sábado, 10 de julho de 2021


10 DE JULHO DE 2021
J.R. GUZZO

A lei para um lado só

Imagine por alguns minutos (só imagine; é melhor não dizer nada a ninguém) que na próxima manifestação de rua em favor do presidente Jair Bolsonaro, da cloroquina e do voto impresso você pendure na sua moto uma bandeirinha dizendo: "Viva o AI-5". (Para dar um "plus a mais", pode colocar junto um retrato do general Costa e Silva). É melhor nem pensar nisso, ou em qualquer coisa parecida.

Você não vai mais ter sossego na vida. O ministro Alexandre de Moraes vai lhe socar em cima um inquérito pela prática de "atos antidemocráticos" e "inconstitucionais", com pleno apoio do Supremo Tribunal Federal, da Câmara e do Senado. Os jornais, as rádios e a televisão vão cair em estado de choque. Os artistas de novela e as celebridades da música popular vão assinar um manifesto exigindo "respeito à democracia".

Agora: que tal, em vez disso, ir para a rua carregando um cartaz com a imagem de Getúlio Vargas e algum salmo em sua glória? Getúlio criou e comandou durante oito anos, entre 1937 e 1945, a pior ditadura que o Brasil já teve. Seu "Estado Novo" prendeu, torturou e exilou pessoas, censurou a imprensa como nenhum outro regime, fechou o Congresso, colocou o Judiciário em modo silencioso, governou por decreto e não fez nenhuma eleição. Mas se você levar a figura do ditador a uma manifestação contra Jair Bolsonaro e a favor da democracia, vai ser recebido com uma salva de palmas.

É o Brasil de hoje. O Estado Novo é pior do que o AI-5, por qualquer metro que se queira usar, mas falar bem de Getúlio é ser "progressista", e falar bem dos militares é ser "fascista" - pior, pode dar cadeia. Segundo o ministro Moraes, a mídia esclarecida e as classes intelectuais, todos empenhados em salvar o Brasil da ditadura, atos "antidemocráticos" e "inconstitucionais" só podem ser cometidos numa direção - a da direita. Na direção contrária, vale qualquer coisa, incluindo louvores à ditadura getulista.

Vale também tocar fogo nas coisas, quebrar vidraças, pichar bancas de jornal, destruir propriedade pública ou privada e jogar pedra na polícia; afinal é "contra Bolsonaro", e se for "contra Bolsonaro" qualquer crime é aceito com aplausos. As "autoridades locais" permitem tudo, ou porque acham certo ou porque têm medo de serem acusadas de "violência policial". O governo federal se cala. Os militares não mexem uma palha para assegurar direitos que vêm sendo cada vez mais desrespeitados - a começar pelos seus.

A lei, no Brasil, transformou-se numa piada grosseira. A democracia também; lugar onde a lei só vale de um lado não é democracia nenhuma.

Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes

J.R. GUZZO

sábado, 3 de julho de 2021


03 DE JULHO DE 2021
CLAUDIA TAJES

O adulto

Um dia você entra em casa e dá de cara com um adulto sentado na sala. Sentado, não: esparramado no sofá. Jogando videogame enquanto assiste à Eurocopa, mexe no computador e manda uma mensagem pelo celular, tudo ao mesmo tempo.

Você se assusta e sai procurando pela casa o menininho que mora com você, o seu filho pequeno. Onde, diabos, a criança se meteu? Foi ele quem deixou o adulto entrar? Pior ainda: o que aquele adulto fez com o seu filho?

Você tenta atrair a atenção do desconhecido para tomar satisfações, e fracassa diante da quantidade de telas abertas diante dele. Já vai chamar a polícia quando percebe, no jeitão do adulto, uma certa semelhança com alguém. E só então cai a ficha - ou chega o Whats, para usar uma expressão mais atual.

O adulto é o seu filho.

O seu bebê. O seu pitoco. O seu gurizinho que, agora mesmo, batia pé e abria a boca quando você combinava uma rara saída na semana. Passou o dia fora e já vai me deixar sozinho de novo?

Nas vezes em que os argumentos da sua mãe venceram (tu sabe que ele fica bem comigo - daqui a pouco nem lembra - vai viver, criatura), você foi e passou a noite se sentindo culpada, um olho nas amigas e outro no celular, só esperando uma desculpa para ligar e ouvir que sim, a criança estava inconsolável, esperneando pela mãe.

Na verdade, ele estava vendo O Clone com a avó, ou comendo o miojo proibidão nos outros dias, ou jogando o Atari herdado do tio. Estava, inclusive, melhor do que você, que a essa altura contava os minutos para buscar seu pequeno, as amigas com cara de quem te viu, quem te vê. Nem de longe lembra aquela sirigaita que, não faz muito, descia até o chão.

À medida que ele crescia, vocês ficaram ainda mais ligados. Fazer o que se a criança era mesmo uma ótima companhia para ir ao cinema, ao shopping, para andar de bicicleta e rir das bobagens que vocês inventavam - algumas delas tão sem graça que irritavam quem estava por perto? Depois, quando ele descobriu o prazer de sair de noite, coube a você a tarefa de ir buscá-lo nas madrugadas. Não que fosse fácil, ainda mais no inverno. Os pais que terceirizam essa tarefa perdem a chance de se divertir com as histórias meio secretas e os comentários mais ou menos velados que os amigos e as amigas vão fazendo, às gargalhadas, enquanto você deixa um por um em casa. Desânimo mesmo, só quando ele pedia para dar uma carona para o Fulano, que morava um pouco mais longe. Em Gravataí.

Você volta para o presente, puxa o celular, senta na poltrona e finge procurar alguma coisa enquanto tenta entender como aquela transformação aconteceu tão rápido. Se você deixou uma criança quando saiu de casa, que tipo de viagem no tempo a transformou em um adulto quase desconhecido? Só então ele percebe a sua presença, dá um oi protocolar e volta para suas telas e vidas. Para uma intimidade que já não lhe pertence.

Ainda bem. Se você chegasse em casa e encontrasse um crianção ranhento, alguma coisa teria dado muito errado nessa história. É nisso que você está pensando quando ele faz um comentário:

- Sabe o menino Neymar? A internet, de zoeira, agora fala adulto Neymar.

Você ri e resolve resgatar a criança perdida, pergunta se o seu adulto quer jantar um miojo hoje. E ele: Deus me livre, prefiro um açaí.

O tempo é o tempo é o tempo.

CLAUDIA TAJES

03 DE JULHO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Modernidade de ocasião

Eu devia ter uns 14 anos e estava numa festa em que meus pais também estavam. Até que tocou uma música. Percebi que era da banda preferida deles. Então olhei para o meio do salão e, ato contínuo, tapei os olhos, abrindo uma fresta entre os dedos para ter certeza: eles estavam dançando. Meu pai, minha mãe. Dois matusaléns beirando os 40 anos, parecendo um casal de travoltas. Que mico. 

Aliás, naquela época não se dizia "que mico". Não lembro a expressão que se usava para a sensação de querer cavar um buraco e sumir. Será que minhas amigas estavam percebendo o "tio" e a "tia" jogando a cabeça para trás e os braços para o alto? Acho que não, elas deviam estar chocadas com os próprios pais, que também combatiam a morte ao som dos Bee Gees. Hoje esse constrangimento adolescente tem nome: cringe.

É uma gíria americana que está sendo utilizada para determinar algo que nos faz sentir vergonha alheia. Crítica sumária aos mais velhos, tipo ver a prima de 26 anos postando uma dancinha do Tik Tok ou sua mãe escrevendo "tipo" em vez de "como".

Mais essa para o museu de grandes novidades. Se avexar com o comportamento de quem nos antecedeu é um costume clássico. O tribunal do mundo e seu júri impiedoso: olha a coitada que ainda mantém um perfil no Face, olha a calça skinny daquela bunduda, olha essa gente que ainda é fã do Harry Potter, olha a millennial viciada em café. Cringe.

Minha filha considera vergonhoso à beça usar palavras em inglês que possuem alternativas em português. E a outra filha desmaia cada vez que retiro um "à beça" do baú. As duas ficaram um tanto preocupadas quando comentei que estava pensando em escrever sobre este assunto.

Ninguém escapa. Você também será cringe por usar a roupa errada, assistir à série errada, defender a causa errada, nascer no ano errado. Refleti cinco minutos sobre a questão e cheguei à conclusão óbvia: na dificuldade de serem menos mordazes, os jovens renovam o vocabulário, reforçam sua superioridade sobre os caquéticos e mantêm a classificação de certo e errado sob seu domínio. Quem for diferente da sua tribo lhes parecerá sem noção e os envergonhará, e suas próprias manias e esquisitices envergonharão os que vierem logo depois. E assim caminha a humanidade, com as gerações indefinidamente ruborizando umas às outras.

Nós, os maduros de 50 e tantos, os coroas de 60+, observamos, a uma distância segura, esses recursos linguísticos pretensamente modernos, porém fadados ao desgaste e à substituição, e às vezes até adotamos a mesma linguagem, pegando uma carona no frescor juvenil. Mas nada como a atemporal liberdade de expressão em suas variadas formas: se a música é boa e o amanhã não existe, é nós na pista, jogando a cabeça para trás e os braços para o alto, pensem o que quiserem.

MARTHA MEDEIROS

03 DE JULHO DE 2021
LYA LUFT

Outros tempos

Depois de três colunas escolhidas a meu pedido pela Redação enquanto eu estava hospitalizada, operada, cuidada e mimada no Moinhos de Vento, consigo hoje voltar a escrever.

Me ocorreu algo real, entre cômico e espantoso aos olhos modernos: certos procedimentos "médicos" de quando existiam poucas vacinas, nada de antibiótico, e psicologia era meio afeto, meio chinelo e muita ameaça.

Lembro de certa vez em que minhas lindas e cheirosas três crianças pegaram piolho na escola, onde mais da metade dos alunos trouxe esse brinde para casa, em quase todas as escolas da cidade.

Só me ocorreu o que minha mãe fez comigo e meu irmão muito tempo atrás: Neocid em pó nas cabecinhas, touca de banho, uma hora brincando por aí, depois banho e várias vezes xampu.

Muitos anos depois, já adultos e pais, num tempo de perfumados xampus antipiolho, meus filhos davam grandes risadas sobre esse assunto dizendo-se sobreviventes.

Fui criança num tempo pré-antibiótico. Febre alta, tomávamos ou mastigávamos uns tabletes rosa grandes, cujo nome esqueci. Se nada melhorava... injeção.

Tínhamos medo atroz de médico, que significava agulha e dor. A maior ameaça: "Olha que vou chamar o doutor Arthur, e ele vem com uma injeção deeesse tamanho".

O bondoso e paciente médico que fizera os partos de nossa mãe e me tratou até meu casamento levava culpa de mau...

Hoje os consultórios de pediatras são claros, alegres, decorados, nada de ameaças com injeções "desse tamanho".

Proximidade de Natal era em parte alegria, em parte, para as arteiras como eu, ameaça de que o Papai Noel traria um grande feixe de varas que minha mãe saberia manejar.

Nenhum de nós ficou louco ou morreu por essas loucuras, mas que não era fácil, não era.

LYA LUFT 


03 DE JULHO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

REFLEXÕES SOBRE A SAÚDE

INFELIZMENTE, OS SISTEMAS ESTÃO MAIS PREPARADOS PARA AS DOENÇAS DO PASSADO, NÃO PARA LIDAR COM AQUELAS DO PRESENTE OU DO FUTURO

Saúde não é apenas a vida sem doença. O conceito de doença não é simples como parece, porque faz parte de um contexto social em que os médicos criam teorias, descrevem sinais e sintomas e métodos de tratamento; os pacientes procuram explicações e soluções para os males dos quais padecem; e as autoridades estudam políticas para reduzir o impacto na economia e na saúde pública.

A história da medicina mostra que a intersecção desses interesses tem-se alterado no decorrer dos séculos.

Numa análise das publicações dos primeiros números da revista The New England Journal of Medicine, um grupo de Harvard reuniu artigos publicados há 200 anos sobre entidades estranhas como apoplexia, neurastenia, cegueira e fraturas ósseas em pessoas que receberam o impacto do vento de balas de canhão que explodiram longe delas. Há descrições de morte por combustão espontânea em bebedores de conhaque, por ingestão de água gelada ou por febres de vários tipos em pessoas que nunca tiveram febre.

Em 1912, um editorial da revista defende a eugenia: "Talvez em 1993, quando todas as doenças passíveis de prevenção tiverem sido erradicadas, quando a natureza e a cura do câncer tiverem sido descobertas e quando medidas eugênicas tiverem colaborado com a evolução para eliminar os incapazes, nossos sucessores olharão para estas páginas com ar de superioridade".

Ainda em 1912, a revista publicou as primeiras preocupações com o surgimento de "pessoas com hábitos de vida extremamente indolentes, que não andam mais do que os passos necessários para ir do escritório ao elevador, do elevador para a sala de jantar ou para o quarto e de volta para o automóvel".

Durante o século 20, enfermidades cardiovasculares, câncer, diabetes e outras condições crônicas se tornaram prevalentes, embora ainda emergissem enfermidades infecciosas: encefalite equina, kuru, ebola, aids.

Em 2005, foi levantada a hipótese de que a epidemia de obesidade prevista em 1912 reduzirá a expectativa de vida da população americana, pela primeira vez, nos últimos 100 anos.

Qualquer tentativa de definir doença precisa levar em conta a complexidade.

Doenças afetam determinados grupos, estão associadas a fatores de risco e provocam sinais e sintomas característicos. Elas geram interesses que envolvem pacientes, profissionais de saúde e as instituições em que trabalham e as fontes pagadoras.

Mais do que um problema pessoal, doença é um processo antes de tudo social. Enfermidades novas estão associadas a causas novas (acidentes de moto, poluição), novos comportamentos (fumo, abuso de drogas) e mesmo à alteração da história natural por meio do tratamento (diabetes, aids, infarto).

Mudanças sociais e ambientais aumentaram a prevalência de enfermidades raras no passado: infarto do miocárdio, câncer de pulmão, obesidade grave.

Novos critérios e métodos de diagnóstico permitiram evidenciar outras, que não eram identificadas: depressão, síndrome metabólica.

Transformações na sociedade redefinem o que é doença. Homossexualidade e masturbação deixaram de sê-lo. Fibromialgia e síndrome da fadiga crônica passaram a ser consideradas, graças à pressão das associações de pacientes.

Apesar dessas modificações, uma característica se mantém desde os primórdios da humanidade: a influência nefasta das disparidades sociais no acesso aos serviços de saúde, fenômeno ubíquo em todas as sociedades.

Doenças são processos dinâmicos que coevoluem com a Medicina. Quando as vacinas e os antibióticos começaram a combater as infecções, aumentou a incidência de ataques cardíacos, derrames cerebrais e diabetes.

Assim que tivermos sucesso no controle dessas enfermidades, haverá aumento na prevalência dos transtornos neuropsiquiátricos, desafio que a medicina está despreparada para enfrentar.

Infelizmente, os sistemas de saúde estão mais preparados para as doenças do passado, não para lidar com aquelas do presente ou do futuro.

DRAUZIO VARELLA

03 DE JULHO DE 2021
MARSHALL

OS HIPÓCRITAS

Hypokrités junta o prefixo hypó (sob) com o substantivo krités (o que julga ou avalia) para formar a palavra que designava, na Grécia clássica, o ator, e, por vezes, o orador, que entrega orações; metaforicamente, poderia referir quem dissimula. Em Atenas, os atores se apresentavam em concursos, onde eram julgados por juízes, o que pode ter levado à formação de uma palavra nova para uma nova profissão, atores em tragédias e comédias, algo que surge ao final do século VI e se desenvolve ao longo do século V a.C.. Nem precisamos levantar interrogações para entender para onde essa palavra nos leva, no encontro entre semântica e história, significados passados e presentes nada dadivosos.

É, todavia, injusto associarmos atores (e atrizes) ao cacoete da hipocrisia. Ao contrário, o teatro serve-se da representação (mimese) para analisar de modo inteligente, com imagens, falas e ações, o mundo em que vivemos, a condição humana, nossas encruzilhadas, opções e atitudes, e é, por isso mesmo, muito ético e bastante político, em sua origem grega e ao longo dos tempos. Ao contrário do que sugere a etimologia, precisamos de mais atores para combater a persistente e ora predominante hipocrisia. E precisamos que os hipócritas atuais se vejam em cena ou nas telas, investigados e desnudados, para que se perceba o imenso ridículo de suas ações, e para bem examinarmos a textura de farsas com que se forjam as falsidades do poder.

Os campeões da hipocrisia já ganharam o palco que merecem, manifestoches na Marquês do Sapucaí (2018). Mas onde estão, agora que o ex-juiz manipulador foi desmascarado, e passa merecida vergonha no Brasil e no Exterior? Como se olham no espelho, agora que o pretenso mito evidenciou-se não apenas como responsável pela maior catástrofe da história nacional, mas, ademais, preside a mais sórdida corrupção de que se tem notícia, em que se negocia a vida humana por US$ 1? Há ainda, e sempre haverá, muita farsa por desabar. Sobretudo, queremos saber: que tramas impuras mantêm no governo um malfeitor que há muito deveria estar deposto e preso? Que serão, senão hipócritas, as autoridades que prevaricam, e se omitem enquanto tombamos aos milhares, de Norte a Sul, por força da ignorância maligna de um líder insensato e odioso?

No canto 23 do Inferno, Dante põe-se com Virgílio diante de demônios e gentes hipócritas, que trajam "manto eterno, fatigante e rico", "chumbo dentro, ouro fora". Na via obscura, aparecem-lhe "frades Gaudentes", famosos por vestirem-se com fausto, procedentes de Bologna, onde já ouviram "os vícios decantar dos renegados/ impostores e maus, pais da mentira". As palavras dos hipócritas amam ornar-se com o nome deus e versículos bíblicos; não são religiosos, nem têm qualquer moralidade, são apenas oportunistas que se servem de farsas para camuflar sua ignorância e malícia, e saciar ambições iníquas, enquanto saqueiam e destroem a pátria.

O teatro e certas palavras são bons antídotos, mas urgem ações verdadeiras, pois estamos cansados de tanta hipocrisia, de tanto mal. E queremos que o Brasil renasça feliz e livre.

FRANCISCO MARSHALL

03 DE JULHO DE 2021
LEANDRO

EU FAREI FALTA?

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

A frase do título é perigosa. Tenho inimigos e os mais empenhados no ódio chegam até a ler o título do que eu escrevo. Já imagino que responderiam com nenhuma ou outro dito irônico. Ficarão surpresos: a crônica, que será lida até o fim por olhares mais benevolentes, concorda com meus detratores.

A pergunta é existencial. Eu a fiz, uma vez, vendo uma excelente palestra do meu amigo Mario Sergio Cortella. Depois, li o livro dele: Viver em Paz para Morrer em Paz, se Você não Existisse, que Falta Faria? (ed. Planeta). Como sempre, o filósofo traz grandes ideias, citações e perguntas inquietantes. Aprendo muito.

Não sintetizarei o livro do londrinense. Pensarei em outra direção. Fernando Pessoa, tratando do tema do suicídio, fez o poema Se te Queres Matar. É um texto brilhante que procura estimular o amor pela vida com... diminuição da importância do viver. No fundo, ele quer diminuir o foco de importância que pode engatilhar desilusão. Em outras palavras: pode ser que, por vezes, a tristeza diante da avaliação da vida decorra de um sentido que deveríamos ser mais extraordinários, com feitos intensos e uma alegria quase de Instagram. O poema desarma, pela ironia, o sentido de importância que pode preexistir à decepção. Explico-me: eu me considero insubstituível? Minha morte lançaria o mundo no caos e na dor? Bem, isso nada diz do momento atual. O luto futuro por mim não me alegra hoje e nada explica do momento que vivo. O argumento é fraco para que eu me anime. Mais: se pessoas do porte de um Einstein ou de um Gandhi morreram e tudo seguiu normalmente, seria excessiva presunção imaginar que eu, menos do que eles (muito menos), provocaria uma comoção superior. Revisitemos Pessoa: "Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... Sem ti correrá tudo sem ti. Talvez seja pior para outros existires que matares-te... Talvez peses mais durando, que deixando de durar...".

Já ouvi alguém irritado aí: "Leandro, eu sustento pessoas, faço coisas importantes, eu farei falta". Sim, minha querida leitora. Sim, meu estimado leitor. Como eu, seu passamento será sentido por aqueles que: a) dependem do seu trabalho; b) contam com sua proteção; c) têm alguma estima por você. No fim do mês, sua ausência será muito forte. Os boletos por vencer serão suas maiores carpideiras. Claro, se você pode, um bom seguro de vida vai diminuir a dor de todos. Um extraordinário seguro vai transformar lágrimas em sorrisos. E, mesmo se não houver heranças, as coisas se ajeitam em alguns meses. Chico foi mais direto e cantou que mesmo o malandro é substituível e morre sozinho: "Vai terminar moribundo/ Com um pouco de paciência/ No fim da fila do fundo/ Da previdência/ Parte tranquilo, ó irmão/ Descansa na paz de Deus/ Deixaste casa e pensão/ Só para os teus/ A criançada chorando/ Tua mulher vai suar/ Pra botar outro malandro / No teu lugar".

E a parte afetiva? O pior político que você possa imaginar, o mais execrável homem público do presente ou do passado, teve quem o amasse. Há uma mãe zelosa, uma esposa dedicada, filhos diletos: até os canalhas são pranteados por alguém. Lembre-se: antes de alguém ser filho da p... aquele ser foi filho. Sim, haverá pranto por algum tempo. Pessoas boas, porventura, despertem um sentimento intenso de falta por muitos anos, porém, fato óbvio: aquele que sente a dor continua vivendo, comendo, tomando banho e trabalhando. Nenhuma falta parece impedir a existência dos enlutados. Amei meu pai e minha mãe com zelo. Senti a morte deles como uma catástrofe. Continuei trabalhando, escrevendo, estudando, amando e me irritando com o mundo. O que isso quer dizer: minha vida seguiu, como a de milhões de órfãos. Não existem lágrimas pela sua trisavó. Desaparecerão por nós, igualmente.

Sim, eu faria falta e... ela seria superada. Minha ausência no futuro não responde à pergunta do momento em curso. Talvez o melhor seja pensar em que falta a vida me faria. Se eu conseguir responder a isso, posso pensar em como viver, como andar com protagonismo. No fundo, a questão principal é sobre a vida em mim agora, não o que eu provocarei quando ela tiver se esvaído. Como viver, como enfrentar problemas, como ser uma pessoa inteira vivo e não uma ausência pungente na morte. É a pergunta do príncipe Hamlet: "Será que é mais nobre sofrer na alma as pedradas e os flechaços da cruel fortuna ou pegar em armas e enfrentar este mar de sofrimentos e assim pôr-lhes um termo?" (Hamlet. Ato 3, cena 1. tradução de Elvio Funck. Movimento-Edunisc). Para quem se interessa pela dúvida do príncipe, ele também reclama na "morosidade da lei e a insolência dos que têm cargos".

Que intensidade darei a minha resposta ao Hamlet? Que vida plena tentarei levar, indiferente, como creio, a quaisquer faltas que eu possa despertar quando partir? Da minha parte, sinceramente, quero que me esqueçam por completo no futuro. Não me interessa o vazio futuro, apego-me à plenitude presente. Quero fazer falta hoje, no inverno da nossa desesperança, quero tomar a fundo a taça da vida e o afeto de quem é importante. Quero ler agora, ser agora, amar enquanto estou vivo. Depois? Irrelevante: não escutarei mais choros ou risadas.

Leiam o livro do Cortella, assistam às palestras dele sobre o tema, aprofundem o Hamlet e, entre uma coisa e outra, pensem em quanta vida existe hoje. É mais útil do que a falta futura. A vida de agora precisa de esperança.

LEANDRO KARNAL

03 DE JULHO DE 2021
DAVID COIMBRA

É preciso dividir a vida

Já vi crepúsculos. Repare que sou de uma cidade que se orgulha do seu pôr do sol e, de fato, é bem bonito o entardecer às margens do Guaíba. Além disso, vi o sol se deitar atrás dos montes e em frente ao mar, o que também é belo. Mas houve um dia em que um crepúsculo me encantou mais do que todos. Eu estava em Brookline, onde morava, fazendo coisas na rua. Decidi, então, tomar um café em um lugar do qual gostava muito, chamado Allium. Tudo lá era bom, tudo, mas a mufaletta era imbatível.

Assim, pensando nas delícias da mufaletta, atravessei a primeira faixa da avenida e parei no canteiro, esperando que o sinal abrisse para mim. Aí, olhei para o lado, para o horizonte e lá estava ele: o sol. Imenso, cor de laranja, colorindo o mundo em diversos tons de púrpura e amarelo. "Oh!", exclamei, e prendi a respiração. Notei que, ao meu lado, no canteiro, as pessoas sacavam de seus celulares para filmar a cena. Peguei do meu também. Mas não para filmar. Liguei para a Marcinha:

- Tu estás na rua?

- Estou.

- Então vem aqui pra Beacon, na frente do Allium. Tu precisas ver esse pôr de sol!

- Mas eu acho que posso ver daqui.

- Não, não, onde estou é o melhor ângulo. Está incrível. Vem pra cá depressa!

E ela veio. Veio rápido, andava por perto. Parou na esquina e chamei:

- Aqui! Aqui!

O sinal estava fechado. Enquanto ela esperava abrir, o planeta continuou girando, como faz há 4 bilhões de anos, e o sol foi se escondendo na linha do horizonte. Quando ela enfim chegou, metade do corpo do sol já estava lá embaixo, iluminando o Japão.

- Que lindo! - ela disse.

- Mas estava muito mais lindo antes - respondi. - Pena que tu perdeu...

Lembro bem desse pôr do sol, mas não exatamente por causa da sua beleza, e sim porque chamei a Marcinha para vê-lo.

Por que fiz isso?

Porque precisava de uma testemunha daquele momento. Precisava compartilhar aquela beleza para que, mais tarde, alguém lembrasse dela junto comigo.

É o que torna a vida real. Se você vive algo maravilhoso e guarda só para si, se ninguém sabe daquela experiência, ela começa a desaparecer. Logo, até sua própria memória passa a duvidar de que aquilo foi real.

As redes sociais cumprem um pouco essa tarefa. Quando as pessoas postam fotos dos seus pratos de comida, elas estão, na verdade, buscando testemunhas: vejam como foi bom o meu almoço. Claro que o melhor seria partilhar a refeição com outras pessoas, para que, mais tarde, elas pudessem comentar não apenas a aparência do prato, mas o sabor. Em todo caso, as redes sociais conseguem atenuar um pouco a solidão.

Um pouco.

Porque o ideal é dividir a vida com outras pessoas. Veja como isso é bonito: quanto menos egoísta você for, mais verdadeira será a sua existência. Caso contrário, mesmo o mais belo pôr de sol vai se apagando, vai ficando sem sentido e sem cor. Até parecer que nunca aconteceu.

DAVID COIMBRA

03 DE JULHO DE 2021
J.J.CAMARGO

QUE MÉDICO PRETENDEMOS FORMAR?

O caráter é o nosso destino. (Heráclito, 500 a.C.)

Que grande e difícil tarefa é formar um médico! Não porque não tenhamos o que ensinar. Pelo contrário, nunca dispusemos de tanta informação, mérito também dos nossos antecessores que abriram trilhas onde não havia nada, essas que o desavisado percorre agora com um ar de soberba de quem, por falta de noção, se comporta como se a chegada dele ao umbral da medicina fosse o marco zero dessa profissão ao mesmo tempo sofrida e maravilhosa.

Ensinar história da medicina aos mais jovens tem a função de alertar que a fortaleza de ciência que nos protege, sem todavia eliminar o medo atávico de errar, foi erigida - uma novidade de cada vez - com trabalho, incerteza, suor e culpa de muitas cabeças que desde sempre só queriam acertar.

Também por isso, quando vejo os médicos da modernidade dando aulas referendadas por protocolos de medicina baseada em evidências, não consigo deixar de pensar no quanto de esforço humano foi dispendido na construção dessas evidências, numa época em que cérebro, intuição, bom senso e zelo eram as únicas armas disponíveis.

Claro que tenho consciência do peso dessa observação e do risco que corro de ser transferido para a galeria dos jurássicos, aqueles cujas fotos são expostas na parede de museus médicos, a serem visitados por velhos saudosistas e jovens pesquisadores em preparação de alguma tese de doutorado. Então, preciso confessar que, tendo ultrapassado a fase da vida em que me esforçava em ser popular, estou só e genuinamente preocupado em oferecer aos jovens em formação a chance de errarem menos e, por consequência, de serem melhores do que nós. Ou pelo menos de não repetirem, por falta de aviso, os equívocos grosseiros que a nossa geração cometeu.

Por outro lado, estou convencido de que treinar um cirurgião é ainda mais difícil, porque o tratamento que ele oferece envolve uma agressão física como preço do resgate da vida que o paciente considerava normal. Se alguém ainda não se deu conta da importância disso, significa que, além de jamais ter sido operado (sorte dele), nunca se aproximou, de fato, dos sentimentos de quem está assombrado com a ideia da morte, rondando sempre por perto, enquanto uma equipe de estranhos mascarados se prepara para fatiá-lo com lâminas afiadas sob o comando de um desconhecido que pode estar de mau humor. Oferecer a melhor técnica possível, sem nenhuma preocupação com empatia e solidariedade, representa apenas uma das metades do melhor que podemos ser.

Na formação do cirurgião que pretenda ser completo, se exige muito mais do que isso. E três requisitos são indispensáveis para que se alcance a completude, que enobrece quem alcança e fascina quem dela se aproxima:

1) Que adore operar, porque só operando muito serão melhores técnicos, pois entre pessoas normais, as que fazem mais acabam fazendo melhor.

2) Que se mantenha atualizado e disfarce a irritação ao ouvir uma novidade que ele devia ter descoberto antes.

3) E, muito importante, que goste de gente, e sinta prazer de ajudar.

Faz enorme diferença perceber que, enquanto as duas primeiras exigências se pode satisfazer por qualificação e treinamento, gostar ou não de gente é um atributo do caráter das pessoas, e isso não se consegue ensinar.

Se um jovem tiver dúvida sobre a importância do último quesito, uma sugestão: pergunte a um clínico experiente como ele seleciona o cirurgião para quem encaminhar os seus pacientes. Como, invariavelmente entre cirurgiões tecnicamente qualificados, ele optará pelo mais carinhoso e empático, caberá ao principiante construir a sua imagem profissional de acordo com sua intenção de atrair mais ou menos pacientes. E, na contramão, não adiantará se queixar de azar profissional, essa herança amarga que é entregue como retribuição a essa triste mistura de impessoalidade e desatenção.

A proliferação de técnicos qualificados tornou o mercado mais competitivo, o que exige que o cirurgião seja mais do que um técnico que corta e costura, porque a sala de cirurgia é muito mais do que um ateliê; porque, ao contrário daquele, no nosso o manequim tem sentimentos, família, medo e esperança. Ou seja, é um de nós, que adoeceu.

J.J.CAMARGO

03 DE JULHO DE 2021
MONJA COEN

MEMÓRIAS ANCESTRAIS

O que é a mente humana? Você já parou para investigar como funciona a sua mente? É uma investigação interior, profunda, sutil, íntima.

Ensinamentos antigos afirmam que temos muitos níveis de consciência, que inclusive incluem o Inconsciente Coletivo ensinado e explicado por Carl Gustav Jung. Por exemplo, cada um dos nossos órgãos dos sentidos tem a sua consciência correspondente - logo cinco consciências, gerenciadas por uma sexta consciência.

Além dessas seis, há outras três: uma delas, a sétima, leva as informações que entram pelas cinco consciências e organizadas pela sexta até uma grande memória, chamada a oitava consciência. Esta é como um grande armazém de tudo que já passamos, bem como toda nossa ancestralidade. Temos memórias de medo, de repulsa, de atração, relacionadas a passado tão remoto que nem saberíamos explicar por que nos comportamos de determinadas maneiras. Talvez seja semelhante ao Inconsciente Coletivo de Jung, onde o inconsciente individual também atua anexando novas memórias e respondendo às situações atuais a partir de memórias anteriores. A sétima consciência, além de levar as informações das seis consciências para a grande memória, é quem traz informações que nos levam a responder ao mundo.

Na oitava consciência, carregamos a memória da espécie humana, com lutas, conquistas, sucessos e fracassos. Tudo nos habita e nos influencia. E há também a nona consciência, que talvez Jung chamasse de Self, que o Zen chama do nosso "Eu Verdadeiro" ou "Natureza Buda". Acessar essa natureza desperta, iluminada, de grande pureza, amorosidade, sabedoria, compaixão, ternura e harmonia é o Caminho Zen.

Há um sistema complexo que determina nossos julgamentos, sentimentos, atrações e aversões. Como perceber e nos libertar? Zazen é um dos portais. Para nós, o portal principal. A entrada da frente. Algumas pessoas chegam ao portal e não adentram. É preciso coragem e determinação. Vamos enfrentar nossos medos internos, nossas insuficiências, nossa sombra. Entretanto, lembre-se, se há sombra é por haver luz. Procuremos por essa luz. Esforço, determinação, resiliência, ética, entrega, doação, paciência, meditação e sabedoria são elementos necessários. E o não-medo.

Hoje há grupos de estudo sobre Consciência Sistêmica, uma prática, um estudo, uma meditação, uma terapia e uma forma de nos libertarmos do carma prejudicial desde o passado mais distante - para nos tornarmos mais leves, suaves, amorosos, compassivos e sábios. Carregamos nas células memórias belas e terríveis, quer como vítimas, quer como vitimadores. Reconhecê-las é nosso dever. Compreender as causas e condições do passado distante que ficou impresso na oitava consciência - esta que, como as outras, é tanto coletiva quando individual.

Quando acessamos essas memórias, podemos nos arrepender de faltas cometidas pelo nosso grupo e compreender até mesmo os abusos sofridos por nossos ancestrais, sem manter rancores, tristezas, raivas, vinganças. Sem repetir vícios, aversões e apegos. É possível voltar para o agora infinito, onde todo passado e todo futuro gira e se manifesta.

É nosso direito fazer escolhas. Estas podem ser diferentes da de nossos ancestrais. Cabe a nós abrir caminhos de encontro amoroso, de respeito terno, de compreensão clara, de solidariedade, de resgate e de restauração da tessitura social.

Mãos em prece

MONJA COEN

03 DE JULHO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

SURDEZ PERIGOSA

A surdez humana é um acidente fisiológico, tem causas diversas e pode afetar qualquer um, sem nada destruir. A surdez política, porém, é um crime histórico que permanece durante anos, afeta várias gerações e pode perpetuar-se, até.

Digo isto em função do crime histórico que, talvez sem perceber, cometeu a Assembleia Legislativa, dias atrás, ao aprovar o projeto de lei 260, que permite a venda e utilização de agrotóxicos proibidos nos próprios países de origem. Por 37 a 15 votos, a maioria de nossos deputados revelou surdez profunda e não ouviu as advertências de médicos, agrônomos e agricultores (feitas em audiência pública) sobre o perigo de liberar pesticidas proibidos até nos países onde se desenvolveram.

Tudo tem um começo e a surdez teve início no governador Eduardo Leite, autor do projeto de lei que a maioria do Legislativo aprovou. Na audiência pública, apenas um produtor rural manifestou-se pela liberação dos pesticidas proibidos, mesmo assim dizendo-se preocupado com seus efeitos. Outras duas dezenas (de especialistas em saúde até agrônomos) apontaram os malefícios e perigos, tanto na ingestão de alimentos quanto na lavoura em si.

Ouvir e cotejar argumentos em audiência pública é a forma profunda que leva a evitar erros e, assim, é o instrumento a guiar quem nos governa. Busca evitar que as leis futuras nos levem a um pântano sem fim, no qual nos afundemos por ignorar o perigo.

A lei gaúcha vedando o uso de agrotóxicos proibidos na própria origem é de 1982 e foi alterada, agora, sob o pretexto de nos equiparar aos demais Estados. Assim, deixamos de ser "modelo a toda terra", como diz o Hino Rio-Grandense e passamos a meros papagaios repetidores de perigosos sons alheios.

Na área federal, o perigo se transforma em absurdo ético-moral, como mostra a CPI do Senado em torno do desdém no combate à covid-19. Surge agora um fato novo e aterrador - a pandemia serviu à corrupção, mostrando que o presidente Bolsonaro nada fez para impedir um suborno bilionário na compra da vacina indiana, sobre o qual conheceu as suspeitas por antecipação.

O presidente não utiliza máscara protetora em aglomeração pública (e já disse que ela "irrita e inibe o usuário") mas, agora, terá caído a máscara de honestidade usada na campanha eleitoral?

Assim disse o deputado federal Luis Miranda, um ex-bolsonarista, hoje decepcionado com o antigo líder, que nada fez em torno da suspeita que levou ao presidente. Aí, a surdez não triunfou.

FLÁVIO TAVARES

03 DE JULHO DE 2021
MARCELO RECH

Contra a desinformação pandêmica

Como nunca antes, jornalismo e ciência médica estiveram tão entrelaçados. Não é coincidência que jornalismo e medicina - duas atividades tão distintas - tenham reforçado na pandemia seus laços de dependência em favor da informação correta, da prevenção e da busca de menor sofrimento para a sociedade.

Além da falta de horário e da pressão constante, as profissões de jornalistas e de médicos compartilham uma série de similaridades, entre elas o fato de que navegam por mares de incógnitas mas têm por finalidade o acerto. Nem sempre diagnósticos de jornalistas e médicos estão corretos. Só que nenhum deles vive do erro. A reputação de jornalistas e médicos é o divisor de águas no sucesso das carreiras. Assim como na medicina, no jornalismo há centros de referência e outros nem tanto. Até o fato de se considerar boa prática se recorrer a outras opiniões é mais uma semelhança entre a turma de jaleco com a do bloco e da caneta.

Dependendo da cultura local, médicos e jornalistas têm formações e hábitos peculiares, mas são universais alguns conceitos de ética, como a regra primária de que não se pode mentir ou enganar pacientes e público. Há diferenças marcantes, contudo. Nem sempre é cristalino se identificar quem exerce jornalismo profissional daqueles que, na realidade, atuam no ramo da propaganda e das relações públicas - duas nobres atividades, mas que exigem transparência absoluta no propósito de suas mensagens. No Brasil, há um método simples para saber se um veículo ou jornalista faz jornalismo independente: se ele foi atacado durante anos pela esquerda no poder e hoje é hostilizado pela extrema-direita no governo, muito provavelmente ele se encaixa na definição de independência.

Embora trabalhem sem tréguas para que vidas sejam salvas, médicos e jornalistas também estão no centro de controvérsias nesta era de desinformação pandêmica. Muito justificadamente, os brasileiros aplaudem a dedicação dos profissionais de saúde, mas agora a 10ª edição da pesquisa de confiança na imprensa do Reuters Institute, ligado à Universidade de Oxford, também reconheceu o papel crucial do jornalismo. Realizada com 92 mil usuários de notícias online em 44 países, a pesquisa apurou que 44% dos entrevistados confiam na imprensa, seis pontos a mais do que na edição anterior, contra 24% dos que acreditam em notícias nas redes sociais. O Reuters Institute apontou ainda que o Brasil é o sétimo país em que mais se confia na imprensa - 54% de confiança, 14 pontos percentuais acima da Colômbia, segundo lugar na América Latina.

No fim, a pandemia acabou destapando o que devia ser uma obviedade. Na hora da doença, procure um médico para se tratar. E um veículo de comunicação profissional para se informar.

MARCELO RECH

03 DE JULHO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

VOTO DE CONFIANÇA

Foi adiada para os próximos dias a apreciação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que prevê o voto eletrônico com recibo impresso no país. Mesmo que a ideia passe na comissão especial da Câmara em que é analisada, tende a ser enterrada pelos deputados, após acordo fechado entre líderes de 11 partidos para que as siglas, que representam cerca de dois terços do Congresso, se posicionem contrariamente à ideia. Trata-se de uma postura sensata dos parlamentares por uma série de motivos. Entre eles, o tempo exíguo para cumprir todas as etapas que exigiria a implementação do chamado voto impresso até a eleição de 2022, a insegurança jurídica que criaria e os altos custos.

Mas a principal razão é que seria uma iniciativa que viria para supostamente prevenir um problema que, na realidade, inexiste. O país usa as urnas eletrônicas desde 1996 e, nesse período, jamais surgiu uma denúncia consistente de fraude. Nesses últimos anos, o resultado sempre expressou, de forma cristalina, a livre vontade do eleitor e permitiu a alternância no poder. Pelo contrário, a adoção da urna eletrônica tornou o Brasil referência no mundo em lisura dos pleitos, segurança e agilidade das apurações. Foi uma inovação concebida exatamente para encerrar de vez episódios de irregularidades, como os que existiam com o voto impresso. Tanto o equipamento quanto o software passam por uma série de testes de segurança, há processos auditáveis que inclusive podem ser conferidos pelos partidos a cada eleição e não existe conexão da máquina com a internet, o que evita a ação de hackers.

Também há, neste momento, uma contaminação do debate pela polarização política e ideológica que desgraça o país. Essa discussão açodada apenas cria uma armadilha que busca causar desconfiança e tumulto. Transparece existir uma intenção maior de procurar uma desculpa para contestar um possível revés e gerar confusão do que um interesse verdadeiro em aperfeiçoar o processo.

Não há razão para se deixar de debater e, no futuro, se necessário, incorporar novidades ou alterações que reforcem a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro e aprimorem os meios de auditagem. Inclusive com alguma forma de impressão, se preciso. Mas tem de ser, necessariamente, uma discussão racional e baseada em fatos, e não em fantasias. O custo para implantar o voto impresso é calculado em cerca de R$ 2 bilhões. É alto e, neste momento, existem várias outras prioridades nas quais esses recursos seriam melhor alocados. Teria de ser feita uma licitação para a aquisição de equipamentos, que devem ser customizados. Uma corrida contra o tempo. 

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) alerta que, ao mínimo boato, haveria um incentivo a pedidos de recontagem, com o risco de uma enxurrada de ações judiciais, causando uma balbúrdia desnecessária, movida apenas pela motivação de questionar uma derrota. A contagem manual, pelo contrário, é historicamente mais sujeita a manipulações do que o sistema eletrônico. A palavra final, de maneira democrática, será do Congresso. Mas a forma como essa alteração é proposta mais cria estorvos e riscos do que possíveis benefícios.

OPINIÃO DA RBS

03 DE JULHO DE 2021
+ ECONOMIA

Venda de combustíveis por delivery inquieta postos

Uma cena do futuro próximo pode ser mais ou menos assim: os vizinhos se cotizam e pedem abastecimento dos carros do condomínio por delivery. Hoje inimaginável, a venda de combustíveis em telentrega proposta pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), terá audiência pública na próxima quarta-feira, depois de um mês e meio de consultas. É mais uma das mudanças profundas pelas quais passa esse mercado, que acabou de se tornar 100% privado.

- Há uma ânsia de disrupção, de romper com tudo, mas algumas propostas que envolvem segurança deveriam ser mais debatidas, com propostas mais organizadas - reclama João Carlos Dal?Aqua, presidente do Sulpetro, o sindicato estadual dos postos de combustíveis.

A proposta da ANP prevê que a telentrega tenha de ser atrelada a um posto, para ter a quem responsabilizar em caso de qualquer problema. Além dos aspectos relacionados à segurança - o armazenamento de combustíveis é superregulado nos postos por envolver líquidos altamente inflamáveis -, Dal?Aqua pondera que esse tipo de venda estará muito exposto a falsificação e sonegação:

- Vai acabar podendo desovar produto roubado ou com algum outro problema com mais facilidade. A ANP já não consegue fiscalizar os pontos fixos, imagina os móveis. Em um país com fiscalização estruturada, até poderia funcionar, mas aqui vai virar gandaia.

As bases para a proposta da ANP, que inclui outras mudanças, são a Lei da Liberdade Econômica, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em setembro de 2019, e a resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) de dezembro do mesmo ano. A audiência pública será realizada das 10h às 14h da próxima quarta-feira e pode ser acompanhada.

foi o total da entrada líquida (ingressos menos saídas) de recursos estrangeiros no mercado financeiro no primeiro semestre. É um valor recorde para o período, obtido com ajuda da elevação do juro básico pelo Banco Central, que garante maiores ganhos para os investidores que trocam dólares por reais.

MARTA SFREDO

03 DE JULHO DE 2021
CHAMOU ATENÇÃO

Mais flores e menos fome

Luís Carlos Corrêa, 33 anos, natural de Dom Pedrito, deixou a esposa e os quatro filhos em Osório, para buscar trabalho. Acabou na rua, tendo as sinaleiras como principal fonte de renda. E foi em uma delas, enquanto segurava uma placa com os dizeres "Estou com fome, me ajude", que conheceu o estudante Lorenzo Dovera, 24 anos, do bairro Medianeira. Desse encontro, em 8 de maio, teve início o projeto Troque a Fome por Flor.

O estudante é formando no curso de Administração Pública e Social pela UFRGS.

- Eu queria sair da teoria e ver na prática como tudo acontecia. Foi quando eu e minha mãe vimos as placas "Estou com fome". Então, um dia antes do Dia das Mães, nós tivemos a ideia. Por que não trocar essa placa por outra que dê mais dignidade? - conta Lorenzo.

A escolha das mudas foi para aproveitar a data, quando é comum as pessoas presentearem suas mães com flores. E deu certo. Aos, agora floristas, que participam do projeto foram entregues plantas e outra placa, desta vez, com os dizeres: "Troque a Fome por Flor".

A prioridade é atender pessoas em situação de rua que estão acessando algum tipo de política pública do município.

Em dois meses, criou-se uma rede de colaboração. Na Ceasa, a cada sete caixas com oito mudas, o local dá mais três caixas para o projeto. Pessoas doam caixas de leite higienizadas, materiais escolares e revistas usadas para fazer o acabamento dos cachepôs.

Produção: Émerson Santos

Apoio

O projeto busca o patrocínio de floriculturas que queiram doar as mudas. Para fazer contato, acesse a páginas do Instagram e do Facebook @troqueafomeporflor ou ainda o WhatsApp (51) 98160-6528

Também é possível ajudar com materiais escolares ou doações financeiras. Para colaborar, envie qualquer valor para a chave PIX troqueafomeporflor@ gmail.com


03 DE JULHO DE 2021
INFORME ESPECIAL

O anúncio de Eduardo Leite e a verdadeira integridade

Antes de entrar na argumentação central do texto, importante deixar claro que só comento esse assunto porque o governador Eduardo Leite trouxe-o à tona, em rede nacional. Eu e boa parte dos gaúchos já sabíamos que ele é gay. E respeitamos a sua decisão de, até agora, não falar sobre isso publicamente. Quando se elegeu prefeito de Pelotas, entrevistei-o no programa Mãos & Mentes, da TVCOM. Perguntei qual era sua opinião sobre direitos das minorias. Ele deu um sorriso irônico, de quem entendeu a oportunidade para falar, mas optou por ser genérico. Fui para a próxima pauta. Até porque ser homo, hétero ou qualquer outra coisa nada diz sobre caráter e honestidade. Ou mesmo sobre integridade, palavra repetida por Eduardo Leite em todas as entrevistas que deu até agora sobre sua orientação sexual e afetiva.

Gays que falam não são mais íntegros do que os silenciosos. Até porque, muitas vezes, não se assumir publicamente vai muito além de uma simples opção racional. Passa por uma série de limitações que independem da vontade do indivíduo. São processos longos e, frequentemente, pontuados por dor e sofrimento.

Nós, aqui no Brasil, temos um jeito próprio de lidar com as questões privadas dos políticos. Somos respeitosos e não invasivos. Nos Estados Unidos, por exemplo, considera-se que todos os comportamentos e características de uma pessoa pública são importantes para que o eleitor possa avaliar e decidir. Quando alguém decide ser um personagem exposto, sabe que isso ocorrerá.

O anúncio de Eduardo Leite, embora pessoal, está inserido em um contexto político, quando ele se lança em uma candidatura com visibilidade nacional. De qualquer forma, só há motivos para reconhecer méritos no gesto. A busca de felicidade é um direito. Se Eduardo Leite ajudar, pela força do exemplo, pessoas que sofrem pela opressão e pelo medo, já terá sido suficiente. A visibilidade de políticos, artistas, empresários, jornalistas e atletas impõe um compromisso ainda maior com a naturalização das questões de gênero, de cor da pele e de tantas outras que ainda são alvo de preconceito.

O Rio Grande do Sul já teve um governador negro - Alceu Collares - uma mulher - Yeda Crusius - e agora, um gay. O bom disso tudo é que os segundos não serão mais notícia por esse motivo. E essa é a maior conquista, da qual devemos nos orgulhar

TULIO MILMAN

03 DE JULHO DE 2021
J.R.GUZZO

STF e a (in) justiça

A empreiteira de obras públicas Odebrecht - a empresa que revelou ao mundo o "amigo do amigo do meu pai" - assinou um notável acordo com a Justiça brasileira, através do qual confessa a prática de crimes de corrupção durante o governo Lula, promete devolver ao erário público uma parte do que roubou e, em troca desse seu misto de colaboração-delação-confissão, recebe do Estado um tratamento mais suave na punição dos seus delitos.

Ninguém forçou a Odebrecht a fazer nada. Foi o seu próprio presidente, com a assistência plena de toda uma equipe milionária de advogados, quem concordou em fazer "delação premiada" a respeito dos crimes cometidos na esfera de atuação da empresa - especialmente na ladroagem monumental da Petrobras lulista. Também foi a construtora, por sua livre e espontânea vontade, que devolveu R$ 8,6 bilhões aos cofres públicos. Em função do acordo, o presidente Marcelo Odebrecht foi solto da cadeia em dezembro de 2017, após dois anos e meio de xadrez em Curitiba.

Qual é a dúvida em relação a isso tudo? Existe no mundo alguém que aceita devolver dinheiro se não roubou nada? Há alguém que invente crimes para delatar a si mesmo? Não há nada de errado com nenhuma dessas coisas. Ao contrário, trata-se de um momento histórico: foi feita justiça neste Brasil onde sempre reinou, durante séculos, a impunidade para os ricos e poderosos.

Não, não há mesmo nada de errado - salvo para o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal. Em compensação, para ele, está tudo absolutamente errado. O ministro acha que esse exemplo de justiça é tão ruim, mas tão ruim, que tem de ser anulado da primeira à última letra. Isso mesmo: nada do que Odebrecht confessou, delatou e pagou vale mais coisíssima nenhuma. Só está faltando dizer, agora, que o pagador de impostos tem de devolver à empresa os bilhões que ela pagou para fechar o seu acordo.

Lewandowski quer, acima de qualquer outra coisa na vida, eliminar até o último fiapo qualquer culpa que existe contra Lula - condenado, como se sabe, pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Atuando em conjunto, e em perfeita harmonia, com os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin, ele atua como se operasse na equipe de advogados que trabalham em tempo integral para Lula.

Lewandowski, Gilmar, Fachin e os demais decidiram não apenas anular todas as ações penais contra Lula, mas apontar como único culpado por tudo o juiz Sergio Moro - e, agora, declarar inválidas todas as provas reunidas contra ele, para que nunca mais possam ser utilizadas em qualquer processo que se tente fazer para retomar os que foram anulados. Esse é o retrato acabado do tipo de justiça que se pratica no Brasil de hoje - dentro das "instituições", da pregação diária da "democracia" e dos alertas diários sobre a "ditadura" que virá se Lula perder a eleição de 2022.

J.R. GUZZO

domingo, 27 de junho de 2021


26 DE JUNHO DE 2021
LYA LUFT

A família humana

Não acho que tudo tenha piorado nos dias atuais. Nunca fui saudosista. Prefiro a comunicação imediata pela internet a cartas que levavam meses. Gosto mais de trabalhar no computador do que de usar a velha máquina de escrever (que tinha lá seu charme). No whats ou outros, falo instantaneamente com amigos e familiares aqui perto, do outro lado do mundo - os afetos se multiplicam, se consolidam, circulam mais emoções. Nossa qualidade de vida melhorou em muitas coisas, mas serviços essenciais entre nós andam deteriorados, uma vasta parcela da humanidade ainda vive em nível de miséria.

São as contradições inacreditáveis de um sistema onde cosmólogos investigam espaços insuspeitados, cada dia trazendo revelações intrigantes, mas ainda sofre e morre gente nos corredores de hospitais sobrecarregados, milhões de crianças morrem de fome, outros milhões nunca chegam à escola, ou brincam diante de barracos com barro feito de água e esgoto.

Minhas repetições são intencionais, aqui, nos romances, até nos poemas. Retorno a temas sobre os quais eu mesma tenho incertezas. Que envolvem antes de mais nada ética, moralidade, confiança. Decência: pois é neles que eu aposto, nos decentes que olham para o outro - que somos todos nós, do gari ao intelectual, da dona de casa à universitária, dos morenos aos louros de olhos azuis - com atenção e respeito.

Estudos recentes sobre história das culturas revelam dados sobre tempos em que a parceria predominou sobre a dominação: entre povos, entre grupos, entre pessoas. Mas o mesmo ser humano que busca o amor anseia pela dominação nas relações pessoais, internacionais, de gênero, de idade, de classe.

E se tentássemos mais parceria? Na verdade não acredito muito nisso, a não ser que a gente dê uma melhorada em si mesmo. É possível que em algumas décadas, ou mais, a miscigenação será generalizada, superados os conflitos raciais às vezes trágicos. Teremos uma miscigenação densa de cores, formas, idiomas e culturas.

Origem, dinheiro ou tom de pele vão interessar menos do que caráter e lealdade, a produtividade e competência menos do que a visão de mundo e a abertura para o outro, a máquina importará tanto quanto o sonho, a hostilidade não vai esmagar a esperança, e não teremos de dominar o outro tentando construir uma civilização.

Talvez eu hoje tenha acordado feito uma visionária ingênua: não é inteiramente ruim, isso se chama esperança de que um dia predomine, sim, a família humana. "E aí?", perguntarão. "Sem conflito, sem cobiça, sem alguma opressão e alguma guerrinha, qual a graça?"

Aí, não vamos bocejar como anjos entediados, mas crescer mais, e mais, em caráter, sabedoria, harmonia, e - por que não? - algum tipo de felicidade.

*Texto originalmente publicado em 22 de junho de 2019

LYA LUFT