sábado, 14 de novembro de 2020


14 DE NOVEMBRO DE 2020
ARTIGOS - Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

POR UM PAÍS MELHOR E MAIOR

Neste domingo se realiza o primeiro turno das eleições municipais de 2020. Em nome do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), venho convocar todos os eleitores a comparecerem às urnas, bem como prestar contas de tudo o que foi feito para dar segurança a mesários, eleitores e colaboradores da Justiça Eleitoral, diante do quadro da pandemia da covid-19.

Desde o início de maio, constituímos uma comissão médica, composta por sanitaristas, infectologistas e epidemiologistas para monitorar a evolução da doença. A comissão concluiu ser importante adiar as eleições por algumas semanas, fundada na crença - que veio a se confirmar - de que haveria uma queda expressiva no número de casos a partir do final de setembro. Com essa informação, reuni-me com os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, que também se convenceram da importância de se passar a data das eleições para mais adiante.

Em tempo recorde, o Congresso Nacional aprovou emenda constitucional transferindo o primeiro turno para 15 de novembro e o segundo turno para 29 de novembro. A partir daí, a preocupação maior passou a ser a conciliação entre a realização das eleições, rito essencial da democracia, e a proteção da saúde pública. Uma comissão de estatísticos, integrada por servidores do TSE e pesquisadores do Impa, do Insper, da USP e da Fiocruz concluiu pela conveniência de se estender o horário das eleições em uma hora. De modo que neste ano ele irá das 7h às 17h. Além disso, foi reservado o horário das 7h às 10h para votação preferencial dos que têm mais de 60 anos.

O passo seguinte foi instituir uma consultoria sanitária, composta pela Fiocruz e pelos hospitais Sírio Libanês e Albert Einstein para elaborar um plano de segurança sanitária. Fizemos reuniões nos meses de julho e agosto e um minucioso conjunto de protocolos e procedimentos foi estabelecido. A consultoria recomendou, ainda, a compra de uma grande quantidade de materiais e equipamentos de segurança, que incluíram 9 milhões de máscaras, 2 milhões de protetores faciais (face shields) e 2 milhões de frascos individuais de álcool gel, para proteção dos mesários. Para a proteção dos eleitores, indicaram a aquisição de 1 milhão de litros de álcool gel, para limparem as mãos na entrada e na saída da seção eleitoral, bem como marcadores de chão para distanciamento social e 500 mil canetas. 

LUÍS ROBERTO BARROSO

14 DE NOVEMBRO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

OS MARICAS 

O dia a dia do Brasil prescinde de interpretações ou análises. Bastam as palavras dos governantes para temer o pior, que é entrar no reino da estupidez.

Ou não é estúpido festejar a morte de um voluntário que testou (em São Paulo) a vacina da covid-19? E, ainda, apontá-la como "mais uma que o Jair Bolsonaro ganha". Assim disse textualmente o presidente da República, falando de si mesmo e desdenhando o encontro de vacina contra a nova peste.

A ciência médica não tem autor nem nacionalidade, mas o presidente chama de "vacina do Doria" a imunização vinda da China e testada em São Paulo. Foi além e inventou que provoca "morte, invalidez e anomalia" só porque um dos voluntários paulistanos dos testes se suicidou. Em seguida, a Anvisa mandou suspender os testes realizados pelo respeitado Instituto Butantan, como se a vacina provocasse o suicídio.

Imitando soturno mensageiro do apocalipse, em cena vista na TV, o presidente voltou a clamar que "todo mundo morrerá um dia" e, num ímpeto de machismo explícito soltou a pérola: "Temos que deixar de ser um país de maricas".

O termo "maricas" pode estar fora de uso para definir jeito efeminado, mas continua impróprio a um chefe de Estado. Será "maricas", porém, o povo brasileiro?

Esse palavrório rude pode agradar ao chamado povão, que se expressa assim por ignorância, mas sem ter as responsabilidades do presidente.

O "país de maricas", porém, agora ameaça explodir os EUA, maior potência militar e econômica do mundo. Inconformado com a derrota eleitoral de Trump, Bolsonaro voltou a criticar o vitorioso Biden e o acusou de "intromissão" por ter oferecido (ainda candidato) investir US$ 20 bilhões para o Brasil não destruir a floresta amazônica.

"Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora", afirmou Bolsonaro em público e indagou ao ministro do Exterior com um "né?" de aprovação: "Guerra com diplomacia não dá, né?", disse ele. Jamais houve declaração de guerra em represália a ajuda oferecida.

Para agravar a confusão, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tal qual cartomante, previu que o Brasil "pode ir rápido para uma hiperinflação se não rolar a dívida pública de imediato".

Com isso, abriu portas à especulação financeira, um dos fatores inflacionários sobrepostos à dívida. Não expôs, porém, nenhum plano de ação contra o horror anunciado. Portou-se como mero analista do mercado financeiro, não como ministro investido de mando para evitar desastres.

Seremos, mesmo, um país de maricas?

FLÁVIO TAVARES

14 DE NOVEMBRO DE 2020
ELEIÇÕES 2020

Grupo RBS terá cobertura eleitoral em tempo real

Os veículos do Grupo RBS terão programação especial durante o primeiro turno das eleições municipais, que ocorre neste domingo. Com foco na cobertura em tempo real, GZH, Rádio Gaúcha e RBS TV contarão com conteúdos para manter os gaúchos informados durante o pleito, marcado por mudança de rotina e protocolos sanitários impostos pela pandemia de coronavírus.

Ao longo do dia, leitores, ouvintes e telespectadores terão acesso a informações sobre serviços, a movimentação antes da eleição, durante a votação e após o fim da apuração, mostrando toda a repercussão dos resultados. Confira a seguir os detalhes da cobertura.

Programação GZH

A cobertura de GZH, que já começa na véspera da eleição, será focada em conteúdos de serviço, na movimentação nas ruas e das campanhas, no resultado e em análises. A partir das 6h de domingo, o site disponibilizará conteúdo ao vivo, registrando a movimentação das ruas, as atividades dos candidatos e informações sobre a apuração. Repórteres acompanharão o pleito em Porto Alegre, na Região Metropolitana, em Pelotas, na Zona Sul, em Caxias do Sul, na Serra, e em Santa Maria, na Região Central

Leitores terão acesso a matérias de serviço, como "o que levar para votar" e "os cuidados a tomar no processo", divulgação dos números do candidatos de Porto Alegre e sobre como acompanhar a apuração. Também poderão contar as suas experiências durante a votação em um formulário que será monitorado pela reportagem durante todo o dia

Com o fim da votação e o início da apuração, a partir das 17h, a cobertura da Rádio Gaúcha passará a contar com reforço de imagens. Lives com apresentadores e comentaristas, no estúdio ou em casa, registros das atividades nas ruas e nos comitês estarão entre os conteúdos multimídia de GZH. Nessa etapa, o ao vivo de GZH também contará com conteúdos específicos sobre os resultados da eleição no Estado e no país, além de análises dos colunistas

Na segunda-feira, newsletter resumindo os resultados será enviada

Rádio Gaúcha

A cobertura da emissora começa à 0h de domingo, com programação ao vivo com foco total nas eleições. Equipes vão acompanhar o pleito em Porto Alegre, Santa Maria, Pelotas, Caxias do Sul e região. São Paulo, maior capital do país, e Brasília, capital federal, também contarão com a presença da reportagem da Gaúcha

Equipes da RBS TV no interior do Estado também vão atuar de forma integrada, entrando na programação da rádio com informações locais

Neste ano, a Rádio Gaúcha não levará o estúdio móvel para locais de votação, como tradicionalmente ocorre na cobertura de eleição. A medida visa a não gerar aglomeração e garantir respeito aos cuidados com funcionários e ouvintes na pandemia

A partir das 17h, a emissora acompanha em tempo real a apuração dos votos que indicará os vencedores e os candidatos que irão para o segundo turno da disputa nos municípios com essa possibilidade

RBS TV

A partir das 7h, a emissora inicia a cobertura da abertura das seções eleitorais. A programação ao longo do dia contará com flashes ancorados pelas apresentadoras Simone Lazzari e Carla Fachim

Repórteres espalhados em 17 municípios gaúchos também mostram como está a votação em todas as regiões do Estado

Após o período de votação, às 17h, a RBS TV começa a acompanhar a apuração no Estado em tempo real pelo G1 RS e em flashes apresentados por Elói Zorzetto durante toda a programação do Fantástico. Após o Fantástico, o apresentador também comanda um programa especial com os principais resultados do pleito no Estado. A atração também contará com análise da jornalista e colunista de política Rosane de Oliveira, além de mostrar a festa dos eleitos e o cenário nas cidades em que haverá segundo turno na disputa pelo comando da prefeitura

Valter Nagelstein (PSD)

Está terminando a linha para o Lami às 19h15min. As pessoas não têm sequer transporte.

De acordo com a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), a linha 267.7 (Lami, via Beco da Vitória, atendida pela Carris) vai até as 23h23min em dias úteis.

De fato, uma das linhas de ônibus que chegam ao Lami, a 267.1 (Lami/Varejão via Edgar Pires de Castro), tem 19h15min como último horário no sentido Centro-bairro em dias úteis. Mas, depois de determinado horário, a Carris passa a operar algumas linhas que eram de responsabilidade dos consórcios privados - entre elas, a 267.7, que leva ao Lami. Conforme a EPTC, o horário e a localização em tempo real dos ônibus podem ser consultados na função GPS do app TRI POA ou nas tabelas disponíveis no site da EPTC.

sebastião melo (MDB)

Nelson Marchezan (PSDB)

Só quero lembrar que o atual governo tirou a segunda passagem de todas as trabalhadoras desta cidade e dos trabalhadores.

Já tivemos os dados do Caged de demissões, e eles não são analisados sozinhos, mas nós já tivemos este mês muito mais admissões do que demissões

Melo parece se referir à segunda passagem gratuita para trabalhadores. Em julho de 2017, Marchezan determinou o fim da gratuidade na segunda viagem para vale-transporte e passe antecipado, e os usuários passaram a pagar 50% do valor da passagem. Apenas estudantes seguiram tendo direito ao benefício. Os demais usuários começaram a pagar metade do valor da passagem integral na segunda viagem. Na época, a prefeitura justificou que essa era a isenção que mais pesava no reajuste da tarifa, o que corresponderia a R$ 0,51 da tarifa de 2017.

A questão vinha sendo contestada na Justiça desde então, mas no final de 2019 a ação foi julgada improcedente e não cabem mais recursos.

Os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que revelam a diferença entre o número de contratações e dispensas de trabalhadores sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), indicam que Porto Alegre registrou pela primeira vez mais admissões do que demissões desde o começo da pandemia.

Embora o candidato tenha se referido a este mês, na verdade o dado mais recente disponível é de setembro e foi divulgado em outubro. Mas a análise está correta: em setembro, pela primeira vez desde a chegada da covid-19 (ocorrida em março), a Capital criou postos de trabalho. Foram geradas 2.283 vagas - resultado de 14.884 admissões e de 12.601 demissões no período. O saldo acumulado de janeiro a setembro ainda é negativo. A conta total do ano registra até o momento 25.625 mais dispensas do que contratações. Assim, embora de fato o dado mais recente do Caged indique uma reversão de tendência, ainda será preciso manter a abertura de vagas por mais tempo para compensar as perdas provocadas principalmente em razão da pandemia.

 


14 DE NOVEMBRO DE 2020
MARCELO RECH

Antipropaganda eleitoral

No meu primeiro trabalho remunerado, na Central RBS de Eleições de 1978, eu era pano de fundo. Ficava no fundão do cenário da TV, em mesões nos quais universitários atendiam às ligações telefônicas que chegavam dos locais de apuração manual dos votos. Nosso trabalho era anotar, seção por seção, o número de votos para cada candidato. As planilhas eram então repassadas a digitadores que alimentavam “um poderoso computador” que ia totalizando, a conta-gotas, a eleição.

Nas pontas, centenas de colegas recolhiam os números nas mesas de apuração e corriam para transmitir por linhas telefônicas exclusivas o resultado de cada urna, de preferência antes do concorrente. Em pleno novembro, suava-se em bicas em ginásios sem ventilação, as cédulas grudando no suor. Fiscais de partidos brigavam por votos de identificação duvidosa e, em cochilos de juízes nos grotões do Brasil, fraudavam-se urnas desbragadamente.

Os apresentadores de rádio e TV se esmeravam no suspense: “Mais 10 urnas de Ijuí!”, “Apurados 7% dos votos da 111ª Zona Eleitoral!”. E assim íamos nós, dia após dia, noite após noite, semana adentro. A operação toda era de uma complexidade monumental. Décadas depois, eu coordenaria uma série de coberturas eleitorais, mas nada se compara ao planejamento ou desgaste físico e emocional de meus antecessores.

Corta para 2020. O Brasil olha para a apuração das eleições nos EUA, faz tsc, tsc e se pergunta como aqueles povos primitivos ainda não descobriram as virtudes da urna eletrônica. Outros 35 países já a adotaram também.

Não temos Prêmio Nobel nem Oscar, mas – além do pioneirismo do carro a álcool e da declaração do Imposto de Renda por computador – a urna eletrônica em um país continental é um dos poucos cartões de visita da inventividade brasileira.

Pois não é que o presidente do Brasil, a quem caberia propalar o sistema que registrou sua eleição e de seus familiares nas últimas duas décadas e meia, acabou por  se tornar garoto-antipropaganda de uma rara conquista verde-amarela? Podíamos estar vendendo a tecnologia para outros países (a Indonésia pretende usar modelo semelhante ao do Brasil apenas em 2024), mas não: Jair Bolsonaro marcha na mesma senda aberta por Leonel Brizola, que foi um adversário de peso da urna eletrônica.

O sistema brasileiro não é barato, mas se paga a cada crise institucional evitada. Retomar o voto impresso, além de aumentar custos, seria uma concessão às nunca provadas teorias conspiratórias de Bolsonaro, Brizola e outros com dificuldades de aceitação da segurança da urna ou com saudade de suar em ginásios abafados.

Em vez de retroceder, o Brasil deveria era pisar fundo na biometria iniciada com o título de eleitor eletrônico. Por que não estendê-la de uma vez para toda a vida burocrática dos brasileiros? Com a biometria única, fraudes como a do auxílio emergencial seriam coisa do passado – como a nada saudosa contagem manual dos votos.

MARCELO RECH

14 DE NOVEMBRO DE 2020
CARTA DA EDITORA

Cobertura completa 

Ao longo da campanha eleitoral, a Redação Integrada de ZH, GZH, Rádio Gaúcha e Diário Gaúcho preparou conteúdos que pudessem ajudar o eleitor a entender os problemas da cidade e a conhecer e escolher seus candidatos a prefeito e a vereador. Fizemos entrevistas exclusivas e reportagens sobre a vida dos concorrentes fora da política, instamos os candidatos a se posicionarem sobre temas do cotidiano da cidade. Realizamos até um amigo-secreto virtual entre eles. Apesar de um ano marcado pelas restrições, a Rádio Gaúcha realizou dois debates inéditos no Brasil, ambos em formato drive-in, que garantiram a segurança sanitária de todos.

E neste domingo não será diferente. Antes mesmo da abertura das urnas, nossas equipes estarão circulando pelas principais seções eleitorais e registrarão o voto dos principais candidatos a prefeito. Todos os concorrentes à prefeitura da Capital darão entrevistas durante o dia para Gaúcha e GZH.

O gerente de Jornalismo Jornais e Rádios da RBS, Nilson Vargas, fala um pouco deste domingo que preparamos para nosso público:

- Informação em tempo real, informação detalhada, análise. O que se espera de uma cobertura como a de uma eleição está disponível nos veículos que têm a assinatura da Redação Integrada. A pandemia trouxe desafios adicionais, mas estamos focados em oferecer a cobertura mais completa ao nosso público.

A cobertura se intensifica a partir das 17h, quando se fecham as urnas e começa a apuração dos votos em cada município. Nosso time de apresentadores e comentaristas irá destrinchar os resultados, analisando vitórias e derrotas.

- A reportagem da Gaúcha estará espalhada pelo Estado e, na hora da apuração, traremos os dados em tempo real, com composição das Câmaras de Vereadores e prefeituras dos municípios do Rio Grande do Sul e das principais cidades do país - explica Andressa Xavier, editora-chefe da Rádio Gaúcha.

Em GZH, a gerente de Produto Digital, Debora Pradella, resume o que nossos assinantes encontrarão:

- Vamos entregar muito conteúdo de serviço e uma cobertura em tempo real do domingo de eleições para quem quiser estar informado ao longo do dia. A partir das 17h, teremos uma transmissão em vídeo para acompanhar toda a apuração dos votos, com informação da Gaúcha, análise dos nossos comentaristas e giros pelos comitês de campanha.

Na segunda-feira, ZH trará em suas páginas as análises de seus colunistas, infográficos com os principais resultados no RS e no país, as primeiras declarações dos vencedores, as surpresas das urnas e as novas composições nas maiores Câmaras de Vereadores gaúchas.

E, por fim, o mais importante: que a eleição ocorra dentro da normalidade para que cada eleitor possa exercer a sua cidadania.

DIONE KUHN

sábado, 7 de novembro de 2020



07 DE NOVEMBRO DE 2020
LYA LUFT

Escute a canção da vida

Há uma atriz que admiro muito, não diria que foi meu ídolo, mas sempre tive por ela enorme simpatia: chama-se Katharine Hepburn, e talvez a geração mais nova nem conheça.

Era uma jovem à frente de seu tempo, grande atriz, por longos anos de sua vida companheira de Spencer Tracy, os dois já falecidos, ele mais cedo, ela com quase cem anos. Admirei nela, entre tantas coisas, o humor um pouco sarcástico, a língua solta, o desprezo por convenções tolas, seu senso de amizade, seu respeito pela arte, pela vida.

Teve suas tragédias pessoais, como todo mundo. Mas comentava a inscrição sobre a lareira da casa da família, que ela herdou e onde viveu até a morte, um casarão amplo na beira do mar, em Fenwick, Connecticut. A inscrição dizia: "Listen to the song of life" (Escute a canção da vida).

Seguidamente, em tempos difíceis, lembrei disso, e comentei com alguém metido em seus próprios conflitos e dores. Porque, eu acredito nisso, a vida sempre chama, se você quiser - ou conseguir - escutar. No fundo do poço, só escutamos nossas próprias aflições ecoando nessas paredes fundas e escuras, mas aos poucos, se não formos muito mórbidos, começaremos a ouvir. Seja na pessoa de alguém, ou de um trabalho, ou da natureza, ou do lado positivo da nossa própria personalidade. E podemos reviver.

Estamos, já disse mil vezes, em tempos duros, confusos e sombrios. Nada mais é como já foi e muitas coisas jamais voltarão a ser. Não sou muito otimista quanto ao futuro da humanidade, não acho que seremos mais bonzinhos, mais amorosos, mais comunitários, mas mais ferozes, desconfiados, assustados, xenófobos e, claro, mais pobres. Radical? Não, sempre haverá claridade, mas vai ser muito difícil, sobretudo para os adultos, pois os jovens viverão seu próprio tempo, inseridos nele, seja como for. Não sou nada cética quanto à juventude. Mas quanto a nós, adultos e velhos... não sei. Aliás, quanto à velhice, Hepburn teve um comentário delicioso numa entrevista, aos 80: "Ah, eu estou muito bem... mas não peça detalhes", e deu sua risadinha rouca.

Voltando à realidade do mundo, não sei se algum país acertou quanto a essa Peste, como acertou: quando pensávamos que alguns estavam livres, tudo piorou, e ainda pouco se sabe desse vírus diabólico, mesmo grandes cientistas têm suas perplexidades. Quando teremos vida normal, parecida com a anterior? No começo do novo ano? No meio? Nunca? Vamos nos habituar a falar, amar, estudar, trabalhar, a viver, de novas formas? Vamos ser todos mais pobres? Muito? Só incertezas.

Quando tudo parece difícil demais, chato demais (estou confinada há quase oito meses, como milhões de outros de alto risco), lembro que a canção da vida está ressoando e pode acalmar um pouco os corações mais do que justificadamente confusos e aflitos: os nossos. E seu estribilho deve ser: vai passar.

LYA LUFT


07 DE NOVEMBRO DE 2020
MÔNICA SALGADO

Transo, logo existo

Dia desses encontrei umas amigas pra jantar, e a conversa, como acontece com alguma frequência quando reúnem-se mulheres casadas (acontece mesmo? Ou é meu lado voyeur dando bandeira?) recaiu sobre o assunto: quantas vezes por mês (ano?) vocês fazem sexo?

Jornalista que sou, sempre tenho a vantagem de introduzir - sem trocadilho - o tema com a desculpa de que estou trabalhando numa reportagem sobre ele. "Pra Revista Donna", digo. Outra vantagem de estarmos entre amigas é que o terreno é mais propício para confissões verdadeiras e periodicidades confiáveis.

Quer ver só? Quantas vezes você deparou com pesquisas sobre a vida sexual do brasileiro em telejornais e pensou "Oi? Média de quatro vezes por semana? Mas essas pessoas não trabalham/dormem/têm filhos/malham/arrumam a casa?". Ah, essa milenar arte, inventada pelo ser humano, de se gabar de coisas que não faz por medo do julgamento alheio - e olha que, na maioria das vezes, eu poderia jurar que o "alheio" também não faz. Sim, senhoras e senhores, são estes mesmos deuses do sexo que provavelmente responderiam "ler Dostoiévski" em vez de "assistir A Fazenda" quando perguntados sobre seu passatempo preferido. Aff!

Assim sendo, prefiro meus métodos pouco-ortodoxos-não-científicos: mulheres aleatórias 40+, com ou sem filhos, casadas ou num relacionamento longo, reunidas em torno de uma mesa bem servida de petiscos e vinho tinto - sabemos todos que o álcool dilui os filtros, o que consideramos providencial aqui.

E então, meninas, quantas vezes? "Ai ai ai, lá vem", diz uma. "A hora da verdade!", brada a do lado. "Não pode mentir", manda a outra. "Bom, começo eu", esta que vos fala dá início aos trabalhos. "Já foi mais espaçado, já foi menos. Mas estamos numa boa fase e tem sido uma vez por semana, mais ou menos." Silêncio. Elas digerem minhas palavras, nitidamente tentando colocá-las numa das caixinhas: 1) relação caliente ulalá; 2) relação nem lá, nem cá, tédio e bocejos; 3) relação fria como gelo.

Uma delas quebra o silêncio. Pergunta há quanto tempo estamos juntos. "Quinze anos de casados. Seis anos e meio de namoro", respondo. Ela coça o queixo, reunindo ferramentas para se decidir entre as caixinhas. "É uma boa média, considerando-se o tempo e tal." Não sei se agradeço. Pensando bem, agradeço. Fazer parte de uma "boa média" só pode ser bom, não? Não?

Outra resolve falar. "Tem sido uma vez por semana porque minha terapeuta me cobra uma frequência mínima. Como tenho sessão às quartas, sei que até terça tem que rolar. Dá tanto trabalho mentir pra ela que prefiro transar mesmo." Aplaudimos a sinceridade. A maioria de nós admite que rola uma preguicinha pra começar, mas depois que começa é bom. É realmente importante pra conectar, pro casal não virar brother.

Então, uma terceira, relata: "Uma vez por mês, uma vez a cada dois meses. Mas está bem satisfatório pros dois". E as demais, em uníssono, impedidas de fazer qualquer julgamento depois do "está bem satisfatório pros dois": "Ah, é isso que importa!". E é mesmo, na real. Que ambos estejam alinhados na frequência. Mais do que isso: que sejam flexíveis pra entender que, numa relação, há que se realinhar os desejos constantemente. Os dois têm seus altos e baixos pessoais (de estabilidade emocional, de tesão, de problemas profissionais, de ânimo), que influenciam diretamente nos altos e baixos do relacionamento. O realinhamento deve ser nonstop, em todos os níveis.

Isso sem falar no fator tempo. No início, o céu é o limite - porque o tesão e o medo de ser flagrado, esses não têm limite algum! E dá-lhe acostamento de estrada, banheiro de avião, piscina de resort, praia lotada, estacionamento de shopping, escada de prédio. Uma duas, três vezes... por semana? Não, por dia.

Mas se tem uma coisa que as redes sociais nos ensinaram (e que ainda não aprendemos, porém seguimos tentando) é a não se comparar com o outro. E nem com a gente mesmo, no
 

07 DE NOVEMBRO DE 2020
ARTHA MEDEIROS

Tempo de abrir espaço

Outro dia, vi numa rede social as imagens de um pequeno grupo de homens e mulheres fazendo uma fogueira no meio da rua para queimar máscaras - sim, as máscaras que temos usado para nos proteger da covid-19. Enquanto as máscaras ardiam, eles gritavam: "Fora, comunistas!". Uma palinha do que deve ser um hospício.

A pandemia foi politizada, é um fato, mas tem algo mais profundo por trás desses surtos. Acho que é medo das transformações do mundo. Um medo à toa, pois não há como interromper os ciclos evolutivos da humanidade: estamos despertando para uma importante conscientização e isso não deveria ser tão perturbador. Melhor aderir logo, sair da bolha e aprender a dividir.

Comunista!!

Calma, nossos extratos bancários e bens materiais se manterão privados. Falo em repartir o espaço público. Adeus aos territórios demarcados por preconceitos. Olhe para os lados. Simplesmente, olhe para os lados.

Já foi dada a largada para um novo modelo de convivência: homens dividindo com as mulheres os cargos, os encargos, as invenções, os prêmios, os mesmos pró-labores, a projeção acadêmica, científica, profissional. Aos poucos, eles nos escutam e compreendem a forma como enxergamos o mundo a partir de nossas próprias experiências. Depois de séculos regidos apenas pela versão masculina, eis que começa a ser escrita uma versão feminina da história.

Negros, brancos e pardos dividindo escritórios, altares, salões de festas, escolas, palcos, plenários, aviões, ministérios, microfones. Um compartilhamento que não se alcança através da bondade divina: é resultado de ativismo constante, de ações concretas em busca de inclusão, de movimentos que já estão aí, em curso.

Trans, gays, héteros: a vivência sexual de cada um deixando de ser julgada. Pense: ninguém consegue deter a natureza humana, ninguém consegue obrigar uma pessoa a trocar de desejos. Ofensas e agressões cairão cada vez mais no vazio: a potência de ser quem se é, isso ninguém mais freia.

Está vindo uma nova geração. Crianças e jovens que continuarão o trabalho de acomodar a todos num platô civilizatório de igualdade. Haverá resistência, claro, sempre tem alguns governos patéticos que tentam evitar que os diferentes interajam entre si. Mas o encontro já está marcado, e será amplo, horizontal, universal, sem a hierarquia estúpida e fominha de quem não consegue se desfazer de conceitos ultrapassados.

Final feliz no horizonte? Não se trata de felicidade, mas de justiça e acolhimento. Todos nós sairemos ganhando se pararmos de nos estranhar. Ajude, em vez de se apavorar. Qualquer gesto, mesmo que pequeno, contra o racismo, contra o machismo e contra a homofobia acelerará o que já está em andamento: o fim dessa cafonice chamada "eu sou melhor do que você".

MARTHA MEDEIROS
passado - esse lugar idílico do qual nossa memória seletiva lembra só do que foi bom. É concorrência desleal.

Bem, amigos, minha frequência atual é suficientemente boa. Se preciso for, recalcularemos a rota. E a sua? Me conta? Sabe como é, estou fazendo uma reportagem...

MÔNICA SALGADO

07 DE NOVEMBRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

DESPERDÍCIO

É revoltante como nós, um país com gente miserável, desperdiçamos comida. O que vai para o lixo, diariamente, resolveria grande parte dos problemas de milhares de famintos. Comida é algo fundamental. Há outro valor que devemos considerar: o tempo. Um dia, posso reciclar sobras de alimentos e aproveitar cascas. Porém, o tempo, matéria-prima da vida, é impossível de ser substituído.

Se alguém atirasse, da sacada do seu apartamento, grossos bifes à rua, seria insultado por todas as testemunhas. "Louco!", gritariam alguns; "porco!", insultariam outros. O desperdício de alimentos incomoda. A carne pode ser comprada de novo. Alguns cachorros da rua adorariam a insanidade do arremessador de proteína. O tempo? Vou pensar em uma solução.

Um amigo me liga e diz que tem duas notícias, uma boa e outra ruim. Indaga qual eu desejaria ouvir primeiro. Lá se foram alguns minutos de vida que não voltarão. Ele me contará as duas e a ordem delas não altera em nada o conhecimento que farei de ambas. Para acelerar e evitar debates, disse que poderia contar a ruim primeiro. Ele insiste: "Tem certeza?". Tenho certeza de que eu já poderia saber de tudo e ainda estaria um instante mais jovem. Ele completa: "Então, vai lá, foi você quem pediu, vou falar a ruim. Está preparado?". Estava, quando atendi ao telefone. Agora me sinto irritado. Esse é um exemplo banal de diálogos que atravessam o dia todo. Somados ao longo de uma vida talvez proporcionassem... outra vida. O grande Millôr Fernandes escreveu que quem "mata o tempo, não é um assassino, é um suicida". Sábia percepção do criativo carioca.

A vida social implica certas formalidades e retóricas. Aceito a premissa. Há expressões inúteis a preencher o silêncio. E se ficássemos avaros com o tempo como o Harpagon, de Molière? Se cada minuto fosse encarado como uma nota preciosa de cem libras esterlinas? Mataríamos o tempo se ele fosse traduzido em metal sonante? Pior. Além da consciência algo burguesa do time is money, teríamos presente a noção filosófica de que o tempo é aquilo que constitui a vida? Ficaríamos melhores ou insuportáveis se cada minuto soasse como um grão irretornável da ampulheta universal?

Nossa vida é nossa empresa. Imagino um interventor que assuma minha vida para evitar a bancarrota originada pelo esbanjamento temporal. A missão? Cortar os gastos/uso do tempo ao extremo.

Ele, o interventor nomeado, recebe as planilhas e as analisa por dias. Seu relatório é bombástico. O plano é detalhado. O primeiro demitido do plano de contenção será o celular. Ligações só em risco de vida se a sua interferência puder salvar do perigo, caso contrário, desnecessário avisar. São banidas mensagens de bom dia, piadas, correntes, textos de encorajamento, fotos. Quem tentar enviar, será bloqueado por seis meses, um ano na primeira reincidência e, insistindo, ostracismo para sempre. Expressões que não alteram dados concretos (bom dia, boa tarde, como você está? etc.) serão obliteradas. Sua funcionária em casa será treinada para picar tudo ao extremo, facilitando a digestão e deixando de lado firulas como primeiro prato e segundo prato ou o uso da faca. A comida estará disponível em um único prato fundo com uma colher. Você comerá sozinho, pois conversas à mesa esbanjam tempo sem sentido. O total das refeições diárias passará de duas horas para 20 minutos. Sem o celular excessivo e expressões de cordialidade, teremos mais 90 minutos extras. Em apenas duas medidas, seu dia terá algo como três horas a mais. O interventor já conseguiu muito com poucas medidas.

A comunicação escrita e oral terá de ser repensada. O agente abolirá adjetivos, advérbios, expressões sem sentido e embelezamentos retóricos. As reuniões da empresa serão virtuais. Enquanto o expositor fala, os outros podem fazer uma das refeições. Todos terão até dois minutos e devem dizer tudo. No início, o treino parecerá exaustivo. Com o tempo, a concisão será uma segunda natureza. Como dizer tudo em dois minutos? O preparo nas primeiras semanas será longo e parecerá desperdício. Depois, surgirá o fruto do esforço.

Todas as roupas serão tornadas iguais para impedir dúvidas ao se vestir. Haverá roupa quente, fria e meia-estação, todas da mesma cor. Por um mecanismo de automação, quando você pisar no banheiro o chuveiro será ligado já com alguma quantidade de sabão jorrando juntamente com a água. O banho estará limitado a dois minutos. Após, soará um alarme e, se o usuário insistir em permanecer com o chuveiro aberto, um choque não fatal e proporcional ao peso de cada pessoa descerá pela água condutora da medida educacional/corretiva. Com as novas medidas, somaremos mais duas horas de aproveitamento à planilha do dia.

Especialistas disporão de todos os seus gostos e necessidades para que os livros sejam previamente selecionados e você nunca passe pelo terror de começar um e abandonar, uma terrível perda de tempo. Haverá curadoria sobre filmes também, pois existirão tempos de lazer previsto e condicionados. A curadoria lúdica enfatizará, claro, curtas-metragens de até 15 minutos, intervalo suficiente para aprender uma ideia nova e relaxar um pouco.

Em resumo, graças ao novo programa, você não perderá tempo e terá muito mais liberdade para... Esse é um ponto curioso. O que resta quando temos tempo sobrando? Como ficam as pessoas que já fizeram tudo e ainda possuem horas de bônus? Bem, eu tenho uma boa e uma má notícia para dar a vocês... É preciso algum tempo e muita esperança...

LEANDRO KARNAL


07 DE NOVEMBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

A IRONIA DE LUCIANO

Jazem sob as águas de uma barragem no sudeste da Turquia as ruínas da antiga cidade de Samósata, outrora às margens do rio Eufrates, em sua extremidade norte, próxima do Mediterrâneo. Fundada por armênios no século IV a.C. e conquistada por Roma em 17 d.C., Samósata era passagem estratégica para a Mesopotâmia. Como muitas cidades antigas, tornou-se cosmopolita e poliglota; além da língua armênia, original, falava-se ali a língua franca do Oriente próximo antigo, o aramaico, e também o grego, língua culta na era helenística (sécs. IV a I a.C.) e durante o império romano. Foi ali que nasceu e escreveu em grego um dos autores mais irônicos e lúcidos da história da literatura, Luciano de Samósata (120-192 d.C.).

É de Luciano a mais antiga obra de ficção científica conhecida, a História Verdadeira, em que o escritor declara, no prólogo, a única verdade do livro, a de que ele é um mentiroso, e dá início a uma fantasia ironizando as obras de poetas épicos e historiadores. Em dois capítulos, narra-se uma viagem do autor e amigos ao nosso satélite, onde envolvem-se na guerra entre o Rei da Lua e o Rei do Sol, disputando o planeta Vênus, antes de voltarem à Terra e serem engolidos por baleia com mais de 300 quilômetros de comprimento, de cuja barriga escapam fazendo a fogueira que a mata, para logo topar com um mar de leite e uma ilha de queijo e, por fim, a ilha dos bem aventurados, onde encontram heróis míticos da Guerra de Tróia, como Ájax e Ulisses, e homens ilustres, como Homero, Pitágoras e Sócrates, e veem os tormentos de grandes mentirosos, como o historiador Heródoto, e o autor alivia-se, com ironia, por nunca haver mentido.

A História (ou conto, melhor tradução para diegémata) Verdadeira é um livro de fácil leitura e compõe o corpus lucianeum, o conjunto da obra de Luciano de Samósata, no Brasil admiravelmente comentado no livro A Poética do Hipocentauro (2001) pelo erudito Jacyntho Lins Brandão (também tradutor do épico Gilgamesh, direto do acádio). Nesse livro, Jacyntho analisa o estilo inteligente e rápido de Luciano e aponta como este influenciou autores como Erasmo, Rabelais, Cervantes, Voltaire, Dostoievski, Eça de Queiroz e Machado de Assis. Vem dele uma das melhores funções da ficção: analisar a realidade com humor e ironia.

Também de Luciano são os Diálogos dos Mortos, que narram 30 breves encontros entre personalidades já falecidas, nas cavernas do Hades, onde dizem verdades que soíam ocultar quando vivos. Em um diálogo, Alexandre é interpelado por seu pai, o rei macedônio Felipe, que ataca uma das mentiras de seu filho, dizer-se cria de um deus egípcio: "Ora, Alexandre, não podes negar ser meu filho, pois terias morrido se fosses filho do deus Amon!", ao que Alexandre responde que era boa política para ele usar a farsa para dominar os povos que conquistou. Eis a mais antiga compreensão de como o mito é, desde sempre, manipulado pela demagogia política, e a verdade que custamos a aceitar, de que os mortos hoje falam melhor do que os vivos sobre o mundo em que vivemos.

FRANCISCO MARSHALL


07 DE NOVEMBRO DE 2020
COM A PALAVRA

O BRASILEIRO SERÁ UMA FONTE DE DESCOBERTAS PARA TODA A HUMANIDADE

Lygia da Veiga Pereira - Geneticista, 53 anos - Professora da Universidade de São Paulo (USP), líder do projeto DNA do Brasil

A diversidade do brasileiro pode carregar respostas para a prevenção da hipertensão, do diabetes e de diferentes tipos de câncer e ainda revelar caminhos percorridos por povos já extintos. Líder do projeto DNA do Brasil, lançado em dezembro de 2019, a professora Lygia da Veiga Pereira fala com otimismo sobre o sequenciamento de genomas no país, que nasceu pela necessidade de incluir o brasileiro nas pesquisas sobre medicina de precisão. Hoje, 80% dos dados no mundo são feitos com base em pessoas de genomas de ancestralidade europeia, o que faz as descobertas serem mais precisas apenas para essas populações. Resolver a falta de diversidade na área virou prioridade.

A análise da miscigenação brasileira contribui ainda para estudos antropológicos. Dados levantados com 1,2 mil voluntários já confirmaram, por exemplo, a predominância do cromossomo Y europeu, paterno, na composição genética da população, enquanto a maior parte da herança materna é de origem africana e indígena.

A seguir, Lygia aborda o avanço do projeto, as implicações das novas tecnologias de DNA e o desenvolvimento recorde da ciência durante a pandemia.

Um dos gráficos do estudo DNA do Brasil mostra que a maior parte da herança materna da população é de origem africana (36%) e indígena (34%), enquanto a herança do cromossomo Y (paterno) é 75% de origem europeia, 14,5%, africana, e 0,5%, indígena. O que o DNA conta sobre a história do país?

Essa assimetria é bem característica de quando se tem um povo dominado e um povo dominante, e a nossa colonização foi assim. Você tinha os europeus, que eram um povo dominador, e africanos e nativo americanos, que foram o povo dominado. Isso não é uma novidade, estudos como os do professor gaúcho Francisco Salzano (1928-2018), que foi o pai da genética de populações do Brasil - inclusive minha parceira nesse projeto, Tábita Hünemeier, é cria do Salzano -, já tinham observado essa assimetria, mas não usando o genoma inteiro, porque na época não havia essa capacidade. A gente está agora confirmando isso, de uma forma aprofundada. Estamos conseguindo complementar desde dados arqueológicos, que detalham melhor como o Homo sapiens saiu da África e foi se espalhando por todos os continentes, até coisas mais recentes, como essa formação da população brasileira sendo resultado dessa assimetria dos cruzamentos, em que você tem o macho dominante predominando e as fêmeas dominadas.

COM AS INFORMAÇÕES JÁ COLETADAS, É POSSÍVEL CARACTERIZAR O DNA DE POPULAÇÕES DE DIFERENTES REGIÕES DO PAÍS?

A gente está começando isso. Usando outros métodos de análises mais superficiais do genoma, já se sabe que, na Região Sul, há uma predominância europeia. Já no Rio de Janeiro e na Bahia, há uma dose africana mais acentuada. Nos primeiros 1,2 mil genomas sequenciados, uma coisa que já se consegue ver é que cada brasileiro é esse mosaico com diferentes frações de DNA de origem europeia, indígena e africana. E uma coisa que nos deixa entusiasmados é o quanto estamos conseguindo identificar genoma de ancestralidade indígena.

HOUVE UMA EXCLUSÃO DO DNA INDÍGENA DO BRASILEIRO, SOBRETUDO DO LADO PATERNO?

Do cromossomo Y, sim. Sem dúvida, a gente tem uma perda do cromossomo Y devido ao processo de dominação dos europeus sobre os índios. Os índios homens tiveram pouca oportunidade de gerar descendentes e passar seu cromossomo Y. Mas, no resto do genoma, consegue-se recuperar grandes frações de DNA de origem indígena e de populações que não existem mais. Fragmentos do DNA delas sobrevivem no brasileiro atual. Além de todas as implicações médicas para a saúde, há toda essa parte antropológica, histórica. Ao sequenciar os brasileiros atuais, vamos reconstruir genomas de populações indígenas que não existem mais, mas seguem vivas um pouquinho em cada um de nós.

E QUANTO À INFLUÊNCIA DO DNA DE ORIGEM AFRICANA?

É outra parte da nossa história. Metade dos africanos que saíram do continente como escravos vieram pro Brasil, são 5 milhões no total. E vieram de diferentes regiões da África, que nunca haviam se encontrado e vieram se encontrar no Brasil. O que a gente começa a ver são misturas de DNAs africanos que não existem na África, porque são de populações distintas, geograficamente separadas, que foram colocadas na marra juntas no Brasil. De novo, poderemos entender qual é o impacto dessas combinações. Com a análise de DNA, será possível dizer quais regiões da África estão na ascendência de cada um dos brasileiros analisados. A gente vai recuperar a história dessas pessoas.

Como surgiu o projeto? De que forma os dados do brasileiro contribuirão para a genética mundial?

Há muito tempo já se falava em fazer o projeto de genoma do Brasil. O brasileiro não é marciano, mas tem uma mistura única, que é diferente da miscigenação de outras populações. Só que esses projetos eram muito caros, e sempre tem um cobertor muito curto para a ciência no país. Aí, no fim de 2017, começaram a sair artigos sobre a falta de diversidade dos bancos de dados de genomas no mundo, mostrando que 80% do que estava sendo feito de sequenciamento eram com pessoas de ancestralidade europeia. Então, resolver a falta de diversidade virou uma prioridade. Porque duas coisas ficaram muito claras. Primeiro, quando se baseia essas pesquisas de genoma em uma população de uma ancestralidade só, todas as descobertas de riscos baseados na genética são mais precisas para essas populações. Por isso, quando se vai aplicar as mesmas metodologias em genomas com ancestralidades diferentes, sejam asiáticos, africanos, latino-americanos, não se tem a mesma precisão de diagnóstico. Então, para quem se estava fazendo essa ciência toda? Para quem estamos desenvolvendo a medicina genômica? É uma questão ética. A segunda questão é a perda de oportunidades de fazer novas descobertas. Quando você sequencia populações diferentes, há maior probabilidade de fazer descobertas, de encontrar novas variantes genéticas associadas a doenças ou características humanas. Nesse momento, juntamos uma equipe. Se havia falta de diversidade, uma coisa que o Brasil tem é diversidade. Era chegada a nossa hora.

Geneticamente falando, o brasileiro é...

Muito interessante. O brasileiro será uma fonte de novas descobertas para toda a humanidade.

O ESTUDO PRECISOU RECORRER À INICIATIVA PRIVADA PARA SER REALIZADO. HÁ ALGUMA PARCELA DE APOIO DO PODER PÚBLICO?

O projeto DNA do Brasil foi lançado só com a parceria da iniciativa privada. A gente montou esse projeto e tentou sair vendendo. Na época, era uma confusão de governo, que cai, que volta, enfim, e resolvemos bater na porta da iniciativa privada. Mas acabei me decepcionando bastante...

O cenário é de pouco investimento em ciência?

É, todo mundo achou lindo o projeto, maravilhoso, fofo, mas "olha, não é exatamente isso". Teve uma empresa que disse: "Professora, a gente achou seu projeto lindo, mas tem um problema, né. O que a gente vai dar para os nossos clientes? Isso não tem ingresso de show". Mas a Dasa e o Google Cloud abraçaram o projeto. Então, em dezembro de 2019, quando foi lançado, não tinha nenhum financiamento público. O Ministério da Saúde, na época, estava pensando em como fazer um programa de genômica e medicina de precisão, e aí apresentei a eles o DNA do Brasil, que se chamava Genomas Brasil. Eles adoraram, pediram para ficar com o nome. No dia 14 de outubro, então, no Palácio do Planalto, ocorreu o lançamento do Genomas Brasil. O programa tem uma parte de genômica com dois braços, um populacional, que é o DNA do Brasil, e um outro de doenças raras, que está sendo capitaneado pelo (Hospital Israelita Albert) Einstein, em que estão sequenciando o genoma de brasileiros com doenças raras. Inclusive o grupo do professor Roberto Giugliani, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também vai contribuir muito nessa parte. O Rio Grande do Sul tem um grande centro de pesquisas da genética das doenças raras. E há o braço de terapias avançadas, em que vão investir no desenvolvimento de terapia gênica e terapia com células-tronco. A ideia é que o nosso DNA do Brasil vire o braço de genômica populacional desse grande programa. Foi quando o Ministério nos deu R$ 8 milhões, que nos proporcionaria 3 mil sequenciamentos de genomas, só que, com a alta do dólar, a gente só vai conseguir fazer 2 mil com esse valor. Há os 3 mil possibilitados pela Dasa e 2 mil da verba obtida em 2019. E, agora, apresentei o projeto para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que também está se preparando para nos apoiar.

Como o DNA do Brasil coloca o país no cenário internacional da ciência genética?

Ele nos insere no mapa de sequenciamentos de genomas, que tem o Reino Unido sequenciando 500 mil indivíduos, a Irlanda, 400 mil, a Arábia Saudita, 10 mil, a Índia, 10 mil. O Catar vai sequenciar a população inteira: 300 mil pessoas. Singapura, 100 mil. China, Coreia do Sul e Estados Unidos, 1 milhão de genomas cada. E no Brasil a gente tinha um vazio. Estamos começando com as pernas que temos.

DE QUE FORMA PRÁTICA O DNA DO BRASIL PODE SER APLICADO NA MEDICINA?

O impacto imediato é na interpretação de testes genéticos. Você pega uma brasileira cuja mãe teve câncer de mama e ela está querendo saber se ela tem alguma predisposição genética para isso. Ela vai fazer um teste genético no qual é sequenciado esse gene BRCA1. Aí, a gente precisa interpretar essa sequência. Quando você sequencia um gene, pode achar uma série de variações da sequência desse gene. Essas variações podem ser normais, são variações que existem, que é o que faz cada um de nós ser um pouquinho diferente um do outro, nosso DNA não é idêntico. Ou essa variação pode ser uma causadora de doença. E aí o grande desafio é como você vai saber se encontrou uma mudança, se aquilo é uma alteração comum na população ou se pode causar uma doença. Você vai procurar, nos bancos de dados de genomas, se aquela alteração já foi descrita numa parcela da população. Se já foi, ótimo, é uma coisa normal, não tem problema. Se não está naquele banco de dados, você liga um alerta. Isso pode ser uma alteração que causa doença. Só que como os bancos de dados têm informação 80% de europeus, pode ser que aquela alteração não esteja nesses bancos de dados não porque ela causa doença, mas porque ela é de ancestralidade indígena ou africana. Então, o DNA do Brasil, ao gerar as sequências de brasileiros, está fazendo um catálogo das variações que existem na nossa população. Isso tem um impacto direto na melhora dos diagnósticos genéticos para a nossa população. Agora, esses diagnósticos genéticos têm que estar disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), para que toda a população se beneficie. O objetivo desse programa do governo, Genomas Brasil, é inserir a genômica no SUS.

COMO AS INFORMAÇÕES GENÉTICAS PODEM AJUDAR NOS TRATAMENTOS DE CERTAS DOENÇAS?

Quando, ao tratar o paciente, você adiciona informações sobre a genética, você consegue entendê-lo melhor. Por exemplo, no caso de câncer, se você tem a sequência do tumor desse paciente, você é capaz de desenhar uma quimioterapia mais eficiente. Daqui um pouco, ao sequenciar o genoma de uma pessoa, a gente vai poder dizer qual é a predisposição dela para ter diabetes ou hipertensão. Você pode adotar medidas preventivas sabendo da predisposição genética. A gente daqui a pouco vai saber, baseado na sua genética, qual é o medicamento mais eficaz para você.

NOSSOS HÁBITOS INFLUENCIAM NA GENÉTICA DE GERAÇÕES FUTURAS?

Há duas classes de doenças com componentes genéticos: as raras, que são muito graves, como a fibrose cística, a anemia falciforme, distrofia muscular, mas que do ponto de vista genético são simples, porque são resultados da alteração em um gene. E as doenças comuns, como hipertensão, asma, diabetes, Alzheimer, Parkinson, maioria dos cânceres, chamadas de doenças multifatoriais. Estas são resultado de componentes genéticos e componentes ambientais, que em conjunto vão fazer com que você manifeste a doença ou não. Só que o componente genético dessas doenças é muito complexo, não é um gene, são provavelmente pequenas alterações, pequenas variações em centenas, senão milhares de genes, que em conjunto se somam e te dão um risco maior ou menor do ponto de vista genético. Então, a gente ainda não conhece toda a genética dessas doenças, e projetos como o do DNA do Brasil vão permitir que se consiga descobrir um pouco mais.

Se eu tenho predisposição genética para alguma doença e, sabendo disso, levo uma vida saudável e me previno, há chance dos meus filhos terem essa mesma predisposição?

Não, porque o estilo de vida não modifica a genética. A prevenção será boa para uma pessoa, mas não para seus descendentes.

O DNA PODE EXPLICAR TAMBÉM CARACTERÍSTICAS CULTURAIS, COMO O JEITINHO BRASILEIRO?

A gente não tem nenhuma evidência de um fator genético para o jeitinho brasileiro. O experimento que você teria que fazer para isso era pegar gêmeos e colocar um para ser criado no Japão e outro, no Brasil, e ver os resultados. Mas acho muito mais provável ser uma coisa cultural do que genética.

Um povo com características mais miscigenadas teria um organismo mais resistente?

Não sei se há evidência disso. Quando você diz que é mais resistente, vai depender do ambiente em que você vive. O que é bem adaptado e forte em um lugar pode ter uma desvantagem em outro. Mas é preciso estudar, por exemplo, se uma fração de DNA indígena confere algum tipo de vantagem para quem a herdou. Mesma coisa com frações africanas.

COMO SÃO AS DISCUSSÕES ÉTICAS EM TORNO DO DESENVOLVIMENTO DAS TECNOLOGIAS NA GENÉTICA? VOCÊ PERCEBE BARREIRAS OU INTERFERÊNCIAS POR CONTA DA RELIGIÃO?

A religião pegou muito quando a gente estava vendo a questão das células-tronco, da célula- tronco embrionária, se podia usar o embrião para pesquisa ou não e se o embrião era vida ou não. Nessa parte de genomas, não mais. O que tem mesmo, e muitas vezes a religião faz esse papel, é levantar um cartão amarelo para saber o que a gente vai querer fazer com essas tecnologias. Como toda nova tecnologia, ela pode ser usada de forma construtiva ou danosa. Mesmo o estudo dos genomas. Será que alguém vai querer usar o DNA para uma forma mais sofisticada de discriminação? É preciso tomar cuidado com o mau uso das novas tecnologias. Mas o que é muito positivo é que a comunidade científica se dá conta, sabe muito bem disso. Desde a época do primeiro projeto genoma humano, há toda uma discussão das questões éticas, legais, sociais, sobre se ter acesso à informação da genética da pessoa, para que isso não seja usado por empregadores, por seguradoras de saúde contra aquela pessoa, por exemplo. Sou otimista, nesse sentido.

SERIA NECESSÁRIO UM CONTROLE POR LEGISLAÇÃO?

Nos EUA existe uma lei que não permite que dados genéticos de uma pessoa sejam usados contra ela por empregador, seguradoras ou empresas de saúde. E é muito importante existir isso, sim, se não as pessoas iriam deixar de ser voluntárias de pesquisa. Vão sequenciar meu DNA e depois a seguradora liga e diz: você tem BCRA1, a sua apólice triplicou de preço. Precisa existir uma proteção para isso. No Brasil, já temos a Lei de Biossegurança, que não permite que sejam feitas modificações genéticas em óvulos e espermatozoides. Disso já estamos bem protegidos.

UMA PREOCUPAÇÃO É DE AS INFORMAÇÕES GENÉTICAS SEREM USADAS PARA MONTAR UM SER PERFEITO, COMO SE AS PESSOAS ESTIVESSEM EM UM SUPERMERCADO ESCOLHENDO COMO SERÃO SEUS FILHOS...

Esse é que é o nosso medo, porque a tecnologia está chegando perto disso. Agora, esse é um problema com todas as novas tecnologias. Foi descoberta a energia do átomo? Estouramos duas bombas atômicas. Só depois disso criou-se um arcabouço legal e de vigilância para aproveitarmos essa descoberta, e dela até a tomografia computadorizada, entre outras coisas boas, foram consequência.

A PANDEMIA COLOCOU A CIÊNCIA EM EVIDÊNCIA E TAMBÉM COMO ALVO DE QUESTIONAMENTOS, COM MUITAS DESCOBERTAS POSTAS EM DÚVIDA. COMO CHEGAMOS A ISSO?

Na pandemia, o público acompanhou o desenvolvimento científico em tempo real, e isso é assim mesmo: você dá dois passos para a frente, um para trás. Como vivemos uma situação de emergência, cada nova descoberta teve uma divulgação muito grande. Por exemplo, com a cloroquina. De fato, um primeiro estudo mostrou que alguns poucos pacientes melhoraram. Isso não foi falso. Acontece que, depois, quando aumentaram o número de pacientes, viram que ela não funciona (contra o coronavírus). Só que, como a gente estava em situação de emergência, esse conhecimento inicial já acabou incorporado na prática médica por alguns. A ciência precisa de tempo. Ciência séria é feita com tempo. O cara vê um resultado e publica, mas isso não deveria ser o suficiente para o presidente da República ficar receitando cloroquina para as pessoas. Não é assim. Neste momento, assistimos a um espetáculo de construção de redes de colaboração científica estabelecida com uma rapidez sem precedentes na história da humanidade. Isso foi positivo. A rapidez com que conhecimentos são gerados tem sido incrível.

GABRIELA DA SILVA

07 DE NOVEMBRO DE 2020
DRAUZIO - drauzio varelLa

Com médicos e helicóptero de plantão, é fácil Trump posar de John Wayne

Presidente americano diz uma coisa e faz outra no combate à covid-19

O presidente dos EUA seria macho de ir para casa, sem médico perto, para se tratar com cloroquina? Donald Trump saiu do hospital com ares de John Wayne no saloon lotado de bandoleiros perversos. Todavia, em contraposição ao caubói lendário que enfrentava os inimigos com a cara, a coragem e a rapidez no gatilho, Trump correu para a suíte presidencial de um dos melhores centros médicos de seu país, assim que surgiram os sintomas da covid.

Na manhã do dia da alta, vangloriou-se: "Eu sairei do grande Walter Reed Medical Center hoje, às 18h30min. Eu me sinto realmente bem. Não tenha medo da covid. Não deixe que ela domine sua vida. Nós desenvolvemos, sob a administração Trump, algumas drogas realmente grandes e conhecimento. Eu me sinto bem melhor do que 20 anos atrás".

A julgar pela forma física atualmente exibida por ele, só consigo enxergar duas hipóteses: 1) estava sob o efeito eufórico da dexametasona, corticoide que pode causar excitação, confusão mental, insônia, alterações de humor e distúrbios cognitivos; 2) 20 anos atrás, aos 54 anos, sua condição física era deplorável.

Em 2 de outubro, apesar de a Casa Branca afirmar que o presidente apresentava apenas "sintomas leves" da doença, ele foi de helicóptero para o hospital. Fosse para internar todos os pacientes com "sintomas leves", num país que já conta com pelo menos 7,5 milhões de infectados, seria preciso recrutar os leitos de todos os hospitais do Ocidente e, ainda, pedir alguns milhares para a China.

Dois dias depois, um domingo, Trump chocou as pessoas de bom senso ao sair do Walter Reed para cumprimentar admiradores reunidos nas proximidades, pondo em risco os agentes do serviço secreto no interior do carro que o conduziu.

Na segunda-feira (5/10), ao receber a alta-relâmpago, qual foi sua primeira providência ao entrar na Casa Branca? Retirar a máscara, é claro. Nada a estranhar num homem que infectou a mulher, diversos auxiliares, gente de seu círculo de amizades e sabe lá quantos mais.

Somente nas 48 horas que antecederam o diagnóstico, período em que o risco de transmissão é alto, debateu com o candidato adversário, Joe Biden, viajou para um rali com milhares de participantes no estado americano de Minnesota, encontrou-se com apoiadores e doadores num clube de golfe no estado de Nova Jersey e manteve contato com dezenas de auxiliares na Casa Branca. Você, prezado leitor, usou máscara nessas ocasiões? Nem ele.

Os médicos, no entanto, não se iludiram com o otimismo dos porta-vozes oficiais: prescreveram dexametasona, remdesivir e anticorpos monoclonais, medicamentos administrados apenas nos casos com risco de morte - a um custo de mais de US$ 100 mil, pagos pelos contribuintes.

A dexametasona reduz a mortalidade dos pacientes já hospitalizados. Nos estudos clínicos, o antiviral remdesivir administrado por via intravenosa não conseguiu diminuir o número de mortes, mas foi aprovado por reduzir o número de dias de internação nas UTIs. Dirigidos especificamente contra as proteínas da superfície do coronavírus, os anticorpos monoclonais estão em fase de avaliação experimental, portanto inacessíveis à plebe.

Profissionais que administrasse tratamentos agressivos e caros como esses para um paciente "apenas com sintomas leves" poderiam ser processados por "malpractice", segundo as leis americanas. Ao ser tratado num centro hospitalar modelo e contar com dezenas de médicos à disposição, um presidente que diz "não tenha medo da covid, não deixe que ela domine sua vida" tripudia sobre os milhões de americanos negros e latinos sem acesso sequer aos testes para diagnóstico da doença, nas salas de emergência superlotadas dos poucos hospitais que atendem àqueles sem plano de saúde.

No país que pratica a medicina mais cara do mundo não existe sistema público de saúde. Na epidemia, a mortalidade entre os negros é o dobro daquela entre os brancos. Estudo recente da Universidade Cornell mostrou que "Trump é o principal divulgador de notícias falsas sobre a Covid-19, as quais partindo de um presidente podem ter consequências desastrosas".

Não é por acaso que os Estados Unidos são campeões mundiais em número de mortos por covid. Para quem recebeu os melhores tratamentos existentes, e voltou para a Casa Branca com médicos de plantão dia e noite e helicóptero à porta, é fácil posar de John Wayne. Quero ver se seria macho de ir para casa, sem médico perto, para se tratar com cloroquina.

DRAUZIO


07 DE NOVEMBRO DE 2020

Tia Clara

Elas vinham pela mesma calçada em que eu caminhava, só que na direção oposta. Íamos nos cruzar. Elas eram uma jovem mãe e suas duas filhas pequenas. As meninas saltitavam, cada uma pendurada em um braço da mãe, que era morena e magra e sorria. Calculei que a filha mais velha tivesse uns seis ou sete anos e a pequeninha, uns quatro ou cinco. A mais velha falava. Quando estávamos bem próximos, consegui ouvir um pedaço do que dizia:

"Eu queria ser como a tia Clara!"

A menorzinha concordou:

"Eu também!"

E a mãe arrematou, já passando por mim, já se indo embora:

"Ninguém é como a tia Clara".

Aquele rápido diálogo ficou reboando no meu cérebro. Pensei: que mulher extraordinária deve ser a tia Clara! Senti vontade de correr atrás delas e explicar:

"Vocês me desculpem, mas ouvi a conversa de vocês e fiquei curioso. Vocês podem, pelo menos me mostrar uma foto da tia Clara?"

É óbvio que a mãe deveria ter, nos arquivos do celular, uma foto da tia Clara, que, por ser tia das meninas, provavelmente era sua irmã. Quer dizer: eu conheceria a tia Clara e faria uma imagem (desculpe) clara de sua aparência. Mas talvez elas ficassem assustadas com minha abordagem, e eu não pretendia arruinar aquele lindo momento familiar, uma mãe passeando de mãos dadas com suas filhinhas.

Como será a tia Clara? Jovem como sua irmã, é evidente, mas nem tanto, porque é dona de uma personalidade formada e forte, a ponto de se transformar em modelo para as sobrinhas. Diria que uns 30 e tantos anos de idade. Mulher, já, mas ainda usufruindo do frescor da juventude, suas pernas longas e flexíveis rebrilham ao sol e ela dança com graça, é certo que dança com graça.

Se as crianças gostam tanto dela, é óbvio, também, que tia Clara é de temperamento amoroso e brando, sua voz é melodiosa e ela se esforça para compreender as pessoas. Ah, Clara parece jamais se aborrecer, dela você sempre pode ouvir uma palavra de alento, porque seus olhos d?água fitam apenas o lado positivo da vida.

Essa visão dos olhos d?água de Clara me fez estacar por um instante. Porque os olhos, Sócrates já o disse, são as janelas da alma. Os olhos de Clara, portanto, expressam uma sensualidade macia, uma malícia amorosa, uma sagacidade de quem sabe o que está fazendo debaixo do sol. Clara, definitivamente, é uma pessoa boa. Mas não a provoquem! Não a incomodem! Porque Clara saberá dar uma resposta suave e dura ao mesmo tempo. Afinal, Clara não é grosseira, jamais será grosseira, mas tem inteligência para tecer uma consideração percuciente, que pinique o âmago da alma de quem quiser aborrecê-la.

De que cor serão os cabelos de Clara? Negros, como os da irmã? Talvez, mas tenho o pressentimento de que pendem mais para o castanho e que ela os pinta de vermelho. Ou, quem sabe, de azul. Conheci uma moça que pintava os cabelos de azul-escuro nos anos 1990, e toda gente se encantava ao vê-la.

Hoje, todos se encantam com Clara, Clara debaixo de seus cabelos da cor do céu do verão na Praia Brava, Clara que tem pendurado sempre um meio sorriso nos lábios carnudos, Clara que às vezes mexe o narizinho como Samantha, a Feiticeira, Clara que vê o mundo com generosidade detrás de seus olhos d?água, Clara que inebria os adultos e deslumbra as crianças, Clara.

Foi até bom eu não ter visto a foto de Clara, sabe-se lá que magia ela não remeteria pela imagem, mirando a câmera com firmeza e ternura, comovendo e escravizando quem a vê? Não, não, melhor ficar longe de Clara e de seus encantamentos. Clara, tão bela, tão doce, tão perigosa.

DAVID COIMBRA