sábado, 10 de abril de 2021


10 DE ABRIL DE 2021
J.R.GUZZO

A lei aplaudida quando convém

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, tem dito que a Lei de Segurança Nacional, um entulho de tempos passados que o mundo político-jurídico brasileiro esqueceu de desligar da tomada, está cheia de defeitos e precisa ser anulada.

Seu colega Gilmar Mendes está ainda mais bravo: mandou o governo explicar, "em cinco dias", por que está recorrendo à Justiça, com base na LSN, em busca de providências contra o que considera ofensas e insultos dirigidos ao presidente da República. O deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, fala na urgente necessidade de acabar com a lei atual e colocar outra em seu lugar.

Tudo bem. Mas, nesse caso, torna-se incompreensível por que todos os três - Barroso, Gilmar e Lira - acharam a coisa mais normal do mundo que o próprio STF utilizasse a LSN para prender de madrugada e trancar num xadrez da Polícia Federal um deputado federal - por ele ter, justamente, feito ofensas e insultos contra os ministros do Supremo.

Mais: num dos piores escândalos mantidos em silêncio no Brasil de hoje, o jornalista Oswaldo Eustáquio está preso desde o mês de dezembro (agora em prisão domiciliar) com base na mesmíssima lei. É acusado de "impulsionar o extremismo do discurso de polarização e antagonismo" - assim mesmo, na linguagem semialfabetizada que utilizam no processo. Por que a LSN pode ser aplicada para uns e não para outros?

O STF, com a cumplicidade integral do Congresso brasileiro, transformou o ambiente legal do Brasil num circo de aberrações. Quer, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contrário. Quando o Executivo é caluniado (dizer que o Exército Brasileiro é responsável por genocídio, como fez o próprio Gilmar, é calúnia), o Brasil democrático-liberal-equilibrado e de centro-esquerda acha um horror que alguém possa pensar em Lei de Segurança Nacional - dizem, aí, que estamos a um passo de um golpe militar e da ditadura.

Quando a LSN é usada para prender (e manter presos) um deputado e um jornalista de direita, todos os indignados da véspera descobrem que a velha lei da repressão é uma coisa muito justa.

Tudo o que se consegue com isso é uma Justiça cada vez mais avacalhada, que perdeu o respeito da população e hoje é vista unicamente com desprezo, por quem ainda lê alguma coisa sobre política, e com indiferença, pela maioria dos brasileiros - que estão pouco ligando para o que aconteça com o Supremo e com o Congresso.

Gilmar não admite que a lei seja utilizada pelo governo para se defender; mas na hora em que o STF quer reprimir a liberdade de expressão, exige que a mesma lei dispare todos os seus raios sobre quem ele considera inimigo. É esse o nosso "Estado de Direito".

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes - J.R. GUZZO*


10 DE ABRIL DE 2021
CHAMOU ATENÇÃO

Um Cristo em construção

Com 43 metros de altura (somando o pedestal e a imagem), a estátua do Cristo Protetor de Encantado, que começou a ser erguida em 2019, está entrando na fase final de construção e tem previsão de inauguração para o fim do ano.

Nos últimos dias, foram içados os braços e a cabeça do Cristo, que será, segundo a Associação Amigos do Cristo de Encantado, um dos maiores do mundo considerando apenas o tamanho da estátua (37 metros), ultrapassando estruturas semelhantes como a do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro (30 metros), e a do Cristo Rei, na cidade de Swiebodzin, na Polônia (33 metros).

A estátua gigante fica na área do Morro das Antenas, próximo à Lagoa da Garibaldi - o espaço foi doado por famílias que idealizaram a construção, há quase uma década. De acordo com Rafael Fontana, integrante da Associação Amigos do Cristo de Encantado, o movimento foi encampado por Adroaldo Conzatti, que foi prefeito do município do Vale do Taquari e faleceu em março deste ano.

O monumento, que tem custo total estimado em R$ 2 milhões, é bancado exclusivamente por doações de pessoas físicas e de empresas. O projeto envolveu arquitetos e engenheiros voluntários.

A proposta inclui ainda um elevador interno, que conduz à região do peito do Cristo, que fica a aproximadamente 40 metros de altura, onde estará um mirante de onde será possível avistar até mesmo o município de Bento Gonçalves, na Serra - a cerca de 40 quilômetros de distância. Os organizadores do projeto acreditam que a estátua se transformará em ponto turístico importante da região.

O momento em que os braços e a cabeça do Cristo foram içados nos últimos dias foi um instante de "renovação da fé e da esperança", contou Fontana:

- Não teve um cidadão da cidade que não se emocionou.

sábado, 3 de abril de 2021


03 DE ABRIL DE 2021
LYA LUFT

Doutor Arthur

Meu pai, doutor Arthur ou doutor Fett, que estaria fazendo nestes dias 116 anos, foi por muito tempo meu deus. Rigoroso em algumas coisas, como escola, onde depois dos 11 anos comecei a ficar incrivelmente medíocre e desinteressada, horários de chegada em casa, e respeito à mãe, com quem eu tinha seguidas discussões tolas de adolescente, foi a pessoa mais generosa, bondosa, sábia que conheci.

Tinha uma inata alegria de viver, mas uma certa melancolia; gostava de reunir amigos e família, cuidava de quem podia cuidar, era gentil e atencioso com empregados domésticos e funcionários da faculdade de Direito, que ajudou a fundar e dirigiu até o fim. Quem quer que fosse, e nunca o vi bajular ninguém. Talvez esse seja o conceito de dignidade que eu mais conheço.

Amigos da família me contaram, anos atrás, que era bonito ver o doutor Arthur trazendo pela mão a filhinha ainda pequena, para que ficasse brincando nos balanços da praça da prefeitura e do fórum. Outros tempos, claro, em que se podia deixar uma criança brincando sozinha, desde que sob o olhar vigilante do pai, que a cada momento aparecia na janela.

Quando fiquei adolescente, ele não se conformava com minha notas ruins na escola, e me dizia o mesmo que o diretor: "Você é inteligente mas preguiçosa, desinteressada. Com um pouquinho de esforço, poderia ser sempre a primeira da aula". Para que eu quereria ser a primeira da aula? Queria ser a mais amada, a mais engraçada, a com mais amigos e amigas. Sobretudo, com mais e mais livros ao meu redor.

Me comovi quando um ex-aluno seu me contou que quando o foi visitar em casa, entrando no escritório, admirou-se da biblioteca que cobria todas as paredes. Meu pai, um gesto muito simples, disse apenas: "Estes são os meus amigos". Quando desisti de terminar o primeiro ano do Segundo Grau, então "Colegial", porque minhas notas em ciências exatas eram horrendas, lembro de seu olhar entre perplexo e vagamente divertido, quando me disse, "então, se você quer ficar ignorante, fique em casa e ajude as empregadas e sua mãe". Quando me chamava de você, a coisa era séria.

Fiquei em casa, sem ajudar em nada as empregadas porque, segundo minha mãe, eu só estorvava, li todos os livros, sonhei todos os sonhos, e comecei a sentir uma solidão danada. Finalmente, vim a Porto Alegre, Colégio Americano, escola Normal, e lembro das despedidas, ele beijando minha mão pela janela do ônibus, repetindo que eu me cuidasse bem. Naqueles primeiros meses eu ia para casa sempre que possível, depois, na medida em que me adaptei em Porto Alegre, ao natural as idas foram se espaçando.

Quando decidi fazer faculdade, isto é, possivelmente não voltando mais a residir em casa, ele me apoiou em todas as minhas tantas dúvidas. Sempre eu lhe perguntava sobre alguma decisão a tomar: "Acho que por aqui tem mais chance de dar certo, por ali você pode errar mais, mas seja como for, o pai está sempre aqui do teu lado". Não houve nunca mais íntimo e reconfortante sentimento de família, abrigo e proteção.

Até hoje ele nos faz falta, embora tenha morrido há muito tempo, aos 68 anos, deixando a família dolorida, aturdida. Nunca mais nada foi o mesmo. Mas ele continua aqui, comigo: quando tenho algum problema maior, instintivamente eu penso, "Pai, e agora, o que eu faço?".

De alguma forma, eu sei, ele me dará uma resposta.

LYA LUFT

03 DE ABRIL DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Recorrendo à utopia

Em determinadas cidades, o comércio pode ficar aberto; em outras, deve fechar. Em alguns países, os surtos diminuíram; em outros, foram detectadas novas variantes do vírus. Há crianças sem aulas por aqui e com aulas no hemisfério oposto. Cada ponto do planeta tem suas próprias diretrizes e demandas relacionadas à covid-19, o que me parece alarmante. Se a pandemia, como o próprio nome diz, é global, a solução para erradicá-la não teria que ser minimamente integrada também?

De que adianta um país zerar o número de contaminados se os países vizinhos são menos céleres? Perguntas sem fim, respostas inexatas. Nosso caminho para a liberdade ainda tem muitos obstáculos e dificilmente trilharemos de lá pra cá com a facilidade de antes. Só recorrendo à utopia. Tudo o que nos difere (cultural, espiritual e ideologicamente) teria que ser desconsiderado em prol de uma ambição maior: derrotar o inimigo comum. Mas, para isso, todos os países precisariam entrar em acordo, o que é fantasioso. Se nem mesmo em um prédio residencial existe unidade de pensamento entre os condôminos, como vencer a pandemia juntos, de forma planetária?

Há pressa em fabricar vacinas e distribuí-las, há pressa em produzir os próprios insumos, há pressa em fazer a economia girar, há pressa dos cidadãos em voltar a trabalhar, a estudar, a viajar, e eu observo o ranking das nações adiantadas e atrasadas nesta corrida contra o tempo e penso: estamos nos mexendo, mas ainda falta um senso de responsabilidade único e geral.

Contra o apocalipse, John Lennon deu sua receita: "Imagine todas as pessoas vivendo o presente, imagine que não haja países, nada pelo que matar ou morrer, e nenhuma religião também; imagine que não existam posses, nem ganância e fome, imagine todas as pessoas compartilhando o mundo inteiro". São fragmentos da canção Imagine, o hino dos sonhadores, que este ano completa 50 anos e que apresenta uma fórmula fora da realidade, mas sábia. Para que o caos seja extinto sem deixar fios soltos, precisamos de uma liderança mundial que fale mais alto do que as diferenças, que coloque o bem-estar de todas as nações acima das disputas de poder. 

Se eu acho plausível essa trégua coletiva? Minha fé não chega a esse ponto (o Brasil, por exemplo, precisaria antes recuperar o respeito internacional), mas acredito, sim, que uma suspensão temporária de conflitos poderia fazer diferença no resgate da normalidade que tanto desejamos, e ainda nos ensinaria muito sobre os poderes da empatia e da paz. Óbvio que estou pirada, você não? Então permita-me concluir: além da vacina, só uma revolução profundamente humanista e universal nos tirará desse sufoco. O ex-beatle era viajandão, mas gênio. All we need is love, pra ontem.

MARTHA MEDEIROS

03 DE ABRIL DE 2021
CLAUDIA TAJES

Versões para a mesma história

UM

Os dois se conheceram no colégio. Três anos de namoro, dois de noivado, casamento na igreja e no cartório. Ela, professora. Ele, vendedor em uma revenda GM. Quando foi promovido a gerente, tiveram um menino. Cinco anos depois, ele virou sócio e nasceu a menina.

Nunca brigaram, nenhum dos dois têm amantes, os filhos já estão na faculdade, iam ao supermercado juntos uma vez por semana antes da pandemia, ninguém da família pegou coronga e ela adiou a festa das bodas de prata, que completaram em 2020, para maio de 2021. Eles acreditam que sai, com muitos convidados e a segunda lua de mel em Paris.

Eu conto ou você conta?

DOIS

Os dois se conheceram no colégio. Três anos de namoro, dois de noivado, casamento na igreja e no cartório. Ela, professora. Ele, vendedor em uma revenda Ford. Quando foi promovido a gerente, tiveram um menino. Cinco anos depois, ele virou sócio e nasceu a menina.

Ela se decepcionou com a carreira de professora. Quer dizer, com a forma como o poder público tratava a carreira de professora. Com mais de 20 anos de escola, ganhava proporcionalmente menos do que quando começou a trabalhar. Passou a participar das reuniões do sindicato. Fazia vigília na frente do Palácio. E, como sempre foi boa em música, tocava a sineta em diferentes ritmos. Nunca reclamou por entrar férias adentro para recuperar as aulas perdidas nos dias de greve. Em época de pandemia, trabalhava ainda mais, atendendo seus alunos online em uma jornada sem hora para terminar.

Já ele estava tranquilo, empresário que ia levando, apesar das incertezas. Tudo piorou com a pandemia. Quando a Ford decidiu sair do Brasil, entregou os pontos. Prevendo mais dificuldades, passou a revenda adiante e se declarou um jovem aposentado por vontade própria. Passava os dias vendo TV, o que atrapalhava as aulas dela no computador da sala. O que queria barulho foi se irritando com a que precisava de silêncio, e vice-versa. Quem acha que isso é pouco para terminar uma relação que tente pensar com cinco horas de Fórmula 1 no Home Theater. 

Claro que não foi só por isso, havia muita coisa acumulada naqueles 25 anos de casamento - que não puderam ser comemorados em 2020 por causa do isolamento social, e que eles decidiram não festejar mais tarde. Quando ela soube que ele estava no Tinder, sugeriu que se mudasse para a casa da mãe. Que ainda ontem ele levou para tomar vacina, e depois postou a foto no Instagram, e ela curtiu, porque sempre gostou da ex-sogra e porque chora a cada pai e mãe dos outros que são vacinados.

O filho e a filha? O rapaz está no quarto, jogando Counter-Strike, e a menina recém tinha ido estudar em Lisboa quando a pandemia estourou. Não volta tão cedo. De qualquer jeito, esse é um final feliz porque nenhum dos quatro pegou coronga. E isso, nos dias de hoje, é o que de melhor pode acontecer em qualquer história.

TRÊS

Os dois se conheceram no colégio, mas mal se cumprimentavam. Há poucos dias, uma amiga contou que ele já está no quinto casamento, e ela comentou: "Que disposição". Depois mudaram de assunto e ele nunca mais entrou na história. Ah, ela vai tomar a vacina amanhã.

CLAUDIA TAJES

03 DE ABRIL DE 2021
LEANDRO KARNAL

A ÓPERA DO MUNDO

QUE O DIABO TENHA ESCRITO A MÚSICA É FÁCIL PERCEBER. A AUTORIA DIVINA DO LIBRETO É MAIS COMPLEXA PARA DEMONSTRAR.

Machado costuma fazer digressões com personagens que surgem e desaparecem nos romances. Acho que é uma chance de ele falar de uma ideia que estava na sua cabeça genial e testar o público ou a narrativa. Muitos romances eram publicados aos poucos nos jornais e, só depois, tornados livros. Os voos paralelos, no autor de Dom Casmurro, possuem uma estrutura quase de um pequeno conto. No romance já citado, ele faz algo que também existe em narrativas como A Igreja do Diabo, O Sermão do Diabo ou Adão e Eva. Nos três, a figura do antagonista de Deus é bastante matizada e foge do caráter rancoroso e forma corpórea do mal absoluto. Por vezes, em poema menos inspirado e algo preconceituoso, Machado mostra mais misoginia do que horror a Satanás, como nO Casamento do Diabo, de 1863.

Voltemos às digressões. Elas são diferentes em Dostoievski. O Grande Inquisidor, narrativa dentro de Os Irmãos Karamazov, por exemplo, é quase um épico grandioso dos dilemas dos irmãos e sobre a natureza humana. No russo, é o cardeal católico que faz o papel de advogado cínico, ares de Mefisto. O silencioso Jesus é um misto de Messias e de símbolo da esperança do Bem. Ivan, o irmão que mostra a criação literária, quer provocar o piedoso Aliócha, porém, igualmente, deseja pensar de forma densa a ambiguidade de todos.

Volto ao Rio de Janeiro. Em Dom Casmurro, estamos ainda conhecendo a personagem central Bento quando surge um tenor italiano, Marcolini. Nesse momento, começa a digressão indicada no começo da minha crônica. Decadente e excluído, o europeu crê que tudo seja ópera. Vai mais fundo e narra ao ouvinte que nosso mundo é um grande espetáculo lírico. O libreto fora escrito por Deus, a música é de Satanás. O Todo-Poderoso aceitou encenar a estranha parceria, entretanto, não poderia ser no Céu. "Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias, coprimárias, coros e bailarinas." 

Há, segundo a fantasia do italiano, alguns problemas. Notamos passagens nas quais o verso vai para a esquerda e a música, para a direita. Talvez seja para quebrar a monotonia de obra longa. É o caso do terceto do Éden ou os coros da guilhotina e da escravidão. Identificamos motivos que cansam por serem repetitivos. Ao final, o conjunto é tão magnífico que grandes autores (como Shakespeare) nada mais fizeram do que transcrever temas do libreto. São simples plagiadores! A encenação durará tanto quanto o planeta, terminando apenas quando o teatro for demolido "por razões astronômicas". Parafraseei os capítulos 8, 9 e 10 de Dom Casmurro.

O mundo como um grande teatro é metáfora forte em Shakespeare (um imitador, segundo Marcolini). Na peça Como Queiram (As You Like It), o melancólico Jacques recita (Ato 2, cena 7) que "o mundo é um palco; os homens e as mulheres, meros artistas, que entram nele e saem" (All the world?s a stage, and all the men and women merely players. They have their exits and their entrances). Logo em seguida, a personagem enuncia a teoria das sete idades do homem, ampliando as etapas propostas no enigma da Esfinge (qual o animal que anda em quatro patas pela manhã, duas à tarde e três à noite? O homem que passa a infância engatinhando, vida adulta caminhando e velhice com bengala).

Também o mundo da Contrarreforma explorou o tema do mundo-palco Calderón de la Barca, soldado, padre e escritor, escreveu um auto sacramental: O Grande Teatro do Mundo. A verdade estaria no autor, Deus, que acaba retirando as fantasias e máscaras de todos ao final. O Pobre, o Rico, o Rei, o Lavrador: todos exercem papéis determinados e devem fazer bem sua tarefa para merecer o Céu ou o Inferno. Em peça de temática similar, A Vida É Sonho, o autor espanhol do Século de Ouro pergunta: "¿Qué es la vida? Un frenesí. ¿Qué es la vida? Una ilusión, una sombra, una ficción; y el mayor bien es pequeño; que toda la vida es sueño, y los sueños, sueños son".

A matéria da vida é o sonho. O já citado Shakespeare faz o Duque Próspero afirmar (A Tempestade) que "somos feitos da mesma matéria dos sonhos". O Bardo achava o sono uma antessala, um prenúncio da morte, com o benefício de não ser definitivo.

Machado, Shakespeare e Calderón, sentados em um bar do Cosme Velho, poderiam discutir seus sonhos, dreams y sueños. Seriam pesadelos ou doces delírios noturnos combinados de três gênios de épocas e lugares variados. Quem sabe este seja meu desejo onírico: ouvir o debate deles por horas e tentar ampliar minha imaginação ao limite do possível.

Retorno à ópera do mundo: que o diabo tenha escrito a música é fácil perceber. A autoria divina do libreto é mais complexa para demonstrar. A existência de papéis a cargo de falastrões é autodemonstrável. O grande teatro do mundo está atravessando uma entressafra de talentos.

Independentemente do debate da autoria ou da habilidade de todos nós, uma coisa é certa: temos literatura e esta ajuda a salvar muita coisa, mesmo quando todo o resto é ruim. Assim, em épocas de tragicomédia ou teatro de baixa qualidade, o refúgio é Machado, Shakespeare ou Calderón. Ópera bufa? Livros ajudam a passar o tempo e até a escolher melhor o próximo espetáculo. A caixa dos males do mundo, como a de Pandora, parece ter sido aberta. Resta, no fundo, a esperança, sempre com olhos assustados.

LEANDRO KARNAL

03 DE ABRIL DE 2021
DRAUZIO VARELLA

A PANDEMIA FUGIU DO CONTROLE, E SÓ PODEMOS CONTAR COM NÓS MESMOS

Os brasileiros decretaram o fim da pandemia em novembro do ano passado. Os bares lotaram, havia multidões nas praias, famílias reunidas no Natal e no Ano-Novo, festas clandestinas à luz da noite espalhadas pelas cidades, Carnaval. A justificativa para esse comportamento estúpido era a de que ninguém aguentava mais ficar em casa.

Em janeiro, chegaram as férias. Os hotéis dos recantos turísticos voltaram a receber hóspedes, as ruas das metrópoles se encheram de gente aglomerada sem máscara e de ônibus e trens superlotados pelos que não tinham alternativa senão trabalhar.

Alheio a tudo, o presidente da República passeava de jet ski, cumprimentava admiradores e posava sem máscara para selfies, o Ministério da Saúde distribuía o kit covid, deputados e senadores tentavam aprovar uma emenda à Constituição para livrá-los da prisão em flagrante e faltava coragem à maioria de governadores e prefeitos para decretar medidas rígidas de afastamento social.

Os médicos, os sanitaristas e os epidemiologistas que alertavam para as dimensões da tragédia em gestação eram considerados alarmistas e defensores de interesses políticos escusos.

Deu no que deu: 300 mil mortos, hospitais com UTIs sem leitos para oferecer aos doentes graves, milhares de pacientes morrendo à espera de uma vaga.

O que acontecerá nas próximas semanas? Chegaremos a 400 mil mortes?

Os hospitais brasileiros estão em colapso. Os infectados foram tantos que abrir mais leitos em UTI é enxugar gelo. Os gestores investem em equipamentos e profissionais para abrir vagas que serão ocupadas em menos de 24 horas.

O número de óbitos em casa e nas unidades básicas de saúde despreparadas para o atendimento é enorme. Os estoques de medicamentos para a sedação dos doentes entubados chegam ao fim. Começam a faltar até corticosteroides e anticoagulantes, medicações de baixo custo que o Ministério da Saúde não se preocupou em adquirir.

As vacinas perderam o timing para conter a escalada atual. Ainda que fosse possível vacinar todos os brasileiros neste fim de semana, as mortes continuariam a se suceder da mesma forma, pelo menos durante o mês de abril e uma parte de maio.

Vejam a situação de São Paulo, o Estado que conta com o sistema de saúde mais organizado do país. No pico da primeira onda, dispúnhamos de cerca de 9 mil leitos de UTI; agora temos 14 mil, lotados. No dia 17 de março, havia pelo menos 1,4 mil pessoas à espera de internação em UTI.

O maior complexo de saúde do Brasil, o Hospital das Clínicas, recebia, em fevereiro, a média de 56 pedidos de internação; nos últimos sete dias antes de eu escrever esta coluna, foram 364, dos quais 110 estavam em estado grave por outras doenças e 254 por covid.

Se esse é o panorama no Estado mais rico, caríssima leitora, dá para imaginar o caos no resto do país?

Parece que nossos dirigentes despertaram para as dimensões da tragédia que se abateu sobre nós. Empresários e economistas enviaram um recado duro ao presidente, pena que tardio. O ministro da Economia reconheceu que sem vacinação a economia não se recupera. Só agora percebeu? Por que não disse nada em julho, quando nos foram oferecidos os 70 milhões de doses da vacina da Pfizer que o Ministério da Saúde rejeitou? Receio de magoar o chefe?

O presidente da Câmara declarou que "tudo tem limite" e que apertava "o botão amarelo". Amarelo, excelência? Enquanto 300 mil famílias perdiam entes queridos, o sinal estava verde?

Deprimente ver os malabarismos circenses do novo ministro da Saúde, ao justificar que ficava a critério da liberdade milenar do médico prescrever o tratamento precoce com drogas inúteis. Como assim, ministro? Enquanto a medicina foi praticada como o senhor defende, os colegas que me antecederam receitavam sangrias e sanguessugas.

Finalmente, sob pressão, o presidente convocou os três Poderes para um convescote político, com o pretexto de criar um comitê para gerir a crise sanitária. Incrível, não? Imaginar que uma equipe comandada por ele será capaz de nos tirar dessa situação é acreditar que mulher casada com padre vira mula sem cabeça.

A consequência mais nefasta de tantos desmandos, caro leitor, foi a de que a epidemia fugiu do controle do sistema de saúde. Daqui em diante, só podemos contar com nós mesmos.

DRAUZIO VARELLA

03 DE ABRIL DE 2021
BRUNA LOMBARDI

MILAGRES DA PÁSCOA

Dois dos mais importantes e emblemáticos acontecimentos da ancestralidade falam de milagres. Na tradição do Cristianismo, a Páscoa comemora a Ressurreição. Na tradição do Judaísmo, o Pessach é a festa da Libertação.

As raízes do Pessach na história judaica são profundas. Moisés, ainda bebê, foi colocado por sua mãe numa cesta no Rio Nilo, para escapar da matança. Foi salvo pela filha do faraó egípcio que o criou. Já adulto, segue seu chamado e conduz os israelitas para fora do Egito, onde eram escravos. É o início do Êxodo, quando o povo de Israel depara com a última fronteira da fuga: o Mar Vermelho. E desesperados começam a atravessar as águas.

Nesse momento acontece o conhecido milagre: as águas se dividem pra que eles possam passar. Pessach celebra a saída dos Filhos de Israel da escravidão e serve para lembrar de continuar a luta pela liberdade.

A fé cristã comemora outro grande milagre: Jesus, morto na cruz, ressuscita no terceiro dia e volta a viver.

Após sua morte, sepultamento e ressurreição, Jesus aparece durante um período de quarenta dias para depois ascender aos céus. Durante esse tempo, acontece uma sucessão de milagres que até hoje suscitam diversas interpretações.

E para quem, como na famosa parábola de São Tomé, só acredita vendo, vem a resposta de Jesus: "Tu só acreditas porque me viste. Bem-aventurados os que não viram e creram".

Mesmo que tantos céticos questionem a autenticidade das histórias que nos são passadas através dos séculos, dogmas não se questionam. Dogmas não se discutem, são doutrinas que se aceitam ou não, são relatos que atravessam o tempo, passados de geração a geração e registrados em escrituras, canções, manuscritos e livros sagrados.

Mesmo nos Evangelhos há contradições e muitas histórias não se completam. E já naquela época os sumo sacerdotes, por não acreditarem nessa ideia de ressuscitar, pagaram para que se espalhasse a informação de que o corpo de Jesus havia sido roubado. O que prova que fake news não é uma coisa nova, mas sempre fez parte da história da humanidade.

Somos todos baseados num sistema de crença. Até os que questionam, os que refutar e não acreditam, se baseiam no mesmo sistema ao inverso, o de crer que não acreditam.

A base de toda fé é justamente acreditar no que não se vê, no que não se sabe. Naquilo que não é provado cientificamente, não possui embasamento histórico, não é concreto e se desmancha no ar.

Acreditar é uma questão de sentimento. Um ponto interno que nos guia e nos faz bem. Acreditar nos traz alento, acolhimento, consolo. É um bálsamo para as nossas vidas. Abre a cancela da possibilidade, acende a chama da esperança.

Todas essas histórias são feitas de símbolos, rituais e mitos que servem não apenas para reforçar nossas origens, mas para descobrir um paralelo ao momento em que estamos vivendo.

O momento de agora é de dor, e com certeza vai passar para a história como mais um enfrentamento. Que seja também um momento de vitória. Precisamos de um milagre. E é preciso acreditar para que ele aconteça.

Feliz Páscoa a todos.

BRUNA LOMBARDI

03 DE ABRIL DE 2021
J.J. CAMARGO

MEDICINA NARRATIVA: A REDENÇÃO

"A pessoa adoece por carência de verdadeiras relações pessoais. Se você lhe der impessoalidade e neutralidade dará exatamente o que lhe causou a doença. Nossa tarefa é a da construção do encontro. E não há encontro que seja impessoal. Impessoal é o desencontro."

(Hélio Pellegrino)

Com os impressionantes avanços da medicina, se pode dizer, com uma dose sadia de orgulho médico, que sabemos muito mais do que nossos antecessores. Mas isso só aumenta o constrangimento de percebermos que, a julgar pelo aumento das demandas judiciais e reclamações nas mídias sociais, os pacientes não nos percebem melhores. Atribuir a culpa às circunstâncias que encurtaram o tempo de atendimento e impuseram aos doentes a loteria de sair de casa sem nenhuma certeza de que o médico que estará do outro lado da mesa dará a mesma importância a este encontro faz algum sentido, porque essa interação é, em resumo, uma relação entre duas pessoas, e o entorno deve ser ignorado quando elas se encontram.

Colocar a culpa na tecnologia que, com seus braços longos, tem aumentado a distância entre o médico e o seu paciente é uma simplificação inadequada e ingênua. Na verdade, se utilizarmos menos da tecnologia disponível, devemos nos considerar fraudulentos na expectativa dos pacientes, mas se esperarmos que este novo mundo de monitores coloridos possa substituir a figura do médico, estaremos renegando a nossa essência, e abdicando do acesso ao mais nobre dos sentimentos humanos: a gratidão, que é o subproduto mais doce de uma relação humana generosa.

A medicina narrativa, que veio para polir as arestas de uma relação que se tornou superficial e rígida, tem sido adotada como instrumento precioso para, através de literatura, humanizar os profissionais da saúde. A inclusão das disciplinas sobre humanidades nos currículos das melhores faculdades de medicina do mundo não deixa dúvida que a aridez da atitude de quem só aprendeu a tratar das doenças, e que ignora o que pensa e sente quem está doente, está minando a figura humana do médico, visto até há poucos anos como uma referência afetiva da comunidade.

O estudo da literatura, bem como do cinema e de outras artes, está sendo introduzido como disciplina obrigatória do curso médico das melhores universidades internacionais, com o intuito de resgatar o glamour de uma profissão que só é desmerecida por quem nunca adoeceu, mas que, com o aumento da expectativa de vida, um dia descobrirá.

A relação M/P é, em resumo, um jogo de sedução e conquista, e temos que admitir que a mecanização do atendimento médico não tem nada de sedutor.

A parceria, essa que se nutre da proximidade e que é a marca afetiva do encontro dos amigos nos botecos do fim do dia, é o sentimento idealizado por qualquer pessoa que se sinta ameaçada e passe a idealizar a figura do médico como a imagem do último socorro.

O que a chamada medicina narrativa tem proposto, é o uso qualificado da palavra para que o médico aprenda a se expressar melhor, a se fazer entender melhor, qualquer que seja o nível intelectual do paciente. E pelo mesmo caminho aprenda a ouvir, uma necessidade de qualquer relação pessoal e que tem sido tão ostensivamente negligenciada. Há, finalmente, a consciência de que em algum momento da história recente perdemos o compasso. O que se pretende agora é o resgate do afeto, buscando na interface com a literatura a humanização das novas gerações médicas. E isso tudo em benefício do paciente, que se vê, como nunca, um intruso no processo do qual ele é própria razão de ser.

Não recuperaremos a histórica figura do parceiro confiável com esse atendimento surreal em que cada especialista cuida de um pedaço do corpo de quem, se sabendo único, não entende a fragmentação e se percebe abandonado e desprotegido. E peregrina pelos consultórios como um zumbi, desorientado e solitário.

J.J. CAMARGO

03 DE ABRIL DE 2021
DAVID COIMBRA

Queria um cachorro

Um dia vou ter um cachorro. Não que nunca tenha tido um. Tive. Chamava-se Banzé, como o cachorro dos sobrinhos do Donald, o Huguinho, o Zezinho e o Luisinho.

Eu gostava daqueles três patinhos. Resolviam os problemas consultando o Manual do Escoteiro. Quando a Disney lançou um manual que era para ser igual ao deles, capa amarela, mais de 300 páginas, vendi jornal e garrafa até juntar dinheiro para comprar um. Assim formei a coleção completa dos manuais da Disney. O do Tio Patinhas, sobre, digamos, economia. O do Peninha, sobre jornalismo. O do Mickey, sobre detetives. O do Zé Carioca, sobre futebol.

Esse do Zé Carioca foi lançado pouco antes da Copa de 1974, eu já tinha 12 anos e conhecia todas as escalações dos times do Brasil, até a da Portuguesa de Desportos, na qual jogava o Eneas, com a camisa 8. Naquele ano, o Brasil montou uma Seleção que meteria sete em qualquer uma que pudesse ser feita hoje. No gol, Leão, famoso pelo seu gênio e por ter "as pernas mais bonitas do Brasil" (eu não concordava, preferia as da Sandra Bréa); na zaga, Luizão Pereira, o Chevrolet; na lateral esquerda, Marinho Chagas, o Vanusa; no meio, Paulo César, o Caju; na frente, Jairzinho, o Furacão; e, para arrematar, o melhor de todos, Rivellino, o Patada Atômica. Time com epíteto sempre joga mais.

Mas havia também a Holanda de Cruyff, o Holandês Voador, e a Alemanha de Franz Beckenbauer, o Kaiser, o homem que não sabia qual era a cor da grama, porque nunca olhava para baixo quando jogava.

Portanto, o Brasil perdeu a Copa, para minha frustração.

Naquela época, eu não tinha mais cachorro. Não tive nenhum outro, depois do Banzé. Ele faleceu de forma trágica: desprendeu-se dos meus braços e, por algum motivo, resolveu atravessar a rua. O que teria chamado a atenção de Banzé? A provocação de algum gato vadio ou a sinuosidade de alguma gatinha? Não sei. Sei que ele tentou atravessar a rua, que até era bem calma, mas justamente naquele momento vinha um carro, que acertou o pequeno Banzé em cheio. Ele deu dois suspiros e depois morreu.

Provavelmente por isso não quis mais cachorro. Tive um galo, o Alfredo, que foi assassinado e servido no almoço de domingo (não comi!). Tive duas tartarugas, mas elas não eram muito animadas. Tive pintassilgos, caturritas e canarinhos, mas hoje não manteria preso um passarinho - tenho pena. Passarinho na gaiola é coisa antiga. O Rivellino era dono de um viveiro de passarinhos, aliás.

Ah, tive uma codorna, que me seguia por toda a casa. A Matilde. Amava a Matilde, mas ela também foi assassinada, por um vizinho maligno que não gostava de seus gritos e lhe acertou uma pedrada.

Ainda penso em Matilde. Mas agora queria um cachorro.

Um cachorro grande, um pastor-alemão parecido com o Rin-Tin-Tin. Eu o chamaria de Kaiser. Não como o Guilherme II; como Beckenbauer e a cerveja. Ele estaria sempre comigo, com sua lealdade canina. Vejo-me sentado numa poltrona confortável de frente para o mar. Na mesinha ao lado há um prato de torpedinhos de siri e uma taça de algum tinto honesto. Com uma mão, seguro o livro que leio, com a outra, afago a cabeça do velho Kaiser. O mar rumoreja a 50 metros de distância e o calor de um raio de sol que entra pela varanda me dá preguiça. Começo a sentir um sono envolvente. Não me dou o trabalho de fechar o livro, deixo que caia aberto no meu colo. Vou fechando os olhos. Posso dormir tranquilo, meu amigo está vigiando. Sim, ele estará sempre comigo, o bom e velho Kaiser.

Esta coluna foi publicada originalmente na edição de 14 e 15 de maio de 2016

DAVID COIMBRA

03 DE ABRIL DE 2021
FLÁVIO TAVARES

OUTRA PÁSCOA?

Longe vão as Páscoas em que o Rio Grande era exemplo para o Brasil. Tínhamos a melhor e mais ampla rede escolar pública do país, com professoras bem remuneradas e havíamos desafiado e vencido o gigantesco polvo internacional de eletricidade da American Foreign and Power.

Hoje, além da pandemia, fecham-se escolas e o magistério tem de apelar a greves para sobreviver. O mais gritante sinal da decadência, porém, foi a venda da CEEE-Distribuidora por simbólicos R$ 100 mil, menos de duas camionetas. A CEEE é cobiçada há muito. No século 20, o governo Ildo Meneghetti resistiu às investidas que tentavam destruir a então Comissão Estadual de Energia Elétrica. Depois, o governador Leonel Brizola estatizou a poderosa American Foreign and Power e mostrou a rapina da empresa no envio de lucros ilegais à matriz nos EUA e noutras trapaças. Provou que ela devia mais ao governo do que o valor da indenização.

Eram tempos em que grandes empresas influíam nos governos dos EUA, e o Senado criou a "Emenda Hickenlooper", proibindo créditos a países que nacionalizassem empresas ianques. Brizola (que ampliou a rede escolar e remunerou dignamente as professoras) transformou a Comissão de Energia em "companhia" e a desburocratizou, mantendo a sigla CEEE.

A decadência começou no governo Pedro Simon, quando um descomunal roubo (que em valores atuais supera R$ 1 bilhão) abalou a CEEE. Uma CPI do Legislativo comprovou o assalto, mas até hoje (noutro século) o processo segue "em segredo de Justiça".

O bilhão roubado teria dado suporte à CEEE, evitando o brutal endividamento que, agora, passa aos novos donos.

A Páscoa é ressurreição, não chocolate, mas, agora, leva a indagar: o que busca Bolsonaro ao demitir o ministro da Defesa e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sob pretexto de "realinhá-los"?

O ministro demitido (um general) frisou que "preservou as Forças Armadas como instituições do Estado", forma elegante de revelar que evitou transformá-las em serviçais de Bolsonaro e que foi demitido por isto. Impõe-se perguntar - o presidente busca apoio (ou conivência) das Forças Armadas numa espécie de "autogolpe" que lhe dê poderes absolutos?

Foi mera coincidência que, no mesmo dia, o deputado Major Vítor Hugo, ex-líder do governo e íntimo de Bolsonaro, tenha proposto uma lei que faz do presidente um ditador durante a pandemia?

Tudo é tão difuso nos tempos de Bolsonaro, que se pode crer, até, que coelho põe ovos de chocolate.

 FLÁVIO TAVARES


03 DE ABRIL DE 2021
OPINIÃO DA RBS

O ILUSIONISMO DO ORÇAMENTO

Planalto e Congresso devem ter consciência e celeridade para consertar a excrescência do orçamento federal de 2021, aprovado pelo parlamento após uma estranha negociação entre os dois poderes que resultou em uma aberração cuja paternidade agora é rejeitada por ambos. Abstraídos da realidade, deputados e senadores consentiram com uma peça tragicômica em que fizeram desaparecer, como em um truque de ilusionismo, a previsão de pagamento de R$ 26 bilhões de despesas obrigatórias. Tudo para engordar emendas que passariam a ser de um valor inédito de R$ 48,8 bilhões, sem qualquer pudor. Ocorre que as obrigações, como benefícios previdenciários e abono salarial, entre outras, inexoravelmente aparecerão e terão de ser pagas.

A primeira tentativa de começar a desfazer a confusão foi insuficiente. Após vários alertas de que a série de manobras contábeis pode até implicar o presidente Jair Bolsonaro em crime de responsabilidade se sancionar o orçamento, o relator da peça, senador Marcio Bittar (MDB-AC), concordou em retirar R$ 10 bilhões das emendas, alegando que, assim, cumpriria um acordo com o ministro da Economia, Paulo Guedes, para a aprovação da PEC Emergencial. Guedes nega a negociação nesses termos e entende que o corte precisa ser maior. E precisa, de fato, sob pena também de faltarem recursos para gastos básicos da máquina pública.

A matemática alternativa que surgiu da colaboração do Congresso com o Executivo é uma nítida burla à Lei de Responsabilidade Fiscal e fatalmente fará o teto de gastos voar pelos ares. Para cumprir a regra que limita o crescimento dos gastos à inflação, seria preciso bloquear R$ 31,9 bilhões de despesas não obrigatórias, estima a respeitada Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. Fake, inexequível e maquiado são apenas alguns dos termos atribuídos ao orçamento por especialistas. Se este não for alterado e o juízo não for recobrado, o sinal passado é o do desdém com as finanças públicas, aumentando a desconfiança dos agentes da economia e piorando indicadores como juro, câmbio e risco Brasil, com reflexos na economia real.

Por enquanto, persistem o impasse e o imbróglio jurídico e político. De um lado, os reiterados alertas inclusive da equipe econômica sobre os riscos. De outro, a pressão do centrão, que quer manter a gorda distribuição de verbas destinadas a obras espalhadas para os seus currais, uma clara intenção de fazer prevalecer interesses eleitorais, de olho em dividendos no pleito do próximo ano. Espera-se que o respeito às contas públicas vença a queda de braço travada com a politicagem comezinha. Sem novo recuo do parlamento, aguarda-se que o presidente Jair Bolsonaro abandone a dubiedade, cerre fileiras do lado da responsabilidade e vete ao menos parcialmente o orçamento de 2021, mesmo que precise desagradar a seus insaciáveis aliados no Congresso.


03 DE ABRIL DE 2021
MARCELO RECH

Recalque no Planalto

Para se perscrutar a origem da súbita troca na cúpula da Defesa e das Forças Armadas deve-se pesquisar quem a apregoava. Não eram o Alto-Comando, os governadores, outros ministros, o STF, a base no Congresso, os presidentes da Câmara e do Senado, a oposição, a imprensa, os que pedem intervenção militar, os que repelem golpismos, a Igreja, os pastores, os sindicatos, o PT, o centrão, a OAB, os EUA, a China ou a direção do Flamengo. Nem mesmo aquele núcleo fanático bolsonarista que vê conspirações atrás da porta andava inquieto com o Ministério da Defesa.

Ou seja, ninguém pedia a troca do comando militar, muito menos em meio a uma emergência sanitária na qual seus líderes devem estar focados na maior mobilização de tropas e recursos da História para combater um vírus traiçoeiro. Aparentemente, Jair Bolsonaro foi o único a desejar a mudança e é o único capaz de explicar por que desencadeou a maior crise na área militar desde 1977, quando Sílvio Frota foi exonerado do Ministério do Exército por Ernesto Geisel, lançou um manifesto quase cômico sobre a infiltração comunista no governo e foi escrever suas memórias.

Quando não há explicação aparente, é porque ela não pode ou não quer vir à tona. Se a motivação foi arrastar "o meu Exército" para aventuras fora do leito institucional e democrático, Bolsonaro deu um tiro no pé. O que ele conseguiu foi uma demonstração do Alto-Comando de que não haverá desvios na Constituição e nos ritos militares. Também não há sinais de um "Almirante Aragão", imbuído em 1964 de sublevar marinheiros para ser carregado nos ombros em apoio a João Goulart. Na verdade, é impensável que dois generais da ativa conversem para cogitar ser uma boa ideia conferir poderes ilimitados a um ex-capitão de espírito mercurial que foi convidado a deixar o Exército por indisciplina.

Sobra então a motivação revanchista de Bolsonaro. O número de vezes em que o presidente diz que quem manda é ele e a quantidade de generais que convidou para cargos-chave e depois os humilhou em demissões sumárias leva a supor que seu problema é o ressentimento. Se não fosse interrompida, a trajetória de Bolsonaro na caserna o levaria no máximo à patente de coronel. Agora, ele parece se comprazer em exigir améns constantes e caçar cabeças de duas ou mais estrelas que ousam divergir de suas paranoias e obsessões.

No meio militar, recalcados são os que sofrem trotes pesados ou se sentem injustiçados por comandantes e depois descontam em outros quando passam a exercer cargos de mando. Não por méritos castrenses, mas pelas troças do destino e pelo voto, Bolsonaro se tornou comandante em chefe das Forças Armadas. Mas isso não autoriza que as trate como sua propriedade. Bolsonaro precisa, portanto, aprender a conter seus recalques. Afinal, os presidentes passam mas as Forças Armadas ficam.

MARCELO RECH

03 DE ABRIL DE 2021
J.R. GUZZO

Ritmo da vacinação vai melhorar

Nada deixa mais agitado um militante da Confederação Nacional Pró-Covid do que ler na imprensa, uma vez a cada morte de bispo, algum número positivo em relação à epidemia. A junta de "autoridades locais", economistas de centro-esquerda e comunicadores que hoje administra o noticiário sobre a covid só permite que seja divulgado um tipo de informação - a que anuncia o fim do mundo a curto prazo, com recordes na "média móvel" de mortos, da escassez de leitos de UTIs ou da falta de covas nos cemitérios, e tudo isso por culpa do "genocídio" que estão praticando na Presidência da República.

É raro ouvir alguma coisa boa em relação à covid, pela excelente razão de que há bem pouca coisa boa para ser dita. Mas fatos não deixam de ser fatos por serem pouco frequentes. Um deles é a vacinação. No momento, é a principal, ou a única, luz na saída do túnel - e justamente por isso as notícias sobre o número de vacinados são as que mais irritam os comissariados de gestão da pandemia.

O problema, aparentemente insolúvel para o consórcio pró-pânico, é que os números são bons - e falar deles dispara acusações automáticas de "negacionismo", "bolsonarismo" ou coisas ainda piores. O Brasil começou a vacinação no dia 18 de janeiro; foram aplicadas, naquele dia, 112 vacinas. Em cerca de dois meses e meio, as equipes municipais e estaduais vacinaram mais de 17.600.000 pessoas, o que mantém o Brasil como o quinto que mais vacinou.

O Brasil vacinou mais gente, é claro, porque tem população maior e uma quantidade crescente de vacinas - mas que pecado pode haver nisso? Levando em conta uma população total por volta de 210 milhões de habitantes, e subtraindo cerca de 55 milhões de menores de 18 anos, resulta que um pouco acima de 11% da população adulta foi vacinada até agora.

Diante disso, você pode dizer duas coisas: "Só 11% da população recebeu vacina" ou "Já foram vacinados 11% da população". Questão de ponto de vista, claro, mas o que importa saber é que o total de brasileiros imunizados aumenta em ritmo de PG. Se o ritmo não aumentar (e não diminuir), permanecendo sempre nas 680 mil aplicadas no último dia 31 de março, o Brasil vacinará mais de 20 milhões de pessoas em abril. Nos cinco meses seguintes, receberão pelo menos a primeira dose outros 100 milhões; quase toda a população brasileira maior de 18 anos, então, estará imunizada. A única exigência física para isso tudo é que haja vacinas. Sem vacina, todos esses números viram um grande zero.

Os comitês da desgraça permanente ficam por conta quando ouvem essas coisas. Dizem que as somas estão erradas, ou que os números são ilegítimos, ou que você é a favor da cloroquina. Mas não muda nada. Não é assinando manifestos que vão fazer a vacinação parar.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes - J.R. GUZZO


03 DE ABRIL DE 2021
CARTA DA EDITORA

A solução passa por todos nós

O Rio Grande do Sul se transformou em março no epicentro da crise sanitária, com superlotação de UTIs e número recorde de óbitos. Embora a sensação seja de descontrole, muito tem sido feito no Estado nos últimos 12 meses para enfrentar a pandemia.

A repórter Juliana Bublitz teve a missão de levantar as ações realizadas por poder público, iniciativa privada, entidades sem fins lucrativos e universidades na tentativa de reduzir os danos.

Para Juliana, o que mais chamou a atenção durante a apuração foi perceber que, apesar de todos os desafios impostos, das críticas e discussões entre autoridades estaduais e municipais e representantes da sociedade, tem muita gente tentando acertar no Rio Grande do Sul.

- Mesmo que existam divergências sobre como vencer a guerra contra o vírus, há pessoas buscando saídas em todo o Estado. E é inevitável pensar que, se cada um de nós fizesse a sua parte, talvez estivéssemos hoje com menos perdas - diz Juliana.

O resultado desse inventário feito pela repórter está nas páginas 22 a 24.

Em outra frente, Aline Custódio e Letícia Paludo entrevistaram idosos e profissionais da saúde que já receberam a segunda dose das vacinas para captar o sentimento de já estar imunizado, mesmo que isso não signifique, neste momento, vida normal para nenhum deles. Enquanto não houver vacinação em massa, o risco de contágio continuará sendo alto.

De acordo com as repórteres, uma palavra sintetizou o sentimento: esperança. - Uma grata surpresa foi encontrar pessoas com um senso apurado de coletividade, que dão importância ao bem-estar do outro, os sacrifícios que as pessoas têm feito e continuarão a fazer por quem amam, enquanto anseiam por abraços apertados - conta Letícia.

Apesar da importância de todos seguirem mantendo os cuidados essenciais, Aline destaca um desejo forte por parte de cada um dos entrevistados de dias melhores, para que as famílias possam voltar a se reunir.

A reportagem de Aline e Letícia está nas páginas 28 a 30.

DIONE KUHN

sábado, 27 de março de 2021


27 DE MARÇO DE 2021
LYA LUFT

Os bonzinhos

Não, não quero que me julguem boazinha. Nem em criança eu quis ser, embora tanto me exortassem, seja uma menina boazinha, fique quieta, não pergunte tanto, não corra tanto, não sonhe tanto, não desobedeça tanto... Eu achava os bonzinhos chatos, mas também não queria ser das piores.

Não sabia o que queria, e nem sei se hoje, tanto tempo depois, eu sei. Lembro de meu pai, quando lhe perguntávamos: "Pai, você quer alguma coisa?". A resposta era bem-humorada: "Quero o meu sossego".

Talvez seja isso que eu queira, embora há um ano exato em casa, por ser de alto risco, e por querer respeitar essa norma chata mas essencial, o meu sossego, embora tenha sossego demais. Concretamente talvez, mas a cabeça gira em conflitos, perplexidades, intervalos de paz. O que vai ser de nós se as coisas não mudarem depressinha para melhor? Há quem me elogie quando sou mais sincera, há quem julgue que eu devia "espalhar felicidade e esperança"... e lograr meus leitores, meus amigos imaginários, tão presentes na minha vida?

Não creio que otimismo demasiado seja uma boa arma nesta hora, que, com a quantidade de mortos, e a pouca perspectiva concreta, está mais para macabra do que felizinha. O meu recado deve ser entendido como CUIDE-SE.

Desde que comecei a escrever crônica de jornal e artigo de revista, e novamente crônica de jornal, tive o sentimento de que, se tenho voz, devo usá-la para algum fim realista: seja em poemas, seja em prosa, seja falando de amenidades, seja de assuntos como este momento de carnificina, cinismo, insanidade e perplexidade.

Então lá vamos nós, neste abre-e-fecha, faz-não-faz, pode-não-pode, morre-não-morre - mas pode ficar sequelado. Um dos meus mais amados amigos, fraterno, brilhante, generoso, ficou entubado meses, voltou para casa, com cuidadores, mas, me disse um deles outro dia, "nunca mais será o mesmo, aquele que a senhora conheceu não existe mais". E chorei por um morto ainda vivo, tão importante para mim e muitos.

Recebemos ordens contrárias, ou vagas, ou que a toda hora mudam, e assim facilitam a desobediência. Se ele não faz, por que eu tenho de fazer? Por que eu tenho de me privar, de sofrer? Porque de verdade é sofrimento, por exemplo, afastar-se da família. Meus sete netos e netas, mais a esposa de um deles, portanto oito, são uma de minhas maiores alegrias. Dia em que um vem almoçar, outro também, as presenças jovens, bonitas e amorosas, a amizade dos filhos, iluminam a casa, e a vida de alguém para quem família sempre esteve acima de tudo, mesmo quando falhei, bobeei, sei lá.

Está ruim, está chato, está cada vez mais assustador, e assustadoramente impreciso. O jeito é ficar quieto quando se pode, sair e trabalhar com o maior cuidado do mundo, sentir as mãos secas de tanto álcool, ter vontade de pular pela janela e voar nas nuvens, ou como disse uma amiga, praticar salto com vara quando era proibido pisar na areia, mas permitido banho de mar. E não me conformo com a expressão "distanciamento social". Sugere distância entre classes sociais, não é?

Palavras... importam.

LYA LUFT

27 DE MARÇO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Flower power

Em meio ao desespero pandêmico, foi baixado um decreto autorizando supermercados gaúchos a venderem apenas produtos essenciais - o que fosse supérfluo deveria ser coberto por um plástico ou qualquer outra coisa que impedisse o acesso dos fregueses. Entre os supérfluos, estavam equipamentos de áudio e vídeo, eletrodomésticos, presentes, artigos de decoração e flores.

Junte 10 pessoas (hipoteticamente, por favor) e pergunte o que é essencial a elas, e você escutará 10 respostas diferentes. Gestantes, veganos, freiras, nutricionistas, executivos, diabéticos, modelos - cada um elegerá o seu fundamental, seja alimento ou objeto. Isso sem citar o que nos é indispensável ao espírito: amor, fé, amigos, sol, arte - o verdadeiro império dos sentidos, sem os quais nem vale a pena levantar da cama de manhã.

Este longo preâmbulo é para dizer que costumo comprar flores no súper e só não fiquei nervosa com o novo decreto porque dias antes havia investido em orquídeas e elas duram bastante. Não sei como estão as coisas hoje. Os protocolos mudam tão rápido que talvez as floriculturas estejam abertas enquanto você lê este texto, e os supermercados estejam novamente comercializando astromélias, antúrios, margaridas. Não podemos comê-las, não são produtos de limpeza nem contribuem para a higiene pessoal, então seriam essenciais por quê?

Não pergunte a quem prescinde delas. Pergunte a quem, como eu, rastreia com o olhar qualquer ambiente, não em busca de um Van Gogh na parede, mas de um girassol junto à janela. Nasci nos anos 60, fui adolescente nos 70, tenho com o flower power uma relação de paz e amor que vai além das frases de camiseta. Nunca morei em casa, sempre em apartamento, e na falta de um jardim, trazia da rua qualquer pequena espécie que tivesse pétala, caule, cor. 

Quando fui morar sozinha, aos 20 e poucos, o dinheiro era contado, e entre leite e flor, comprava flor, nem que fosse uma violeta. Nunca tive nenhuma inclinação para a botânica, nem muito natureba eu sou, mas não lembro de nenhum momento em que as flores não me tivessem sido essenciais como representação de vida, de apreço ao belo, ao simples, à consciência dos ciclos: murchar e florescer, uma constância. Compreendo perfeitamente a importância delas num cemitério.

Os anos de paz e amor terminaram. Estamos vivendo num mundo doente, raivoso, violento. Nunca foi tão necessário contra-atacar com o alaranjado de uma gérbera, com uma azaleia cor de fúcsia, com o perfume de uma dama da noite, com um lírio branco e sua elegância, com buquês que declaram paixões, que pedem desculpas, que celebram aniversários, com flores valentes que nascem em meio às lajotas das calçadas ou entre as pedras de um muro e que, silenciosamente, imploram: basta.

MARTHA MEDEIROS