegre porque estudos preliminares concluíram que a cidade não tem potencial para a atração. Mas o grupo avalia outros locais adequados.

A Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) vai fechar 2019 com 2,7 mil alunos, 385% acima de 2013, conforme o relatório de gestão do período. A receita deve chegar a R$ 27,3 milhões e projeta 10% de alta em 2020.

Com previsão de cerca de R$ 1,2 bilhão em lançamentos de alto padrão na Capital, a One Imóveis de Luxo estima faturar em vendas cerca de R$ 240 milhões Em 2019, deve acumular alta de 28% na receita ante o ano anterior.

O Bradesco Seguros abriu a primeira unidade em Porto Alegre da rede de clínicas Meu Doutor Novamed, para família.

Como a exportação encolheu o PIB

Ao anunciar a revisão dos dados de exportação, o Ministério da Economia gerou dúvidas sobre o resultado do PIB do terceiro trimestre apresentado pelo IBGE. O crescimento em relação ao período anterior foi de 0,6%. Como a Secretaria de Comércio Exterior (Secex) já admitiu, houve erro na apuração dos números das vendas ao Exterior. Havia divulgado embarques em setembro de US$ 18,921 bilhões e, em outubro, de US$ 18,231 bilhões. Com a correção, os valores subiram, respectivamente, para US$ 20,289 bilhões e US$ 19,576 bilhões.

O IBGE reiterou à coluna que vai antecipar para 4 de março de 2020 a revisão dos dados do terceiro trimestre de 2019, quando informar os dados do ano. No cálculo original constavam os valores menores, portanto. Isso significa que a revisão do terceiro trimestre deve ser para cima.

- O que foi registrado foi uma exportação menor. Então, quando houver revisão, será para cima. Por hipótese, será 0,8% em vez de 0,6% - traduz o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), explicando que o efeito talvez não seja tão grande, é apenas um exemplo.

José Augusto de Castro explica que, neste ano, o Siscomex, que registrava exportações, foi substituído por um programa, chamado Documento Único de Exportação (DUE). O erro foi tão incomum que gerou especulações, mas quase todas as fontes descartam manipulação de dados.

A confusão chegou a gerar a interpretação que teria sido produzido um PIB "anabolizado", ou manipulado. Na verdade, o efeito foi inverso: o equívoco bilionário encolheu o PIB. Sobre a origem do problema, ainda há dúvidas que o Ministério da Economia a tem de explicar melhor.

MARTA SFREDO

domingo, 1 de dezembro de 2019



30 DE NOVEMBRO DE 2019
LYA LUFT

A velhice e o envelhecer

Muito já escrevi sobre o assunto, seja em colunas seja em personagens de romances ou contos, muito refleti sobre isso – mais porque me perguntam do que por curiosidade minha.

Pois digo, e acredito: velhice é natural como infância e juventude. Tem mais problemas? Talvez. Mas há velhos saudáveis e crianças enfermiças, morrem velhos, jovens e crianças, a vida é um privilégio desde que de qualidade boa, então a idolatria da juventude pode acabar sendo um tiro no pé.

Primeiro, porque disfarçamos o tempo por alguns anos, mas não sempre. Muitas vezes o excesso de cirurgias plásticas provoca um desmoronamento cruel e repentino do que de outro modo poderia mudar lenta e docemente. Não sou contra plásticas: aos 50 anos, depois de um momento difícil, eu tinha ar de 70 mal vividos, e o lifting, discreto e por ótimo cirurgião, me deixou com cara de 50 anos normais.

Coisas boas de envelhecer? Curtir mais a família, a vida, a arte, a natureza, as amizades, observar o aumento da família, o crescimento de netos e bisnetos, acompanhar tantas vidas e destinos Eventualmente sofrendo perdas, sentimos o tempo em seus misteriosos ciclos.

Outra vantagem: a gente pode ficar mais livre. Não precisamos dar satisfação de nossas ideias e atos, não há mais pai, mãe, professor, para nos criticar tentando nos educar... aprendemos que a opinião alheia não importa – a não ser poucas pessoas cuja opinião, sim, nos vale muito. 

Posso ler quanto quiser, caminhar ou preguiçar, tomar minha taça de vinho mesmo depois dos 80 anos se o médico permite, ficar horas contemplando a natureza ou vendo bons filmes na TV, posso conversar com netos e netas, filhos e filhas, exercitando ternura e alegria, além das naturais preocupações.

Posso curtir amizades novas e outras antigas, de anos, de décadas atrás, que com o tempo não se esvaziaram nem se perturbaram mas continuam como esteios da minha alma. Uma ou outra some, se desinteressa, se atrapalha com alguma coisa que não entendo nem pretendi, mas as especiais permanecem e são uma companhia incrível, mesmo que não nos vejamos muitas vezes: temos internet, e-mail, Whats, Skype e tantos recursos para curtir nosso convívio.

Coisas ruins de envelhecer? Primeiro, morrem pessoas amadas, mais do que quando somos jovens, e isso abre feridas  que podem cicatrizar na superfície, mas nunca saram: a dor corre como um riozinho silencioso e triste, para sempre. Em compensação, acho que ficamos mais tranquilos quanto à nossa própria finitude: ela vai parecendo mais natural.

Problemas de saúde são inevitáveis numa vida longa. Boa ocasião de aprender a não ficarmos queixosos, nem obcecados  com doenças e receitas. A dádiva especial é ficarmos lúcidos, podendo usufruir afetos, objetos, paisagens, música, as memórias melhores, e algum projeto ainda: o bisneto, a visita,  o telefonema, o livro, o quadro, o sono, o sol e a doce chuva.

No meio dos dramas, dilemas, desconfortos que possam acontecer e ocorrem em todas as idades, há esse privilégio de poder, ainda, observar, curtir e amar todas essas coisas a que chamamos vida.

LYA LUFT

30 DE NOVEMBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Depois do The End

Muitas pessoas têm nojo de baratas. Ou medo. As danadas vivem pelos cantos e podem nos surpreender a qualquer momento, desestabilizando nossa rotina e nossa paz. Uma barata no mesmo recinto é uma perturbação, nada volta ao normal até que ela seja eliminada. Quem dá cabo dela vira instantaneamente um herói.

Mas elas se reproduzem e reaparecem. Não há solução, só paliativos. Manter a casa limpa, não espalhar resto de comida, providenciar uma dedetização de vez em quando. O jeito é se contentar em mantê-las fora de visão, fazendo de conta que não existem.

Parasita, o tão comentado filme sul-coreano, é uma metáfora caricatural da nossa relação com o que não enxergamos. Uma família pobre mora num espaço insalubre que fica abaixo da linha da calçada, junto a lixeiras. Eles espiam o mundo como se por uma fresta de um bueiro. Não por acaso, nas cenas iniciais, são atingidos pelo jato de um pesticida que está desinsetizando a rua. Surge então a chance de entrarem na casa de uma família rica, e aí, um por um, se infiltram na sala, na cozinha, nos quartos, tomando conta de todo o ambiente doméstico. Até que descobrem o porão, e essas "baratas" intrusas encontram baratas ainda mais subterrâneas, que já estavam ali antes.

Há muitas maneiras de filmar a desigualdade social. Coringa investiu em um personagem dos quadrinhos, A Odisseia dos Tontos optou por um duelo quase infantil entre mocinhos e bandidos. Já Parasita tem um roteiro deliciosamente pirado que intercala o cômico e o trágico. A luta de classes nunca alcançará um happy end, mas ao menos ainda veremos outros tantos filmes usando o tema como gancho e, através dele, realizando arte de primeira categoria.

O cinema é uma lente de aumento exuberante. Seja qual for a história contada, é a nossa humanidade que está na tela, hiperdilatada. Nunca saio indiferente de uma sala de cinema. É como se eu tivesse sido sequestrada por duas horas (ou ido à Ásia por duas horas, vivido um amor louco por duas horas, chegado perto da morte em duas horas). Quando as luzes se acendem e as portas se abrem, custo a levantar do assento, continuo imersa nos sustos que levei, nas emoções que senti. É estranho voltar aos corredores iluminados do shopping e pagar o ticket do estacionamento como se nada tivesse acontecido. A vida real é que passa a ser violenta, louca, pirada. Por um tempo, transito entre duas dimensões.

Se você se envolve da mesma maneira, vai gostar: estou lançando Comigo no Cinema, uma seleção de crônicas inspiradas por filmes que vi de Almodóvar, Woody Allen, Jorge Furtado, Jim Jarmusch, Scorsese e tantos outros. Mais de 70 reflexões escritas assim que cheguei em casa, com o filme ainda agindo dentro de mim (como Parasita continua agindo). Porque quando um filme mexe conosco, ele dura mais do que duas horas.

MARTHA MEDEIROS


30 DE NOVEMBRO DE 2019
CLAUDIA TAJES

Terapia de vidas passadas

Há alguns dias comecei a praticar regressão. Não é bem o que parece, voltar no tempo para me descobrir uma escrava da Cleópatra ou a ajudante de quarto da Rainha Vitória. Nada disso. É que estou arrumando as fotografias antigas e, de olhar para elas, viajo para outras épocas, algumas das quais não tenho lembrança alguma. Mas as fotos estão ali, desmentindo o meu esquecimento.

Com horas de nascida, enrolada como uma pequena múmia, mas não parente da Cleópatra. Minha mãe estreante me olhando daquele jeito como as fêmeas de todas as espécies olham para seus filhotes. Estranho a foto manter seu preto e branco, deveria estar sépia já, tantas décadas depois. O que será que aquela nenê sentia, será que sonhava ou que só dormia? Em outra foto, eu um pouco maior com inexplicáveis cabelos loiros. Poderia ser filha do leiteiro - piada politicamente incorreta e historicamente incompreensível, já que há muito os leiteiros desapareceram do cotidiano das famílias. Eu mesma, para ser sincera, nunca vi um.

A irmã que nasceu com um intervalo de apenas 11 meses, nós duas sempre com roupas iguais, só a cor diferente. Eu de azul, ela de vermelho. Virei gremista - como meu pai. Ela, colorada. Se não foi cármico, foi o leiteiro. Embora eu já tenha uns três anos nas fotos, não lembro do que a gente brincava, dos passeios, das brigas. Não demora, minha irmã caçula começa a figurar nas imagens. É uma bebê gorducha, olhos redondos. São muitas as fotos da mãe com a gente. Se não me visse nelas, diria que nunca estive naquele apartamento.

Fotos na casa dos avós com as primos, os primas, os tios, as tias. Não chega a ser lembrança, é mais uma sensação de coisas acontecidas. Como na vez em que a vó matou uma galinha na nossa frente para o almoço do domingo. Nós, as crianças, comemos chorando, mas comemos. Não tinha essa de escolher o cardápio. O tio mais moço tocando bateria, meu irmão bebê já incorporado, de colo em colo nas fotos. O batizado dele, o padrinho e a madrinha na estampa dos anos 1970, os dois com grandes óculos de sol que assustariam o afilhado, não estivesse ele ferrado no sono. Fui, mas não lembro.

Sete de Setembro, marchando na ala dos mais baixinhos do colégio. Pobres alunos, tomara que esse desfile não seja mais obrigatório. Concorrendo a Mais Bela da Escola, os cabelos falsamente cacheados, uma tragédia estética. Fiquei em último lugar. Chuchi e Nara, as melhores amigas. Algumas professoras de diferentes colégios. Troquei muito de colégio, disso eu lembro bem, a repetida sensação do primeiro dia de aula e o desconsolo de começar tudo outra vez.

Minha adolescência não ficou registrada, odiava fotos e aposto que proibi os flashes. Era chata de doer. Então o tempo dá um salto e me vejo em outra vida, com o namorado que importou em casas desconhecidas e praias desabitadas. Aquela na turma da Geologia, de bornal e tudo, sou eu? Mais uma vez, não me reconheço.

Meio sem perceber, o trabalho substituiu a família. É onde eu mais fico, onde mais me divirto, onde começo a ganhar um dinheirinho que vai melhorando à medida em que a vida avança. Grana para as compras que antes não podia fazer, para viajar. Queria que as meninas e os meninos que começam uma de suas vidas agora tivessem essa oportunidade também. Nunca é fácil, mas parece que nunca foi tão difícil.

A partir do nascimento do meu filho, lembro de tudo. Só quase não dá para acreditar que ele já tenha sido tão pequeno. Talvez a gente documente a vida dos filhos assim, quase que minuto a minuto, para ter a impressão de que acontece tudo de novo a cada vez que se mexe nas fotos antigas.

A arrumação vai chegando ao fim e a regressão, também. Pai e mãe não aparecem mais nas fotos, ficou só a falta ocupando o lugar dos dois. Surgem personagens novos, as sobrinhas e o sobrinho, amigas e amigos, o namorado e a família dele. Quantas vidas mais todos nós teremos antes de tudo acabar, é um mistério. Que nunca nos faltem selfies, nem fôlego, para nenhuma delas.

CLAUDIA TAJES


30 DE NOVEMBRO DE 2019
CARPINEJAR

Inesperada timidez

No amor verdadeiro, todos viram tímidos. Mesmo os mais seguros, os mais confiantes, os mais sociáveis, os mais comunicativos, os mais expansivos. É o que chamo de apagão da personalidade. Você se importa tanto com a opinião do outro que se vê inesperadamente retraído, capaz de agir como uma criança apertando a campainha e saindo correndo.

Com a dúvida da reciprocidade, nega-se o que aconteceu e o que foi realizado, apesar das evidências contrárias. É tipo um "não fui eu" absurdo.

Enfrenta situações patéticas, embaraçosas, desprovidas de sentido para um adulto. É telefonar, esquecer o que iria dizer e desligar na cara e depois não atender a chamada de volta. É falar uma verdade e se arrepender, mentir que é brincadeira e jamais repor o que realmente pensa. É mandar mensagens de madrugada, um pouco bêbado, reconhecer a hora adiantada e imprópria e apagar com receio de se mostrar excessivamente dependente. É abandonar de fininho a cama de manhãzinha para escovar os dentes e voltar fingindo que está dormindo, como se a companhia não tivesse notado a sua saída.

Isso sem contar a precocidade das juras que cria a vergonha e o rubor das bochechas. Você está começando a relação e passa a fazer declarações definitivas que só assustam.

Não há maior medo do que estar amando sozinho ou amando mais rápido do que o andamento dos fatos. Como, do nada, revelar que gostaria de ter filhos e quais os nomes sonhados. E a pessoa fiscalizar o uso dos preservativos de modo obsessivo. Daí você fica sem chão.

Ou fazer montagem de imagens do casal para comemorar 15 dias do primeiro beijo. E a pessoa lhe confundir com um psicopata. Daí você fica sem pai nem mãe.

Ou colocar a foto da parceira na tela de proteção do celular. E a pessoa considerar que está forçando a barra, afinal recém vêm se conhecendo. Daí você fica sem sinal.

Ou oferecer metade do chiclete da boca. E a pessoa recusa, já que é uma situação íntima demais para não sentir nojo. Tudo bem em partilhar o mesmo copo de cerveja, taça de vinho e canudinho, mas goma mascada é exagero. Daí você fica sem moral.

Ou propor morar juntos quando mal assumiram o romance. E a pessoa julgar que você é carente e inconsequente. Daí você fica sem teto.

Ou dar um presente caro demais perto das poucas experiências vividas lado a lado. E a pessoa distorcer que busca comprar a presença. Daí você fica sem crédito.

Amar é não saber ao certo como se comportar, se é cedo demais para se comprometer ou se cabe demonstrar a emoção quente na hora em que ela aparece.

A timidez é sempre esse medo ingrato e aterrorizante de decepcionar.

CARPINEJAR


30 DE NOVEMBRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

Existem conceitos que se espalham e que usamos sem muita reflexão. Quando as pessoas notam que existem oferendas no dia 2 de fevereiro para Iemanjá, dia de Nossa Senhora da Luz ou das Candeias, imediatamente classificam que esse seria um gesto de sincretismo, de elementos combinatórios entre a mãe de Jesus e a orixá dos mares. O mesmo poderia ser percebido em Santa Bárbara, tratada como Iansã no candomblé, ou São Jerônimo/Xangô ou São Jorge/Ogum. O mesmo sentimento geral afirma que as combinações eram estratégias de escravos que, impossibilitados de continuar seus cultos tradicionais, disfarçaram o panteão africano com os canonizados católicos. 

Ir à Igreja do Senhor do Bonfim, lavar as escadas com água de cheiro louvando ao bom Jesus que acompanhava a agonia derradeira era, no fundo, um culto a Oxalá presente no branco das roupas das baianas e nas comidas de homenagem. Esse parece ser um consenso tão universal no Brasil que se assemelha à ideia clássica da origem da feijoada: um prato com restos do porco levados para a senzala e lá cozidos com o feijão-preto enquanto os senhores brancos da Casa Grande tinham aproveitado o lombo e o pernil. Como as entidades poderosas iorubas, a feijoada era uma estratégia do possível para um grupo oprimido e violentado física e espiritualmente.

A ideia pareceu funcionar e foi bem repetida. A feijoada não é um prato da senzala e não nasceu na colônia. O prato típico da mão de obra escravizada é a farinha de mandioca com carne-seca. A feijoada é urbana e, provavelmente, nasceu na capital do país de então, o Rio de Janeiro. Com variantes expressivas, cozinhar partes do porco com feijão existe em quase todo o mundo.

Voltemos ao sincretismo. O conceito tem um problema: ele implica dizer que existiria uma religião pura e original. Não há. Mitos combinados fazendo surgir uma espécie de signo aberto no qual o Zé do Burro (a personagem do O Pagador de Promessas, de Dias Gomes) via Iansã e Santa Bárbara ao mesmo tempo, para horror do padre na obra.

Não existe uma religião original ou uma fonte absoluta. Explico-me. O Deus de Israel é fruto da fusão de uma entidade chamada El e outra denominada Iaveh (e suas muitas variantes de escrita). Cada entidade era separada e atingia mais os habitantes do norte ou do sul do corredor sírio-palestino. Há abundantes evidências imagéticas e literárias de que eram seres separados, com narrativas distintas, esposas, imagens específicas e valores apartados. No exílio da Babilônia, sacerdotes costuraram um processo que vinha aumentando fazia anos: a fusão dos dois deuses em uma nova entidade nacional dos hebreus, cada vez mais imaterial e única. Israel passou do politeísmo para a monolatria e, muito mais tarde, para o monoteísmo. As narrativas foram colocadas por escrito por um processo visível ainda nas linhas de colagem da Bíblia. Existe o texto eloísta e o javista e eles foram unificados de forma mais ou menos eficiente pela chamada tradição sacerdotal. Isso explica algumas contradições notáveis do texto bíblico, deixando ainda revelar dois seres completamente diferentes com atributos desiguais.

E o demônio? Talvez seja a mais sincrética das criaturas. A serpente que provocou a queda do homem, a entidade que obtém de Deus autorização para atormentar Jó e o ser que dialoga com Jesus no deserto são completamente distintos. Porém, a narrativa cristã uniu todos como Lúcifer ou Satanás, aquele que sussurrava ações maléficas a Judas e que luta contra o Bem no Apocalipse. A costura de toda a ação malévola em um ser específico é um processo de intenso sincretismo.

Maria passou a ser cultuada em Éfeso, mesmo lugar do culto a Diana/Ártemis, uma entidade sempre virgem. A fusão de deusas-mãe do Crescente Fértil com a figura de Nossa Senhora foi bem documentada. Em alguns casos, transforma-se o lugar: o Partenon de Atenas, consagrado a outra virgem, Palas-Atena/Minerva, virou igreja de Nossa Senhora. Dogmas marianos foram proclamados em Éfeso e o processo de construção da imagem de Maria vai até o século 20 (dogma da Assunção). Nascer de uma virgem é comum a Mitra e a Jesus. Ressuscitar é lembrado como atributo de Osíris e Cristo.

Todos os deuses e cultos do mundo são costuras de muitas tradições. Mesmo que alguns religiosos fiquem um pouco chocados, heróis submetendo dragões (como São Jorge, São Marcelo de Paris ou Santa Margarida) não começaram com Game of Thrones. São mitos antigos e fortes. Como o arcanjo São Miguel pesa as almas em imagens medievais, Anúbis fazia isso há mais tempo no Egito. Tudo no campo do sagrado é feito de sobreposições, imbricações, fusões e mestiçagens.

Sob esse aspecto, tudo é sincretismo, inclusive aquele processo de criação de Deus ou de Maria. Não existe uma religião original e pura ou uma fonte primária. Religiões funcionam como cebolas com muitas camadas e, enfim, depois de retiradas, inexiste uma essência primeira. Sincretismo é a base de todas as culturas, não apenas de Iemanjá ou Xangô. É preciso ter esperança, esta sim, uma virtude pura e original.

LEANDRO KARNAL


30 DE NOVEMBRO DE 2019COMPORTAMENTO




NÃO HÁ SEGUNDA CHANCE PARA TER UMA BOA PRIMEIRA IMPRESSÃO

O argentino Tomas Chamorro-Premuzic atua na área de psicologia organizacional, pesquisando assuntos como perfil de personalidade, análise de pessoas e desenvolvimento de liderança. Ele é autor de 10 livros, incluindo Confianza: La Sorprendente Verdad Sobre Cuánto la Necesitas y Cómo Lograrla, e leciona psicologia de negócios na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e na University College, de Londres. O pesquisador concedeu a seguinte entrevista por e-mail a Zero Hora:

O que faz com que a gente confie em algumas pessoas e não em outras?

Cordialidade, carisma, inteligência emocional, atratividade e pertencer à mesma cultura/tribo. É também por isso que cometemos erros: desconfiando de pessoas honestas que não se encaixam nesses critérios e confiando em algumas que se enquadram, mas que não são confiáveis.

Há maneiras de saber se alguém realmente merece a nossa confiança?

Nunca podemos saber com certeza, mas as atitudes passadas, o altruísmo e ter consciência são elementos a serem levados em conta. Não é algo científico como engenharia aeroespacial, mas também não é aleatório.

Uma vez perdida, a confiança pode ser recuperada?

Sim, mas geralmente não é isso que ocorre. Não há segunda chance para ter uma boa primeira impressão, e as pessoas geralmente são teimosas, então usam viés de confirmação (a tendência de interpretar informações de maneira a confirmar crenças originais) para acreditar nas suas primeiras impressões.

Quando o assunto é confiança, você diria que a dinâmica social no ambiente de trabalho é distinta da vida pessoal?

Acredito que não. As pessoas são as mesmas e depois de poucas semanas trabalhando em um novo lugar começam a se comportar da mesma maneira como se comportam fora do escritório (com algumas exceções).

Quanto devemos confiar em alguém que recém conhecemos? Há um equilíbrio entre, digamos, bancar o trouxa e exagerar no ceticismo?

O suficiente para que a sociedade funcione: se não confiássemos automaticamente nos outros, não seria possível comer em restaurantes, voar em aviões, andar de táxi ou cruzar ruas porque qualquer pessoa poderia nos machucar a qualquer momento. Então, o padrão deve ser confiar, mas quando as decisões apresentam um grande risco e as situações são ambivalentes, um grau saudável de ceticismo certamente é útil.



30 DE NOVEMBRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

DAS DORES

Já passava das duas da tarde quando Maria das Dores entrou. Era a quinta paciente que vinha para consulta sem estar agendada.

Dia de atendimento na cadeia é feito coração de mãe. Às vezes, fico com a sensação de que estou preso na cela em que atendo, na Penitenciária Feminina de São Paulo.

A robustez envelhecida do prontuário médico deixava claro que se tratava de uma prisioneira da categoria "patrimônio público". Num ambiente em que condenações de cinco ou seis anos são consideradas "cadeia de poeta", para ser enquadrada no grupo "patrimônio" é preciso receber penas superiores a 20 anos ou ter múltiplas passagens.

Eu estava com fome e de mau humor, estado de espírito que ela desarmou com um sorriso delicado e o pedido de desculpas pela intromissão, motivada por uma amigdalite que diagnostiquei em menos de cinco minutos.

Quando terminei de preencher a prescrição, ela levantou-se para sair. Estranhei. Carentes de atenção, mulheres na cadeia costumam ser poliqueixosas, mal o médico acaba de resolver um problema, vem uma enxurrada de outros: dores nas costas, enxaqueca, queda de cabelo, manchas na pele, irregularidades menstruais, insônia, vista cansada, vácuo no estômago e uma infinidade de achaques não descritos nos livros de medicina.

Perguntei há quantos anos estava na prisão. Respondeu que havia cumprido 12 de uma pena de 36. Pedi que sentasse.

Contou que o nome lhe foi dado em pagamento à promessa que a mãe fizera para Nossa Senhora do Bom Parto aliviar as dores horríveis ao dar à luz a ela, num vilarejo próximo de Quixadá, no sertão cearense. Considerava inútil o nome Maria, jamais utilizado pela família ou pelas pessoas que veio a conhecer.

Aos 11 anos de idade, foi mandada para a casa de uma tia, em São Paulo, para afastá-la do escândalo familiar causado pelo avô paterno que a estuprou.

Na Zona Leste, com a tia e duas primas, pôde estudar até conseguir emprego num escritório de advocacia que, anos mais tarde, possibilitaria a compra de uma casa vizinha à das primas, quando se casaram. Ela continuou solteira:

- Pra mim, homem sempre foi coisa meio nojenta, quando chegavam perto eu me sentia mal.

As primas tiveram três filhas que fizeram a felicidade da "tia" Das Dores, sempre disposta a vê-las e a ficar com elas, quando os pais saíam.

- Tinha paixão por aquelas crianças; mais do que se fossem minhas filhas. Queria me ver feliz, era me deixar com elas.

A tragédia aconteceu no dia em que uma das primas pediu para Das Dores voltar mais cedo do trabalho, para fazer companhia à filha de nove anos que estava para chegar da escola.

A casa da prima estava fechada. Ela achou que a menina ainda não tinha chegado. Enquanto procurava a chave na bolsa, ouviu um choro abafado que vinha do quarto.

Encontrou a sobrinha de nove anos encolhida na cama com os lençóis revirados e as mãos entre as pernas, sobre uma poça de sangue.

- A hemorragia foi tanta que, quando ficou em pé, desmaiou.

Desesperada, ligou para o Resgate, que levou a criança para o pronto-socorro. Depois de duas horas de cirurgia e uma transfusão de sangue, a menina contou que fora violentada por dois irmãos que moravam no caminho da escola. Das Dores fez a criança jurar que não revelaria a identidade dos dois para mais ninguém; nem para os pais.

No mesmo dia, ela se apresentou a um traficante da vizinhança, para comprar um revólver.

Vigiou a casa dos agressores durante horas. Viu o primeiro homem chegar do trabalho, e esperou pelo segundo, que não tardou.

No portão, interpelou-o com voz doce. Disse que o observava havia algum tempo e que se sentia atraída por ele. Conversaram por alguns minutos, até ser convidada para entrar.

- Homem é bicho idiota, cai na primeira conversa de mulher.

O amigo estava no fogão. Foram apresentados. Ela tem certeza de que viu uma calça manchada de sangue num balde com água, atrás da porta do banheiro. Pediu um copo de cerveja. O primeiro caiu sobre o fogão; o outro, junto à porta da geladeira.

Na manhã seguinte, Das Dores foi ao Instituto Médico Legal. Identificou-se como uma parente encarregada de reconhecer os mortos. O funcionário retirou-os da geladeira e se afastou, em respeito. Ela abriu a bolsa, pegou o vidro com gasolina, esparramou sobre os corpos e ateou fogo, antes que o funcionário estupefato pudesse impedir.

DRAUZIO VARELLA


30 DE NOVEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O gorro perfeito

Comprei o chapéu de Shackleton. Um gorro, na verdade, mas não um qualquer. Estou falando do gorro perfeito.

Acontece que sinto muito frio nas orelhas. Será normal isso? A investigar. De qualquer forma, o fato é que, ao dormir, tenho de tapar as orelhas mesmo no verão, e aqui, no inverno feroz do Norte, não posso sair sem que a cabeça esteja coberta.

Dia desses, porém, saí desprevenido. Culpa da Marcinha. Ainda estava em casa, quando ela chegou da rua, livrando-se do casaco com alguma urgência e anunciando: - Está quente! Se estiver saindo, vai sem touca!

Eu estava saindo, e já empunhava a minha brava touca de lã, mas, como a Marcinha se punha a repetir que estava quente para fins de novembro, que fazia 11 graus e luzia o sol, saí a descoberto.

Que arrependimento. Em poucos minutos, a temperatura despencou e um vento gelado veio uivando do Canadá. Foi aí que pensei em Shackleton. Ernest Shackleton foi um explorador inglês que liderou uma das maiores aventuras da história da humanidade. Só é possível acreditar no que ele fez porque existem documentos e testemunhos a respeito.

Foi o seguinte: quando a Primeira Guerra Mundial estava ainda no seu início, Shackleton decidiu que atravessaria a Antártica a pé. Conseguiu patrocinadores generosos, um navio robusto e até o apoio de Churchill para o empreendimento. Em seguida, passou para a fase de contratação da tripulação.

Essa parte deveria ser estudada por diretores de empresas mundo afora (Alô, Andiara! Alô, Toigo! Alô, Zuckerberg!), porque foi fundamental para o sucesso de Shackleton. E foi surpreendente. Porque Shackleton dava menos importância aos conhecimentos técnicos de seus contratados e muito mais à personalidade de cada um. Ele dispensava currículos bem fornidos, se o candidato demonstrasse possuir bom humor e bom caráter.

Finalmente, partiu com seu navio, o Endurance, que significa resistência, palavra bastante apropriada para aquela expedição. Porque, depois de alguns meses, o navio acabou preso por grandes banquisas de gelo que foram pressionando o casco até afundá-lo. Os tripulantes conseguiram escapar no último momento e, com três pequenos botes, rumaram para uma ilhota congelada. Estavam em uma situação desesperadora, no meio do gelo infinito da Antártica, com alimento escasso, a cerca de 1,5 mil quilômetros de distância de quaisquer outros seres humanos. O horror, o horror. O tempo ia passando, passou-se mais de um ano, e não havia sinal de salvação.

Enquanto isso, Shackleton esforçava-se para manter os ânimos do grupo elevados. Inventava jogos e celebrações, conversava com os homens, alentava-os. Finalmente, resolveu sair com um grupo e arriscar a travessia até a ilha da Geórgia do Sul, onde sabia que poderia encontrar socorro. Depois de quase um mês enfrentando tempestades e inclusive um furacão, ele chegou à ilha. Mas, no lado em que bateu, não havia ninguém. Teria de atravessá-la, percorrendo 50 quilômetros de terreno montanhoso, sem trilhas, sem referências, sem nada que o guiasse. E conseguiu!

Por fim, Shackleton tentou por três vezes buscar os companheiros que havia deixado para trás, mas o gelo o impedia de navegar. Na última tentativa, teve sorte. Todos foram salvos. Com sua liderança e inteligência, Shackleton os manteve unidos e confiantes por DOIS ANOS no frio extremo da Antártica. Sua façanha é uma das grandes realizações da vontade humana.

Eu, no lugar deles, só resistiria se tivesse densa proteção para as minhas orelhas. Era no que pensava naquele dia de frio, em Boston. Sentia-me um Shackleton, avançando contra os ventos gelados sem touca ou chapéu.

Então, vi algo que, para mim, pareceu aquela pequena ilha onde os marinheiros se homiziaram: uma Target, que é uma loja que tem de tudo, de hortifrútis a TV de plasma. Entrei e, logo no primeiro andar, vi um chapéu exatamente como o de Shackleton, com abas compridas, próprias para proteger orelhas sensíveis como as minhas.

- É muita coincidência! É um sinal! - exclamei, chamando a atenção dos outros clientes.

Comprei o chapéu por US$ 19 e o acoplei à cabeça. Era quente e aconchegante. Olhei-me no espelho: parecia um aventureiro. Sim, senhor! Satisfeito, segui o meu caminho, como os marinheiros ingleses rumo à Geórgia do Sul. Estava contente, debaixo do meu gorro perfeito. Depois de horas, cheguei feliz em casa. A Marcinha estava na sala. Ao me ver, gritou:

- Mas que coisa horrorosa é essa na tua cabeça?!?

Aquilo doeu. Mas toquei para o quarto, de queixo erguido, pisando firme, enquanto ela gargalhava no sofá. Que se ria. Viver uma vida de aventuras não é para qualquer um.

DAVID COIMBRA


30 DE NOVEMBRO DE 2019
VARIANDO

Dissonância cognitiva

Calma leitor, parece difícil esse título, mas com um exemplo você não esquecerá o conceito. Em 1954 uma "profeta" e dona de casa do Michigan, Dorothy Martin, previu que uma nave espacial levaria ela e seus seguidores para fora do planeta, pois a Terra seria inundada. Precisamente, ocorreria no dia 21 de dezembro daquele ano. Deus teria avisado apenas a ela. Então Dorothy e seus discípulos largaram suas posses, suas famílias para esperar o resgate.

Como a história era pública, psicólogos pesquisadores, chefiados por Leon Festinger, se infiltraram no grupo para observar a reação dos crentes quando a profecia não ocorresse. Estavam justamente estudando: como as crenças se transformam quando a realidade se impõe.

Quando a nave não chegou, os membros da seita concluíram que as orações deles teriam sido tão eficazes que impediram a destruição do planeta. Por isso a nave não foi necessária. Ou seja, o pensamento mítico, tanto quanto o pensamento paranoico, nunca é vencido. A experiência contrária, não só não afunda a tese, como a reforça. Sujeitos emocionalmente envolvidos com suas crenças não abrem mão do sistema que usam, eles torcem os fatos para encaixá-los na teoria prévia. Por isso o conceito de dissonância cognitiva, a diferença entre aquilo que ocorre e como isso é entendido pelo sujeito.

O conceito foi desenvolvido no livro When Profecy Fails (Quando as Profecias Falham) e nos ajuda a pensar os caminhos da nossa psique. A questão é que isso não ocorre apenas em seitas apocalípticas. O exemplo é grosseiro, para demostrar com clareza, mas existem gradações dessa forma de pensar. Podemos ter ilhas de dissonância cognitiva dentro do nosso sistema de pensamento.

Somos herdeiros de uma tradição racionalista que acreditou demais na tese de que o ser humano seria razoável e guiado pela razão. Como se o tempo da ciência tivesse chegado e o do mito ficado no passado. Somos racionais, mas de modo intermitente, nem sempre, ou nem em todos os assuntos.

Isso envolve a todos. Estou falando de mim e de você, caro leitor. Por que seríamos imunes a cantos de sereias de crenças quando elas nos convêm? Infelizmente o modo mítico de pensar é a nossa base natural. Nós não somos amigos dos fatos e sim da nossa maneira de pensar.

A saída é a radicalização da alteridade. Aceitar a parcialidade de nosso saber e furar todas as bolhas possíveis. Exercer de fato a tolerância com outras formas de pensar. O melhor termômetro é a dúvida, pois a paranoia é o paraíso da certeza. Siga quem menos parecer um profeta. Fuja de quem não se inclui no problema e culpa apenas os outros. Evite quem espuma ódio, pois é signo de uma paixão, logo de uma cegueira. E, principalmente, precisamos insistir na tese de que todos temos direitos a opiniões, mas não existe um direito aos fatos.

MÁRIO CORSO


30 DE NOVEMBRO DE 2019
JUBILADOS

Grupo RBS celebra seus colaboradores

Era um clima de celebração, com palmas, show ao vivo, palavras de agradecimento e largos sorrisos. Em cerimônia no prédio da Avenida Erico Verissimo, o Grupo RBS celebrou, na segunda-feira, a dedicação de seus 110 jubilados: funcionários que, em 2019, completaram 10, 15, 20, 25, 30, 35 e 40 anos de contribuição à RBS.

O evento teve como mestres de cerimônia o comunicador Luciano Potter e a apresentadora Alice Bastos Neves, que convidaram cada um dos jubilados para uma arquibancada, completada conforme cada um era chamado e aplaudido pelos demais colegas. Eram jornalistas, técnicos de áudio e de vídeo, engenheiros, jornaleiros, publicitários, motoristas, administradores, entre outros profissionais. Gente que dá rosto e personalidade à empresa.

Na comemoração, houve quem se emocionasse ao comentar a trajetória na RBS, relembrando um que outro fato na empresa ou amarrando a vida pessoal à carreira. Muitos entraram como estagiários e seguiram em diferentes áreas da empresa. Cresceram em suas carreiras, mudaram de cidade, tornaram-se líderes, tiveram filhos e até netos.

Entre os homenageados, estavam o presidente do Conselho de Administração da RBS, Eduardo Sirotsky Melzer, o Duda, completando 15 anos, e o CEO da empresa, Claudio Toigo, que soma 25 anos.

- Ao longo de mais de 60 anos, a RBS passou por transformações, desafios e mudanças. O que não mudou, no entanto, é um pilar muito representativo da nossa força: a confiança e o orgulho que temos das nossas pessoas. O que diferencia a nossa empresa é essa relação de amizade, de comprometimento e de lado a lado que temos com os profissionais que fazem diariamente a RBS ser o que ela é - destacou Eduardo, no encerramento da comemoração.

- O tempo significa as histórias que vivemos e o que contribuímos aqui nessa empresa que, em mais de 60 anos, passa por transformações e as faz também. Que a gente possa construir mais histórias de significado - declarou Toigo.

Presente na celebração, o acionista Nelson Sirotsky agradeceu aos funcionários pela dedicação.

- São 110 jubilados. Digamos que cada um tenha 15 anos de casa: são 1.650 anos de história. E cada um tem a sua, muito diferente da do outro. Fiz essa conta para valorizar cada ano de cada um aqui. São 110 pessoas que realizaram uma história fantástica. Parabéns - disse.

Ao final, uma miniatura com a frase "A gente vive junto", em acrílico, seguida do tempo de casa de cada um foi entregue aos homenageados, como forma de agradecimento pelo tempo de dedicação à empresa. O conceito expressa os atributos de marca que movem a RBS: proximidade, confiança, curiosidade, coragem, pluralidade e excelência.



30 DE NOVEMBRO DE 2019
FLÁVIO TAVARES

AS INDÔMITAS

Ser professora é como ser mãe, é inaugurar uma vida no outro, dando à luz algo sublime. Quem ensina vive em quem aprende e, por isso, o magistério foi visto sempre como sacerdócio. Nada supera o aprendizado das primeiras letras.

Recordo sempre o momento em que (aos seis anos) escrevi minha primeira palavra e o mundo se abriu à minha frente. O sorriso da professora Maria Bezerra se renova em cada ideia que escrevo, mesmo que ela tenha morrido há décadas.

Ao longo dos séculos, todas as culturas, filosofias e religiões fizeram do professor um guia da sociedade, acima da política e dos governos. A escola é o pilar da vida civilizada, sem ela não há amanhã. Por isto, é impossível entender o desprezo com que, entre nós, se trata hoje o magistério, relegado a atividade menor ou desprezível, até.

A atual greve dos professores não busca vantagens ou regalias. Nem sequer reivindica salários, apesar da baixa remuneração. A greve procura, apenas, que não se altere o atual "plano de carreira", como pretende o governador. Por que fazer da carreira de professor um simples biscate?

Para o professor, greve equivale a um sacrifício, pois a grande gratificação é formar cidadãos. Ninguém opta pelo magistério para ganhar dinheiro. O enriquecimento está em abrir portas para o mundo.

Até poucos anos atrás, o Rio Grande do Sul foi exemplo de escola pública ampla e profunda, que partia da valorização do professor, hoje abandonada e inexistente. Numa cópia da nebulosa instalada em Brasília, fala-se até em abandonar a escola e substituí-la pela alfabetização ou educação no próprio lar. Esquecem-se de que educar é, antes de tudo, preparar a criança para a vida em sociedade, conhecendo e agindo com os demais.

Por tudo isto, chamo as professoras em greve de indômitas, pois não se deixam subjugar.

Escrevo agora de Búzios, no litoral do Estado do Rio de Janeiro, junto ao mar, à espera de que as manchas de óleo cheguem à praia. Guardadas as proporções e as tragédias diferentes, sinto-me como os prisioneiros dos nazistas em Auschwitz, à espera diária de conhecerem o horror das câmaras de gás. O extermínio é outro, mas é aterrador. Após manchar o mar do norte e nordeste do país, o petróleo chegou ao Espírito Santo e já adentrou 70 quilômetros no Estado do Rio. Em Búzios, entrará pela Praia da Tartaruga, matando a fauna marinha que lhe dá o nome e que resistiu, até mesmo, à depredação do turismo.

Mais do que as águas degradadas, preocupa a desatenção e inércia governamental. Logo após aparecerem as primeiras manchas, levaram 41 dias para acionar o "plano de contingência" para casos semelhantes. Em seguida, o recolhimento do óleo transformado em piche foi caótico e afetou a saúde dos voluntários, que (ao aceitarem o desafio) foram também indômitos, sem medo de se expor.


FLÁVIO TAVARES

sábado, 23 de novembro de 2019



23 DE NOVEMBRO DE 2019
LYA LUFT

O elefantinho gentil 2

Faz algum tempo, escrevi uma coluna com o título - acho eu - de "O elefantinho gentil". (Sim, preguiça de procurar.)

Uma camiseta com um elefante, flores na tromba, e o dizer, mais ou menos: "Se você não tem nada a fazer, seja gentil". Be kind. Tenho pensado muito nisso nestes dias de tanta grosseria, insulto, ódio racista ou de qualquer tipo. Até grosserias em família, muito tristes porque um lar com ambiente hostil, ou violento ou mesmo frio, possivelmente deixará cicatrizes fundas em filhos e parceiros, criando hábitos de violência ou frieza que irão prejudicar os relacionamentos futuros.

Famílias em que um tapa ou um insulto (burro, grosso, maricas, machona, sujo, relaxada, preguiçosa... e outros piores) são coisa normal são pequenos campos de batalha onde quase sempre vence o mais forte, pai, mãe, irmão mais velho, ou o mais resistente, que pode ser uma criança daquelas do tipo "pode bater, que eu não choro". E as lágrimas, os soluços retidos, vão se empilhando na alma até, um dia, talvez num futuro distante, começarem a irromper como uma represa de sujeira e sofrimento.

Mas não é só a violência física ou verbal que implora por mais bondade e bom senso: a frieza e a indiferença criam barreiras invisíveis, torres de isolamento e solidão, desamparo e insegurança - ou desconfiança de tudo e todos, criando jovens revoltados e deprimidos... talvez suicidas por desesperança.

Estamos mergulhados em transcendência, eu sempre digo e escrevo, com beleza, arte, afetos, natureza, espiritualidade e momentos de contentamento interior, mas também podemos estar isolados entre muros feios e agressivos que nos esmagam com ferocidade gelada.

E isso, se formos muito jovens, ou desinformados, ou sem arrimo e apoio, pode nos condenar a uma existência inferior, sem noção da própria dignidade e direitos. Como uma criança ou jovenzinho sem a certeza dos afetos próximos pode escapar, pode se salvar? Pois eu acredito que gestos de delicadeza, em casa, na escola, na turma, no trabalho, sejam pequenas boias de socorro que ajudam a ficar à tona d?água sem se afogar.

Não pode ser muito difícil: pai, mãe, irmãos, alguma vez trocando palavras de elogio e estímulo, um abraço inesperado, um afago no cabelo, um tapinha no ombro, alguma demonstração de que aquela pessoa é importante. Pois todos queremos ser importantes no amor de alguém, e isso deveria começar em casa.

Também na escola, no bar, na turma, no trabalho, como escrevi acima, ser gentil pode iluminar uma hora na vida de alguém, um dia, ou até modificar uma vida. Porque de repente havemos de ver, sentir, que não somos lixo, não somos ignorados e desprezados ou pisoteados, mas somos humanos, somos almas, somos destinos, somos potencialidades mil que às vezes só esperam esse momento de claridade para se encontrar, e se construir.

Então, mais uma vez: a qualquer hora, e sempre, BE KIND.
LYA LUFT

23 DE NOVEMBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

A pontualidade e o amor


O que faz um romance durar? Entre as muitas vantagens de amadurecer, está a de não se preocupar mais com essas questões e simplesmente se jogar, permitir que os dias fluam, que o vento nos leve, sem ficar fuçando demais na história. Permitir que a energia pulsante da relação seja mais importante do que suas razões e porquês.


Ainda assim, tempos atrás escrevi um texto chamado "Fator de descarte", em que analisei os motivos que fazem com que as pessoas larguem de mão uma paquera (uma amiga desistiu de um cara porque ele não gostava de escutar Tom Jobim, outra costumava analisar os sapatos do sujeito - francamente, gurias). Meu fator de descarte seria a violência e a canalhice. Jamais suportaria alguém que me agredisse ou que não fosse ético, mas, se é para entrar em detalhes mais prosaicos, vamos lá: pontualidade. Taí algo que, pra mim, facilita o ajuste dos ponteiros.


Em um primeiro encontro, adoraria perguntar: você é do tipo que chega ao aeroporto quatro horas antes do voo ou com um fiapo de tempo antes do embarque? Pois é, isso pode dar uma pista sobre a aventura que nos aguarda.


Óbvio que as duas hipóteses são exageradas, mas o exagero ajuda a definir o perfil da pessoa. Ou ela é precavida (mesmo que quase morra de tédio até o momento de entrar no avião) ou é descuidada (mesmo que quase morra do coração ante a iminente perda do voo). Eu sou do tipo que leva os imprevistos em conta, então sempre chego mais cedo - em tudo o que é lugar, a qualquer compromisso. Deve ser uma espécie de tara, vá saber. Mas o fato é que prefiro esperar o voo, esperar pelos outros, esperar por tudo, e assim manter meus batimentos cardíacos sob controle. Aquela lá que vem correndo esbaforida não sou eu.


Não gosto de entrar no cinema com a luz já apagada. Não gosto de deixar os amigos aguardando num restaurante. Não gosto de ser a última a chegar numa festa: entradas triunfais não combinam comigo. Se o namorado diz que virá me buscar às 20h, às 19h45min estarei pronta. Se ele aparecer às 20h10min, ainda me encontrará sorrindo. Se ele aparecer às 20h30min, já não estarei sorrindo, e se a explicação para o atraso não for boa, talvez eu avance em sua jugular - nunca saberemos, porque nunca aconteceu. Já namorei alguns malucos, mas nunca um homem mal-educado.


Se ele gosta de Tom Jobim ou de pagode, se usa sapatos cafonas ou vive de tênis, se gosta de ler ou é viciado em rede social, tudo pode, tudo vale, tudo se ajeita - ou não se ajeita. É da dinâmica das relações. Mas pontualidade é assunto sério. O descuidado até pode se atrasar 30 minutos para buscar você pra jantar (mesmo colocando o pescoço em risco), mas tudo será perdoado se ele tiver aparecido na sua vida na hora certa.


MARTHA MEDEIROS


23 DE NOVEMBRO DE 2019
CLAUDIA TAJES

A vida visível

Primeira providência de quase todo gaúcho que se vê em São Paulo por alguns dias: fazer a ronda nas exposições do MIS, Masp, IMS e todas as outras siglas que nos permitem explorar as possibilidades - as imensas possibilidades - que cabem nas salas dos centros culturais e dos museus. Fruir a beleza, o inesperado, o perturbador, o desconhecido, coisa boa para os olhos e para a alma.

Ao sair de uma exposição, de um filme, de um livro, de um show, de um espetáculo, de uma experiência artística, enfim, dá aquela urgência de dividir o que se viu. E até o que não se entendeu. Dividir faz com que a sensação continue, fique mais forte, até. Embora a pobre cultura ande em baixa nesses dias, é ela quem abre algumas janelas que já estão dentro das pessoas, às vezes ainda fechadas, em outras só emperradas. Não faz muito, na frente do Theatro São Pedro, um flanelinha perguntou sobre o que tratava a peça em cartaz. Explicamos por cima, mezzo sem paciência, mezzo achando que o rapaz não ia entender, e a cada frase nossa ele fazia novas perguntas. Não fosse a última sessão na cidade, era de comprar um ingresso para que ele pudesse assistir. Boas intenções que já não adiantam, sou dessas.

Foi na primeira tarde em São Paulo, na saída de uma exposição, a Avenida Paulista lotada. Não estranhei um empurrão mais forte, uma multidão daquelas só poderia andar assim, aos trancos. A mochila navalhada vi no hotel, o bolsinho da frente tristemente vazio. Havia sumido o óculos de leitura que, para mim, faz uma falta danada, e que deve ter ido para a lixeira mais próxima. Foi-se também o óculos de sol quase novo. A carteira com os cartões e os caraminguás ficou a salvo, melhor guardada na outra parte da mochila. Fui sortuda, no fim das contas.

Estava lutando contra a minha hipermetropia de grau 2 para trabalhar quando chegou uma mensagem no Instagram: "Achei tua CNH na Paulista". Eu tinha colocado a carteira de motorista no bolsinho da mochila ao embarcar, e nem lembrava. Ia dar falta dela quando pegasse o avião de volta. Ou se levasse um atraque da polícia, nunca se sabe.

A Gabi, que encontrou minha CNH, também fez a gentileza de me encontrar em um café para devolver a habilitação descartada na avenida. Dela só sei que trabalha o dia inteiro e estuda de noite, que já teve os documentos roubados e que usava uma camiseta de caveira. É quase certo que nunca mais vamos nos ver, e que eu não vou esquecer dela. Pessoas que se importam com pessoas, nada melhor para devolver o alento que anda meio perdido.

Continuando com a minha fase de sorte, assisti A Vida Invisível em pré-estreia naquela noite. E até hoje, quase uma semana depois, sigo pensando no filme escolhido pelo Brasil para disputar uma indicação ao Oscar. Parasita, o sul-coreano que venceu o Festival de Cannes, é excelente, mas acho que dessa vez a gente leva.

Na saída, ainda sob o impacto do filme, e para continuar falando sobre ele, pedimos um café. O atendente entregou o meu mal fechado. Virou inteiro em mim quando peguei. Podia ser queimadura, mas ficou apenas na sujeira. Por algum problema inesperado na máquina, o cappuccino saiu frio. Era mesmo o meu dia de sorte.

Para aproveitar a maré, joguei na Mega Sena assim que acordei. Acabo de ver que não acertei nenhum número. Volto para Porto Alegre mais dura do que saí, mas no lucro. Esta é a vida visível.

CLAUDIA TAJES