sábado, 12 de março de 2022


12 DE MARÇO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

CAFEÍNA E SONO

Sem um gole de café pela manhã, sou indigente. Consigo trabalhar, falar o essencial e até raciocinar, mas em câmera lenta. É o primeiro cafezinho que me devolve a vontade de viver.

Um estudo recém-publicado na revista Science Translational Medicine mostra que, além das propriedades euforizantes, o café consumido à noite perturba o sono.

Até aí, minha avó sabia. O mérito de Burke e colaboradores, da Universidade de Zurique, foi elucidar os mecanismos moleculares por meio dos quais uma quantidade de cafeína equivalente a dois expressos, interfere com o ciclo circadiano - conjunto de reações do organismo que se repetem a cada 24 horas - controlador dos períodos de sono e vigília.

A cafeína é antagonista dos receptores da adenosina, substância essencial para que o sono se instale no cérebro.

Existem dois tipos de receptores cerebrais para a adenosina: o primeiro é considerado inibidor de sua ação (portanto do sono), enquanto o outro é facilitador.

A quantidade média de cafeína ingerida por qualquer um de nós, diariamente, é suficiente para antagonizar até 50% de ambos receptores, ação que nos deixa mais alerta, combate a fadiga, prolonga o tempo de vigília e reduz a profundidade do sono.

Como dormir é essencial para a saúde e a qualidade de vida, os ciclos de sono e vigília são regulados por uma sintonia fina existente entre os processos homeostáticos e os circadianos.

A necessidade homeostática de sono se acumula no decorrer do dia e se dissipa enquanto dormimos; já o relógio circadiano determina a hora de pegar no sono.

O marcador mais preciso para avaliar a necessidade de sono são as ondas lentas (ondas delta) que aparecem no eletroencefalograma, com frequências de 0,75 a 4,5 hertz. Como a cafeína atenua a atividade dessas ondas e bloqueia os receptores da adenosina, sua influência na homeostasia do sono havia sido sugerida há vários anos. O grupo de Burke investigou se ela também afeta o relógio circadiano.

Usando um protocolo rígido por um período de 49 dias, os autores quantificaram o efeito de 200 mg de cafeína, ingeridas três horas antes de ir para a cama, na produção de melatonina, o hormônio que controla o ritmo circadiano de diversos processos, entre os quais o de sono-vigília.

Verificaram que a cafeína atrasa 40 minutos no ritmo da melatonina, quase a metade do retardo causado pela exposição à luz brilhante.

Os autores concluem que as alterações provocadas pela cafeína nos mecanismos que regulam o relógio circadiano podem contribuir para a alta incidência de distúrbios do sono na sociedade moderna. Além disso, a interferência da cafeína com as ondas de baixa frequência tem efeito negativo nas funções cerebrais que dependem da integridade dessas ondas.

Por outro lado, a cafeína pode ajudar a enfrentar o jet lag das viagens intercontinentais e os que sofrem de alguns distúrbios do ciclo circadiano de sono-vigília.

Para conciliar o prazer e as ações benéficas do café com a necessidade de dormir, costumo evitar o cafezinho nas oito horas que precedem o horário de ir para a cama.

DRAUZIO VARELLA

12 DE MARÇO DE 2022
J.J. CAMARGO

A GUERRA DOS OUTROS

"A guerra é sempre a escolha dos que não precisam lutar." (Bono Vox e Pavarotti em "Ave Maria")

Como as pessoas do bem são generosas e se preocupam em serem respeitadas por afeto e não por temor, é fácil identificar a personalidade desses líderes desbravadores que se dispõem a expandir os limites de seus países, não importando o quanto já sejam enormes. Pela ausência de empatia com os subjugados, são inevitavelmente rotulados como psicopatas.

E muitos deles, ao longo da história, prosperaram na esteira de sentimentos coletivos de cegueira, indignação, cinismo, pobreza e iniquidade. Sem esses elementos, fica inexplicável que um país civilizado como a Alemanha, por exemplo, tenha parido e endeusado um doido como Hitler, que de um jeito ensandecido foi um dos maiores líderes da história ocidental.

Como a história, monotonamente, tende a se repetir, muda o século e, quase por geração espontânea, surge uma versão caricata, enriquecida por armamento nuclear invejável e um implacável olhar de indiferença com o sofrimento alheio, além da capacidade assustadora de anunciar, sem elevar a voz, que quem se opuser às suas pretensões sofrerá consequências inéditas na história da humanidade. Com a lembrança vívida dos horrores que a humanidade já viu, essa declaração devia assustar mais do que tudo.

A ferocidade com que ele ocupa um país menor, sem mínimas condições bélicas de enfrentamento, ignorando a agonia sufocante gerada pelo sentimento suicida de patriotismo de seus habitantes, tem claramente a intenção de demonstrar que fortão ele é. E mais do que isso, antecipar aos circundantes sobre o que os espera se houver reação, de qualquer tipo, que não seja a prosaica gritaria.

Como o anúncio de ameaça de guerra nuclear não convence mais ninguém, porque com os armamentos disponíveis dos dois lados isso seria o fim da vida na Terra, ninguém se intimida com esta balela requentada, e começam as articulações de acordos que sejam equilibrados para permitir uma moderada euforia de quem ganhou, mas sem uma humilhação acachapante de quem perdeu. Com a certeza de que o dano moral pela humilhação desse arreglo ficará arquivado para uma revanche no futuro, por causa da tal necessidade da história se repetir.

Na comparação com episódios bélicos do século passado, as guerras atuais são mais fugazes não só porque o planeta perdeu a paciência com ameaças vazias, mas muito porque os instrumentos de pressão do mundo exterior mudaram radicalmente: em vez de sanções, com repercussões imprecisas a médio prazo, inferniza-se o dia a dia do homem do povo, retirando-lhe as facilidades que, por exemplo, Google, WhatsApp, Apple e YouTube emprestavam ao seu cotidiano. Ninguém convencerá que a causa do governo é justa se o cidadão comum não puder mais pagar suas contas pelo aplicativo, fazer compras com cartão, viajar para o Exterior e (o mais singelo) andar de metrô - porque até as cabines que vendiam tickets foram desativadas.

Com o mundo, previsivelmente, tomado de simpatia pelo mais fraco, comove a criatividade desse país com uma riquíssima história milenar de desprendimento, bravura e sobrevivência.

E a preparação para o enfrentamento revela o que cada um valoriza e cultua com devoção: muitos, com os filhos pequenos nas costas, feito mochilas, fogem na direção de uma paz redentora. Outros erguem barreiras e empunham fuzis, sem nenhuma certeza de que terão coragem de disparar o primeiro tiro, mas confiando que o ódio acumulado fará isso. E até houve quem, trancado em casa, a título de proteção contra estilhaços, tenha colocado na janela o seu bem mais valioso: uma barricada de livros.

J.J. CAMARGO

12 DE MARÇO DE 2022
DAVID COIMBRA

Para os amantes de cães

Tem um cachorrinho que fica na janela do vizinho. Vejo-o todos os dias, enquanto escrevo, aqui, no remanso do meu isolamento social. É um cachorrinho branco, parecido com o Milu, o cachorro do Tintim.

Hoje a maioria dos leitores não sabe quem é o Tintim. É um personagem da história em quadrinhos do belga Hergé. O Tintim era um repórter que viajava por todo o mundo levando o Milu junto. O Milu era um fox-terrier branco. Ele falava, era cínico e bebia uísque. Um bom cachorro. Houve polêmica envolvendo as histórias de Tintim, acusadas de racismo. Se olharmos sob a perspectiva atual, são racistas mesmo. Mas quem vai ler precisa compreender que Hergé escreveu sob o ponto de vista belga nos tempos do imperialismo europeu. Se houver essa contextualização, as historinhas de Tintim são ótimas de ler e sorver.

Mas isso não interessa aqui. Aqui o que interessa é o cachorro do meu vizinho, que fica o dia inteiro na janela. O dia inteiro, por Deus. Ele veste uma roupa de cachorro e se debruça no parapeito como se fosse uma pessoa. Passa o tempo todo olhando para a rua com grande interesse. Às vezes, quando outro cachorro caminha lá embaixo, na calçada, ele se projeta um pouco mais, bota meio corpo para fora e late, muito brabo.

Isso é uma coisa que os cachorros têm. Se um cachorro está passando na rua com o seu dono humano e vê outro atrás de uma cerca, ele se põe a latir furiosamente. O outro, por sua vez, late de volta com mais raiva. E, se há mais cachorros nas imediações, todos latem de um jeito belicoso, aqueles cachorros estão se desafiando, estão discutindo como se estivessem na Câmara dos Deputados.

Não entendo isso do mundo canino. Os cães não deveriam ser amigos? Não há solidariedade entre a espécie? Porque, se um ser humano passa, eles não ligam, mas se tem um cachorro junto, pronto: é a maior confusão, todo mundo latindo e brigando.

Francamente.

Pois esse cachorrinho na janela faz isso. Ele não é grande, mas não se intimida com pastores-alemães ou dobermanns. Ele late mesmo.

Aqueles latidos me irritam. Estou escrevendo, ouço os latidos, paro tudo e olho pela janela. Às vezes levanto e vou até o parapeito, para conferir quem ou o que está na calçada. O cachorro me desconcentra. Pior: ainda que ele não faça barulho, me acostumei a olhá-lo. Tornou-se um hábito. Vejo-o quieto do outro lado e me intrigo: por que esse cachorro está tão quieto?

Assim foram-se as semanas e os meses de isolamento. Eu escrevendo aqui e o cachorro na janela ali. Mas, um dia, a janela do cachorrinho amanheceu fechada. Achei estranho. Calculei: vai ver dormiram até mais tarde e vão abri-la perto das 10h. Mas as 10 horas chegaram, as 10 horas passaram e a janela não se abriu. Estávamos já perto do meio-dia, e nada de a janela se abrir. Ué? Será que aconteceu alguma coisa?

Durante toda a tarde eu escrevia um pouco, parava e olhava para fora, para ver se o cachorrinho estava do outro lado da rua. Que nada. Foi-se o dia, chegou a noite, e a janela permaneceu fechada.

Na manhã seguinte, a primeira coisa que pensei ao acordar foi: será que aquele cachorro chato vai estar na janela? Foi com alguma ansiedade que caminhei até a minha mesa, espiei para fora e... ele não estava. A janela do vizinho continuava fechada e o bairro continuava em silêncio.

Passei todo o dia com a sensação estranha de que algo estava faltando. À noite, cheguei à conclusão óbvia: eu não apenas me acostumara com o cachorrinho na janela, como gostava dele! Mas, que droga, e agora ele se foi. Será que morreu? Será que se mudou? Será que caiu da janela?

No terceiro dia, ao deparar com a janela mais uma vez fechada, suspirei de tristeza. Cheguei a pensar em ir até o prédio do vizinho, bater na porta do apartamento e perguntar o que tinha acontecido, mas me contive. Melhor não se meter com os cachorros alheios.

Paciência. Suspirei de novo, resignado.

Peguei meu café e de ombros baixos, liguei o computador, para escrever minha crônica. Mas não tinha ideias. Deu-me um branco. Pensando no cachorro, não conseguia me concentrar. Bebi o resto do café. Ia me erguer para buscar outra xícara, quando... ele latiu! Corri para a janela e o vi no prédio do outro lado da rua, debruçado no parapeito, dentro de sua roupinha, latindo ardorosamente para um guaipeca que vagabundeava perto de um saco de lixo.

Sorri. Fiquei feliz. Sentei-me para escrever, revigorado. E, embora estivesse sozinho, falei bem alto, como em comemoração:

- Late, cachorrinho! Late! Texto originalmente publicado na edição de 20 e 21 de junho de 2020

DAVID COIMBRA

12 DE MARÇO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

O CONSUMIDOR PEDE SOCORRO

Apelidada até de mega-aumento pela magnitude, a elevação dos preços dos combustíveis pela Petrobras confirmada na quinta-feira amplia a agonia dos brasileiros emparedados entre a queda de renda e o desemprego ainda alto de um lado e, de outro, a inflação persistente. Mais uma amostra da escalada do custo de vida foi apresentada na sexta-feira pelo IBGE, que apurou em fevereiro uma alta de 1,01% do IPCA, puxada por educação e alimentos. Foi um resultado acima do esperado pelo consenso do mercado e inquestionavelmente eleva a pressão sobre o Comitê de Política Monetária (Copom), que se reúne terça e quarta-feira para definir a nova taxa básica de juro, hoje em 10,75% ao ano.

A alta nas refinarias de 18,77% na gasolina, de 24,93% no diesel e de 16,06% no gás de cozinha, além do grave impacto direto, carrega o efeito nocivo de espalhar aumento de custos para uma série de outros produtos e serviços. Não é aceitável, portanto, apenas assistir de maneira passiva aos ganhos da população serem corroídos de maneira impiedosa. Deve-se ter cuidado, porém, com soluções mágicas de viés eleitoreiro, com custo elevado e resultado duvidoso.

A elevação dos preços dos derivados por parte da Petrobras já era esperada devido à disparada das cotações do petróleo causada pelo conflito no Leste Europeu. Como resposta, governo e Congresso aceleraram o passo na busca por medidas que minimizem o impacto projetado nas bombas e suas metástases. O Senado e em seguida a Câmara aprovaram na quinta-feira à noite projeto de lei que altera o regramento sobre a incidência de ICMS - cobrado pelos Estados - no setor. Aguarda-se, agora, a sanção do presidente Jair Bolsonaro. Pela proposta, o imposto será cobrado apenas uma vez, deixando de afetar outras etapas da cadeia. Além disso, haverá alíquota única em todo o Brasil. O texto prevê ainda que serão zeradas, até o fim do ano, as alíquotas de PIS/Pasep e da Cofins, mas apenas sobre diesel, gás de cozinha e biodiesel.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, projetou que a medida pode compensar dois terços do reajuste no preço do diesel, ou cerca de R$ 0,60 por litro, sendo R$ 0,33 no que cabe aos tributos federais e R$ 0,27 em relação ao ICMS. Pelo bem dos brasileiros, é preciso torcer para que o sempre exageradamente otimista Guedes esteja desta vez 100% certo e o alívio chegue às bombas e não acabe sendo apropriado pelos elos da cadeia. Em relação ao ICMS, ainda será preciso que os Estados - que demonstram certo desconforto com a saída - regulamentem a mudança.

O Senado aprovou ainda projeto de lei que muda a política de preços da Petrobras e cria um fundo de estabilização, mas o texto não foi apreciado pela Câmara e enfrenta resistência do Executivo. Devido à complexidade do tema, é obrigatória uma profunda discussão em torno da conveniência dessa proposta. Intervenções e controles de preços normalmente causam desastres no médio prazo. Pouco adianta tentar solucionar um problema criando um maior no futuro. 

No texto votado pelos senadores foi ainda incluída a possibilidade de uma espécie de socorro financeiro para gastos com gasolina, direcionada a beneficiários de programas sociais de transferência de renda. Subsídios, custeados por toda a sociedade, muitas vezes se mostram pouco eficientes. Mas, se for considerado indispensável implementar uma iniciativa nesse sentido, o mais justo é focar na ajuda direta aos mais humildes, evitando uma política linear que beneficie de maneira equitativa os mais ricos e os mais pobres.

O reajuste da Petrobras, no entanto, era inevitável neste momento. Corria-se o risco até de desabastecimento caso a estatal continuasse a segurar os preços. A má notícia é que ainda há uma defasagem em relação aos valores praticados no Exterior. Enquanto isso, o IPCA acumula alta de 10,5% em 12 meses e os economistas agora refazem os cálculos, revisando para cima as expectativas de inflação para o país no encerramento do ano. 

A FAO, agência de alimentos da ONU, alertou na sexta-feira que o preço da comida pode subir até 20% no mundo, como resultado da guerra. Resta aguardar que, no país, encontrem-se consensos capazes de minimizar a carestia sem comprometer as contas públicas e a saúde financeira da Petrobras, e o mundo possa assistir em breve a uma vitória do diálogo com uma solução diplomática para o conflito na Ucrânia.

OPINIÃO DA RBS

12 DE MARÇO DE 2022
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA Novidades para o leitor

O caderno Vida desta edição dá início a uma parceria que busca qualificar ainda mais os conteúdos de saúde que preparamos para nossos leitores de ZH e GZH. Pelo menos até dezembro, uma vez por mês serão publicados no suplemento artigos produzidos por médicos do Programa Novos Talentos da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM), além de reportagens feitas em colaboração com esses profissionais.

Na estreia, neste fim de semana, o oncologista André Borba Reiriz, que tem como tutor na entidade Darcy Ribeiro Pinto Filho, fala sobre diagnóstico e tratamento do câncer. Entre os próximos temas estão, por exemplo, ansiedade e depressão, menopausa, glaucoma, disfunção erétil e diabetes.

O editor do Vida, Ticiano Osório, conta que a iniciativa surgiu no final do ano passado, por meio de um contato do médico Rogério Sarmento Leite, diretor do Programa Novos Talentos, visando à publicação de conteúdos que contribuíssem para a educação em saúde da população.

- A parceria com a academia, uma entidade com mais de 30 anos, qualifica a informação médico-científica publicada pelo caderno Vida - afirma o editor.

O versátil Ticiano Osório também é o responsável pelo caderno especial digital de ZH sobre a cerimônia do Oscar, que ocorrerá no dia 27. No guia de 20 páginas, Ticiano, que além de editor é também colunista e comentarista de filmes e séries dos veículos da RBS, apresenta os 53 concorrentes que receberam da Academia de Hollywood pelo menos uma indicação ao prêmio, um dos principais do cinema.

O caderno digital mostra o que ver, onde ver e por que ver os filmes e traz informações e opiniões sobre praticamente todas as categorias disputadas. O especial também traz o link para os trailers de 19 dos 53 filmes.

Aos nossos assinantes, Ticiano dá a dica:

- É um guia para animar a contagem regressiva até a cerimônia de entrega das estatuetas douradas, em Los Angeles, onde um brasileiro poderá fazer história, sabia?

O Guia do Oscar está disponível aos assinantes no aplicativo e no site de GZH.

DIONE KUHN

sábado, 5 de março de 2022


05 DE MARÇO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Um novo olhar

Cerca de 10 anos atrás, estudei em Londres com uma professora inglesa de pele diáfana, com quem eu passava as tardes em conversação, a fim de me aprimorar no idioma de Shakespeare. Entre vários assuntos, falávamos também sobre vida pessoal. Várias vezes ela mencionou seu namorado, um economista. Planejavam se mudar para Ibiza assim que ele terminasse o doutorado. Só no último dia de aula ela mostrou a foto do moço, e me dei conta que eu sempre o imaginava como sendo branco.

Corta para semana passada, quando voltei de uma temporada carioca e postei nas redes algumas fotos de encontros com amigos. Atenta, a escritora e atriz Elisa Lucinda, com quem também me encontrei, enviou um áudio zombeteiro para meu WhatsApp: "Descobri através das suas fotos no Instagram que sou sua cota no Rio". Ela tem intimidade suficiente comigo para disparar essa flecha, e que bom que o fez.

Anos atrás, Elisa, que é negra, gravou uma entrevista contundente, falando de como pessoas brancas entram num restaurante onde só tem brancos e não percebem que há algo errado com isso. "Se tem territorialidade, tem apartheid", denunciou ela.

Hoje vemos negros e pardos em plateias de teatros, em concertos de piano, dentro de aviões, mas o número ainda é infinitamente inferior à metade que lhes cabe em representatividade, uma vez que são mais de 50% da população. É um avanço contar com Gaby Amarantos e Emicida apresentando programas de tevê, ver elencos de novela menos desiguais, modelos negras nas passarelas e propagandas, mas ainda é cota. Elisa é uma amiga que a arte me deu. Ela não foi minha colega no colégio, não a conheci na academia de ginástica, não frequentamos a mesma sala de espera do médico, ela não foi minha cunhada, não chefiou departamentos nos locais em que trabalhei. Quem se atreveria a dizer que o termo "apartheid" é um exagero?

Vim da classe média alta do sul do país, o que explica meu quase inexistente contato social com negros, mas isso não me aliena da luta contra o racismo, ao contrário. Sei que cabe ao governo diminuir a desigualdade, mas e a parte que cabe a nós? Refletir sobre os nefastos condicionamentos culturais que herdamos é urgente. Se alguém comentar sobre uma empresária que está se destacando no mundo dos negócios, é básico supor que ela seja negra, assim como a terapeuta que uma amiga nos recomenda, assim como o economista por quem minha professora se apaixonou. Qual o espanto? O mundo não é dos brancos, o universo produtivo e intelectual pertence a todos. É constrangedor escrever essa obviedade, é vergonhoso, mas expor as fissuras comportamentais de uma criação apartada dos negros e de sua história também é uma forma de reparação. Elisa, toque aqui.

MARTHA MEDEIROS

05 DE MARÇO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Entre a guerra e as picuinhas

Em vez das escolas nos sambódromos, o desfile de blindados.

Lá se foi mais um Carnaval com toques de pandemia e, neste ano, com o tristemente esperado evento de uma guerra, para tirar toda e qualquer fantasia dos noticiários.

No lugar dos foliões na rua, milhares de refugiados.

A melhor definição sobre a guerra é a da ilustradora espanhola Laura Árbol, que desenhou, de um lado, A Origem do Mundo, o quadro clássico em que Gustave Courbet escancarou o sexo de sua modelo na cara dos puritanos da época. Do outro lado, Laura desenhou um pinto mole com a legenda: A Origem da Guerra. Vale a pena ver no Instagram dela, @lauraarbol.

Da breve paz promovida - coincidentemente ou não - pelo presidente, com direito a um telefonema de duas horas que não houve, até as análises que pipocam no WhatsApp da gente a todo instante, uma certeza: vivemos a era dos especialistas em leste europeu. Sem querer fazer injustiça, a maioria não exatamente sabia onde ficava a Ucrânia, até o começo dessa desgraça. Mas agora discorre com o tom de professora das antigas de uma Eliane Cantanhêde sobre a situação geopolítica daquele parte do planeta.

Para não incorrer na mesma inconveniência, e apesar da tentação, essa humilde coluna fica em assuntos mais terrenos. Por exemplo, algumas observações sobre a praia, depois de dois anos pandêmicos sem botar o pé em uma.

A praia é o território dos descuidos, alguns inofensivos. Certas roupas de banho, depois do mar, viram um quadro ao vivo de Gustave Courbet. Deve ser por isso que algumas sungas brancas vêm com estampas estratégicas na frente, e a melhor de todas vi nessa temporada: Ame-o ou Deixe-o, e ainda com glitter na estampa. Impossível não olhar uma vez. Duas vezes. Três vezes. Para ser sincera, estou olhando até agora.

Descuido com a natureza: bitucas de cigarro, espigas de milho, canudos de plástico, latas, copos, papel de picolé, até fralda descartável. No final do dia, um tapete de sobras sobre a areia. O que esperar do porcalhão que não se digna a colocar seus restos no lixo?

No capítulo das imprudências, segue o hábito de ir até as rochas que parecem tão pertinho, logo ali, no mar. Vai a turma toda, tomando caldo das ondas mais fortes, e fica se divertindo nas pedras, lagarteando no sol, dona da imensidão. Na hora de voltar, a praia parece bem mais longe e o fundo do mar, bem mais fundo. Haja sangue frio - e a ajuda dos salva-vidas - para sair da enrascada.

E as pessoas perdidas? Parece que esse foi o verão em que mais adultos se perderam nas praias. Deve ser efeito do confinamento, tanto espaço deu um nó na cabeça do povo. Até onde se sabe, todos reencontraram as famílias. Mas não se descarta que, daqui a alguns anos, o pai bata na porta dizendo que entrou no mar em Mariluz, saiu em Paraíso e levou aquele tempo todo tentando achar o caminho de casa. Uma versão atualizada do foi comprar Hollywood e só tinha Minister.

Caixas de som. Viu o caso do sujeito que chegou no Leblon com uma enorme caixa de som e botou um tum-tum-tum para tocar na areia? Acabou em pancadaria. Sou contra todos os conflitos, no leste europeu e onde for, mas essa briga tem meu apoio. Qual artigo da Declaração dos Direitos Humanos permite que alguém ouça pé na areia/a caipirinha/água de côco/a cervejinha em looping, o dia inteiro, no volume máximo, independentemente dos ouvidos dos outros? Todos os homens são iguais (arrã), mas alguns têm caixas de som do tamanho de uma geladeira. Azar de quem pegar praia ao lado deles.

E, assim, entre as picuinhas de sempre e uma guerra que não dá mostras de terminar tão cedo, lá se vai mais um verão.

CLAUDIA TAJES

05 DE MARÇO DE 2022
LEANDRO KARNAL

O filme fez sucesso nas telas e nos debates das redes sociais. Não Olhe para Cima (Dont Look Up, 2021, de Adam McKay) é uma comédia sobre o impacto de um corpo celestial na Terra. Percebido com meses de antecedência por astrônomos fora do mainstream, envolve o esforço de divulgar a notícia do cataclismo. O meteoro é só um pano de fundo, fundamental, todavia se torna o palco da exibição de uma imensa fauna de conflitos.

É uma comédia com reflexão bem séria, escrachada até nas cenas extras depois dos créditos, pesando a mão na caricatura. Acho que o riso desarma muitos espíritos e pode ajudar a entender mais do que um sisudo documentário político.

É difícil definir o exato tema da obra. É sobre o caráter estrutural podre da política? Sim, mas a questão maior não é uma presidente incapaz de focar no mais importante. Ela sempre é submissa a imperativos econômicos e de poder do seu grupo. Acho que se trata, antes, da própria maneira de comunicação da política. Se precisarmos de uma palavra mais sofisticada, analisa a epistemologia de percepção dos valores políticos espetacularizados. Como gerir um grupo enorme sem estar submetido a normas midiáticas emocionais e fúteis? Assim, a película julga uma presidente dos EUA e seu filho idiota, porém, ao mesmo tempo, julga toda a maneira de perceber o poder pelo público. Eleita e eleitores estão na berlinda, desde episódios banais sobre ela fumar até em comícios de celebração da estultice coletiva.

Seria um filme sobre ciência e negacionismo? Sim, também, ainda que vejamos na ficção a ciência dialogando com o desejo de fama e com a sedução das redes. Os cientistas não são paladinos absolutos da ética. Sabem de um fato real objetivo, são mais claros quanto ao risco enfrentado, entretanto, não são habitantes externos do nosso mundinho caótico.

Houve quem apontasse a questão feminista: ninguém consegue ouvir a descobridora do asteroide porque ela é mulher e passional na exposição.

É obra conservadora que aposta na família tradicional, bênção de ação de graças e união em torno dos valores fundantes dos EUA? A cena do jantar em família com uma belíssima oração parece ser o momento mais poético de toda a obra.

As críticas sobram para os modelos de empreendedores com algumas patologias psíquicas e de sociabilidade deficiente. O dono da megaempresa e mago da tecnologia é alguém desligado do real, excêntrico e maligno. Incapaz de qualquer empatia até com o fim da sua aliada política. Vaidoso e milionário, sabe explorar as deficiências do seu consumidor ávido em ser conduzido a uma "servidão voluntária".

Haveria uma vida superior entre os ricos? Cate Blanchett (a jornalista) narra sua trajetória biográfica: dinheiro, vários mestrados, casos com dois ex-presidentes, a posse de dois quadros de Monet, etc. Leonardo DiCaprio é doutor em astronomia e leva uma existência a mais banal possível. As duas narrativas feitas na cama serviriam para ressaltar o voyeurismo crescente de todos pelo espetáculo também na vivência pessoal? Uma descreve grandes experiências e posses; outro, a narrativa da microfísica da existência comum. Ambos são problemáticos.

Claro que existe uma intenção política de pensar o momento conservador nos EUA e no mundo. Parece ser, igualmente, uma metralhadora sobre o caráter medíocre de tudo: dos cientistas, dos capitalistas, dos políticos, dos jornalistas, da cultura pop e até do público em si. O filme é um manifesto político-cultural sobre tudo o que estamos vivendo.

Se eu pensasse de forma muito básica, diria que se trata de um mundo que não deseja olhar para cima (o real, o corpo celeste que se aproxima, o fim próximo) e daqueles que fazem uma leitura ideológica dos dados objetivos e pensam que o desastre é uma narrativa, algo inventado na China ou pela conspiração da imprensa. Isso seria fácil, pois teríamos, no caso, o certo (a ciência, os dados objetivos e o mundo externo) e uma construção delirante de outro grupo. No filme, o drama está na proximidade dos dois grupos.

Sim. Um olha para cima, outro, para baixo, ambos funcionam a partir da sedução da fama, do diálogo ressentido com o sucesso e com o fracasso, a sociedade do espetáculo, a emotividade teatral e a incapacidade de existir sem a imersão no mundo líquido, para fazer uma concessão a Bauman. Claro, surge um grupo produtor do filme-catástrofe que, querendo público das duas tribos, lança a campanha de não olhar nem para cima nem para baixo. Seria, quem sabe, a neutralidade estratégica de mercado.

Durante todo o longo filme, pensei na crítica ácida de Alexis de Tocqueville sobre a democracia na América. Ele analisou em profundidade, porém, jamais ficou encantado pelo acesso das massas ao poder. Estava ao lado de Platão e outros que sempre viram o voto universal com profundas reservas. Ditaduras são cruéis e equivocadas. Democracias levam a conviver de forma quase crua com a fulanização do mundo.

Não tem jeito. Enquanto o meteoro não colocar um epílogo na nossa dúvida, o jeito é olhar para as eleições com o máximo de senso crítico e escolher pessoas aptas. Nossa esperança é que o nosso fim não esteja nas urnas, ao menos.

LEANDRO KARNAL

05 DE MARÇO DE 2022
ELIANE MARQUES

COMO EVITAR O DESTINO DA GUERRA

Em setembro de 1932, Freud responde a Einstein carta na qual este lhe pergunta acerca dos modos de se evitar o destino da guerra ("O porquê da guerra", 1933). Freud se assusta com a questão, mas logo compreende que Einstein pede apenas considerações de natureza psicológica sobre o tema. Entre outras conjeturas, o físico desconfia que tendências ao ódio e à destruição entusiasmam a humanidade para a guerra, com o que concorda o psicanalista, assentado em parte da teoria das pulsões. A pulsão de morte está amalgamada à pulsão de vida; uma tende a conservar e unir; a outra, a matar e desagregar. A pulsão de morte é ubíqua e serve à pulsão de vida - destruímos algo estrangeiro a nós em lugar de nos destruirmos.

Em O Mal-Estar na Cultura (1930), texto no qual espanca quaisquer dúvidas sobre a pulsão de morte, o psicanalista dirá que, aos apreciadores de contos de fadas, não lhes agradam conjeturas sobre uma pulsão agressiva constitutiva, pois acaso deus nãos nos criou à imagem de sua própria perfeição? Talvez advenha de tal crença a dificuldade de conciliarmos a existência do mal (especialmente aquele que nos habita) com a onipotência e a bondade de deus. De forma cômica, Freud postula que o diabo cumpriria função econômica de descarga idêntica à que o judeu cumpre no mundo dos ideais arianos e, digamos, todos os nãos brancos cumprem no mundo embranquecido. O diabo seria o subterfúgio perfeito para desculparmos deus.

Nesse sentido, "Amarás ao próximo como a ti mesmo" não seria diferente de "Amarás a teu inimigo". Ainda que nos mascare um verniz de ética cristã, sejamos ateus ou professemos outra religião, não concebemos próximo nenhum como merecedor do nosso amor. Qualquer próximo é mais inimigo do que amigo, especialmente se ele se mostrar como um alienígena à comunidade dos semelhantes. Portanto, o próximo não representa apenas um possível colaborador ou objeto sexual, senão um motivo de tentação para satisfazermos nele nossa agressividade, para explorarmos sua capacidade de trabalho sem lhe retribuir, para lhe causarmos sofrimento, martírio e assassinato. As relações sociais são perturbadas por tais tendências agressivas. Devido a elas, a sociedade se vê às margens da desintegração - as paixões pulsionais são mais poderosas que os supostos interesses racionais.

A comunidade dos semelhantes, antes referida, não diz respeito apenas à classe social em sentido amplo (raça, orientação sexual, identidade de gênero, classe em sentido estrito, nacionalidade...), inclui também a semelhança do escrever, do articular concepções teóricas, enfim, o modo de viver. Se suas decisões forem diferentes do que prescrevo como correto ou, melhor, se seu modo de gozo for diverso do meu, certamente o tal próximo será um degenerado, mais um tombado da esfera celeste onde me encontro junto com os deuses meus semelhantes. Cabe apenas empreender outra guerra contra ele, na ignorância de que ele é outro de mim mesmo.

ELIANE MARQUES

05 DE MARÇO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

ÔMICRON REPRESENTA O FIM DA PANDEMIA DE COVID OU SERÁ SÓ MAIS UMA VARIANTE?

E agora? A Ômicron será apenas mais uma das variantes a nos infernizar ou apontará para o fim da epidemia brasileira?

Essa pandemia nos ensinou que prever o futuro é tarefa inglória. Você, caríssima leitora, lembra que no início de 2020, quando nem havia vacinas, as previsões falavam de um pico de infecções e mortes, seguido da queda brusca do número de casos?

Enquanto aguardávamos o tal pico, o vírus acumulava mutações em silêncio que dariam origem a variantes mais contagiosas, como a delta, que se espalhou pelo mundo deslocando as anteriores. No final do ano passado, diminuiu a procura por leitos hospitalares e a mortalidade caiu. Vários países afrouxaram as medidas de prevenção, para voltar atrás depois da euforia de fim de ano que ajudou a disseminar uma variante nova, muito mais contagiosa do que as anteriores: a Ômicron.

Em mais de 50 anos de medicina, nunca vi uma virose se disseminar com tamanha rapidez. Ela, que era responsável por cerca de 1% dos casos de covid ao redor do mundo, em duas semanas atingiu a marca de 50%. Em dois meses, tinha espantado a variante Delta para se tornar presente em quase 100% dos casos. Virologista nenhum ousaria prever o aparecimento de um vírus que se disseminaria pelo mundo nessa velocidade.

O sucesso da Ômicron se deve ao número de mutações sofridas. São cerca de 50, várias das quais em estruturas do vírus que funcionam como alvos para as vacinas. Com essas características, a vacinação e a doença prévia causada por outras variantes não foram capazes de proteger contra uma nova infecção. Não obstante, conseguiram reduzir a gravidade da doença.

Na fase em que nos encontramos podemos pensar em dois cenários: um pessimista, o outro não. No primeiro, surgirão novas variantes ainda mais contagiosas e, eventualmente, mais agressivas que perpetuarão nossas agruras sabe-se lá por quantos anos. O segundo acena para o fim da epidemia graças à vacinação somada ao grande número de pessoas imunizadas pela própria disseminação da ômicron.

Razões para pessimismo há muitas. No fim do ano passado, os virologistas imaginavam que se surgisse uma nova variante, seria derivada da Delta, falavam até numa "Delta plus" que teria dificuldade para infectar quem já tivera a doença causada pela variante-mãe. Ninguém esperava uma nova cepa com características tão diversas que os anticorpos produzidos contra a delta não oferecessem proteção.

Se a Ômicron emergiu de forma inesperada, não estamos livres de assistir à emergência de uma ou mais variantes com mutações que modifiquem de tal forma outros componentes da estrutura viral que as tornem capazes de nos fazer voltar ao tempo em que não havia vacinas nem pessoas previamente infectadas por outras cepas.

A Ômicron não surgiu da noite para o dia, deve ter provocado inúmeras infecções antes de ser detectada.

Quem pode assegurar que neste momento não haverá novos mutantes circulando anonimamente em algum canto do planeta? Essa possibilidade reforça a necessidade de vacinar e de instalar centros de epidemiologia genômica, capazes de sequenciá-los rapidamente, para obter novas vacinas.

No cenário otimista, é preciso considerar que as variantes mais contagiosas levam vantagem evolutiva na competição com as mais agressivas. Gente morta não anda por aí espalhando vírus. A Ômicron predominou porque tem predileção pelo trato respiratório alto, ao contrário das anteriores que preferiam os pulmões, causando complicações mais graves.

Esse fenômeno aconteceu com a maioria das viroses respiratórias transmissíveis, que se disseminaram amplamente até surgir uma variante menos agressiva, que se tornou endêmica, isto é, presente, mas sem força para gerar epidemias com mortalidade alta.

É possível que esse seja o equilíbrio que o Sars-CoV-2 procura estabelecer com os seres humanos: sobreviver sem desrespeitar a vida do hospedeiro.

Seremos imunizados por uma combinação de vacinas com as infecções pela Ômicron? Esse é meu palpite, prezado leitor, mas posso estar errado, caso surjam variantes mais contagiosas ainda, indiferentes à imunidade que adquirimos a duras penas. Como nos ensinou Charles Darwin, a seleção natural é imprevisível.

DRAUZIO VARELLA

05 DE MARÇO DE 2022
J.J. CAMARGO

UMA DOENÇA QUE AFUGENTA

Hipocondria é o medo, infundado e patológico, que alguém alimenta de ter uma enfermidade grave. Como desordem psicossomática, é uma doença mental sentida fisicamente. Ainda que o indivíduo queira viver, ele gasta o tempo, e alguns a infeliz vida toda, na busca de indícios de que esteja caminhando inexoravelmente para a morte.

Enquanto este alvo inconsciente não chega, ele inferniza a sua vidinha e a de quem se aproxima da sua fábrica de infelicidade. Ao invés de concentrar seus esforços em estar bem, o hipocondríaco foca a sua energia em cada sinal que indique o contrário. E qualquer sintoma tem o efeito exacerbado de despertar o medo da morte. Modernamente, a facilidade de acesso a todo tipo de informação, disponibilizada a granel na internet, é captada por esse leigo ansioso que, sem nenhuma condição técnica de triagem, sempre encontrará algum vínculo, por ridículo que seja, entre o que leu e as suas queixas, com seus tenebrosos desdobramentos. Entre os sintomas, a dor, de qualquer tipo, ocupa um lugar de destaque, porque o médico menos experiente não se sente tão confiante para desmenti-la. A suspeição diagnóstica de hipocondria começa na ausência de padrão da dor, porque o leigo não tem razões para saber que as dores de origem orgânica têm características sugestivas, de intensidade, localização, persistência ou fugacidade e irradiação. Outro filtro de implacável autenticidade é a premissa médica antiga: "Quando tudo dói, a dor não é do corpo".

Vou chamá-la de Renée, mas podia ser Úrsula, tanto faz, eu gosto dela. Foi operada de uma lesão pleural benigna. Um caso fácil, desses que gratificam pela resolução imediata. Por razões que não alcanço, o nosso contrato objetivo de cuidado médico específico não se encerrou com a retirada dos pontos, nada disso, foi prorrogado até o fim dos tempos.

Na primeira consulta, já tinha chamado atenção um caderno gordo, preso com um elástico, cheio de recortes da imprensa, onde ela anotava, dia a dia, todos os sintomas em ordem cronológica. Um desavisado teria considerado tratar-se de uma pessoa zelosa de sua saúde, mas como explicar o registro dos horários, com o preciosismo dos minutos?

Quando preparávamos a alta hospitalar, o caderno voltou, e ela começou a desfiar um rol de doenças subestimadas por médicos famosos, "mas tão insensíveis, que proibiam a secretária de passar o celular aos pacientes".

Este comportamento, para um médico experiente, significava que ele seria o próximo alvo de reclamações e injúrias quando o cansaço mútuo chegasse pra ficar. Os anos na estrada recomendavam que a relação que iniciaríamos teria que ser precedida por certas normas. E assim foi: "Fique segura que eu atendo, ou retorno, a todos os chamados de pacientes, mas vou deixar a seu juízo a real necessidade de cada chamada. É muito provável que a senhora tenha extrapolado o limite da disponibilidade de cada um dos excelentes profissionais que constam do seu caderno, porque, por competência, eu me trataria com qualquer um deles. Como a sua lista de dispensados é muito grande, temo que eu seja o último, e é com esse cuidado que gostaria se ser tratado".

Não tenho a pretensão de tê-la curado da hipocondria, porque esta não é uma atarefa para amadores, mas o entendimento desta questão foi tão grande que, às vezes, ela fica até duas semanas sem dar notícia!

Há consenso de que a solidão agrava esta enfermidade, e aos residentes insisto que sejamos tolerantes com eles, que contam histórias intermináveis e agem como se fossem o centro do mundo, mas só queriam mesmo é dizer que se sentem sós, e que gostariam de ser, para alguém, só um pouquinho mais importante do que, de fato, são. E nunca podemos esquecer que, à semelhança dos paranoicos, que podem ter, sim, inimigos verdadeiros, os hipocondríacos também adoecem, e com alguma frequência morrem de doenças curáveis, porque as tantas queixas vazias exauriram os ouvidos de quem devia protegê-los.

J.J. CAMARGO

05 DE MARÇO DE 2022
DAVID COIMBRA

Um maravilhoso livro de 2 mil anos de idade

Há um livro extraordinário que havia lido muito tempo atrás, provavelmente antes de entrar na Famecos, e que, por conta de todas essas mudanças de endereço da vida, perdi. É A Guerra das Gálias, de Júlio César.

Esse autor, Júlio César, é mesmo quem você está pensando: o general romano que acabou mudando o destino de Roma e do mundo. César escrevia muito bem. Seu relato, às vezes, chega a deixar o leitor tenso, como se ele estivesse lendo um romance de suspense.

Noutras vezes, César faz descrições coloridas, vivas e até entusiasmadas de povos ou lugares de sua época. Vou dar o exemplo do relato que fez a respeito de um bravo povo germano que teve de enfrentar:

"O povo suevo é de longe o maior e o mais belicoso de toda a Germânia. Nenhum deles possui terras próprias, nem pode, para as cultivar, permanecer mais de um ano no mesmo local. Consomem pouco trigo e vivem em grande parte do leite e da carne dos rebanhos. São também grandes caçadores. Este gênero de vida, a sua alimentação, o exercício diário, a sua independência, que, desde a infância, não conhece nunca o jugo de nenhum dever, de nenhuma disciplina, este hábito de nada fazer contra sua vontade, tudo isso os fortalece e os torna homens de uma estrutura prodigiosa. Além disso, têm por hábito, num clima muito frio, ter apenas como roupas algumas peles (cuja exiguidade deixa destapada grande parte do seu corpo) e tomar banho nos rios."

Note que os suevos viviam numa espécie de comunismo primitivo. Fiquei tão encantado com a descrição de César que pesquisei um pouco mais sobre esse povo e descobri que eles acabaram participando da fundação de Portugal, veja só.

Essa obra, A Guerra das Gálias, eu a perdi, como contei antes, e não conseguia reposição. Não existia edição em português do Brasil. Mas existe em português de Portugal, e foi essa que comprei não faz muito, graças à mágica da internet. É uma delícia.

Se nada do que digo o convence, impávido leitor, revelo que A Guerra das Gálias é o livro no qual se baseiam as aventuras de Asterix. É óbvio que você já leu Asterix. Se não leu, sinto inveja de você, porque vai poder ler todos os exemplares. Asterix é uma obra-prima das histórias em quadrinhos.

O curioso é que a pátria das histórias em quadrinhos, os Estados Unidos, desconhecem esse clássico. Fui a várias lojas de HQs, lojas imensas, bem-fornidas e bem-sortidas. Só que em nenhuma encontrei Asterix. O que faz com que sinta inveja não só de você, leitor, mas também dos americanos.

Voltando à Guerra das Gálias: fico maravilhado com o poder que Júlio César tem de nos colocar do lado dele em cada campanha.

Ele permaneceu nove anos lutando nas Gálias, completamente fora da península italiana, mas, ainda assim, consegue convencer o leitor da necessidade de cada um de seus atos. É Júlio César que é o agressor, mas ele conta a história tão bem que quase nos convence do contrário. Foi de fato um grande homem. Um ditador, um tirano, mas um grande homem.

Infelizmente, não se pode dizer o mesmo do ditador que, no século 21, promove uma guerra de conquista nos moldes daquela de César - nos moldes, no caso, não porque alguma estratégia ou tática os iguale. Não. É porque esse tipo de conflito deveria ser coisa da Antiguidade.

Putin é um homem tosco, um bisonho. Se fosse escrever suas razões, colocaria o leitor contra ele. Putin queria ser Júlio César. Não foi o único, nestes últimos 2 mil anos. Muitos outros tentaram. Nenhum conseguiu. Putin não tem nenhuma chance de conseguir.

DAVID COIMBRA

05 DE MARÇO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

GUERRA QUENTE?

O defeito maior do ser humano é não aprender com o horror, insistindo no erro e vendo a tragédia como meta. É o caso da guerra iniciada por Putin ao invadir a Ucrânia.

Na Segunda Guerra Mundial, nenhum povo sofreu tanto quanto o russo. Mas, agora, são os russos que invadem e destroem. Tudo, hoje, é mais absurdo do que durante a Guerra Fria, quando duas superpotências disputavam a hegemonia político-militar. Lá, havia pelo menos um pretexto, mas hoje só há loucura.

Putin deixou claro isso ao insinuar que usaria o arsenal nuclear russo, se necessário, para dominar a Ucrânia. O que quer ele? Ocupar territórios, como Hitler?

Anos atrás, a Rússia de Putin anexou a Crimeia e houve protestos na ONU mas, de fato, o mundo não viu a usurpação, ainda que a maioria da população descenda de russos e fale russo.

Abria-se, assim, a porta para a invasão atual, em pleno inverno, quando o frio dá à Rússia a vantagem de fornecer o gás que aquece a Europa Ocidental. Assim, a Rússia acumulou mais de US$ 600 bilhões em reservas financeiras, em condições de resistir (na guerra) às restrições do sistema bancário internacional.

O governo russo preparou a guerra até como gesto de autodefesa. A maioria dos países do antigo "mundo comunista", liderado pela extinta União Soviética, se integrou à Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, um bloco militar chefiado pelos EUA e não um mercado comum.

Alguns são fronteiriços e poderiam servir de base a eventual conglomerado militar em condições de afetar a segurança russa.

Nenhum deles tinha no território, porém, enclaves com populações de origem russa e que falam russo, como na Ucrânia. Para Moscou, isso era mais importante do que a base de mísseis da Otan na Polônia, a 160 quilômetros da fronteira.

Ao invadir a Ucrânia, Putin agiu como o velho agente da KGB dos tempos da Guerra Fria e se antecedeu aos fatos. Vislumbrou (ou fantasiou) que a Ucrânia se integraria à Otan e decidiu invadi-la. Não esperava a resistência atual e cometeu um erro fatal: insinuou acionar o arsenal atômico russo para decidir a guerra.

Aí surgiu a insânia, em condições de levar o mundo inteiro a um antecipado apocalipse.

???

Há, porém, quem lucre com a matança da guerra. O complexo industrial-militar do Ocidente deve agradecer a Putin, pois nunca como agora tinha vendido tantas armas.

Tão só a União Europeia criou um "fundo de ajuda" de 5 bilhões de euros em armas para a Ucrânia, aquecendo a guerra.

FLÁVIO TAVARES

05 DE MARÇO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

ECONOMIA E RESILIÊNCIA À PROVA

O IBGE apresentou na sexta-feira o desempenho da economia brasileira no quarto trimestre e, por consequência, o fechamento de 2021. De positivo, deve-se ressaltar que a performance entre outubro e dezembro foi levemente superior ao esperado, com um crescimento de 0,5% sobre os três meses imediatamente anteriores. Nada empolgante, mas deve ser celebrado ao menos o fato de o país ter deixado para trás a incômoda recessão técnica, caracterizada por dois trimestres consecutivos de retração da atividade. Surpreenderam positivamente, no encerramento do ano, indicadores relativos a consumo das famílias, investimento e agropecuária, que em nível nacional sofreu ao longo do ano passado por questões climáticas.

O PIB brasileiro de 2021, portanto, cresceu 4,6%, recuperando as perdas de 3,9% de 2020, ano em que o mundo todo sofreu com as maiores restrições de mobilidade causadas pela necessidade de conter a pandemia. O início da vacinação a partir dos primeiros meses do ano passado, entretanto, permitiu que o setor de serviços, responsável por cerca de 70% da economia nacional, avançasse 4,7%, puxando a atividade. O segmento, como se sabe, também foi o mais afetado pela crise sanitária, mas conseguiu recobrar forças a partir da maior segurança à circulação conforme a cobertura da imunização se ampliava.

Os números de 2021, no entanto, estão no retrovisor e o que se tem à frente é um 2022 desafiador. Grosso modo, a economia brasileira andou praticamente de lado nos últimos trimestres e inicia o ano com incertezas adicionais. Já se esperavam dificuldades causadas pela inflação persistente, alta do juro e turbulências eleitorais devido à expectativa de um pleito polarizado e tenso e aos riscos de medidas populistas fragilizarem o quadro fiscal, minando a confiança de empresários e consumidores.

O cenário, contudo, ficou ainda mais dramático pela eclosão da guerra no Leste Europeu. Com a disparada das commodities (minérios, energia e alimentos), a inflação pode se mostrar ainda mais forte. É uma perspectiva desanimadora frente à realidade nacional de desemprego alto e renda em queda. O juro alto possivelmente persistirá mais do que o esperado, encarecendo o crédito e freando o ímpeto do consumo e dos investimentos produtivos. Novas quebras nas cadeias globais de suprimento devido à guerra ampliam as incertezas, com reflexo na economia global. O gargalo no fornecimento de fertilizantes, essenciais para agricultura, acrescentou nuvens ameaçadoras ao setor mais competitivo do país. No Rio Grande do Sul, a estiagem dará um duro golpe no PIB local.

O consenso dos analistas do mercado financeiro ouvidos pelo Banco Central é, por enquanto, de uma variação de 0,3% do PIB do Brasil em 2022. Predomina o pessimismo, potencializado pelo conflito bélico - que, espera-se, seja solucionado o mais breve possível pela via da diplomacia.

Mas o ano recém está começando. Há, por outro lado, perspectivas favoráveis por investimentos em andamento ou contratados nas áreas de rodovias, energia, ferrovias e saneamento. No Estado, inclusive. Ter uma infraestrutura melhor é essencial para ganhar competitividade no futuro e dar mais qualidade de vida para os cidadãos. Commodities em alta, é preciso lembrar, também têm uma correlação positiva com a economia brasileira pelo fato de o país ser grande produtor de minérios, de alimentos e também ser relevante em petróleo. Se Brasília não atrapalhar demais, seria possível que a chegada de mais capitais ajudasse a segurar a inflação, via câmbio. A pandemia também pode estar mais próxima de ser controlada.

Empresários, agricultores, assalariados, informais e mesmo desempregados não têm alternativa. Se as dificuldades que surgem no horizonte assustam, não é com passividade que serão suplantadas. Os boletos, como se diz popularmente, não param de chegar. É preciso arregaçar as mangas, buscar colocação, inovar, prospectar oportunidades e mercados e ser mais produtivo, no campo e na cidade. O ano de 2022 será um teste duro para a resiliência dos brasileiros, e esmorecer não deve ser opção. 


05 DE MARÇO DE 2022
MARCELO RECH

É o câmbio, camaradas!

Na primeira vez que desembarquei em Moscou, em novembro de 1991, para radiografar, como repórter de ZH, o impacto do ocaso da URSS na vida dos soviéticos, abdiquei da bolha de um hotel luxuoso e aluguei um apartamento próximo ao centro. A família, um casal de professores de economia na Universidade de Moscou e dois filhos, se mudou para o apartamento da mãe dela. Três semanas depois, entreguei à professora US$ 120, o valor combinado para o aluguel. A economista segurou as notas na mão e desatou a chorar. Devo estar sendo um maldito capitalista explorador, imaginei. Diante do meu semblante desconcertado, ela redarguiu, emocionada.

- Esse é meu primeiro negócio privado.

Dois anos mais tarde, para uma reportagem sobre o primeiro inverno no caos econômico da nova Rússia, voltei ao apartamento na companhia do fotógrafo Ricardo Chaves, e o aprendizado capitalista tinha avançado rápido: as três semanas já custavam US$ 500 - no mercado paralelo, o suficiente para alentadas provisões de importados em supermercados para estrangeiros. A nota de US$ 100 do aluguel de dois anos antes havia sido xerocada e pendurada como quadro na cozinha.

Em 30 anos, o câmbio passou de uma ficção soviética - no mercado oficial, a paridade era 1 rublo igual a 1 dólar - para flutuar livremente, medir a prosperidade de cada cidadão russo e permitir que ele sonhasse com Paris e Roma. Na primeira semana de guerra, porém, a cotação saiu de 70 para 110 rublos por dólar. As sanções que visam a implodir o rublo têm como alvo um símbolo da estabilidade. Abatê-lo derrete a moral da população e tem o poder de devolver a Rússia ao desarranjo de três décadas atrás, arrastando a imagem de Putin como salvador da pátria.

Com a moeda desmoralizada, poucas nações se aguentam de pé, como testemunhei em 1993 na antiga Iugoslávia sob sanções, quando a inflação atingiu nos primeiros 10 meses inacreditáveis 44 milhões por cento. Em um restaurante em Belgrado, o dono teve a gentileza de não reajustar o preço do jantar enquanto eu fazia a refeição. A Sérvia entrou em depressão e todo dia a embaixada do Brasil, onde a inflação chegava a já absurdos 2.500% ao ano, recebia levas de pedidos de migração.

Para conter a queda do rublo, o Banco Central russo elevou a taxa de juros para 20%, um susto para os padrões locais, e estabeleceu uma série de restrições para saída de moeda estrangeira. As próximas semanas serão definidoras. O rublo perdeu mais de um terço de seu valor desde a invasão da Ucrânia. Se não houver reversão, um quadro de inflação combinada com depressão será inevitável e, com ele, o descontentamento em relação ao governo. Sem disparar um tiro, EUA e Europa podem ter lançado uma bomba de nêutrons na economia russa.

MARCELO RECH

05 DE MARÇO DE 2022
J.R. GUZZO

Os limites das "superpotências"

Para um país do tamanho da Rússia, e para um país do tamanho da Ucrânia, a guerra que explodiu deveria ter começado e acabado no mesmo dia. Não acabou - e o resultado é que a cada dia mais de demora, o país mais fraco ganha força política e o mais forte perde gás. O resultado é que vai se tornando indispensável, cada vez mais, trocar a vitória inicialmente pretendida por outra coisa - algum arranjo que permita aos russos dizer que a operação deu certo e, portanto, já pode ser encerrada.

O objetivo estratégico inicial, basicamente, era liquidar a Ucrânia como um Estado realmente independente e colocar em seu lugar uma prefeitura administrada por Moscou e disfarçada de república. Isso não foi possível. Será preciso encontrar uma outra "narrativa", como se diz hoje.

A invasão da Ucrânia mostrou, como talvez nenhum conflito armado tinha mostrado até hoje, os limites daquilo que se chama de "superpotência". Nos inventários oficiais, consta arsenal nuclear completo, capaz de destruir o mundo inteiro sete vezes em seguida. Há jatos de combate de última geração, que países subdesenvolvidos vivem querendo comprar. Há última palavra em tecnologia de combate, mísseis inteligentes, tanques com controle remoto, guerra a distância, guerra eletrônica, o diabo. Mas na hora de colocar tudo isso em ação, o que se tem na prática são vários dias seguidos de operações militares confusas, lentas e indecisas. Já deveria ter acabado. Se não acabou é porque a superpotência não funcionou.

Não há nada de animador no que a Rússia tem diante de si nos dias que vêm aí pela frente. A opção adotada pelo comando russo no momento é uma escalada cada vez mais violenta contra a população civil, na esperança de obter uma rendição mais rápida. O problema, como sempre acontece com as escaladas, é que elas não podem durar pelo resto da vida - uma hora vão ter de parar, e se o inimigo não estiver morto até lá, o esforço terá sido inútil.

O passar do tempo agrava as dores do pacote gigante de represálias econômicas e de outras naturezas que foi jogado em cima da Rússia pela Europa e pelos Estados Unidos. Os desastres provocados pelo boicote podem até não criar problemas insolúveis para os russos - mas, obviamente, não é assim que eles pretendem viver para sempre, e cada dia a mais de guerra é um dia a menos para a reconstrução da Rússia.

O presidente Vladimir Putin parece não reagir de maneira coerente à lógica dos fatos. O mundo deixou claro, também, que a Rússia está sozinha; tem a seu lado apenas figuras como Nicolás Maduro e outras pequenas calamidades da cena internacional. Os prejuízos fora do campo de batalha, com a crescente e inédita desconexão da Rússia do sistema econômico mundial, machucam cada vez mais.

Está na hora, realmente, de o presidente Putin e sua base de apoio pensarem a sério em dizer "missão cumprida" e tentar construir de novo a casa que caiu.

J.R. GUZZO