sábado, 12 de dezembro de 2020


12 DE DEZEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Os mais belos joelhos do cinema 

Alguns amigos eu nunca mais vi. É estranho. A pessoa era tão importante na minha vida e, de repente, foi abduzida. Também mudei muito de casa, mais de 15 vezes, e a cada mudança ia deixando coisas e gentes pelo caminho.

Na categoria de "coisas", lembro de um sofá que ganhei quando morei pela primeira vez em Criciúma. Dividíamos o apartamento eu, a Nádia Couto e o Plisnou. Como nosso salário era modesto, gastávamos tudo com o aluguel, comida e um pouco de diversão, que ninguém é de ferro. Não sobrava muito para a mobília. Assim, fomos comprando primeiro o essencial: uma geladeira amarela e um fogão azul usados, e uma mesinha com quatro cadeiras a rodeá-la. A Nádia insistiu para pintarmos a geladeira de azul, em nome da harmonia da decoração. Eu e o Plisnou achávamos aquela despesa estética um exagero, mas concordamos com ela, em nome da harmonia da nossa convivência.

Fora isso, não havia muitos móveis mais no apartamento. Até que uma jornalista amiga, a Lenir Gomes, decidiu que nossa sala não merecia ficar tão vazia, e anunciou que nos daria de presente um sofá que não usava mais. Achei bonita a generosidade da Lenir, fiquei contente, mas, quando vi o sofá, o contentamento virou encanto. Era um sofá lindo, enorme, de couro dourado-escuro, um luxo.

- Que sofá! - Eu dizia para a Nádia e o Plisnou, admirando-o, de pé, no meio da sala, com as mãos na cintura.

Eles concordavam: - Que sofá! Que sofá!

Durante cinco anos, aquele sofá foi o personagem central do nosso apartamento. Nele descobrimos amores e tivemos desilusões, nele sorrimos muito e talvez tenhamos chorado um pouco, nele, sobretudo, fomos felizes na juventude perversa de nossos corações.

Ao pensar, agora, naquele sofá, vem-me à mente um certo joelho. Era um joelho de moça morena, um joelho de pessoa habituada à vida ao ar livre. Um joelho redondo e magro, porque joelhos podem ser gordos, mas aquele, não. Aquele era um joelho esbelto, delicado e, ao mesmo tempo, forte. Devia ter rótulas perfeitamente bem encaixadas e meniscos bem azeitados. Talvez fosse um joelho de Natalie Wood, que, segundo o Professor Ruy Carlos Ostermann, possuía os mais belos joelhos do cinema. Quando o Professor escreveu isso, aliás, fiquei muito curioso, queria ver os joelhos de Natalie Wood, mas, num tempo sem Google e YouTube, era difícil. Um bom par de joelhos poderia permanecer escondido por anos de um candidato a admirador, e assim ocorreu comigo e os joelhos de Natie. Até que um dia os vi numa foto de revista e procurei o Professor na redação de Zero Hora para cumprimentá-lo:

- O senhor é um homem com bom gosto para joelhos, Professor.

Mas, voltando àqueles joelhos dos anos 1980, conto que estávamos numa festinha no nosso apartamento e me acomodei numa ponta do sofá que a Lenir nos deu, enquanto ela, a proprietária dos joelhos, sentou-se ao meu lado. E cruzou as pernas. E sua saia subiu ao norte das coxas, lá em cima, perto do Acre. E aquele joelho surgiu em toda a sua formosura.

Não podia encará-lo muito, ficava chato, mas a todo momento espiava aquele joelho e pensava: "Deve ser tão macio...". Um pouco por instinto, outro pouco por intenção, apoiei minha mão esquerda no sofá, ao lado das pernas nuas e flexíveis da morena. Ela bebia algo e falava com alguém. Eu não pretendia tocar na perna dela, não cometeria essa ousadia, só queria ficar por perto. Assim, deixei minha mão por ali, a centímetros das coxas lisas da moça, até que ela fez um movimento rápido, descruzou as pernas e, PAM!, aterrissou sua longa perna direita exatamente sobre a minha mão esquerda. Foi quase como se ela tivesse me dado um tiro. Levei um Mandrake, fui atingido por um raio paralisante, não conseguia me mover, nem pensar. Será que ela sentia a minha mão debaixo da sua perna? Será que ela fizera aquilo de propósito? Se eu tirasse a mão, ela perceberia e talvez se enfurecesse: "Está tentando me agarrar?". Se eu a mantivesse, ela poderia perceber depois e se enfurecer da mesma forma: "Por que não tirou a mão?". O que fazer, Nossa Senhora da Medalha Milagrosa?

Não fiz nada. Continuei ali. Imóvel. Suando. Mudo. Então, depois de algum tempo, ela girou o corpo em minha direção, olhou-me nos olhos, sorriu e, com voz de caramelo, miou:

- Amo este teu sofá.

E se levantou para pegar outro drinque. Hoje, recordo disso tudo e suspiro: também amo aquele sofá. Não deveria ter me separado dele. Em que parte do passado o deixei? Por onde andará o meu sofá? Por onde andarão meus afetos que ficaram para trás?

DAVID COIMBRA

12 DE DEZEMBRO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

ERRO GROSSEIRO

O novo Código Ambiental do Rio Grande do Sul, proposto pelo atual governo e aprovado pela Assembleia Legislativa meses atrás, viola a Constituição Federal ao ultrajar o direito fundamental a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado.

Esta é a conclusão do procurador-geral da República, Augusto Aras, ao propor que o Supremo Tribunal Federal declare "inconstitucional" parte da lei estadual 15.434, que, em sucessivos erros grosseiros, facilita a degradação do ambiente natural, proteção fundamental à vida. Em minucioso requerimento de 54 folhas, Aras aponta (entre outras aberrações do novo código) a tal de "licença ambiental por compromisso" que o empreendedor outorga a si mesmo, com o que o Estado renuncia ao poder de defender a população.

A nova lei "converte a licença ambiental em mero procedimento cartorial, num simulacro à verdadeira avaliação", renunciando o Estado ao poder de polícia preventivo, em perigosa omissão, lembra Aras. Frisa que o licenciamento de atividades danosas ao meio ambiente (como a mineração) é "processo necessário e inafastável", nunca uma camuflagem autorizada por simples "cadastro" como estabelece o novo código.

Sublinha o procurador-geral da República que a Constituição Federal "tutela interesses superiores do gênero humano", nos quais "o direito ao meio ambiente equilibrado é indisponível e inalienável, impondo obrigações ao Estado e à coletividade".

Aponta ainda como atentatória aos direitos humanos a forma com que o novo código trata as comunidades em áreas que se pretende transformar em empreendimentos que afetam o meio ambiente, como a mineração. É dever do Estado reinstalar essas populações, primeiro que tudo, em oposição ao que aponta o novo código.

Tão detalhada é a exposição dos absurdos e incongruências do novo Código Ambiental feitas pelo procurador-geral da República ao STF, que nos perguntamos como três setores da administração não perceberam os erros grosseiros.

O secretário do Meio Ambiente, Artur Lemos, propôs, o governador Eduardo Leite concordou e o enviou ao Legislativo, que o aprovou sem atinar com os absurdos que despontam agora.

Serão essas "nossas novas façanhas" que o Hino Rio-Grandense define como "modelo a toda terra"?

Ou tudo foi tão grosseiramente avaliado, que até a visão de "erro grosseiro" cometido pelo poder público nas tais licenças ambientais foi atenuada no novo código para facilitar a degradação?

Ou o erro grosseiro surge de outras razões que a razão desconhece?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES


12 DE DEZEMBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

TEMPO PERDIDO

Compreende-se que o combate à pandemia e as eleições drenaram parte das energias do governo federal e do Congresso ao longo de 2020, mas não há justificativa plausível para o país se aproximar do final do ano sem avanços significativos em pautas basilares como as reformas administrativa e tributária. No caso da revisão do cipoal tributário brasileiro, imaginava-se que seria possível chegar a dezembro com uma proposta apreciada e votada pelo Congresso. Infelizmente a realidade é outra, com o Executivo hesitante, a insistência do ministro Paulo Guedes em criar uma espécie de nova CPMF e o parlamento agora envolvido em conflitos internos, como a disputa pelas presidências da Câmara e do Senado.

Embora oficialmente ainda exista no discurso um esforço para que a matéria prospere antes da virada do ano, a última notícia é a da prorrogação, até 31 de março de 2021, da comissão especial criada para analisar a reforma tributária. A possibilidade de se chegar a um acordo, portanto, é novamente jogada para as calendas, ao que tudo indica. O colegiado nasceu em fevereiro com o objetivo de construir um consenso partidário em torno da reforma, mas pouco avançou. O Planalto, ao mesmo tempo, apresentou em julho a primeira das três fases da sua proposta, chegou a acenar com as outras duas em um prazo de até 30 dias, mas até hoje ninguém sabe, ninguém viu.

O redesenho do sistema de impostos brasileiro é urgente. O modelo atual, extremamente complexo, gera custos adicionais para as empresas, minando a competitividade da economia nacional, e é perverso por seu caráter regressivo, onerando os mais pobres. Uma solução não poder tardar ainda mais.

A frustração é semelhante em relação à reforma administrativa. Esperava-se que o texto também fosse votado neste ano pelo Congresso, mas segue com tramitação lenta e travada, assim como a maior parte da pauta econômica, em função do pouco empenho prático do Planalto com o tema e da dificuldade de costurar consenso dentro do Congresso, que em 2019 teve o mérito de tocar praticamente sozinho a reforma da Previdência. Assim, ficaram também para 2021 as mudanças nas regras para racionalizar o gasto com o funcionalismo, alterar carreiras e, principalmente, melhorar a eficiência do serviço público. Constata-se que 2020 foi um tempo perdido quanto a duas reformas basilares para o país, mas que deveriam ser de fato prioritárias, ainda mais em um cenário de dificuldades fiscais e economia claudicante.

Mas não são apenas temas estruturantes que são procrastinados. Outro assunto tratado como improtelável desde o alvorecer de 2020, a PEC Emergencial vê agora o crepúsculo do ano sem um desfecho. Soube-se ontem que o relator da proposta, senador Márcio Bittar, desistiu de apresentar seu parecer, outra vez por falta de entendimento. O texto essencial por criar mecanismos de ajuste fiscal para União, Estados e municípios é outra matéria que, mesmo premente, é chutada para o próximo ano. É um impasse que dificulta inclusive a aprovação do Orçamento de 2021 e faz o Brasil chegar a janeiro mergulhado em incertezas. Seria desejável que agentes públicos, no Congresso e no Executivo, compreendessem a gravidade do momento e deixassem de protelar pautas nevrálgicas para o país. Mas o que se vê, mais uma vez, é um imenso desperdício de tempo, dispersão de foco para disputas políticas rasteiras e incapacidade de construir consensos mínimos.

 


12 DE DEZEMBRO DE 2020
J.R.GUZZO*

Macron criou a "mentira perfeita" 

O presidente da França, Emmanuel Macron, mais seu governo, declararam tempos atrás uma curiosa temporada de hostilidades contra o Brasil. O motivo, como talvez ainda se lembre, é que os brasileiros (com o incentivo implícito do governo) estavam tocando fogo na Amazônia e, em consequência disso, a humanidade estaria ameaçada de ficar sem oxigênio para respirar. "A Amazônia está queimando", disse o presidente.

Macron pediu na hora uma "intervenção internacional" na região - ou na Amazônia brasileira, pelo que foi possível entender. Cobrou da União Europeia ações contra o Brasil. Desde então, tem pressionado os demais países da Europa a não aplicar o último grande tratado comercial que assinaram com países sul-americanos, e pelo qual se estabelecem cortes em impostos que incidem sobre as exportações brasileiras.

Assim como há a "tempestade perfeita", tratava-se de uma mentira perfeita. O presidente, ao apresentar a sua acusação, fez divulgar a foto de uma queimada que estaria ocorrendo naquele exato momento na Amazônia - só que a foto, como se descobriu instantes depois, foi tirada 20 anos atrás. Mas e daí? Para que reparar uma mentira, se a maioria das pessoas quer acreditar nela? Além disso, a denúncia dava a entender que a culpa seria do presidente Jair Bolsonaro - e falar mal dele, sobre qualquer coisa, dá cartaz automático hoje em dia. É contra Bolsonaro? Então deve ser verdade.

Desde sempre esteve claro que o motivo real desses ataques de nervos era o agronegócio brasileiro - que desagrada cada vez mais ao governo da França, por estar custando cada vez mais caro ao Tesouro francês na forma de subsídios pagos aos produtores de grãos franceses. É uma luta pouco promissora.

A área total dedicada à soja e produtos conexos na França é de 1 milhão de hectares; no Brasil, só de soja, são 15 milhões de hectares plantados, do Mato Grosso ao Rio Grande do Sul. Não é surpresa, assim, que 50% das atuais importações de "proteína vegetal" na França já venham do Brasil e dos Estados Unidos.

Agora, o público é informado de que o governo da França acaba de destinar 100 milhões de euros em subsídios para os produtores franceses de grãos - em mais um esforço de manter em atividade uma área de sua agricultura que tem dificuldades crescentes de competir com a produção externa. Não vai adiantar grande coisa, mas a vida é mesmo dura, hoje em dia, no agro mundial: você soca e soca dinheiro em subsídio, e a competição fica cada vez mais difícil. Não resolve nada, aí, ficar dizendo que a Amazônia está em chamas.

J.R. GUZZO*

12 DE DEZEMBRO DE 2020
CHAMOU ATENÇÃO

Alinhamento planetário 

Um presente de Natal para quem gosta de astronomia. Entre as noites de 16 e 25 de dezembro, os planetas Júpiter e Saturno chegarão tão perto um do outro como não estiveram por cerca de 400 anos. Para quem observa a partir da Terra, a aproximação dos dois planetas - chamada de grande conjunção - ocorre a cada 20 anos, mas há muito tempo os astros não ficam tão próximos.

- O grande diferencial é que essa conjunção é a mais apertada desde 1623. A separação mínima aparente entre eles será de um décimo de grau, o que equivale a um quinto do diâmetro da lua cheia - afirma o astrofísico Luiz Augusto da Silva, coordenador da Rede Omega Centauri, que se dedica à divulgação e à observação de eventos astronômicos.

O dia 21 de dezembro será o de maior aproximação: para o observador a olho nu ou munido de binóculos, os astros parecerão alinhados em um único ponto de luz brilhante no céu. Por telescópio, porém, será possível vê-los lado a lado, bem como as suas luas. O evento é visível logo após o pôr do sol, durante uma hora. Se o céu não estiver encoberto por nuvens, poderá ser observado de qualquer parte da Terra, na direção oeste.

Pela proximidade do Natal, a professora do Departamento de Astronomia do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Daniela Pavani relembra uma teoria que relaciona o fenômeno à história bíblica da Estrela de Belém, que teria guiado os três reis magos ao local de nascimento de Jesus:

- O astrônomo alemão Johannes Kepler, que foi quem primeiro estudou as órbitas planetárias, chegou a fazer uma hipótese de que a história da chamada estrela de Belém, da tradição cristã, poderia estar relacionada a uma grande conjunção que aconteceu sete anos antes de Cristo.

LETÍCIA PALUDO

sábado, 5 de dezembro de 2020


05 DE DEZEMBRO DE 2020
LYA LUFT

Perdas & ganhos

Título de um livro meu de alguns anos atrás que me granjeou muitos e muitos leitores desses que chamo amigos. Neste mundo que me parece estar mais doente e mais perturbado do que o habitual, até no refúgio de uma casinha na Serra tudo ecoa, reverbera e inquieta.

A violência concreta, física, crime brotando em todos os cantos; a insegurança porque falta uma autoridade una e firme quanto aos cuidados com a Peste que assola o mundo; tanta gente minimizando essa doença e não atendendo a instruções e ordens de autoridades que aqui e ali parecem vacilar...

O rosário de lamentações se estenderia como pretendem estender a validade de testes que talvez salvassem vidas, mas nem foram distribuídos. Amigos doentes, amores limitados, encontros constrangidos, e o empobrecimento... e o resto.

Acho que quase todos, em maior ou menor grau, estamos sendo atingidos pela sombra que pousou sobre o planeta como uma nuvem venenosa. Para talvez se dissipar lentamente por efeito de uma vacina pela qual já se briga...

E se discute mesmo sem entender, nervos à flor da pele, pouca tolerância, pouca coragem para doçura e paciência. Humildade zero, zero consciência de que temos de escutar médicos e pesquisadores, talvez para salvar a própria vida.

Queixas indignadas, "como!!! e o Natal? E o Ano-Novo? E a praia?". Crianças brincando à beira de um abismo, ignorantes e sem noção, queremos cortar cabeças, logo, logo antes que alguém nos faça refletir sobre a gravidade disso que espreita e ronda... e também ataca.

Então, aqui entre as árvores que não sabem de nada disso, ou talvez conversem entre si sobre as loucuras dos pobres humanos, não acho palavras boas e bonitas para esta coluna de fim de semana. Também preciso de consolo; também quero otimismo e esperança; também ardentemente desejo que a vacina ou as vacinas sejam eficientes e abundantes e bem distribuídas por governos lúcidos e iluminados... para que a gente em algum tempo volte a uma vidinha "normal", seja lá o que isso significa para cada um, muito acima de festas e prazeres.

Hoje sem maior entusiasmo só posso pedir: CUIDADO para que as perdas não sejam maiores do que os ganhos.

LYA LUFT

05 DE DEZEMBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Alguém tem que ouvir o coração 

Eu sabia que iria me emocionar, por isso comprei ingresso para a primeira sessão. Tem sido um ano duro, este 2020. Nos obrigou a criar uma couraça, enrijeceu nossa alma. Há meses estamos acompanhando a sequência triste e fria das estatísticas: 15 mil mortos, 50 mil, 120 mil, 180 mil. E o grande dilema diante destes números é: fecha o comércio ou não fecha?

Alguém tinha que ouvir meu coração, e esse alguém era eu mesma, não para dizer que ele parou, ao contrário, para confirmar que ele continuava batendo, e como bateu dentro da sala de cinema, minha primeira vez diante de uma telona, desde fevereiro. Um reencontro com o escuro, com a voz, a música, a imagem - quanta arte cabe no silêncio profundo.

Bárbara Paz, que lindo trabalho você fez. Poesia filmada com delicadeza e maturidade. A finitude e toda a bagagem que ela carrega, todos os questionamentos, as despedidas, e muita suavidade incluída, pois o fim pode ser suave, tem que ser, senão como suportar?

Enquanto assistia às belas imagens que você captou, escolheu e editou, fiz o meu mergulho particular neste tema inquietante, a morte. Ela é como uma visita mal-educada que não avisa quando irá bater a nossa porta, nos obrigando a encontrar um jeito de nos distrairmos enquanto ela não chega.

O jeito de cada um é único, mas nossas angústias se parecem. Não são apenas os artistas que se perguntam se conseguirão, afinal, realizar sua grande obra antes de partir. Acho que todos - professores, pedreiros, manicures, comissárias, garis - também querem fazer diferença na vida dos outros, deixar algo para a posteridade, e é este sonho (secreto ou não) que turbina a nossa existência e faz com que permaneçamos respirando para muito além dos diagnósticos fatais. É a sobrevida do desejo, tão bem retratada neste documentário merecidamente premiado mundo afora.

Babenco - Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou. Com apenas 74 minutos de duração, conta uma vida, conta várias vidas, conta uma história, conta todas as histórias, descongela nosso coração, nos enternece, encanta, resgata nossa humildade e nos faz entender que sempre lutaremos por 10 minutos a mais de vida, mas com quem negociar este prazo? Quem responde pelo nosso destino?

Se tem que ser como está escrito, que ao menos a gente crie um roteiro bonito para nós também, um final lírico, nosso próprio faz de conta cinematográfico: faz de conta que não morrerei, que apenas irei viajar; faz de conta que passarei a eternidade num lindo apartamento com vista para o mar, segurando um cálice de vinho, e ninguém, nunca mais, irá me encontrar - mas eu estarei lá, estaremos todos lá, um dia, em algum lugar distante, num ponto infinito entre a lembrança, o afeto e a gratidão.

MARTHA MEDEIROS

05 DE DEZEMBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Respirando solidão 

Conheci o Hermenegildo, a praia mais ao sul do sul, talvez o lugar mais tranquilo onde já estive. Tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto de outras viagens. O Chuí fica a um pulinho e, depois dele, tem muita estrada para se andar.

Ou tinha. Com o coronavírus sem controle, o Uruguai seguia fechado para os brasileiros. Nada a estranhar, já que o próprio Brasil - como era de se esperar - voltou a restringir atividades e a decretar certos limites para as populações sedentas de aglomeração. Que isso aconteceria novamente, ninguém tinha dúvida. Só espantou a rapidez, um dia depois das eleições. Como se, até o anúncio dos resultados, gente junta e reunida não estivesse ameaçada pelo vírus. E ameaçando quem se cuida.

Estava quente no dia em que fui ao Hermenegildo. Na parada um pouco antes da cidade, café no posto e uma descidinha para esticar as pernas, o bafo era quase sólido. O ventilador de teto da lanchonete, coitado, incapaz de refrescar uma mosca. Uma, vírgula. Precisaria ser do IBGE para fazer a contagem delas, soberanas no balcão, nas paredes e nos copos.

Quando o carro passou pelo acesso ao Hermenegildo, até o céu ficou diferente, de um azul mais puro. Para os lados do mar, surgiram nuvens que, até então, não tinham dado as caras. Era começo da primavera, não havia um carro na rua, uma pessoa. Já a cachorrada ia e vinha, abusada, subindo e descendo dos bancos das tantas mesinhas do canteiro da avenida principal, entrando nos jardins e nos quintais com a desfaçatez de quem se acha dono.

O Hermenegildo, a pouco menos de 500 quilômetros de Porto Alegre, fica na sequência do Cassino e vem antes da Barra do Chuí, conjunto conhecido como a maior praia em extensão do mundo. São 220 quilômetros de areia e mar. Enquanto o Cassino tem a infraestrutura que uma cidade com muitas possibilidades como Rio Grande oferece, o Hermenegildo é ele e o nada. Não me entendam mal: o nada, ali, é tudo.

O vento gelado desencorajava o pessoal a caminhar na praia. Quem tem aquela imensidão na porta de casa pode se dar ao luxo de escolher dia e hora para encontrar o mar. O que nos levou ao Hermenegildo foi a vontade de fazer um filme. A tragédia ambiental que ficou conhecida como Maré Vermelha, em 1978, contaminou o mar e a areia e matou peixes, mariscos, animais terrestres e vegetação. A diretora Daniela Sallet contou essa história no documentário Hermenegildo, de 2019, apresentando também a versão que o governo militar, na época, tratou de abafar: a tragédia teria sido provocada por um vazamento químico - o que, avaliando-se a extensão dos danos, parece bem mais provável que a hipótese de um fenômeno natural. Nosso filme quer juntar esses fatos ao aparecimento de cadáveres da ditadura argentina no litoral gaúcho. Esse é o trailer.

O Hermenegildo, praia do município de Santa Vitória do Palmar, a 18 quilômetros dali, era só silêncio e solidão no começo da primavera. Mas um senhor palestino que tem uma loja em uma das ruas paralelas à orla nos contou que, na temporada, o canteiro da avenida central fica lotado, música saindo dos carros, moços e velhos passeando e muitas flores na estátua de Iemanjá que protege a cidade.

O sul do sul é um refúgio nesses tempos esquisitos. A poucos minutos do Hermenegildo, a Estação Ecológica do Taim abriga 11 mil hectares preservados para mais de 30 espécies de mamíferos, répteis e aves migratórias. Triste foi ver algumas áreas queimando por conta da seca, e muitas capivaras atropeladas, apesar da tela que tenta proteger a bicharada da BR-471 que passa por dentro da reserva. Quando o mundo voltar ao normal, está aí um lugar para se visitar muitas vezes.

Quem não precisa de um respiro para continuar?

CLAUDIA TAJES

05 DE DEZEMBRO DE 2020
MÔNICA SALGADO

Excesso de intimidade 

Atenção: esta não é uma coluna sobre coisas nojentas e escatológicas! Pode ler tranquilamente antes do almoço de domingo. É uma coluna sobre intimidade. Excesso dela. Portanto, sim... os dois universos se interseccionam. Vá lá, até podem se confundir. Mas não se encerram um no outro, oh, não. Há muito mais poesia na intimidade do que sonha a vã filosofia dessa nossa mente suja.

A coisa começa devagarzinho, assim como quem não quer nada. É um fofo "você pode não entrar no banheiro agora porque acabei de usar?", um conjunto desconjuntado de lingerie, uma calcinha sorrateira pendurada no registro do box, uma depilação ligeiramente vencida que você não ousaria deixar passar lá no início. Logo, o lance evolui pra um cravinho espremido, um pelo na verruga arrancado na pinça, um "olha pra lá que eu vou fazer xixi".

E aí, senhoras e senhores, chegamos ao patamar em que me encontro hoje, 22 anos de convivência intensa com o senhor meu esposo. Aqui, o céu é o limite, e o nível de intimidade destruidora de fantasias românticas/detonadora dos desconhecidos que perfumam a relação varia de casal pra casal. O que difere meu casamento do seu pode ser um número 2 de porta aberta ou um campeonato de pum debaixo do edredom. Ou, quem sabe, a intimidade das intimidades: a psíquica, que lê mentes e adianta palavras ainda não ditas.

Acabamos de voltar, meu marido e eu, de uma viagem de 10 dias ao Egito - que destino, uau! E todo mundo sabe que viagens de casal são uma caixa de Pandora do excesso de intimidade. Uma semana grudado equivale a um ano de vida normal. Porque na vida cotidiana, mesmo em tempos de pandemia, acabamos nos safando da FEI (fadiga por excesso de intimidade) por mantermos horários e atividades diferentes. Sábia Nossa Senhora da Rotina Individual Preservada. Agora... 24h com o que há de mais irritante e comezinho em nossa personalidade é coisa que só vem à tona nas viagens. Início da parte escatológica no parágrafo abaixo.

Apego-me ao tema por motivos autobiográficos: meus humores em viagem costumam ser bastante afetados pela atividade (ou ausência de) intestinal, como os dos antigos egípcios eram afetados pelas secas e cheias do Rio Nilo. E discuto isso em detalhes com meu marido. Será que é por isso que dizem que intimidade é uma merda?

Depois do café da manhã, tenho que ter meu momentinho. Então, na hora de planejar o despertador da manhã seguinte, há que se computar essa meia horinha sagrada. Que na maioria das vezes dá em nada, o que me consagra como a enfezada da viagem - título que ostento até descer um Almeida Prado 46 com vinho branco egípcio (são ótimos, por sinal). Almeidinha (mais para Almeidão, se é que me entendem), por sua vez, faz efeito em pleno Vale dos Reis. A múmia de Tutankamon que me aguarde. Mais uns minutos pra quem está ali faz 2.500 anos não há de ser nada. E os sinos mágicos da intimidade soam quando um marido genuinamente preocupado questiona, no meu retorno do banheiro, pelos meus cálculos cerca de 1kg mais magra: "E aí? Saiu tudo?". Fim da parte escatológica.

Seria nojento se não fosse fofo. Isso vindo do mesmo ser humaninho que, dois dias mais tarde, fez cercadinho com a jaqueta para que eu colocasse para fora, na beira da estrada, um Alien que não tinha me caído bem. Fala sério: como eu posso me irritar com a acústica da sua boca ao mastigar pistaches (o som é stereo, impressionante), com a mania de dizer "tanto faz, escolhe você", com a cutucada semiviolenta que me dá quando ronco à noite, acompanhada de uma bufada-saco-cheio, com a recusa patológica em dar qualquer tipo de gorjeta? Como, me digam?

Intimidade é previsibilidade e muitas vezes irritação e frustração. Mas também é previsibilidade e muitas vezes conforto e acolhimento. É quando dois entram num único ritmo, como numa coreografia que envolve corpo, mente e alma. É coisa que relativiza o nojo, que desarma a gente. Tem saliva, tem sexo, tem restos, tem fluídos corporais diversos, tem amor, tem tédio, tem vontade de viver tudo de novo. E que venha nosso próximo destino. Que eu escolho, claro, afinal, pra você tanto faz. Aff!

MÔNICA SALGADO

05 DE DEZEMBRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

PARABÉNS, MAJESTADE 

Quero aproveitar a data para cumprimentar Vossa Majestade pelo aniversário de 2 de dezembro. Quem diria, o Senhor chegou a 195 anos! Há tanto a comemorar. Pedro II é um nome de referência. Afinal, foi o brasileiro que mais tempo governou o Brasil. O segundo lugar, Getúlio Vargas, tem menos da metade do seu tempo. Tecnicamente, o senhor era rei desde 1831. Na prática, o poder começou em 1840. Não tinha 15 anos e já havia um jogo complexo correndo na Corte.

Sei que seu começo não foi fácil. Impossível se lembrar da sua mãe austríaca: ela faleceu quando o senhor tinha um ano. Teria sido uma boa mãe, porque suas parentes, Maria Teresa e Antonieta, criaram os filhos com dedicação. Seu pai? O senhor se despediu dele com pouco mais de 5 anos. As lembranças devem ser nebulosas. O consolo da sua infância foram suas irmãs, Januária e Francisca. Sei que os livros viraram o refúgio para sua timidez. Até sua madrasta, Dona Amélia, foi uma referência na vida adulta e o senhor a visitou com carinho. Ironia: ela pertencia ao ramo indireto de Napoleão, motivo pelo qual seu avô, o príncipe d. João, fugiu de Portugal.

Uma vez o senhor disse que, se não fosse imperador, teria sido professor. Eu sou professor e já pensei o contrário: tentaria a sorte com a Coroa se não fosse um educador. Um biógrafo seu, José Murilo de Carvalho, falou do choque entre Pedro de Alcântara e Pedro II, entre o homem e o cargo: afinal, não seria esse o drama universal?

Sabemos que a simpática Teresa Cristina não foi o amor da sua vida, todavia foi uma esposa dedicada e mãe zelosa. O senhor amou suas duas filhas e seus netos. Entendo sua paixão por Luísa Margarida de Barros Portugal, a condessa de Barral. Era uma mulher fascinante mesmo. Comparado com seu pai, o senhor foi quase pudico. Acho muito azar perder esposa e amante em período difícil como o exílio. Acho que aquele passeio final em Paris foi quase uma sabotagem derivada da tristeza.

O senhor fez bem em repousar na sua amada Petrópolis. Sei que o calor do Rio o incomodava. O Rio deixou de ser capital e vive um momento complicado. Nem os túmulos estão em paz na antiga Corte.

O senhor desejou paz e prosperidade ao país que o exilou. Morreu com um travesseiro de terra brasileira. São gestos tocantes. O país cresceu muito. No primeiro censo que fizemos, por sua ordem, em 1872, tínhamos 10 milhões de pessoas. Somos mais de 210 milhões hoje. O Brasil era rural e com um índice de analfabetismo enorme. Mulheres? Apenas 13,4% delas sabiam ler e escrever; os homens, um pouco mais. Mudou nossa fé: 99,72% da população era católica no ano do primeiro censo. Tanta coisa mudou e continua mudando.

Querido imperador Pedro II: feliz aniversário! O senhor sonhou com um país grande e ele cresceu muito durante a República. Continuamos com problemas enormes, alguns tradicionais, como a questão da participação de negros nesse crescimento. Muitos dos governantes republicanos fizeram seu nome crescer por perspectiva e comparação. Tivemos cada tipo desde Deodoro... Já falei de tempo de governo. Seria bom acrescentar que, provavelmente, com 1m90cm (ou 91) o senhor talvez tenha sido nosso maior governante. Getúlio Vargas, que governou mais tempo depois do senhor, tinha 1m63cm. Em vários sentidos, o senhor seria um gigante entre os chefes do Brasil.

Sempre imaginei que, se tivessem a chance profética de analisar a história posterior, alguns republicanos teriam tido mais dúvidas com aquele novembro de 1889. Os positivistas, que tanto o incomodaram, são uma quase fantasmagoria. Nossa bandeira registra um Ordem e Progresso, porém, claro, pouca gente pensa muito nisso. Os vizinhos com os quais guerreamos, notavelmente Paraguai e Argentina, enfrentam seus próprios desafios. O Brasil cresceu pacifista no plano externo.

O senhor foi o único brasileiro educado para governar. Seu interesse pelo Brasil era genuíno. Havia os limites do tempo, aquilo que, hoje, chamamos de "consciência possível". Sim, a luta contra a escravidão poderia ter sido mais rápida e a condenação das eleições fraudadas, mais incisiva. Houve problemas variados que pareciam enormes naquele momento. Quem resiste ao tribunal da história? No século 21, por interesses políticos, passaram a construir um Segundo Reinado róseo e perfeitamente feliz. É um erro histórico.

Espero que o senhor não tenha ficado ofendido com o plebiscito de 1993. A monarquia ganhou pouco mais de 10% dos votos. Seu nome foi bastante invocado na campanha, mas o momento era outro.

Comparando com o Império, somos mais numerosos, mais alfabetizados, menos católicos e a demografia deslocou-se para o Sudeste. Feliz Aniversário, Majestade! A notícia boa é que ainda nos lembramos do senhor com carinho. A ruim é que esse carinho aumenta ano a ano como uma melancolia saudosa e utópica. É preciso ter alguma esperança no nosso futuro republicano...

LEANDRO KARNAL

05 DE DEZEMBRO DE 2020
CRISTINA BONORINO

DELÍRIOS 

Quando a covid-19 surgiu, no início de 2020, a maioria de nós acreditou tratar-se de uma doença respiratória - como as causadas por outros coronavírus conhecidos, ligados à sars, à mers ou aos resfriados. A maioria dos médicos focava em manter os pacientes respirando, tratando o dano aos pulmões ou ao sistema circulatório. O padrão que ninguém esperava e que emergiu nas alas de pacientes da doença, hoje sabemos, foram sintomas neurológicos.

A perda de olfato e do paladar são já características, mesmo em indivíduos com sintomas leves. O Sars-CoV-2 afeta diretamente a inervação associada a esses sentidos e parece usar esse caminho para atingir o sistema nervoso central. Nos indivíduos internados, os sintomas neurológicos são os mais comuns, disparado: podem atingir até 50% dos indivíduos com covid-19, mostrou um estudo da UFRJ.

Um estudo inglês, da UCL, revelou que indivíduos com casos graves sem quase nenhum problema respiratório têm encefalites, derrames, encefalomielite, além de ansiedade, depressão e, vejam vocês: delírios. Leões no hospital, macacos no quarto, paranoias de perseguição e traição são narrados por pacientes. Pessoas com distúrbios psiquiátricos, mesmo em tratamento, tiveram seus sintomas exacerbados ao contrair o vírus. Os dados iniciais são preocupantes, sobretudo porque muitos desses sintomas persistem. E porque não sabemos por quanto tempo podem permanecer. Essa era uma preocupação constante dos cientistas, pois muitos vírus deixam sequelas permanentes que evoluem para doenças graves. O mais famoso é o caso do HPV, associado ao desenvolvimento de câncer. A provável existência de complicações era mais um dos argumentos a reforçar a importância do distanciamento: quem sabe o que pode acontecer, a longo prazo, nas pessoas que se deixaram infectar?

Fico pensando se um dia, quando os atuais membros do governo engajados em desinformar a população e promover o caos forem devidamente julgados e processados por seus atos, vão usar isso como defesa. Sim, porque a esmagadora maioria deles contraiu covid, como era completamente previsto pelo comportamento avesso a todas as normas sanitárias. Ou se manterão a coerência anticientífica, alegando que a doença não faz nada: eles apenas agiram de acordo com a convicção de que seus umbigos (e os de seus patrocinadores) são mais importantes do que a vida da população que prometeram que protegeriam - aparentemente, apenas para fins eleitorais.

Aos delírios de negar a gravidade da doença e manter que ela tem tratamento precoce, somam-se os mais recentes: investir em vacinas, mas continuar avisando que são nocivas; e decidir retomar as aulas presencias nas universidades em meio ao pior - repito, o pior - momento da pandemia. A vacina contra esse tipo de atrocidade já começou nas urnas no mês passado, com resultados nos EUA e no Brasil. Esperamos ansiosamente pela cura.

CRISTINA BONORINO

05 DE DEZEMBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

AO RADAELLI

A floresta devastada dá lugar a cinzas e troncos pretos, queimados, que parecem logogramas chineses, grafados com a pulsão e a intensidade de quem transmite mensagem urgente. Há uma violência na paisagem, que precisa ser revelada. O céu, transmutado, é rosa, pintado sobre fundo azul, como se estivéssemos em outro planeta, em que a cor delicada contrasta e revela a gravidade dos sinais que colhemos, lavoura invertida em que o verde está ausente. Que planeta é este, que mundo criamos com nossos gestos, que escritas podem revelar e transmitir essas mensagens? Eis onde entra em cena a verdade da arte e o poder singular do artista, a mensagem pincelada por Gelson Radaelli (1960-2020), sempre e ainda mais no estágio avançado de sua grande obra.

Ora foi o destino que pintou cena dura de aceitar, com a partida precoce desse grande artista, cidadão exemplar, ser humano ímpar e amigo dileto, aos 60 anos, na madrugada silenciosa do último dia 28. Sua arte, sua trajetória e suas expressões de amor, rigor e humor ainda pairam e sempre pairarão como imagens que animam os horizontes do mundo. Ora a melancolia do luto aquilata ainda mais os sentidos do fenômeno que testemunhamos, a saga de um artista admirável revelando o que a arte pode e deve simbolizar: os enigmas da condição humana, da linguagem e dos universos em que vivemos e sonhamos. 

Na revelação pela arte, vigora a força ambivalente de uma potência complexa, em que as questões são formuladas por meio da melhor resposta cabível, a linguagem que percebe, reflete e reage com gestos e mensagens. A arte perpetua as questões, as amplia conjugando sinais abertos e sensibilidades, em muitos tempos e espaços, e oferece a cada sujeito, como um prato criado com talento e servido com amor, a possibilidade de se nutrir e se constituir pensando e saboreando símbolos.

Desde a aurora do Estado, a arte e as religiões servem ao poder e produzem propaganda bela, persuasiva, perene, que nos permite hoje saber muito do Egito, da Grécia ou de Firenze, desde que saibamos decifrar. É nas fendas e lacunas desse poder impositivo que artistas puderam, em saga de milênios, construir linguagens e modos de vida capazes de contrapor à autoridade que controla a liberdade que especula e cria. 

Há, por certo, artistas que seguem cativos do Estado e de poderes igualmente violentos, como o mercado e a mentira, e há, desde a mais alta antiguidade, os que compreenderam sua natureza e possibilidades no mundo e respondem com enigmas que revelam. É dessa cepa de artistas que vêm as perguntas que nos constituem e propelem: quem sou eu, quem somos nós, que mundo é este, o que fiz e fizemos, como viveremos ou sairemos dessa? Se a imagem apenas ornamenta, não é arte, mas sintoma da sua ausência. E quando ela torna sensíveis os arcanos simbólicos da cultura, eis o âmago vital da parte bela destes seres terríveis que somos nós, os humanos.

Sorva e beba esta bela arte como a um vinho extraordinário, seiva de Dioniso, em memória de Gelson Radaelli.

FRANCISCO MARSHALL

05 DE DEZEMBRO DE 2020
COM A PALAVRA

ALÉM DO PENSAMENTO, A AÇÃO PARA CONSTRUIR O FUTURO 

Um mosaico, com diferentes culturas e formações acadêmicas, se formou ao longo da edição 2020 do Fronteiras do Pensamento, desta vez em uma experiência online. O conjunto teve como elemento central a necessidade de repensarmos a nossa trajetória como humanos, principalmente olhando para aquilo que não gerou prosperidade e que precisa ser reinventado, para que sejamos realmente humanidade.

A linha crítica e os posicionamentos firmes que cada palestrante adotou foram bálsamos tão necessários nesta época de tentativas e de retrocessos em diferentes áreas. Começando por Mia Couto, que, com a sua poética, nos desafiou na complexa tarefa de dialogar com o diferente, para que consigamos, juntos, nos reinventar e nos libertar das falsas certezas, assim como tantos outros simulacros e negacionismos que nos assolam.

Para tratar sobre a complexidade, nada melhor do que ver e ouvir de maneira clara, já que as condições técnicas melhoraram ao longo da temporada, o físico Fritjof Capra por meio de sua visão sistêmica. Com sua fluidez característica, Capra discorreu sobre a forma como nos apropriamos dos recursos do planeta, gerando efeitos que muitas vezes não prevemos, citando especificamente a pandemia pela qual ainda estamos passando. Colocando-nos também frente à responsabilidade de cooperarmos e entendermos a ilusão de que poderíamos ter crescimento ilimitado.

Esta temporada do Fronteiras do Pensamento nos mostrou que uma reinvenção do humano, de forma ética, deve englobar uma grande diversidade de dimensões, como a econômica, que foi abordada por Paul Collier. Autor de vários livros sobre desenvolvimento econômico, o pensador britânico nos apresentou a necessidade de curarmos algumas feridas que o capitalismo gerou, embora ele defenda esse sistema como o caminho para uma possível prosperidade. Dessas feridas, a principal é a desigualdade social e suas decorrências. Outro ponto a ser curado, num caminho de reinvenção do humano, é a forma como líderes, políticos e organizações têm lidado com as situações complexas que enfrentamos, pois decisões unidirecionais, de cima para baixo, não têm a capacidade de responder às necessidades comuns, pois falta uma noção de comunidade interligada.

Com relação aos líderes, o historiador Timothy Snyder aponta a urgência de que sejam estimuladores da noção de um futuro melhor, onde possa haver mobilidade social. Pois, quando o futuro não aparece no nosso horizonte, cria-se espaço para o surgimento de figuras autoritárias, que nos prendem no presente por diferentes meios, entre eles o medo.

Dessa forma, vejo o Fronteiras do Pensamento como um meio para irmos além dos questionamentos sobre quem somos, como humanos. Recebemos subsídios para nos reinventarmos, para agirmos na construção de um futuro próspero e com liberdade, para sermos agentes de transformação visando à construção das estruturas que mantêm as instituições democráticas em pleno funcionamento.

Sou grato a cada palestrante desta temporada, alguns não citados aqui, pelos seus saberes e generosidade de compartilhá-los.


05 DE DEZEMBRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

MÍDIAS SOCIAIS E SAÚDE MENTAL 

Dizem que as mídias sociais viciam mais os adolescentes do que o cigarro e o álcool. Para avaliar o impacto das redes na saúde mental, foi realizado o inquérito epidemiológico #StatusOfMind, publicado na United Kingdom?s Royal Society of Public Health. A pesquisa entrevistou 1.479 adolescentes e jovens de 14 a 24 anos, no Reino Unido, no período de fevereiro a maio de 2020, para avaliar o impacto de 14 itens relacionados com a saúde mental e o bem-estar.

Foram eles: 1) formas de entender as experiências de outros sobre a saúde; 2) acesso a informações de saúde confiáveis; 3) apoio emocional e empatia de familiares e amigos; 4) ansiedade; 5) depressão; 6) sensação de solidão e infelicidade; 7) qualidade do sono; 8) capacidade de exprimir sentimentos, pensamentos ou ideias; 9) autoidentidade - habilidade para definir quem você é; 10) percepção da aparência física; 11) relacionamento com a família e os amigos; 12) relacionamento com a comunidade; 13) bullying - ameaças e comportamentos abusivos; 14) necessidade de permanecer conectado pelo medo de perder experiências importantes.

Com base nessas questões, os participantes atribuíram notas às plataformas mais populares: YouTube, Twitter, Facebook, Snapchat e Instagram. As plataformas foram bem avaliadas nas questões referentes à autoidentidade, à autoexpressão, ao fortalecimento de laços comunitários e ao amparo emocional.

Por outro lado, os malefícios estiveram associados à qualidade do sono, ao bullying, à imagem corpórea, à necessidade de se manter conectado por medo de perder experiências vividas pelos amigos, à depressão e à ansiedade.

Os adolescentes entrevistados classificaram, em ordem decrescente de efeitos positivos, as plataformas: 1) YouTube (a mais positiva); 2) Twitter; 3) Facebook; 4) Snapchat; 5) Instagram (a mais negativa).

YouTube foi a única plataforma em que os benefícios para a saúde e o bem- estar foram considerados superiores aos malefícios. Obteve índices de aprovação mais elevados na percepção das experiências que afetam a saúde alheia, no acesso a informações de fontes confiáveis na área da saúde, na redução dos riscos de depressão e de ansiedade e na sensação de solidão.

É interessante que Snapchat e Instagram, duas plataformas centradas na imagem, tenham sido consideradas as mais nocivas. A autoimagem é um aspecto ligado a sentimentos de inadequação, depressão e de ansiedade, muito prevalentes nessa fase da vida. O Instagram foi bem avaliado nos quesitos de autoexpressão e de autoidentidade, mas esteve associado a níveis mais elevados de ansiedade, depressão, bullying e do medo de perder oportunidades.

A Royal Society recomenda que as plataformas publiquem avisos pop-up advertindo o usuário sobre o número de horas acessadas, que chamem a atenção quando as fotos sofreram manipulação digital para exibir corpos com aparência de perfeitos, para que desenvolvam algoritmos que ofereçam ajuda no anonimato para adolescentes em sofrimento mental.

DRAUZIO VARELLA

05 DE DEZEMBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

OS PRIMEIROS 50 ANOS DA ATM 70 

A comemoração dos 50 anos de formatura de uma turma de Medicina, na verdade, é o resgate do acontecido depois de um convívio fraterno dos seis anos da faculdade, seguido de uma dispersão daqueles jovens reunidos aleatoriamente há 56 anos para caminharem juntos na preparação para a vida, que começou, para valer, naquele já distante 4 de dezembro de 1970.

Éramos identificados pelo sentimento de fraternidade que de alguma maneira nos unia em torno de uma ideia em comum: o desejo de ajudar as pessoas. Essa determinação, aliás, é o impulso que rege a escolha dessa profissão, cuja nobreza compensa as exigências e sublima as incompreensões.

Ainda que a vida tenha se encarregado de dispersá-los, cada um em busca do seu próprio destino, essa turma sempre encontrou estratégias de aproximação, com dois encontros anuais repetidos religiosamente ao longo deste meio século.

No fim de cada ano, uma comissão especial organizava a comemoração que reunia pelo menos 40% da turma em um encontro de fim de semana, ou na pior das hipóteses para um almoço. Nesses encontros, sempre me comoveu a obstinação do Sergio Dornelles, uma referência afetiva da turma, que, com seu caderno pautado, circulava entre os colegas para que atualizassem os endereços. Espontaneamente, o Serginho assumiu a função de agregador, para que, ao menos no caderninho dele, nos mantivéssemos unidos. Pensando bem, ele foi, para a nossa turma, o precursor das redes sociais.

As escolhas feitas por cada um mostraram a heterogeneidade de projetos, marcados pelas diferenças de ambição, ansiedade, insubordinação, modéstia ou vaidade. Em comum, todos sempre pretenderam viver em paz, ser respeitados pelos seus pares, ter estabilidade econômica para criar os filhos e saúde para curtir os netos.

Destinos cumpridos, hoje não faltam pimpolhos no colo dos avós ouvindo as suas histórias, com os olhinhos brilhando de orgulho deles. Alguns dos nossos amados foram interrompidos antes de alcançarem a plenitude, e a partida deles deixou, em cada um dos sobreviventes, dois sentimentos agudos: a dor da perda e o desconforto pela nossa vulnerabilidade, porque afinal nunca encontramos uma justificativa racional para termos sido poupados.

Um fenômeno, ocorrido há pouco mais de três anos, foi desconcertante e demarcador de uma nova era nas nossas vidas: o da comunicação digital. Estávamos acomodados no nosso canto quando o guardião da saudade foi despertado de um sono de décadas e começaram a pipocar mensagens de carinho entre pessoas que, tendo estado confortavelmente incomunicáveis, cuidando de filhos, netos e amores permanentes durante um longo tempo, nunca se deram conta de que tinham represado um estoque do bem-querer mais genuíno. E então o Prenna criou um grupo de WhatsApp, e isso promoveu o milagre de nos sentirmos emocionalmente ressuscitados.

Quando fui convocado para participar da edição de um livro do cinquentenário, fiquei entusiasmado com a possibilidade de reunir histórias do cotidiano profissional mais rico que existe: o do médico com o seu paciente.

Nada do que disponibilizamos no livro teria sido possível sem o admirável talento artístico e a boa vontade do João Manoel Braga, sempre disposto a ajudar pelo simples prazer que isso dá, a presteza do Jair Ferreira, nosso indefectível arquivo vivo, ao Sérgio Moussalle, que coletou fotos representativas, e aos demais membros do Conselho Editorial: Jorge Buchabqui, decisivo na negociação com a Gráfica da UFRGS, Fernando Lucchese, incansável na busca de patrocínio, e Carlos F. Matzenbacher, impulsionador da ideia original.

Trinta e sete colegas (dois in memoriam) se dispuseram a contribuir com suas histórias, emocionantes muitas, hilárias outras tantas, todas com cara de vida real.

J.J. CAMARGO

05 DE DEZEMBRO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

E agora...?

Jornalista e escritor

Findas as eleições municipais, acabam os sonhos e ficam as promessas como testemunhas de um futuro que ninguém sabe como será. Sim, pois na caça ao voto promete-se tudo, até o que jamais foi (ou é) atribuição de prefeito.

No Brasil, em qualquer âmbito, os candidatos prometem muito mais do que o cargo pretendido pode dar, num estelionato eleitoral, talvez inconsciente, mas concreto. Assim, deixo a cada qual o exame da situação ao longo dos próximos quatro anos, sem esquecer que nenhuma das promessas vagas de hoje se concretizará por magia.

Em Porto Alegre, o prefeito eleito prometeu priorizar o saneamento básico e levar água potável à periferia, mas silenciou sobre a preservação do Rio Guaíba. Na TV e no rádio, calou-se sobre o perigo de que, em poucos anos, a pretendida mina de carvão a céu aberto, à beira do Jacuí, a tão só 12 quilômetros, transforme nosso manancial em líquido pestilento.

Não basta realçar a beleza da nossa orla, mas - sim - evitar que o rio seja vítima da doentia imundície da mineração. Ou a tragédia de Brumadinho (MG) não serviu para nada?

Volto a sublinhar o perigo da tal "mina Guaíba" porque nunca é demais alertar para o horror. Se, por exemplo, déssemos atenção às causas que geraram e alastraram a covid-19 pelo mundo, não teríamos a catástrofe atual, com hospitais lotados e mortes a granel.

Já dizia o sábio jargão: combate-se o mal pela raiz!

Para falar também de flores, desloco o olhar para a posse de Joe Biden na Casa Branca, em 20 de janeiro de 2021. Nunca, como agora, dependemos tanto do futuro presidente dos EUA para salvar o planeta da hecatombe que nós mesmos construímos.

Uma verdadeira revolução já começou com o anúncio de que John Kerry será ministro do clima. A perigosa mudança climática terá abordagem direta e concreta, pois a vida do (e no) planeta depende de medidas profundas que evitem o desastre previsto pela ciência.

Como secretário de Estado de Obama, Kerry costurou o Acordo de Paris sobre o clima, mas a miopia de Trump retirou os EUA do tratado, por considerá-lo "sem interesse".

No Brasil, a desastrosa política ambiental de Bolsonaro faz passar "a boiada" do ministro Ricardo Salles e desconhece as mudanças climáticas. Nem por curiosidade buscam saber as causas de secas brutais alternando-se com destrutivas chuvas de temporais. Nosso governo leva a sociedade inteira a ignorar o perigo fundamental do século 21 - o clima, ou a própria vida do planeta. Assim, como órfãos, só nos resta a ação de Biden e Kerry como tentativa de salvação.

Ou não haverá amanhã.

FLÁVIO TAVARES

05 DE DEZEMBRO DE 2020
MARCELO RECH

Carta ao novo prefeito

Prezado Sebastião Melo Desde que o senhor foi eleito em Porto Alegre, já o vi ser inquirido algumas vezes sobre o seu primeiro ato na prefeitura. Além de cumprimentá-lo pela legítima vitória, eu gostaria de levantar outra questão. Em 31 de dezembro de 2024, último dia do mandato para o qual foi eleito agora, que marca o senhor espera ter deixado à cidade? Se me permite uma modesta sugestão, defina esse posicionamento, planeje e comece a plantá-lo antes mesmo do início do governo. Ali na frente já não haverá tempo hábil para colher frutos.

Em suas entrevistas, anotei que sua referência como prefeito foi Loureiro da Silva. É um bom exemplo. Ele administrou a Capital duas vezes, entre 1937 e 1943 e depois de 1960 a 1964. Pavimentou 150 vias, entre elas a Ipiranga, ergueu 85 escolas, abriu rotas como a Assis Brasil, entregou 18 praças e saneou as finanças. Foi, enfim, um ótimo gestor, embora não tenha criado um nome que transbordasse dos horizontes locais. Quem o fez, mas em Curitiba, foi Jaime Lerner, que deu novo rumo à capital paranaense a partir de soluções simples, inteligentes e, sobretudo, sustentáveis. Graças a essa marca, Curitiba atrai a atenção mundial – além das empresas e dos empregos que vêm a reboque das boas notícias.

Se me permite uma segunda sugestão, imagine Porto Alegre como uma Boston brasileira. Meu amigo David Coimbra, profundo conhecedor da alma de Boston, já descreveu uma penca de vezes a revolução urbana proporcionada pela junção de polos médico, universitário, cultural, tecnológico e esportivo naquele canto dos EUA. Respeitadas, obviamente, as proporções, Porto Alegre pode ser um hub brasileiro e latino-americano de medicina, Ensino Superior, tecnologia, cultura e futebol. Aqui, o que se faz nestas cinco áreas tem grande chance de dar certo e potencial de definir o futuro da economia, da renda e da qualidade de vida de todos os porto-alegrenses. 

Mas ainda falta muito para que as iniciativas se coordenem e a Capital ganhe o embalo definitivo destas suas vocações naturais. 

O esforço de conferir tal marca à cidade é sobretudo da iniciativa privada, e assim deve ser, mas é preciso que o poder público não atrapalhe, que retire os obstáculos do caminho e que lidere, pelo entusiasmo e inspiração, a articulação para posicionar Porto Alegre como uma referência mundial em cidade inteligente e qualidade de vida. Ser um bom zelador da Capital é sua obrigação primeira. Se não o for, cairá em desgraça. Mas se quiser que, no futuro, citem seu nome como os de Loureiro da Silva ou Jaime Lerner, minha última modesta sugestão é: pense grande.

Um abraço, parabéns e sucesso na administração.

MARCELO RECH

05 DE DEZEMBRO DE 2020
J.R. GUZZO

Sergio Moro na iniciativa privada

O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro é um homem multifásico - vale coisas diferentes para pessoas diferentes em épocas diferentes. Quando comandava a Operação Lava-Jato, era um herói nacional. Sozinho, sem outras forças que não fossem a própria integridade pessoal e o seu cargo de juiz numa vara da Justiça Federal em Curitiba, enfrentou e pôs na cadeia um ex-presidente da República, diretores das empreiteiras de obras públicas que costumavam governar o país e grandes estrelas do sistema de corrupção por atacado que deitava e rolava no Brasil de então.

Ao mesmo tempo, era o inimigo número 1 do PT, da esquerda em geral e da nebulosa de juristas amadores e profissionais que se apresentam com a marca de "garantistas". Quando já estava no Ministério da Justiça, foi promovido à categoria de monstro pelos mesmos petistas, esquerdistas e garantistas de sempre, inclusive os internacionais, depois da divulgação de gravações ilegais de conversas que tinha tido com um dos promotores da Lava-Jato.

Tempos depois, Moro pediu demissão do cargo de ministro da Justiça em razão de desentendimentos crônicos com o presidente Jair Bolsonaro sobre nomeações na polícia e outros temas conexos. Transformou-se de imediato num herói da esquerda que o odiava até a véspera - e, ao mesmíssimo tempo, num traíra da pior qualidade para a porção da direita bolsonarista.

Em sua última fase, aberta agora, Moro não é mais a esperança da esquerda, nem dos liberais e nem dos garantistas; por outro lado, tornou-se um satanás ainda mais feio para o bolsonarismo. É o resultado direto do anúncio que ele fez no dia do segundo turno das eleições municipais.

Moro anunciou que vai trabalhar na consultoria americana Alvarez & Marsal - que é, imaginem só, a administradora judicial de ninguém menos do que a Odebrecht, a mais notável de todas as empreiteiras condenadas pelo próprio Moro.

Entre os clientes da consultoria americana estão outras inesquecíveis vedetes da Lava-Jato, como a Sete Brasil e a Queiroz Galvão. Sergio Moro, segundo ele próprio, aceitou o cargo para ajudar empresas como essas a não pecarem mais; vai ensinar como praticar "políticas de integridade e anticorrupção".

Não há dúvida de que Moro tem o direito de ganhar a própria vida e de ficar rico na iniciativa privada, agora que não é mais membro do governo; é muito melhor do que fazer o contrário, como é o caso de tantas estrelas da vida pública brasileira, que decidem enriquecer justo quando entram no time que está mandando.

Mas sempre é bom ficar claro que o antigo santo da luta anticorrupção, bandido para o consórcio PT-Lula-esquerda, traidor para os bolsonaristas e esperança da "oposição", é um homem como qualquer outro. Não é um demônio - nem um mártir. Não é a flor do mal - nem a flor do bem.

J.R. GUZZO*