domingo, 5 de setembro de 2021


04 DE SETEMBRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Agir é vital

Eventos online facilitam a vida. Perde-se o contato presencial, mas ganha-se em tempo. Num mesmo final de tarde, sem levantar do sofá, assisti a uma palestra do biólogo americano Jared Diamond, promovida pelo Fronteiras do Pensamento, e em seguida uma live com a gerontologista Candice Pomi, no Instagram da jornalista Patricia Parenza. Falaram sobre dois assuntos que convergiram: o fim. Jared, sob o aspecto universal; Candice, pessoal.

Candice abordou a troca de papéis (filhos cuidando dos pais idosos) e a importância de nos prepararmos (cedo) para nosso próprio envelhecimento, não com o intuito de viver mais, mas de viver melhor, com autonomia. Nossa população tem hoje mais adultos acima dos 60 anos do que crianças de zero a cinco. No entanto, a quantidade de pediatras continua bem maior do que a de geriatras. Costumamos deixar para pensar na velhice só quando ela se aproxima, o que é, no mínimo, um desperdício. Entre os 60 e os cem anos, há oportunidades magníficas de vida, mas antes temos que perder o medo de conversar sobre declínios, adaptações, finitude.

Aos 84 anos, o biólogo Jared Diamond mantém a mente ativa e os olhos no futuro. Ele lembra que doenças emergentes sempre existiram, mas hoje elas circulam a jato pelos cinco continentes, caso da covid-19. O único proveito dessa pandemia é reconhecer que, pela primeira vez, o mundo precisa de uma solução global - nenhum país vencerá o vírus sozinho. E temos um desafio ainda maior: nosso senso de coletividade precisa ser direcionado para três dramas planetários que matam mais do que a covid. São eles: as mudanças climáticas, o esgotamento dos recursos naturais e a desigualdade social. 

A covid assusta porque mata rapidamente e de forma direta, mas ela não extinguirá o planeta. Já as outras três catástrofes, sim, serão fatais se não houver uma mobilização integrada. Alterações do clima provocam tsunamis, incêndios, estiagem, elevação do nível do mar e destruição de recifes. A exploração indiscriminada da natureza elimina florestas, acaba com os solos, provoca escassez de energia. E a desigualdade social gera fome, disseminação de doenças, violência. Mas continuamos preocupados apenas com o amanhã imediato, e não com o fim do planeta que se desenha para depois de amanhã.

Tanto no cotidiano privado como no exercício da cidadania, o recado está dado: planeje-se, em vez de entregar-se aos humores do destino. Se parece paranoia, paciência, é uma paranoia útil. Que façamos bom uso do relativo controle que ainda temos sobre o período que iremos viver. Frase de Jared Diamond: "Negar uma crise é o caminho mais curto para o desastre". Seja uma crise existencial, política, sanitária, ambiental, não importa: uma vez informados, é preciso, agora, levantar do sofá.

MARTHA MEDEIROS

04 DE SETEMBRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

10 entre 10 brasileiros preferem feijão

Eu gosto de feijoada, e nem precisa ser daquelas completas, como na música do Chico. Pé de porco, rabo de porco, orelha de porco, paio, muita linguiça, carnes boiando - tudo isso eu passo. Ainda bem, porque uma rápida consulta nos valores dos ingredientes me apontou o seguinte:

- Charque dianteiro (500 gramas): R$ 41,90

- Kit carnes suínas defumadas (porção): R$ 47,90

- Linguiça mignon defumada (quilo): R$ 23,90

Para mim, basta uma costelinha de porco, coisa pouca, só mesmo para dar uma maldade no caldo - bem temperado com tudo o que tiver na cozinha, até uma meia usada.

Mentira, a meia foi só para causar.

Desde que a gente se conhece por povo, o feijão sempre esteve na mesa, por gosto e pela facilidade de comprar. Era botar água no feijão e pronto, comia mais um, comiam mais dois, mais quantos fossem. Pena que não é mais assim. R$ 9,99 é o preço médio do quilo nos supermercados, o centavo que falta para chegar aos 10 pilas cumprindo uma função psicológica. Além de servir, claro, para irritar o consumidor e as operadoras de caixa. Digamos que alguém queira o troco, como é de direito. Está feita a treta.

Não se pode esquecer que feijão sem arroz é avião sem asa. Fogueira sem brasa. Sou eu, assim sem você. É aí que entra o arroz, mais ou menos R$ 6 o quilo, preço oscilante feito cotação de dólar. Se for para caprichar mesmo, pode juntar a farinha de mandioca nessa conta e pagar mais uns R$ 4 por um pacotinho de meio quilo.

Importante: apesar do gás de cozinha já ter atingido os três dígitos, não dá para poupar quando se cozinha feijão. O grão leva um bom tempo para ficar no ponto, ou seja, vai mais grana nessa receita. Quando se vê, o prato mais tradicional da cozinha brasileira já não é para todos no país onde 49,6 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar. 49,6 milhões de pessoas que não sabem se terão comida para o dia. Para o dia seguinte. Para a semana.

Conheço muitas mulheres que são o avesso da Maria Antonieta. Nada de trocar pão por brioche, é café por cevadinha e frios por retalhos. Minha mãe era dessas. Mas mesmo as mais econômicas estão penando para botar comida na mesa. A cesta básica em Porto Alegre é a mais cara do país, R$ 656,92 no começo de agosto. A procura pelos ossos, que antes eram doados, fez com que eles virassem produto nos açougues. Mas não deveria ser agora, mais do que nunca, o momento de serem doados?

Diante desse quadro, até me animei quando o presidente sugeriu uma alternativa ao feijão: o fuzil. A exemplo da - acredito - maioria, não entendi de saída como uma coisa substituiria a outra. Logo pensei na sopa de pedras do Pedro Malasartes. Sem nada para comer, o Malasartes botou as pedras na panela e foi conseguindo uma pitadinha de sal aqui, um tiquinho de cebola ali, depois um pedacinho de carne, até que a sopa de pedras virou um belo sopão. "E as pedras?", perguntou a vizinha pão-dura que pouco antes tinha negado comida a ele. As pedras a gente joga fora.

Na minha ingenuidade, achei que o papel do fuzil fosse esse, servir apenas para começar a gororoba. Dá uma fervida e vai acrescentando a cenoura, a batata, a moranga, a agulha. Mas então vi o preço do dito cujo, por volta de R$ 12 mil. Olha a quantidade de feijão que um fuzil desses compra no país onde quase 50 milhões de pessoas vão dormir hoje sem comer nada.

É como diz a música: 10 entre 10 brasileiros elegem feijão, verdadeiro fator de união da família. Faz mais feliz a mamãe, o papai, o filhinho e a filha. Não tem nada, mas nada mesmo, que lembre tanto o Brasil maravilha.

Onde queres fuzil, eu sou feijão.

CLAUDIA TAJES

04 DE SETEMBRO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

TERCEIRA DOSE DE VACINAÇÃO DA COVID-19 É MARCADA PELA FALTA DE CONSENSO

Cerca de 75% das vacinas contra a covid-19 foram aplicadas em apenas 10 países. Enquanto na África abaixo do deserto do Saara e em algumas regiões da Ásia o número de vacinados se mantém abaixo de 5%, outros países administram doses de reforço aos já imunizados.

Essa discussão surgiu com a emergência da variante Delta, altamente contagiosa, e com as demonstrações laboratoriais de que a intensidade da resposta imunológica conferida pela vacina cai com a passagem dos meses.

Israel, Estados Unidos, Alemanha, China, Rússia e Emirados Árabes foram os primeiros a adotar as doses de reforço, estratégia que será seguida no Brasil e, certamente, em outras partes do mundo.

A Organização Mundial da Saúde exorta os governos a adotar uma moratória até o fim de setembro, antes de recomendar o reforço. Os técnicos da organização se apoiam na falta de consenso entre os cientistas. A revista Nature traz uma ampla discussão sobre o tema.

A vacinação provoca aumento de células imunologicamente competentes, capazes de produzir anticorpos para a ação imediata, além de células de memória -linfócitos B e T- que sobreviverão para ser mobilizadas em caso de novo contato com o mesmo agente.

A dose de reforço estimula os linfócitos de memória a se multiplicar para produzir anticorpos com mais eficiência, no combate a infecções futuras.

Testes realizados com doses extras das vacinas Pfizer, AstraZeneca, Moderna e Sinovac mostraram que elas são capazes de provocar picos nos níveis de anticorpos neutralizantes, quando administradas alguns meses depois da segunda dose. Parece que esses picos são mais elevados quando o reforço é feito com vacina de outra marca.

O problema é que depois de doses repetidas o número de células de memória e os níveis de anticorpos produzidos por elas se estabilizam num platô que não se altera diante de novos estímulos, sejam vacinais ou causados por outro contato com o coronavírus.

Normal em qualquer vacina, a queda na quantidade de anticorpos com a passagem do tempo também ocorre na imunização contra a covid-19.

O que falta saber é se esse declínio indica perda das defesas contra o vírus. Seria de grande utilidade definir qual o limiar mínimo da quantidade de anticorpos ainda capazes de conferir proteção. Por causa desse desconhecimento, não é recomendada a dosagem de anticorpos na corrente sanguínea para comprovar a eficácia da vacinação.

Na ausência de marcadores para avaliar o grau de proteção após imunização, pesquisadores israelenses verificaram se o número dos que caem doentes, agora, é maior entre os que receberam a vacina nos primeiros meses das campanhas no país. A resposta foi sim: os níveis de proteção entre os primeiros vacinados foram de 40%, contra 90% naqueles imunizados nos últimos meses.

Esse declínio faz suspeitar, mas não prova ter sido por perda de imunidade, porque pode estar ligado à agressividade da variante Delta e ao comportamento social das populações vacinadas.

Outro dado importante é saber se a proteção das vacinas contra as formas graves da doença diminui com a passagem do tempo.

Todos os estudos realizados com as vacinas disponíveis mostraram que a proteção contra as formas graves ou fatais da covid-19 é mantida, mesmo quando se trata da variante Delta. O que não sabemos é se os vacinados que desenvolveram quadros leves da doença perdem a imunidade e ficam sujeitos a infecções mais graves no futuro.

Tantas dúvidas levam muitos cientistas a considerar desperdício de recursos administrar reforços, enquanto muitos não receberam nem uma dose sequer.

Países como o nosso, a China ou os Emirados Árabes, com grande número de vacinados com vírus mortos que conferem proteção mais baixa, dificilmente deixarão de imunizar as pessoas mais velhas e as imunodeprimidas com uma dose adicional de uma vacina mais eficaz.

É provável que muitos dos que receberão doses de reforço, talvez, não necessitassem delas. Por outro lado, o aumento do número de casos e de hospitalizações de pessoas com mais de 60 anos, nas últimas semanas, não nos deixa tempo para aguardar que a ciência estabeleça consensos baseados em evidências.

Como diz o infectologista Júlio Croda: "A terceira dose para os mais velhos é questão para ontem".

DRAUZIO VARELLA

04 DE SETEMBRO DE 2021
REFLEXÃO

LEVEZA COM A IMPERMANÊNCIA

AINDA CHEIA DE LUCIDEZ E SAÚDE, MINHA VIZINHA DE 77 ANOS, A SILVINHA, ENCARA A FINITUDE COM TANTA NATURALIDADE, QUE SURPREENDE

Uma vizinha fora do comum, que se tornou amiga há alguns anos, chega ao meu apartamento muito indignada. Revisando os papéis da própria cremação, que ela pagou há anos, Silvinha descobriu que o corpo é levado para outra cidade. Estava decidida a partir pra briga com a empresa, entendendo que o velório todo seria longe das pessoas queridas que ela quer "ver" no funeral. Expliquei que a cerimônia de despedida deve ser mesmo em Porto Alegre, e a cremação em si pode acontecer em outro local. Assim, consegui tranquilizá-la.

Esta mulher de 77 anos, cheia de lucidez e saúde, ainda pode viver muito tempo, mas encara a finitude com tanta naturalidade que surpreende. Não foi ao acaso encontrá-la, eu que simplesmente caía no desespero só de falar em morte. Nossas conversas me ajudaram muito a internalizar o conceito de que a vida é um ciclo, é pura impermanência. Mas ela conta que nem sempre foi assim, foram anos de investimento emocional e espiritual.

Gosto de dizer que minha vizinha é um culto ecumênico onde cabem várias crenças, todas praticadas com a mesma fé. Católica, costuma ir à missa aos domingos sempre que pode, não com o peso de um compromisso inadiável. Diariamente, faz parte de um grupo de oração, e, aos sábados, frequenta um grupo de budismo. Já fez peregrinações, pratica meditação e o oriental Tai Chi Chuan e é voluntária numa instituição que cuida de crianças.

No testamento, determinou o que quer que façam dos seus bens. Não quer é dar incômodo pra ninguém e, para isso, a documentação está em dia. Os telefones do gerente, do advogado, de parentes próximos e da funerária estão à vista. Por enquanto, vai desfrutando um dia de cada vez, quase sempre com o astral lá em cima. Se a tristeza bate, se recolhe um tempo e, depois, volta faceira.

Não é sobre as milhares de mortes que a maior parte de nós tem acumulado e chorado. Mas, nestes tempos de perdas dolorosas, soa como um alento esta serenidade. Quando terminamos o papo, Silvinha saiu corredor afora cantando o clássico do Hermes Aquino, aliás, uma letra que ela usou na juventude para terminar um namoro. "Eu sou nuvem passageira, que com o vento se vai... Você não vê que a vida corre contra o tempo? Sou um castelo de areia na beira do mar". Somos, Silvinha, somos! E é esta consciência que nos torna melhores, e bem mais leves.

DANIELA SALLET (*)

04 DE SETEMBRO DE 2021
BRUNA LOMBARDI

VIAGEM PRA LONGE, AQUI MESMO

Quem sente saudade de viajar lembra sempre dos melhores momentos, das fotos mais legais, de todas as delícias e esquece todos os perrengues. E quando lembra deles acaba rindo, transformando num fato pitoresco. Atrasos, filas da alfândega, mala perdida, trem errado, multa no carro alugado, o péssimo humor do garçom num restaurante roubada de comida ruim e conta cara, até aquele golpe em algum mercado exótico, viram todas histórias de auto deboche pra contar pros amigos.

O que a gente mais gosta da viagem é aquela sensação de liberdade, a quebra de rotina, a mudança de paisagens, horários, nenhuma obrigação de fazer as tarefas cotidianas, uma certa irresponsabilidade e uma avalanche de informações e acontecimentos que trazem novas ideias pra nossa cabeça.

Talvez tudo isso possa estar ao nosso alcance agora, mesmo sem sair de casa, nem do bairro e nem da cidade.

A gente pode acordar amanhã e olhar tudo de um jeito novo. Olhar em volta de nós como se fosse uma novo lugar, olhar as mesmas coisas conhecidas com aquela surpresa da primeira vez.

Experimente. Imagine seu quarto como o quarto gostoso de um hotel e você adorou a cama, os lençóis, o travesseiro. Olhe pra suas velhas coisas como se nunca tivesse visto nada daquilo. Tome um café em frente à janela, olhando o céu. Escolha alguma fruta que você adora, compre quem sabe um croissant, prepare um cappuccino. Ouça uma música.

Quando sair pra rua, leve alguma coisa que você não costuma levar, uma echarpe, algo que te traga a sensação de um passeio. Se curtir, passe um batom, mesmo debaixo da máscara. Afinal, é pra você e mais ninguém a nova sensação.

Olhe pra rua, a mesma que você passa todos os dias, com um novo suspiro. Sinta o vento leve no rosto com a emoção de encarar um lugar desconhecido, desses em que a gente precisa de um mapa. Olhe cada árvore, janela, portão. Feche os olhos, respire fundo e deixe seu olhar demoradamente perdido no céu, acompanhando o movimento das nuvens, os reflexos da luz em cada planta.

Tudo na vida é uma questão de perspectiva. Quando visitamos um lugar novo, estamos mergulhados na nossa fantasia da viagem, embebidos pela ideia que o tal lugar representa no nosso imaginário. Paris é uma festa, Nova York é excitante, Marrocos é tão exótico. Essas imagens são fotos inebriantes muito antes da gente conhecer tais cidades. Veneza é romântica, Roma é belíssima e mais de 40 séculos nos contemplam nas pirâmides do Cairo.

Tudo bem, tem coisas que não dá pra competir, a história tem o poder de nos transportar com sua força milenar. Talvez nossa cidade não tenha tantos atributos, mas tenho certeza que tem seu valor pra qualquer turista, pra quem não é rotina. E quem mora nesses lugares icônicos acostumou e nem olha mais aquilo tudo que o turista vê.

Em cada canto do mundo você vai encontrar encantamento se for com essa proposta. E os tais perrengues de viagem são nossos perrengues do dia a dia, que a gente também pode olhar com humor. Se você for capaz de recriar a sensação de aventura andando pelo seu bairro, se deslumbrar com as flores inesperadas em algum muro, achar a mesma graça comprando frutas na feira, você vai ter acesso a esse prazer sempre que quiser.

Você acredita que já viu tudo na vizinhança? Com certeza não. Faça um tour na sua casa, na sua rua, no seu bairro. Tem muita coisa pra ser descoberta aí mesmo onde você se encontra. Na verdade, tem muita coisa pra ser descoberta na sua alma. Aproveite o clima e seja esse viajante fora e dentro de você.

Boa viagem.

BRUNA LOMBARDI

04 DE SETEMBRO DE 2021
ELIANE MARQUES

MITOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS

Semana passada vi pai e filho de mãos dadas numa esquina da cidade. Na mão liberta da segurança paterna, a criança levava um enorme martelo Mjolnir. Sabemos que o artefato, também referido machado ou porrete, pertence a Thor, filho de Odin, pai de todxs. Thor é associado aos trovões e às tempestades nas mitologias germânicas, especialmente da era viquingue. Num surto alucinatório, troquei o martelo de Thor da mão pequena e desprotegida pelo Opáxoró (cajado), de Obatalá; depois pelo Oxé (machado), de Xangô; a seguir pelo Abebé (leque com espelho), de Oxum e, definitivamente, pelo Ogó (porrete), de Exu. Creio que a alucinação não adveio do desejo de impor à infância certo tipo de brinquedo, de modo a alterar apenas o conteúdo do discurso por outro igualmente autoritário. Creio que a alucinação adveio do desejo de inventar outra mitologia contemporânea.

Seria uma visão insuportável essa, a de uma criança com o Ogó de Exu como brinquedo tendo ao seu lado direito o pai protetor sem qualquer ruga de preocupação no rosto translúcido? Eu seria processada e condenada pela gente de bem de "nosso" Brasil por corromper crianças, por incitar à juventude ao culto dos ídolos que não as celebridades do momento?

Quem me acompanha nesta coluna sabe que volta e meia me abrigo em algum mito. Assim como língua e fala se distinguem por um critério temporal de reversibilidade e irreversibilidade, respectivamente, pois o já falado não retorna para dentro da boca, o mito também se define por um sistema temporal que combina as características da língua e da fala. Um mito sempre se refere a eventos passados; contudo, o passado não o domina na medida em que sua narrativa decorre de uma estrutura permanente, que, ao mesmo tempo, é antes, hoje e amanhã. O mito, então, possui caráter histórico e não histórico, o que faz com que pertença ao âmbito da fala e da língua.

Para Lévi-Strauss, nada se parece mais ao mito do que a ideologia política. Nas sociedades contemporâneas, talvez elas o tenham substituído, disse o antropologo, citando como exemplo a Revolução Francesa - "uma série de eventos longínquos cujas longínquas consequências certamente ainda se fazem sentir, através de uma série não reversível de eventos intermediários", instrumentalizada pelos políticos para interpretar a estrutura social da França e seus antagonismos.

Que seja "normal" uma criança levar o Mjolnir e assustador que brinque com o Ogó também faz parte de nossas mitologias contemporâneas.

ELIANE MARQUES

04 DE SETEMBRO DE 2021
JULIA DANTAS

FINANÇAS PESSOAIS DA VIDA REAL

Certa vez vi uma postagem no Twitter que dizia mais ou menos o seguinte: um bom reality show seria levar uma dúzia de investidores da Faria Lima para viverem numa comunidade periférica recebendo uma renda de um salário mínimo e ver quem consegue chegar antes ao seu primeiro milhão. Não sei vocês, mas eu veria esse programa, e aposto que os participantes não conseguiriam chegar ao fim da temporada sem se endividarem.

Tenho visto alguns "especialistas" dizendo que o brasileiro não está administrando bem suas finanças durante a pandemia. Essa afirmação se deve ao fato de que 72% das famílias brasileiras estão endividadas. É um número recorde, mas é necessário olhar o contexto. A inflação está em quase 9%, os custos básicos de vida (como comida e contas domésticas) aumentaram 33% ao longo do último ano e cerca de metade dos brasileiros vive com R$ 438 por mês. Quer dizer, o brasileiro não é um mau administrador de finanças; o brasileiro está pobre.

Peço aos leitores que ganham mais de R$ 438 mensais (e suponho que sejam todos porque quem ganha menos não vai gastar em jornal) que emprestem trinta segundos do seu dia para pensar como fariam para sobreviver com R$ 438. Eu, que nasci e vivo na classe média que desconhece a fome mas também desconhece o luxo, não saberia nem por onde começar.

Das pessoas endividadas no Brasil, a maioria deve para bancos, culpa dos elevados juros. Ainda assim, o brasileiro tenta ser bom pagador: mesmo em 2020, já na pandemia, menos de 5% dos endividados ficaram inadimplentes junto aos bancos (o número aumenta considerando outras dívidas). Talvez por isso o governo não hesite em defender a liberação de mais crédito, crédito para negativados, microcrédito imediato: isso é apenas repassar um problema estrutural do país para os indivíduos. Os bancos também não parecem preocupados, pois só neste ano a concessão média de crédito cresceu 19%.

Esse ano, porém, há um crescente número de pessoas que têm se endividado para cobrir as despesas básicas do dia a dia. Inflação, desemprego e morte na família são os principais motivos que levam a empréstimos. E de onde deveria vir algum auxílio, não chega nada. Cada pessoa que se endivide para comprar comida e depois que se vire para pagar.

Cerca de metade dos brasileiros, ao longo do último ano, fez um novo empréstimo para pagar uma antiga dívida. Enquanto tentam não sujar o nome, as pessoas enfrentam problemas mais graves. Há mais de 117 milhões de brasileiros vivendo em insegurança alimentar. Todos sabemos que administração das finanças pessoais está longe de ser a solução.

JULIA DANTAS

04 DE SETEMBRO DE 2021
COM A PALAVRA

AGRONEGÓCIO É UMA CONQUISTA DO POVO GAÚCHO

ENTREVISTA | GEDEÃO PEREIRA, PRESIDENTE DA FARSUL, 72 ANOS

Está no comando da Federação da Agricultura do Estado desde dezembro de 2017: após a morte de Carlos Sperotto, assumiu para fechar o mandato (era vice). Depois, foi eleito em 2018, e agora busca a reeleição

Cinco décadas separam a participação de Gedeão Pereira naquele que foi o primeiro evento no Parque Assis Brasil, em Esteio, da 44ª Expointer, que começa neste sábado. Na passagem do tempo, o estudante virou veterinário, assumiu a propriedade do pai, a Estância Santa Maria, em Bagé, e chegou ao comando de uma das principais entidades do agronegócio, a Federação da Agricultura do RS (Farsul).

O ponto de conexão entre as duas exposições é o desafio. Em 1970, o obstáculo a ser vencido era a mudança da Exposição de Animais do Menino Deus, na Capital, para uma área nova, distante e sem a estrutura atual. Em 2021, a dificuldade é colocar a feira de pé em um cenário de pandemia, que impõe restrições a um dos grandes patrimônios: o público. Nesse intervalo, transformou-se também a atividade produtiva: o Brasil que deixou de ser importador e virou fornecedor global se refletiu e foi refletido em Esteio. Em conversa com ZH, Gedeão, 72 anos, avalia as mudanças do setor dentro e fora do parque.

QUAL É A PRIMEIRA EXPOINTER QUE TEM GUARDADA NA MEMÓRIA?

Assisti a algumas exposições, duas ou três, quando ainda eram realizadas no Menino Deus, em Porto Alegre. Mas me recordo da primeira lá no local da Expointer. Porque não tinha esse nome. Eram apenas alguns galpões de madeira de eucalipto e zinco em cima. E chovia muito, para variar, e os animais se misturavam com caminhões sendo carregados com cascalho para as pessoas poderem se deslocar. Era estudante de Medicina Veterinária, e a gente acompanhava as exposições. Aquele ambiente era desastroso. Imagina, caminhão de cascalho, chuva e os animais podendo transitar para serem julgados. Também naquela época, a exposição de máquinas praticamente não existia. Veio depois e foi crescendo, até o formato que é hoje. As críticas ao então secretário da Agricultura, Luciano Machado, foram muitas. Mas passou o tempo, e ele foi homenageado, antes do seu falecimento, pela Farsul, pelo ato de coragem que teve de levar a exposição lá para aquela região.

HAVIA UMA DIVISÃO ENTRE OS QUE APOSTARAM NA IDEIA E OS QUE NÃO QUERIAM A MUDANÇA PARA ESTEIO?

Me recordo muito das críticas no primeiro ano. Mas, a partir de então, e com a chegada da Expointer, que passou a ser uma exposição internacional de animais, foi se consolidando no imaginário do produtor, porque foi uma coisa que realmente agradou ao setor. Surgiram os galpões, as pistas de julgamento, foi se tornando motivo de orgulho para o povo gaúcho.

QUAIS FORAM OS PRINCIPAIS GANHOS NA TRANSIÇÃO?

Nos primórdios da exposição em Esteio, não se tinha uma ligação muito forte entre o progresso tecnológico, a genética que se via na Expointer e a realidade do nosso campo. A sensação que eu tinha, como guri que era na época, formado nos anos 1970, era a de que tínhamos um campo bem mais atrasado do que aquele que espelhávamos na feira. Levava-se para lá uma genética espetacular, do mundo inteiro e com seus diversos modismos. Teve a época das britânicas (raças de gado de corte), depois a das continentais, que apareceram e dominaram com o gado charolês, e depois novamente com as britânicas. Havia um divórcio entre aquilo que tu via nas pistas de Esteio e a realidade do campo. Creio que a Expointer colaborou muito com a transformação tecnológica no campo. Começou a agricultura do Brasil grande, porque nos anos 1970 o país era importador de alimentos, e a agricultura no Rio Grande do Sul não era o que é hoje. Era infinitamente menor. Em 1970, 1971, subi os campos de Júlio de Castilhos e Cruz Alta para aprender a fazer diagnóstico de gestação em vaca charolesa. Aquela região só tinha pecuária. Hoje, quase não existe mais pecuária. É soja, milho e trigo. Ou seja, houve um avanço na agricultura e, quando isso aconteceu, coincidiu com a presença das máquinas em Esteio e com o melhoramento tecnológico da pecuária. A pecuária sempre teve genética no Estado, mas não tinha alimentação. Hoje, tu tens uma qualidade de carne, na gôndola do supermercado, similar à qualquer das melhores carnes do mundo. Come-se em Porto Alegre a mesma qualidade de carne que tu podes comer em Buenos Aires. Pelo avanço tecnológico, pela redução da idade de abate, aumento da eficiência reprodutiva das fêmeas. E isso tudo é um conjunto desse processo que a Expointer veio refletindo ao longo desses últimos anos.

CONSIDERANDO O PESO DAS MÁQUINAS AGRÍCOLAS NOS NEGÓCIOS, O QUE É POSSÍVEL PROJETAR EM FATURAMENTO PARA ESTA EDIÇÃO, QUE NÃO CONTARÁ COM TODAS AS GRANDES FABRICANTES?

Já encontrei na Expointer gente que veio de Roraima para comprar máquinas. É verdade, gaúchos em Roraima, mas vêm para comprar máquina aqui. Realmente, é uma feira que extrapolou os limites do Estado. Quanto a Expointer pode faturar neste ano é a pergunta que também me faço: R$ 500 milhões? R$ 1 bilhão? Não deverá ser muito diferente, porque empresas como Massey Ferguson e New Holland não estarão. Mas o Claudio Bier (presidente do Sindicato das Indústrias de Máquinas e Implementos Agrícolas do RS) fez um grande trabalho, virão 85 empresas (das grandes, John Deere confirmou presença). O sistema financeiro estará presente. Banco do Brasil, Sicredi, Bradesco, Banrisul, BRDE, Badesul. Acho que o principal motivo pelo qual empresas não vêm é porque não têm o que entregar. O que acontece também com a indústria automobilística nesse mundo pós-covid.

A EXPOINTER NASCEU RURAL, MAS, EM ESTEIO, GANHOU A CONEXÃO COM O PÚBLICO URBANO.

A Expointer é feita de animais, máquinas agrícolas, cavalo crioulo, o Freio de Ouro, que é público de Gre-Nal, agricultura familiar e, fundamentalmente, 400 mil a 500 mil pessoas que passam na semana, fora os pequenos vendedores ambulantes, que ficam fora do parque e vão lá para faturar também. A presença de público é fundamental. Expointer sem público não daria nem para conceber. É uma belíssima oportunidade que nós, homens do campo, temos de conviver com a massa da população, que vai lá para ter uma ideia do que é o campo. Mostramos que a comida não nasce na gôndola do supermercado. Alguém tem de estar lá no campo produzindo para que tenhamos oferta constante. E o setor fez um sucesso muito grande na pandemia, porque nunca houve uma gôndola desabastecida nesse período em qualquer lugar do Brasil. E ainda tocamos produtos para mais de 170 países mundo afora. Ou seja, o agronegócio hoje é um sucesso e uma conquista, também, do povo gaúcho e do brasileiro.

COMO AVALIA A IMAGEM DO SETOR NO MERCADO EXTERNO E A DEMANDA CADA VEZ MAIOR POR GARANTIAS DE QUE A PRODUÇÃO É SUSTENTÁVEL? COMO FAZER OS BONS EXEMPLOS CHEGAREM MAIS DO QUE OS PROBLEMAS?

É uma questão difícil e controversa. Na minha opinião, existem algumas coincidências nefastas que levaram essa imagem negativa para o Exterior do agronegócio brasileiro. Uma delas, uma mudança de postura ideológica do governo brasileiro. Antes, havia muita guarida às ONGs, que tinham um assento e um financiamento muito forte no governo brasileiro, através do Ministério do Meio Ambiente. São as informações que nos chegam. Essas próprias ONGs começaram a difamar a imagem lá fora. Outra coincidência é que isso recrudesceu com o acordo da União Europeia com o Mercosul. Como tem a salvaguarda das questões ambientais, e a agricultura europeia não compete com a brasileira, a do Mercosul, o presidente Macron (Emmanuel Macron, presidente da França) disse que estávamos queimando o planeta por alguns incêndios na Amazônia. Que não é diferente dos incêndios na Bolívia, nos EUA, não me recordo se não teve na Europa, em que morreu gente. Por uma questão de seca, clima, enfim. Desafortunadamente, para nós, tentaram vender uma imagem negativa da agricultura brasileira, o que não é realidade. É bem diferente. Temos de separar um pouco a Amazônia da realidade brasileira. E não é a Amazônia legal, que é maior do que o próprio bioma. Via de regra, o desrespeito de que se tem notícia, porque não vivemos lá, está muito pelo problema de não ter um CPF que seja responsável por dita gleba que possa estar sendo incendiada. E as devastações da floresta parecem que são realmente ilegais, e madeira da floresta é tirada ilegalmente com fins de mercado. Por que esse viés político demagógico não afetou o nosso mercado? Porque incêndios há em outros lugares do mundo e ninguém dá o peso que dá aos incêndios da Amazônia. Acho que a Amazônia tenha de ser cuidada, preservada, sim. Ainda que exista tecnologia no mundo inteiro para um crescimento vertical (da produção) para consumo da humanidade que se prevê chegará a 9 bilhões de pessoas em 2050, depois de amanhã. Mas estamos atravessando uma experiência absolutamente nova que se chama "poder econômico da Ásia", basicamente da China. Um país com 1,4 bilhão de pessoas que disse que estaria colocando 110 mil pessoas na classe média por dia. Então, aparentemente, não há o que chegue. Tanto é que as commodities, nesse processo, tiveram uma valorização impensável por nós há um ano e meio.

ESTRATÉGIAS COMERCIAIS E POLÍTICAS À PARTE, NÃO É MAIS FÁCIL MOSTRAR BONS EXEMPLOS DO QUE INVESTIR ENERGIA NESSA DISPUTA?

Em todas as oportunidades lá fora, e acompanhei algumas, na China, no Japão, na Índia, a ministra da Agricultura tem colocado o que é a agricultura brasileira, as qualidades em termos de preservacionismo e de cuidados com o ambiente. Temos um código florestal que talvez seja o mais restritivo. E se pegarmos os números em todos os fóruns internacionais, 60% do território nacional é floresta amazônica. Como cuidar de toda a Amazônia em um país de tamanho continental? Acho que nem todo o Exército consegue, não é tarefa fácil. Usamos 40% do nosso território, e, assim mesmo, cheio de restrições ambientais. Se colocarmos em emissões do CO2, muito menos do que Europa, EUA, China e até o próprio Japão. Bom, temos 60% do território preservado, cuidamos das matas ciliares, das nossas águas - vou botar entre parênteses o setor urbano. Ninguém olha a sua parte.

VOLTANDO À QUESTÃO DA IMAGEM. A MINISTRA TEREZA CRISTINA TEM UM PAPEL IMPORTANTE, MAS QUE POR VEZES SE DISSOLVE EM DECLARAÇÕES POLÊMICAS DO GOVERNO. QUANDO SE CRITICA UMA COBRANÇA, PORQUE PODE ESTAR CONTAMINADA POR INTERESSES, PARECE QUE SE ESTÁ TENTANDO DESQUALIFICÁ-LA. SERÁ QUE A POSTURA NÃO TEM DE SER DO TIPO: PODE COBRAR, O SETOR ESTÁ FAZENDO O TEMA DE CASA?

Nós, da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, CNA, temos um programa, o Agro Mais, que é justamente para tentar desmitificar todos esses processos. Sabemos o que 98% - tem de deixar uma parcela para os irresponsáveis, não existe nada perfeito - dos produtores rurais fazem e a qualidade do que estão fazendo. Temos uma preocupação de levar a seguinte imagem ao produtor: nós dependemos visceralmente do mercado internacional, porque produzimos uma montanha de grãos e carnes. O que é o item número 1? Qualidade. O Brasil tem qualidade crescente de produto: física, química, em todos os processos que levam aquele grão final ou aquela carne ao porto, dentro das normas e regulamentações internacionais. E uma preocupação crescente de levar essa mensagem porque olha bem o que aconteceu com a Carne Fraca (Operação Carne Fraca, em 2017). Quanto nos custou? É um exemplo bem recente. O Blairo Maggi era ministro da Agricultura quando teve de desfazer todo aquele imbróglio. Essa é uma imagem, entre nós produtores, de que temos de seguir produzindo cada vez com mais qualidade. As normas são mais restritivas e segurança alimentar é fundamental. Temos de ter muito cuidado, utilizar os químicos com as normas de bula, ter qualidade no armazenamento, no transporte. Estar preocupados com as normas e trazer um produto de qualidade, porque quando fazemos isso, estamos cumprindo com o consumidor interno e externo. E não é sobrepor um ao outro. Estamos habilitados a estar sempre em qualquer mercado. A qualidade que se encontra nos mercados daqui se encontra em Paris, Roma, Moscou, em Xangai ou Pequim.

DEPOIS DE UMA COLHEITA RECORDE NA PRODUÇÃO DE SOJA, O QUE É POSSÍVEL PROJETAR PARA A PRÓXIMA SAFRA DE VERÃO DO RS?

Dentro de uma normalidade, podemos até superar a safra anterior. Porque apesar do aumento de custos, subiu fertilizante, trator, químico, tudo, o produtor está muito estimulado também pelos preços que está vendendo. O arroz há um ano, um ano e meio era R$ 38, R$ 40, hoje está na volta dos R$ 80, R$ 82. A soja que era R$ 90 veio para R$ 165, R$ 170, chegou a R$ 185. O boi também subiu, talvez não na mesma proporção, mas de R$ 8, R$ 9 para R$ 12. O milho na casa dos R$ 100. Então, o principal estímulo do produtor é preço. Mas temos uma grande preocupação. Há dois pilares da nossa economia, que são muito importantes, suinocultura e avicultura, que bateram no teto, por falta de milho. E nos últimos 10 anos tanto Santa Catarina quanto Rio Grande do Sul pararam de crescer. O Paraná continuou crescendo porque a logística permite que traga do Paraguai e do Mato Grosso e tem milho safrinha. No Estado, não temos essa possibilidade por questões climáticas. Estamos antevendo a vontade de grandes empresas fazerem investimentos no RS, para seguirem aumentando tanto a avicultura quanto a suinocultura, porque estão sendo demandados pelos mercados asiáticos. E, nos Estados do Sul, há uma condição que não tem em Goiás, Mato Grosso, que é o material humano. Mas falta milho. Nos aliamos à Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) e à Embrapa e estamos trabalhando com o projeto Duas Safras. Queremos levar ao produtor a ideia de grãos alternativos no inverno. O RS pode fazer duas safras. Porque faz uma grande safra de 6 milhões de hectares no verão e depois faz 1 milhão, 1,2 milhão de hectares de trigo (no inverno), o resto é cobertura vegetal. Estamos levando a ideia de centeio, triticale, trigo ração para que as pessoas se entusiasmem mais a investirem em culturas de inverno. Estamos juntando a ABPA, que trata com a indústria, a Embrapa, que trata da tecnologia, e a Farsul que tem a permeabilidade em todo o Estado. Alicerçado em tecnologia e mercado. Uma vez implementado, pode mexer com 7% do PIB do RS. Estamos coletando as diversidades regionais para, na hora de implantarmos o programa, sairmos direcionados, com pacotes tecnológicos de acordo com as necessidades.

ESTA SERÁ A PRIMEIRA EXPOINTER COM O ESTADO LIVRE DE AFTOSA SEM VACINAÇÃO. MAS COMO LIDAR COM A AMEAÇA DA PESTE SUÍNA AFRICANA?

A questão da aftosa hoje preocupa menos do que a peste suína africana, que já chegou à América. É algo que nos deixa de cabelo em pé. Andou na Europa, na China e chegou na República Dominicana. Sobre a aftosa, tiramos a vacina e, em um curto prazo, não tem diferença para a pecuária de corte, mas é decisiva principalmente à suinocultora. Poderíamos chegar com carne com ossos à China, que é um grande mercado. A ministra Tereza Cristina já estaria trabalhando no mercado do Japão para a carne bovina. É um progresso que vai se desenrolar ao longo do tempo, porque essas questões não acontecem da noite para o dia. As posições internacionais são algo que se conquista.

QUAL O PRINCIPAL DESAFIO DO SETOR ATUALMENTE? O FATO DO SETOR SER ALINHADO AO ATUAL GOVERNO AJUDA NO ANDAMENTO DE REIVINDICAÇÕES?

As grandes questões do agro hoje no Rio Grande do Sul são as ambientais. Na federação, gastamos quase metade da nossa energia na solução dos problemas ambientais. Não estamos conseguindo desenvolver a irrigação, porque precisamos fazer a preservação de água. Não existe irrigação sem água. E água nós captamos da chuva. No RS chove, normalmente, 1,7 mil mm, 1,8 mil mm por ano. No entanto, não se consegue transformar essa água em um bem econômico, em razão de questões ambientais, discussões jurídicas inócuas, ineficientes, que levam ao atraso. Na Metade Norte, tranca porque tem de ter intervenção em Área de Preservação Permanente (APP). Nossa proposta é fazer um barramento na APP e multiplicá-la por duas, uma em cada volta do açude, mantém o corredor ecológico. Na Metade Sul, a discussão é outra. Para fazer um reservatório, é necessário um licenciamento ambiental e, para isso, 20% de reserva legal, em razão de liminar. Vinte por cento de reserva legal em um Estado como o nosso, que está antropizado (teve alterações a partir da ação do homem) há 300 anos, o ambiente que está aí não é o original. É diferente de outras regiões do país, onde a agricultura chegou depois. Que produtor pode abrir mão de 20% da propriedade a título de nada? Se tivesse ainda pagamento por questões ambientais... E o Código Florestal previu isso. É uma questão de interpretação jurídica.


GISELE LOEBLEIN


04 DE SETEMBRO DE 2021
REFLEXÃO

LEVEZA COM A IMPERMANÊNCIA

AINDA CHEIA DE LUCIDEZ E SAÚDE, MINHA VIZINHA DE 77 ANOS, A SILVINHA, ENCARA A FINITUDE COM TANTA NATURALIDADE, QUE SURPREENDE

Uma vizinha fora do comum, que se tornou amiga há alguns anos, chega ao meu apartamento muito indignada. Revisando os papéis da própria cremação, que ela pagou há anos, Silvinha descobriu que o corpo é levado para outra cidade. Estava decidida a partir pra briga com a empresa, entendendo que o velório todo seria longe das pessoas queridas que ela quer "ver" no funeral. Expliquei que a cerimônia de despedida deve ser mesmo em Porto Alegre, e a cremação em si pode acontecer em outro local. Assim, consegui tranquilizá-la.

Esta mulher de 77 anos, cheia de lucidez e saúde, ainda pode viver muito tempo, mas encara a finitude com tanta naturalidade que surpreende. Não foi ao acaso encontrá-la, eu que simplesmente caía no desespero só de falar em morte. Nossas conversas me ajudaram muito a internalizar o conceito de que a vida é um ciclo, é pura impermanência. Mas ela conta que nem sempre foi assim, foram anos de investimento emocional e espiritual.

Gosto de dizer que minha vizinha é um culto ecumênico onde cabem várias crenças, todas praticadas com a mesma fé. Católica, costuma ir à missa aos domingos sempre que pode, não com o peso de um compromisso inadiável. Diariamente, faz parte de um grupo de oração, e, aos sábados, frequenta um grupo de budismo. Já fez peregrinações, pratica meditação e o oriental Tai Chi Chuan e é voluntária numa instituição que cuida de crianças.

No testamento, determinou o que quer que façam dos seus bens. Não quer é dar incômodo pra ninguém e, para isso, a documentação está em dia. Os telefones do gerente, do advogado, de parentes próximos e da funerária estão à vista. Por enquanto, vai desfrutando um dia de cada vez, quase sempre com o astral lá em cima. Se a tristeza bate, se recolhe um tempo e, depois, volta faceira.

Não é sobre as milhares de mortes que a maior parte de nós tem acumulado e chorado. Mas, nestes tempos de perdas dolorosas, soa como um alento esta serenidade. Quando terminamos o papo, Silvinha saiu corredor afora cantando o clássico do Hermes Aquino, aliás, uma letra que ela usou na juventude para terminar um namoro. "Eu sou nuvem passageira, que com o vento se vai... Você não vê que a vida corre contra o tempo? Sou um castelo de areia na beira do mar". Somos, Silvinha, somos! E é esta consciência que nos torna melhores, e bem mais leves. 

DANIELA SALLET (*) 

04 DE SETEMBRO DE 2021
J.J. CAMARGO
QUE A CIÊNCIA NOS PERDOE

"Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária." (Karl Marx)

Claro que tendo sido sacudidos por comportamentos bizarros, com tamanha intensidade, era previsível que adotássemos uma atitude reativa que somasse o espanto do inusitado com a reconhecida capacidade de indignação do ser humano, principalmente quando amedrontado. O que a retrospectiva desses 18 meses de desvario ressaltará para a posteridade como mais chocante será o sentimento de que alguém, se sentindo dono de uma determinada opinião, se sentisse livre para usá-la com o descompromisso de não precisar sustentá-la e sem medir as consequências.

E então, servindo-se da desorientação generalizada e beneficiados pela liberdade de expressão (um direito convenientemente mal definido), pareceu natural que a lata do lixo da internet fosse transformada em reservatório técnico capaz de abastecer de informações pretensamente confiáveis desde o palpiteiro inofensivo até o radical paranoico e perigoso.

E o dano foi maior porque a falta de cultura geral induz a acreditar que tudo o que está escrito em algum lugar deve ter, ao menos, um fundo de verdade.

Então, inundados de caos, nos sentimos cercados de absurdos teóricos ungidos da aparência de verdade absoluta, funcionando como azeite e vinagre para temperar a salada de argumentos ridículos a serviço de pretensões delirantes.

Quando tudo já parecia complicado demais, ainda tivemos que filtrar o viés do interesse econômico, reconhecido como mais eficiente triturador da imparcialidade.

E então a espiral de loucura extrapolou, quando um pessoal com pálido verniz acadêmico se sentiu liberado para emitir pareceres científicos e, empolgados com a convocação da mídia e deslumbrados com a identidade reluzindo no rodapé do monitor, foram transformados agudamente em oráculos do conhecimento e soltaram o verbo, confiando, com justiça, que a imensidão dos ouvintes, do outro lado da telinha, sabia ainda menos.

A primeira e triste percepção foi de uma formação universitária deficiente, a ponto de, na segunda frase, deixar evidente que a curiosidade é importante, mas não suficiente para "ler" um artigo científico.

A crise sanitária, com a mortandade andando a galope, soprou as brasas da afoiteza, um dos obstáculos fatais para ciência mais elementar. A principal imposição da pandemia foi submeter a ciência à urgência, sendo essa a antítese da metodologia básica que exige coleta de dados, critérios de elegibilidade, pareamento de grupos, duplo cego, comparação de resultados, repetição em outro ambiente, espírito científico como sinônimo de isenção, além de um atributo que não se sabia tão raro: honestidade intelectual.

Como explicar a alguém que nunca trilhou esses caminhos que o principal objetivo da ciência é fugir da insegurança da probabilidade e da insensatez da paixão?

Se você não tinha noção desses fundamentos, não se puna exageradamente, apenas trate de proteger a sua autoestima e, em nome dela, cale-se.

Nem tudo é culpa sua. Mas nada justifica a sua adesão gratuita a um de dois grupelhos lamentáveis: o dos incautos, que por desinformação se associa ao clube dos inocentes úteis, ou o dos canalhas, que defendem o que não creem por interesses escusos.

J.J. CAMARGO

04 DE SETEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Tudo que é muito doce é perigoso

Sei exatamente o ano em que andava aficionado por Martini Bianco: 1983. Foi o ano em que o Grêmio ganhou a Libertadores e, em dezembro, o Mundial Interclubes. Ocorre que, no dia da batalha de La Plata, contra o Estudiantes, eu, o Sérgio Lüdtke e o Rocha fomos de carro para Santa Cruz.

Agora, pesquisando, descobri que dia foi aquele: 8 de julho, uma sexta-feira. Ao chegarmos a Santa Cruz, fomos assistir ao jogo em um bar que ficava em um posto de gasolina. Não sei por que fomos a Santa Cruz, lembro de poucas coisas daquele final de semana. Minha recordação mais sólida é de uma garrafa de Martini Bianco que, por algum motivo, foi posta entre as minhas mãos, no banco detrás do carro. Fui bebendo aquele Martini no gargalo mesmo e, quando cheguei a Santa Cruz, estava mareado.

Mas o exagero não foi suficiente para me fazer sentir repugnância por Martini Bianco, como aconteceu momentaneamente com os vinhos e os licores em episódios que já narrei. Apenas passei a ter mais cuidados com bebidas docinhas. Tudo que é muito doce é perigoso, essa é a verdade da vida.

Constate você, com essas histórias que venho contando nos últimos dias, que posso me tornar um homem de excessos. Ou podia, agora tento ser mais contido. Foram-se a juventude e a ousadia.

Quanto aos martínis, passei a preferir os secos. O dry martíni. É que gosto de filmes e livros de detetive, e os detetives americanos adoram dry martíni. Com azeitonas, evidentemente, o dry martíni, sem azeitona, perde sua alma. Então, sorvendo um dry martíni com um ar reflexivo, sinto-me Phillip Marlowe, e é bom se sentir Phillip Marlowe.

Marlowe também gostava de uísque de centeio, o rye whiskey. Ou de bourbon, como o Jack Daniel?s. Uma vez, estava na Escócia, visitando uma fábrica de uísque. O cicerone perguntou se eu tinha algum uísque em casa e respondi que sim.

- Qual? - ele quis saber. Eu: - Jack Daniel's. Ele deu um tapa na própria testa:

- Não! Não! Não! Jack Daniel?s não é uísque!

A seguir, passou 10 minutos me explicando a diferença entre bourbon e uísque. Ouvi com toda a atenção e hoje já não sei mais nada. Em todo caso, aprecio bourbons. Como Marlowe. Se você não conhece Marlowe, vou reproduzir aqui um texto de A Dama do Lago, em que ele se apresenta assim:

"Sou um detetive particular e já tirei minha licença há um certo tempo. Sou um lobo solitário, solteiro, chegando à meia-idade, e não sou rico. Já fui mais de uma vez para a cadeia e não atuo em casos de divórcio. Gosto de bebida, de mulheres, de xadrez e de poucas coisas mais."

Philip Marlowe é o cara, como diria Obama.

Mas estamos falando de drinques. Para acompanhar uma refeição, haverá de ser cerveja ou vinho, é claro. Tenho amigos que sabem muito de vinho. Eu os invejo. Gostaria de sorver um gole de tinto e, em seguida, fazer uma avaliação usando palavras como: encorpado, herbáceo, frutado, aveludado, amadeirado...

Mas não cheguei a esse nível. Sou um bebedor vulgar. Cometo infrações como fazer caipirinha com vodca, por exemplo. Aliás, é o que vou fazer agora mesmo. Vou preparar uma caipira e reler algum clássico do Philip Marlowe. Bom fim de semana.

DAVID COIMBRA 


04 DE SETEMBRO DE 2021~
FLÁVIO TAVARES

PINTANDO O 7

Neste 2021, se depender da vontade e da ação do presidente da República, a data da Independência será, literalmente, um dia de pintar o sete. A velha expressão "pintando o sete", significando criar confusão e alvoroço (ou "aprontar" na gíria atual), se materializa agora na concentração que Jair Bolsonaro comandará em São Paulo, dia 7, não muito distante do Riacho Ipiranga.

Ali, às margens do arroio, ouviu-se o grito que passou à História como "Independência ou Morte", mas que deve ter sido "Independência ou Sorte". Sim, pois só com sorte sobrevivemos ao desmando e reboliço dos governantes.

O presidente sairá de Brasília para comandar na Pauliceia uma concentração popular no estilo daquelas que a Alemanha nazista alardeava nos anos 1930-40 ou que o ditador da Coreia do Norte exibe no século 21. O único fim é a propaganda, o "culto à personalidade" do rei absolutista com poder total e único. Dias atrás, Porto Alegre assistiu à exibição de força em que o presidente puxou milhares de motociclistas pela zona sul, como se o estrondo dos motores substituísse as inexistentes ações concretas de governo.

Por isto, nada tendo a festejar neste 7 de Setembro, prefiro esquecer o dia Da Independência e recordar uma data alheia - o início do ano novo na tradição judaica.

No Rosh Hashaná ("Dia do Julgamento" em hebraico) termina o ano de 5781 e começa 5782. É o início de um período de meditação de 10 dias sobre a doçura do viver, simbolizado no rito de alimentar-se com mel.

Há muito o Brasil se arrasta sem doçura, substituindo o debate pelo preconceito e fantasiando violência como "salvação". O que dizer quando o presidente proclama ser mais importante "comprar um fuzil do que feijão" ou quando insiste em que "a guerra leva à paz", como frisou na homenagem aos atletas militares na Olimpíada?

Não falo sequer do "gabinete do ódio" instalado no próprio Palácio do Planalto em Brasília. Nenhum apelo à violência soluciona problemas nem faz chover para aumentar as represas das hidrelétricas e evitar futuros apagões.

Tampouco impede o avanço do fantasma da inflação, que gateia como criança nas compras do dia a dia.

A responsabilidade de governar obriga (mais do que tudo) a ações concretas na crise climática, obra humana que ameaça a vida no planeta. Seguimos inertes, porém, desafiando o futuro ao incentivar a exploração de carvão mineral e petróleo.

Hoje, pintar o sete é colorir o futuro, jamais lambuzar-se de óleo ou carvão.

FLÁVIO TAVARES

A INSPIRAÇÃO DO PACTO ALEGRE

O futuro de Porto Alegre não diz respeito apenas aos que vivem na cidade. Como núcleo administrativo e principal centro urbano, simboliza em boa parte o que é o Rio Grande do Sul. Com seus encantos, mazelas e multiplicidade étnica, molda e sintetiza a percepção do restante do país e do mundo em relação ao Estado. Fazer da Capital um lugar melhor para se viver, trabalhar e empreender, portanto, é um propósito que, se alcançado no nível planejado, será benéfico para toda a sociedade gaúcha.

A tarefa de alavancar Porto Alegre para um novo patamar de cidade capaz de proporcionar mais bem-estar, progresso e oportunidades esteve no âmago das discussões promovidas pelo Pacto Alegre durante a semana que passou e que culminaram na aprovação de sete projetos destinados a nortear os passos para transformar a Capital nos próximos anos. Aposta na educação, revitalização do Centro Histórico, incentivo à inovação, fomento a startups, ampliação da cultura digital e facilitação do empreendedorismo são algumas das frentes que serão prioridade daqui em diante. O Pacto Alegre é uma iniciativa que une instituições de ensino, poder público, entidades privadas e sociedade civil, com o propósito de impulsionar a qualidade de vida na cidade, em suas mais diversas dimensões. Do econômico ao social.

A escolha dos projetos é mais um passo nessa união de esforços em busca de um objetivo comum. Enquanto o país vive dias tensos e de discórdia, o Pacto Alegre se torna um exemplo inspirador de como é possível construir consensos e alinhamentos, com a convergência de atores de diferentes áreas. Trata-se de um fórum com o propósito e o potencial de mudar mentalidades, introjetando a certeza de que é possível forjar uma Porto Alegre mais acolhedora e onde sonhos profissionais possam ser realizados, contribuindo para o desenvolvimento de todo o Rio Grande do Sul. E, por que não, servir de modelo para que outros municípios gaúchos procurem, de acordo com suas características, prospectar novas formas de prosperar abertas pela era do conhecimento e da tecnologia.

A reinvenção de Porto Alegre, sintonizando a cidade à economia do futuro e tornando-a mais agradável para viver e inclusiva, tem ainda o condão de ajudar a estancar o êxodo de cérebros para centros maiores. Em meio a tantas dores, um dos legados da pandemia foi mostrar que o trabalho, em certas atividades, poderá ser cada vez mais exercido a distância. Reter talentos e tornar a Capital o epicentro fervilhante de novas oportunidades, por meio do surgimento de um ambiente mais convidativo para o empreendedorismo e a inovação, não só será salutar para a economia como fará bem à autoestima de todos os gaúchos.


04 DE SETEMBRO DE 2021
RECH

Os patos do Parcão

Pois a prefeitura de Porto Alegre decidiu retirar os patos e gansos do Parque Moinhos de Vento, que por gerações fizeram a alegria de crianças que viraram adultos. Não que a decisão da prefeitura esteja errada. Ela é só uma contingência da deseducação e do fermento corrosivo que destrói, pouco a pouco, a sociedade brasileira. "Patos não deveriam estar em parques abertos, sujeitos a ações de vândalos e outros animais", explicou um funcionário da prefeitura.

Em Porto Alegre e no Brasil, faz sentido. Mas no mundo onde se respeitam bens públicos, o que inclui patos e cisnes alegrando parques praças, a justificativa seria recebida com espanto. Onde mais se tolera que donos de cachorros soltem seus animais para atacar aves ou que patos sejam surrupiados? Sim, no Brasil furtam-se até patos de parques em áreas nobres, sem contar tampas de bueiros e fios da iluminação pública.

Olhando em retrospecto, não adianta tentar responsabilizar ideologias ou um governante ou outro pelo descalabro. Na China ou na Holanda ultraliberal, quem quer que se adone de um busto em praça pública para derretê-lo e vender ou comprar o metal vira um pária. No Brasil, não. Somos condescendentes com os atentados às coisas públicas desde sempre. Há cinco anos, o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado lançou-se a um meritório programa de restauração de monumentos na Redenção. Boa parte havia sido depredada, pichada ou furtada meses depois.

O símbolo máximo dessa desfaçatez talvez tenha sido o furto da taça Jules Rimet. Maior conquista do esporte nacional, a taça veio em definitivo para o Brasil com o tricampeonato mundial de futebol, em 1970. Podia ser hoje objeto de culto por brasileiros e turistas estrangeiros. Com a conivência de um funcionário da CBF, a taça foi furtada e seus 3,8 quilos de ouro, derretidos. Nunca mais pôde ser admirada, como o tesouro da humanidade incinerado pelo descaso do incêndio no Museu Nacional.

Não há como se construir uma nação sem consciência social, que começa pela educação e pela responsabilização individual, não importa de quem seja. Governantes podem e devem dar o exemplo. É verdade que a roubalheira da Lava-Jato, graças a uma eficiente estratégia de marketing e à competência de advogados, virou uma injustiça malvada contra pobres políticos perseguidos. Também é verdade que, para muitos, rachadinha não é crime, desvios na saúde são questão de oportunidade e a promiscuidade de políticos com milicianos não é tão grave assim.

Então que, ao invés de copiar os maus exemplos, a maioria honesta e decente ponha as coisas nos seus devidos lugares, como o fez nesta semana o porteiro de um prédio que estava sendo pichado em Porto Alegre. É só uma pichação, tentou protestar ao vigilante a dupla ao ser flagrada. O porteiro anônimo que chamou a polícia é o Brasil que pode dar certo.

MARCELO RECH