sábado, 9 de abril de 2022


09 DE ABRIL DE 2022
ARTIGOS

ALERTA TOTAL O DESAFIO LEGAL DA INOVAÇÃO

A inovação pede um novo jeito de pensar as leis. A afirmação pode soar contraditória em um sistema legislativo embasado, justificadamente, na segurança e na certeza. Leis, em geral, não combinam com tentativas e erros rápidos para chegar aos acertos. No ambiente da inovação, porém, a dinâmica se dá, cada vez mais, em ritmo acelerado. Acaba, por isso, esbarrando em marcos regulatórios pesados e que se tornam obsoletos da noite para o dia. Surge um novo desafio: democratizar os benefícios da inovação minimizando os riscos para a sociedade. Leis em excesso engessam a criatividade. A ausência de normas pode trazer consequências nefastas à sociedade.

Enquanto esse debate ganha corpo, a busca de ambientes favoráveis para novas tecnologias está fazendo com que empresas migrem para locais onde a regulação seja mais atrativa. Um exemplo é a Wing, que saiu da Califórnia e encontrou na Austrália um país que permite testes de entregas com drones em centros urbanos. O risco dessa nova solução logística está associado ao perigo de queda ou de colisão com uma aeronave.

Nesse contexto paradoxal, uma solução criativa e inovadora chama a atenção. Os "sandboxes regulatórios" são ambientes experimentais, nos quais a inovação anda lado a lado com a regulação, criando campos de testes controlados para que ela seja feita de forma inteligente, propiciando o desenvolvimento de novas tecnologias e garantindo a segurança de suas aplicações. A adoção desse conceito no setor financeiro inglês, com a criação do open banking britânico, transformou Londres em líder mundial de tecnologias financeiras. Não se trata aqui de defender qualquer nível de aventura ou irresponsabilidade em áreas tão relevantes como as do Direito e da Justiça. Ao contrário. É pela imprescindível necessidade de leis inteligentes, eficazes e seguras que se faz necessário evoluir, minimizando riscos e aumentando os benefícios para os usuários.

As normas não podem ser barreiras para a inovação, mas sim, incentivo. Ninguém ganha se os negócios promissores são forçados a escolher entre inovação e regulação. Quando o empreendedorismo encontra espaços em que ambas caminham juntas, o resultado se chama desenvolvimento.

JOSÉ ALBERTO WENZEL

09 DE ABRIL DE 2022
OPINIÃO DA RBS

A INDÚSTRIA TATEANDO NO ESCURO

Chama atenção a sondagem realizada pela Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs) junto a associadas que revelou setores com desempenhos díspares e uma grande variedade de problemas enfrentados pelas empresas. Enquanto há segmentos com bom desempenho e crescimento, outros estão estáveis ou enfrentam uma série de percalços das mais distintas naturezas e, em alguns casos, somadas.

Dessa forma, a entidade classifica o quadro atual como uma crise inédita. Não por sua profundidade, mas pela complexidade. Em resumo, há perplexidade com a significativa multiplicidade de incertezas. É possível afirmar que mesmo ramos que passam por uma conjuntura favorável têm de manter certa cautela, pela volatilidade do cenário. E isso traz uma dificuldade agoniante para o planejamento, algo essencial para companhias de qualquer porte.

O Brasil e o mundo vivem dias tensos. No cenário externo, há a guerra no Leste Europeu e a inflação global. A alta do juro nos EUA alimenta ainda mais hesitação. A maior economia do mundo entrará em recessão? Como se comportará o câmbio? O conflito na Ucrânia manterá por quanto tempo as commodities, como o petróleo, em alta? Existe chance de paz em quanto tempo? Qual será o impacto do recrudescimento da covid-19 na China em relação às cadeias de insumos? Os custos logísticos seguirão estratosféricos?

A miríade de dúvidas é também interna. A inflação doméstica é persistente, como mostrou ontem a alta muito acima do esperado do IPCA, com variação de 1,62% em março, acumulando 11,3% em 12 meses. Na agricultura, não há certeza quanto ao fornecimento de fertilizantes. Os preços das matérias-primas industriais sobem de maneira consistente, a taxa de juro está em patamar altíssimo, a economia permanece claudicante e a cereja indigesta no bolo é a eleição extremamente polarizada e nervosa que se anuncia. Com a atividade trôpega, repassar custos é um dilema. Com tantas inseguranças e interrogações sem resposta, a indústria parece estar tateando no escuro. A elevada oscilação do dólar ilustra a situação. No final do ano passado, a moeda norte-americana era negociada acima de R$ 5,70 e na última semana tocou nos R$ 4,60. Um negócio que hoje seria rentável, em poucos meses, pode se transformar em prejuízo.

Mesmo que a indústria venha nos últimos anos perdendo participação no PIB, tanto no país quanto no Estado, é um setor essencial para a economia brasileira. É fonte de inovação, desenvolvimento de tecnologias, remunera acima da média e exige maior qualificação da mão de obra empregada. Seu desempenho segue crucial para o Brasil. Os próximos meses, no entanto, se mostram desafiadores, e a inconstância que nubla o horizonte torna qualquer projeção temerosa. Tamanhas urgências lamentavelmente deixam em segundo plano pautas modernizantes de interesse do setor, como reforma tributária, melhoria da infraestrutura e medidas na área trabalhista. O ano em curso, repleto de desafios, parece cada vez mais um período de transição, à espera da redução das tensões internas e externas.

OPINIÃO DA RBS

09 DE ABRIL DE 2022
MÍDIA

RBS divulga balanços de 2021

Receita de TV e rádio e crescimento do digital puxaram resultados positivos pós-crise econômica gerada pela pandemia

O Grupo RBS apresentou, em 2021, lucro líquido de R$ 70 milhões em suas principais empresas de mídia. No consolidado, a RBS também demonstra situação financeira muito confortável. Fechou o ano com caixa de R$ 292 milhões, superando suas dívidas em R$ 147 milhões.

O bom desempenho do ano se refletiu em um Plano de Participação de Resultados (PPR) de 2,33 salários, que representou a distribuição de R$ 24,2 milhões aos colaboradores, reforçando a crença da companhia na valorização das pessoas.

- Após passar por uma das maiores crises econômicas globais em 2020, causada pela pandemia, iniciamos o processo de recuperação. Nossos resultados materializam a crença de nossos clientes no produto que oferecemos e a capacidade da comunicação de contribuir com a atividade econômica - destaca o presidente do Grupo RBS, Claudio Toigo Filho.

Em 2021, as receitas da RBS tiveram crescimento especialmente nas operações de TV, rádio e digital. Na RBS Participações (que reúne as principais operações de TV do grupo), o lucro líquido foi de R$ 55,6 milhões, 238% maior do que em 2020. Os resultados demonstram o vigor da TV aberta no Brasil e a solidez da parceria da RBS com a Rede Globo. Já a Rádio Gaúcha, que completou sete anos ininterruptos como líder de audiência na Grande Porto Alegre, um feito inédito entre as emissoras de notícias do país, apresentou faturamento de R$ 55,9 milhões, com crescimento de 16% em relação ao ano anterior.

No segmento jornais, apresentou lucro líquido de R$ 17,1 milhões e faturamento de R$ 210,3 milhões, 9% abaixo de 2020. O destaque foi o resultado da plataforma digital GZH, que teve crescimento de 23% na receita de assinaturas e de 13% na receita de publicidade, na comparação com o ano anterior. Em todas as suas plataformas, GZH totalizou mais de 804 milhões de pageviews em 2021, com média de 13,7 milhões de usuários por mês no site.

A empresa atribui sua solidez econômica a alguns fatores. A liderança de consumo de todo o seu portfólio no Estado, com destaque para a RBS TV, que ganhou share em 2021 e conecta-se, diariamente, com 4,3 milhões de gaúchos. Além de uma gestão responsável e com visão de futuro, que promoveu ações de eficiência e produtividade em 2020. Com tais medidas, em 2021, em um cenário econômico ainda instável, a empresa ousou, por exemplo, ao enviar uma equipe para as Olimpíadas de Tóquio, sendo a Gaúcha a única emissora de rádio do Brasil licenciada para a competição.

Os resultados positivos celebram o fechamento de um ciclo estratégico que se iniciou em 2016. A RBS foi pioneira na implementação de um modelo de atuação comercial inovador na indústria de mídia brasileira. Criando uma oferta de produtos e serviços para o mercado publicitário, investindo em uma área de dados - o que reforçou sua expertise de especialista sobre o consumidor gaúcho - e mudando a forma de se relacionar com os clientes - passando de uma estrutura organizada por produto para uma organização consultiva e por clientes -, a empresa se posicionou com foco no cliente, colocando o anunciante e suas necessidades no centro da estratégia comercial e integrando todo o seu atendimento ao mercado. Além disso, criou GZH em 2017, com um modelo de negócio baseado em conteúdo local e por assinatura.

Investimentos

Comprometida com o futuro e posicionada para um novo ciclo de crescimento, a empresa anunciou, no ano passado, que, até 2024, serão investidos R$ 70 milhões na modernização dos parques tecnológicos de rádio e TV, no desenvolvimento de produtos e em digital. Mais recentemente, a RBS anunciou uma frente para novos negócios, em fase de estruturação: a RBS Ventures.

A empresa também quer estar cada vez mais próxima das comunidades onde atua e está investindo em iniciativas que vão ao encontro do desenvolvimento sustentável do Rio Grande do Sul, sendo parceira, por exemplo, do Pacto Alegre, e da South Summit, além de uma das fundadoras do Instituto Caldeira - movimentos da sociedade organizada para promover a inovação e o desenvolvimento do Estado. Ainda liderou a articulação de empresários e entidades para o movimento Unidos pela Vacina no Estado.

Neste ano de 2022, essa estratégia vem sendo reforçada. Com esse propósito, a RBS iluminou o problema da estiagem no Estado, com debates transmitidos diretamente das regiões mais atingidas, e esteve presente em grandes eventos como a Festa da Uva, a Expodireto e o aniversário de 250 anos da Capital, tanto com cobertura editorial quanto com ações institucionais. Além disso, enviou correspondente à Ucrânia e, também, acompanhou comitivas de empresários gaúchos tanto à NRF, maior feira global de varejo, quanto ao SXSW, ambos nos Estados Unidos.

- Acreditamos que unir esforços é fundamental para seguir evoluindo. Com o arrefecimento da pandemia e a retomada econômica, estamos nos dedicando muito a esse propósito, colocando os nossos espaços, a nossa arena, à disposição das causas que contribuem para o nosso Estado - afirma Toigo.


09 DE ABRIL DE 2022
MARCELO RECH

Glória à Polônia

Na guerra, as cenas mais devastadoras são as de soldados e civis mortos numa brutalidade impossível de se assimilar, mas, muito além do sangue derramado e da devastação de cidades, um conflito como o da Ucrânia produz incontáveis dramas que passam quase despercebidos à luz da dimensão da catástrofe.

Os noivos de casamento marcado e festa contratada que se veem apartados de um instante para outro. A caloura de Medicina que se preparava para o início do curso e viu sua faculdade fechar. O funcionário que recebera a promoção pela qual tanto ansiara antes de o supermercado em que trabalhava ser destruído. O casal que juntara as economias e abrira a lanchonete dizimada por uma bomba. O agricultor que não pode semear a terra de seus ancestrais.

Anônimos, os microdramas se acumulam com os refugiados que chegam aos países fronteiriços da Ucrânia em uma procissão aflita por segurança. Até esta semana, nada menos do que 4,3 milhões de ucranianos haviam deixado o país, dos quais 2,6 milhões para a Polônia. É como se uma Varsóvia e meia brotasse de uma hora para outra, sobressaltando a rotina e a economia dos poloneses.

Em circunstâncias assim, não raro refugiados são alvo de rancor e de desprezo dos locais, que enxergam nas levas de desesperados apenas mais um adicional de problemas para os serviços públicos. Não na Polônia, que, a par da heroica página de resistência dos ucranianos, escreve um capítulo de honra no compêndio de solidariedade da humanidade. Ali, famílias são recebidas com alimentos por voluntários, crianças com câncer e diabetes retomam seus tratamentos. O impacto dos refugiados vai custar pelo menos 2 bilhões de euros à Polônia, mas não se ouve por lá aquele chororô de alguns egoístas contra venezuelanos que escaparam da desgraceira do chavismo para buscar refúgio em países vizinhos, Brasil inclusive - aliás, com exemplar acolhida pelo Exército em Roraima.

Refugiados são um desafio mundial para as terras em abrasão. Milhões se deslocam todos os anos em busca de uma salvaguarda para os conflitos que deixam para trás. O melhor nestes casos, como ocorre na guerra da Ucrânia, é que eles sejam abrigados em países vizinhos, de modo que possam manter algum grau de identidade cultural e voltar a suas casas se e quando seus países natais retomarem a normalidade.

Violentados pelo nazismo alemão e apunhalados pelo comunismo russo, os poloneses compreenderam como poucos que, na hora da tragédia, não se contam tostões e nem se vira o rosto para os desesperados. Graças à Polônia - mas também à Eslováquia, à Hungria, à Romênia e mesmo à modesta e carente Moldávia -, muitos dos dramas provocados pela invasão russa poderão ser temporários. E assim milhões, quem sabe, terão uma chance de recuperar seus sonhos e reencontrar suas vidas anteriores.

MARCELO RECH

09 DE ABRIL DE 2022
INFORME ESPECIAL

Já ouviu falar em Panc?

Em tempos de comida cara, inflação alta, fome e insegurança alimentar, esse deveria ser um tema "da moda", mas ainda é pouco falado e mesmo conhecido por muitos de nós. As Plantas Alimentícias Não Convencionais - ou simplesmente Panc - são frutas, folhas, flores, rizomas, sementes e outras partes de vegetais que podem ser consumidas, mas que a gente às vezes nem imagina.

A sigla foi cunhada em 2008 pela nutricionista Irany Arteche, mestre em Fitotecnia pela UFRGS, a partir de estudos do biólogo Valdely Kinupp, professor do Instituto Federal de Educação do Amazonas. De lá para cá, a ideia vem ganhando novos sentidos.

- Costumo dizer que a Panc da vez é o pensamento alimentar não convencional. Chegamos a um ponto em que precisamos repensar a forma como comemos - resume Irany, que vive em Porto Alegre.

Muitos exemplares de Panc são chamados de "erva daninha" ou de "inço". Sabe aquele "matinho" ali no terreno baldio ou na fresta da calçada? Pois é. Pode ser uma Panc das mais saborosas e nutritivas, tanto quanto algumas velhas conhecidas do nosso paladar.

Quer um exemplo? A bananeira é uma PANC, não pelo uso corriqueiro (dos frutos maduros), mas pela casca, pelos frutos verdes e pelo mangará (coração). É possível preparar ótimos pratos com esses ingredientes, aproveitando tudo, sem desperdício - como faziam nossos avós.

- Não é comida de marciano nem de ecochato. É um conhecimento ancestral, um patrimônio que se perdeu com o processo de industrialização. Passou da hora de resgatarmos isso - defende a nutricionista.

JULIANA BUBLITZ


CARTA DA EDITORA Um RS inovador e tecnológico

Na semana em que a serra gaúcha reuniu milhares de visitantes para a Gramado Summit, evento voltado ao empreendedorismo, à tecnologia e à inovação digital, Zero Hora também publicou reportagem mostrando a instalação de duas empresas associadas ao desenvolvimento de chips e semicondutores no Parque Científico e Tecnológico da PUCRS (Tecnopuc). Porto Alegre foi escolhida para sediar as unidades latinas da inglesa Ensílica e da norte-americana Impinj. São duas ações, entre tantas outras recentes, que levam o Estado a se transformar em um polo de tecnologia e inovação.

Ao dar mostras concretas para o país e para o mundo de que o desenvolvimento passa também por apostar nos segmentos de tecnologia e inovação, o Rio Grande do Sul começa a atrair novos investimentos e a reter seus talentos.

Para nós, da Redação Integrada de ZH, GZH, Rádio Gaúcha e Diário Gaúcho, esse é um dos temas prioritários. É também nosso papel como jornalistas expor ao público ações que contribuam para colocar o Estado em um patamar de protagonismo.

Abaixo, cito exemplos recentes de reportagens que focam em iniciativas criativas e empreendedoras.

- Campus no 4º Distrito está em obras para propiciar treinamentos em TI e nova economia

- Empreendedores e agentes culturais comemoram revitalização do 4º Distrito e citam desafio social

- Pacto Alegre planeja divulgar marca da Capital "em tudo que é canto" em 2022

- Porto Alegre "deve se apressar" para virar smart city, diz futurólogo que fará palestra no Instituto Caldeira

- Pesquisa mostra que 61% das startups do RS estão em Porto Alegre

- Como Porto Alegre se tornou referência na nova economia e os desafios daqui para a frente

- Governo do RS anuncia R$ 62,4 milhões em editais para clusters tecnológicos, bolsas e projetos inovadores

- Porto Alegre se prepara para explorar South Summit turisticamente e atrair visitantes ao longo do ano

- Conheça as empresas de tecnologia do RS em ascensão no país e no mundo

Os conteúdos podem ser acessados pelo site ou pelo aplicativo de GZH.

DIONE KUHN 

sábado, 2 de abril de 2022


02 DE ABRIL DE 2022
ENTREVISTA

Gaslighting: como identificar este abuso psicológico

Pesquisadora explica como funciona a manipulação que confunde a vítima, deixando-a em constante estado de dúvida sobre suas capacidades

Um termo em inglês e de difícil pronúncia esteve nos assuntos mais comentados das redes sociais nos últimos dias: o gaslighting. A procura pelo significado da palavra aumentou depois de um Jogo da Discórdia no Big Brother Brasil 22, quando alguns internautas sugeriram que um participante homem teria praticado abuso psicológico contra uma mulher na casa. Mas, na prática, como identificar este tipo de comportamento?

Para esclarecer dúvidas sobre o assunto, conversamos com a coordenadora da ONG Emancipa Mulher, Joanna Burigo. Bacharel em Publicidade Propaganda, ela estuda e trabalha com questões que envolvem este universo, e sua bagagem inclui mestrado em Gênero, Mídia e Cultura pela London School of Economics. Confira a seguir.

O que é gaslighting?

É uma forma específica de abuso psicológico, na qual o abusador distorce ou inventa informações com a intenção de fazer com que a vítima duvide da própria sanidade e da capacidade de ler a realidade. Em português, a palavra pode também ser substituída por "manipulação", mas é um jeito específico de fazer isso.

Qual a origem da palavra?

A palavra vem de uma peça de teatro, que depois virou um filme noir bem famoso do diretor George Cukor, lançado em 1944, À Meia-Luz. No longa, que originalmente se chama Gaslighting, Gregory, interpretado por Charles Boyer, é casado com Paula, vivida por Ingrid Bergman, e planeja internar a mulher como mentalmente incapaz para poder tomar conta de sua fortuna.

Para gerar essa impressão de insanidade, ele manipula as lâmpadas de gás da casa, para que balancem quando ela está sozinha. Ele usa isso como motivador para dizer que ela está maluca. É daí que a expressão vem. Acho importante fazer esse discernimento, de que a palavra tem uma origem na cultura. É uma expressão metafórica.

Pode ser praticado por qualquer pessoa?

A técnica de manipulação com o intuito de fazer com que uma pessoa questione sua própria leitura de realidade pode ser feita por qualquer sujeito. Não é um abuso exclusivo de uma ou outra relação. Não é exclusivo de gênero ou de raça. É uma relação entre pessoas. Pode ter pais que fazem gaslighting com os filhos, irmãos que fazem uns com os outros, amigos... Mas é mais comum encontrar relatos de gaslighting em relacionamentos românticos. Mas não existe um dado cientificamente comprovado de que um ou outro tipo de relacionamento produza mais ou menos interações que podem ser enquadradas como gaslighting. Pode ser feito por qualquer pessoa.

Entretanto, tendo em vista, primeiramente, a origem da expressão, e tendo o conhecimento de violência de gênero nas relações heterossexuais, é bastante plausível dizer que existem bastante instâncias de gaslighting em relacionamentos deste tipo. Não é exclusivo, mas é mais comum vermos acontecer na direção de um homem para uma mulher.

Como identificar?

Existem muitos jeitos de uma pessoa fazer gaslighting com outra porque existem muitos jeitos de viver. Mas, em geral, o que qualifica é o abusador oferecer para a vítima uma perspectiva da realidade que é manipulada. Ele disputa a realidade com a pessoa. No filme, a personagem da Ingrid diz: "Mas as lâmpadas balançam", ao que ele responde: "Querida, você está imaginando, porque toda vez que eu estou aqui, elas não balançam".

Um dos primeiros sinais (e dos mais fortes) é a pessoa com quem você está interagindo estar te oferecendo informações que são contraditórias com o que você enxerga como realidade. Faz você questionar a sua sanidade. Ficar constantemente questionando se a sua leitura de mundo é genuína porque contradiz o que outra pessoa diz a seu respeito é um sinal muito forte de gaslighting. É difícil dar um exemplo específico, porque pode ser de várias maneiras. A pessoa pode dizer, por exemplo, que você não fez uma atividade que você já tenha feito.

A vítima do gaslighting costuma se sentir confusa, em dúvida sobre si mesma. Se questiona sobre si, se é suficiente, constantemente justifica suas ações. Também pode ter medo de pensar e agir sozinha e estar sempre pedindo desculpas para essa pessoa (abusadora). Alguns sinais para ficar atenta na pessoa que faz o gaslighting: ela mente descaradamente, nega ou troca informações sobre a realidade, é incoerente, faz chantagem emocional, humilha. Todo o objetivo da pessoa que está fazendo o gaslighting é confundir a percepção que a vítima tem da realidade e de si mesma.


02 DE ABRIL DE 2022
LEANDRO KARNAL

Eu tenho um ponto de vista que tem o dom de angariar ódios da esquerda e da direita. É uma convicção que, desde o tempo da graduação em História, causava reações adversas. Explico-me: tenho horror a ditaduras, sejam revestidas do rótulo de esquerda ou de direita. Impera, nos dois campos, uma moral seletiva. Ditador sanguinário e insuportável é o outro, do polo oposto. Quando o governo autoritário é do grupo que eu milito, começam as relativizações.

Tenho a experiência há décadas. Ataco a violência da ditadura chilena sob Pinochet. Meus alunos se emocionam, aplaudem, concordam com olhares e sabem que eu estou ao lado deles. Faço reflexões duras sobre ações criminosas como a Operação Condor que reuniu bandidos a serviço do Estado no Cone Sul e mesmo efeito: sou o herói do dia, o bom professor, o pensador claro e crítico. Ao final da aula, analisando os horrores das ditaduras conservadoras, de Rafael Trujillo a Alfredo Stroessner, viro o historiador bom e exato. Alunos chegam até minha mesa e pedem mais bibliografia e indicações de nomes para pesquisa. Fico feliz: jovens são sensíveis à violação dos direitos humanos, abominam tribunais de exceção e condenam a tortura.

Avançamos o semestre. Chega a hora de pensar o governo monocrático da Cuba de Fidel ou as limitações aos direitos de expressão na Nicarágua de Daniel Ortega. Pronto! Há protestos: "Mas eles acabaram com o analfabetismo! Houve distribuição de terras! Há pressão dos EUA nos bloqueios e há sabotagem contra esses governos". Aprendi cedo que existem malvados favoritos. A moral é relativizada por conquistas sociais (algumas muito reais como o salto de alfabetização em Cuba) e as ações a favor de alguma distribuição de renda. Assim, como a polícia de Nicolau II era violenta e torturava metodicamente na Rússia, a repressão sob Lênin ou Stálin é menos ruim porque seria apenas defesa contra os inimigos russos brancos ou agentes imperialistas. O mesmo do outro lado: Pinochet matou, mas modernizou o país! "Ética de Bolsa de Valores", eu penso.

Se eu retirar o verniz ideológico de gente de extrema direita e de extrema esquerda, posso identificar fatores comuns: violência é uma defesa contra um inimigo externo (comunistas ou agentes do imperialismo), estamos a serviço dos verdadeiros interesses do povo (o povo visto como conservador e cristão ou o povo visto como idealização de camponeses e operários), as conquistas justificam alguma violência para combater os resistentes e, enfim, é uma guerra e, se não tivéssemos atacado o inimigo, ele teria nos atacado. Nada novo: Maquiavel na veia, clássico e prático.

Causa-me espanto como historiador: os jovens que desfilavam em Paris criticando tudo que viviam elegiam a China de Mao (e da Revolução Cultural) como ideal. Bem, se Paris fosse governada por Mao, o movimento de 1968 teria sido eliminado na primeira reunião em Nanterre.

Eu já imagino as reações. Identifico duas tradicionais: 1) Leandro: ao atacar ditaduras de esquerda e de direita, você mostra que está "sobre o muro"; 2) ditaduras como a chinesa executaram dezenas de milhões de pessoas de forma direta e indireta, isso é muito maior do que a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985).

Nunca fui neutro. Tenho valores muito claros. A vida não pode ser elemento negociável na obtenção de valores políticos ou mesmo de desenvolvimento. Sim, a China matou mais do que a ditadura em Santo Domingo por motivos óbvios, inclusive. Porém, um assassino assume o conceito quando mata uma única pessoa. Quando elimina cem, continua sendo assassino. Sim, genocídio é mais grave do que mortes aleatórias. Os nazistas mataram quase 6 milhões de judeus. Os turcos provocaram o desaparecimento de 1,5 milhão de armênios. Stálin tem nas costas mais de 20 milhões de mortos. Eu não convidaria nenhum daqueles governantes para um fim de semana comigo... Sou um humanista e defensor intransigente dos direitos humanos.

Valorizo governantes que conservam o Estado Democrático de Direito. Acho uma conservadora como Angela Merkel e uma mulher ligada à esquerda como Michelle Bachelet admiráveis em vários sentidos. Perseguiram objetivos distintos, por vias quase opostas, e ambas defenderam liberdade de expressão, habeas corpus, pluripartidarismo e direitos humanos. Posso negociar reforma agrária e seus mecanismos, cotas universitárias e outras questões. Não posso tergiversar sobre tortura, quebras constitucionais e existência de polícia secreta. Como de hábito, em nome "da pátria", "das tradições cristãs" ou "do risco comunista", eu revisto de um verniz positivo o que é, apenas, a odiosa vontade de controle e de poder. Não existe causa boa para o assassinato. Nunca aceitarei ditaduras, independentemente dos eufemismos que esquerda e direita usarem para caracterizar um regime de força.

"Ah, mas o regime fez crescimento econômico ou alfabetizou a maioria." Seria como o marido que bate na esposa, mas... dá bons presentes de aniversário? Jamais entendi essa síndrome de Estocolmo que identifico entre simpatizantes dos polos extremos. Nenhum sistema é perfeito, porém a democracia é perfectível e a única viável. Relativizar a vida humana é argumento de canalhas autoritários. Isso desafia meu senso de esperança.

LEANDRO KARNAL

02 DE ABRIL DE 2022
ELIANE MARQUES

MÃES, NÃO APENAS DE LEITE

Desde o período formal de colonização até a segunda metade do século 19, no Brasil, as famílias casagrandistas, ou nem tanto, serviam-se da "mãe preta", escravizada feita ama de leite, para fazer viver a prole alheia enquanto sua prole mesma morria. Depois do período, a nascente classe média urbana passa também a se servir de ex-escravizadas domésticas, tornadas amas secas e retornadas babás. Na atualidade, o trabalho não remunerado de "mães de criação", realizado por meninas enegrecidas, diz não apenas da continuidade histórica, mas da constituição psíquica des sujeites brasileires no seio literal de um conflito mal resolvido pelo imperativo categórico amefricano - "age como se tua mãe fosse uma só".

Contudo, assim como entre os povos das Ilhas Trobriand, o pai se desdobra em três - o jurídico, o marido da mãe e o genitor - descoincidentes no dizer de Malinowski; no Brasil, a maternidade se desdobra em duas ou três. Quando me refiro a duas maternidades, falo da mama África ou da mãe Europa; de Maria (a mãe virgem) ou de Iemanjá (a mãe estuprada). Agora, quando me refiro a três mães, evoco a biológica ou a jurídica ou a da criação e do cuidado, como diz Rita Segato em O Édipo Brasileiro: a Dupla Negação de Gênero e Raça. Entre o que afirmo aqui e o clássico de Malinowski, há diferença de uma ou de duas letras: os pais trobriandeses são unidos por uma conjunção aditiva (e); as mães brasileiras são separadas por uma conjunção alternativa (ou).

Se, para a psicanálise, o pai presenta vários nomes que chegam pela boca da mãe, se ele é o estrangeiro que responde pelo rompimento da unidade "mãebebê", um legítimo país das maravilhas; a "mãe preta", por sua vez, responde pela instauração de outra crise, qual seja, a de tornar incerta a maternidade e a filiação des sujeites que se querem super(eu)ropeus a qualquer custo. A "mãe preta" rompe com a fantasia de que os nomes de pais por ela transmitidos sejam tão brancos quanto seu leite (dela). Essa mulher quebra com o ideal de mesmidade em que a amefricanidade, desde seus inícios, quis se banhar. Nesse sentido, no campo da psicanálise amefricana, sua função de constituição des sujeites na alteridade equivale à do Moisés Africano.

O discurso centrado na transmissão de doenças que os higienistas da época associavam às "mães pretas" teve como impacto a substituição delas pelas amas secas. A "preta" (com seu leite) foi jogada para escanteio, como diria Lélia Gonzalez. Contudo, ainda que escanteada, ela está aí. Nada que foi um dia objeto de gozo é abandonado. Mas qual a doença tão temida pelos higienistas e transmitida pelas "mães pretas"? Certamente eles foram criados por essas mulheres. Certamente a doença por elas transmitida se constituía e ainda se constitui naquele conjunto de sintomas que nos nega a pretensa unidade fundante. Por isso, para eles e ainda para nós, mãe deverá ser uma só, ainda que sejam múltiplas. Essa é uma das facetas da denegação do buraco que há em nossas identidades.

ELIANE MARQUES

02 DE ABRIL DE 2022
EUGÊNIO ESBER

O BIGMEC

Há mais de três décadas, a educação brasileira é repasto para discursos estridentes, mas rasos, sobre o país que queremos e precisamos construir nas décadas seguintes. De um modo geral, as abordagens que ganham o debate público são aquelas de proveito político-eleitoral, como a desta semana, que culminou na saída do ministro - e lá se vão para o fim da fila, outra vez, as questões que realmente deveriam mobilizar a todos que pretendem legar a seus filhos e netos um país melhor. A primeira delas é: por que existir um Ministério da Educação?

Pode-se alegar que, ora bolas, outros países têm, mas e o que dizer de nações bem-sucedidas que não precisaram criar um mastodonte burocrático federal semelhante ao que temos no MEC? Algum nível de coordenação sempre será necessário, claro, ainda mais em uma república com as dimensões do Brasil, mas a própria circunstância de sermos um país com contrastes regionais recomenda, a meu ver, uma abordagem descentralizada, aderente às realidades locais e a suas demandas específicas de ensino.

O peso excessivo do MEC, com sua estrutura de quase 380 mil servidores, acabou levando o país a um paradoxo. O grande desafio brasileiro está no Ensino Básico e Fundamental, mas a maior parte do orçamento do MEC está voltado ao Ensino Superior. É uma equação que não faz sentido porque condena boa parte das crianças e dos jovens brasileiros a um desempenho ridículo nos certames internacionais, ocupando os últimos lugares em provas que avaliam conhecimentos em matemática e interpretação de texto.

Não surpreende, assim, que muitos jovens cheguem à universidade com dificuldades de compreensão e de raciocínio lógico. Pesquisas que medem os índices de analfabetismo funcional têm colocado, nessa categoria, um terço dos brasileiros. Como esperar ascensão social e econômica nesse contexto? Que chances estamos dando a jovens que frequentam nossas escolas públicas de fazer uma carreira, prosperar na vida, dar um basta no mapa da desigualdade social brasileira?

Já em 2004, o economista Gustavo Ioschpe publicava um livro essencial, A Ignorância Custa um Mundo, no qual, servindo-se de estudos internacionais aplicáveis à realidade brasileira, demonstrava quão urgente era a revisão profunda e corajosa do modelo educacional brasileiro. Entre várias outras constatações, ao comparar o Brasil a países da OCDE Ioschpe fulminou a crença - que alimenta o discurso oco de políticos e de grande parte de nossa intelligentsia - de que o Brasil investe pouco em educação. Nosso problema não é investir pouco, é investir mal, muito mal, e estabelecer as prioridades erradas. Erradas sob a perspectiva de necessidades dos brasileirinhos mais humildes, que não é a mesma dos sindicatos e outros grupos de interesse que se nutrem de um Estado imenso, cartorial e tentacular.

O modelo atual, e que vem de décadas, precisa ser revisto. Um MEC gigantesco e centralizador - bigMEC - não nutrirá de modo saudável o intelecto de nossas crianças e jovens.

EUGÊNIO ESBER

02 DE ABRIL DE 2022
BRUNA LOMBARDI

TEMPOS TUMULTUADOS

Não é por acaso que essa última cerimônia do Oscar foi a mais caótica da história. Vivemos tempos tumultuados. Polarizações se tornam agressões, divergências são perigosas, discursos enfrentam censura e discussões acaloradas podem acabar em crimes. O quadro de manifestações de violência atinge todos. As bruxas estão soltas.

Na verdade, bruxas continuam sendo queimadas vivas em fogueiras nas praças públicas, diante da raiva coletiva. Soltos estão os criminosos, os mandantes, os que querem a destruição. E você, quer essa destruição?

No mundo, se instaura o espírito da guerra, a propagação do ódio, a ideia do poder a qualquer preço, a mentalidade do abuso.

São tempos de energias conturbadas e isso gera tumulto geral. Na história da humanidade, esses períodos são consequências do fanatismo de líderes que incitam o ódio e alastram o mal de forma devastadora. São movidos pelos piores princípios, querem o poder a qualquer preço, corrupção, abuso, a ganância absoluta da supremacia.

Yuval Harari diz que ditadores usam sempre o mesmo velho truque: dividir para governar. A verdadeira democracia busca o difícil equilíbrio da união entre as pessoas para construir uma sociedade pacífica. Os regimes totalitários querem que o povo se divida em facções inimigas que se odeiem e se destruam.

Assim, ficamos todos mais fracos, todos com muito medo e extrema insegurança. Um país corroído é mais fácil de ser dominado. E a regra é: quanto pior, melhor.

Esses ditadores geram crise, perigo,, impunidade, escassez, pânico, justamente para que eles possam se apresentar como salvadores da pátria.

Hipocritamente, fingem defender uma moral que não possuem, um direito que não aplicam, uma mentira cruel diluída em centenas de milhares de fake news, fabricadas e espalhadas na estratégia do terror.

E começam o combate constante, a caça exterminadora aos inimigos, que são todos os que não pensam como eles.

São regidos pela estupidez do ego, se expressam pela força bruta, agressão, hostilidade. Pregam a brutalidade e o embrutecimento. Espalham racismo, machismo, misoginia, homofobia, truculência, xenofobia. Ignoram os direitos do outro, a liberdade do outro. O outro. Odeiam a liberdade de expressão e pensamento.

Nos desenhos animados que eu via quando criança, um reino era tomado pelo Mal e se iniciava o período das Trevas. De repente, tudo ficava escuro e seco e em todos os lugares se espalhava fome, escassez e sofrimento.

E quando finalmente o Bem vencia, tudo voltava a florescer e um novo reino renascia sobre as cinzas.

A batalha entre o Bem e o Mal é a luta entre Ignorância e o Conhecimento. Entre um mundo em ruínas e flagelo no Obscurantismo da Era das Trevas e os valores humanitários do Renascimento e do Iluminismo.

O Conhecimento vence a Ignorância. Precisamos acreditar que o Bem existe e depende de nós. Que vão soprar os ventos da solidariedade, união e resistência. Que vamos transformar o espírito do nosso tempo e pacificar os ânimos acirrados.

Não deixe que o mundo te transforme naquilo que você não é.

BRUNA LOMBARDI

02 DE ABRIL DE 2022
J.J. CAMARGO

O ESCASSO LIMITE DA TOLERÂNCIA

"Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que o outro morra" (autor desconhecido)

Como era de se esperar, a minha ideia de velhice, por crescente proximidade com a causa, tem se modificado ao longo dos anos. Mas de qualquer maneira, aqueles dois senhores parceiros na intimidade e na surdez que dividiam espaço na fila do supermercado eram velhos há muito mais tempo. E devem ter envelhecido juntos, porque havia entre eles aquela cumplicidade dos confidentes que aprenderam a respeitar as pausas silenciosas do outro antes da enxurrada de queixas novas.

A despedida com o "não sei até quando vou aguentar" devia ter-se acompanhado, ao menos, de um toque solidário no ombro, mas o queixoso tinha acelerado o passo, e a mão nodosa do consolador, não alcançou.

Apostaria que a amargura da velhice expressa naquele desencanto ia assegurar que o papo continuaria no dia seguinte, e novas versões da velha tristeza seriam compartilhadas, comprovando que a capacidade humana de aguentar o sofrimento, se este puder ser fragmentado no dia a dia, é ilimitada. Fiquei pensando na infelicidade de envelhecer tendo que tolerar e quase certamente ser tolerado por alguém.

A tragédia pessoal de ser tolerado com grande frequência permeia as relações humanas, tanto pessoais, por ausência de reciprocidade afetiva, quanto profissionais, pela falta de encanto no que se faça.

Na medicina, a tolerância é o castigo mais comum destinado a quem não tem prazer em cuidar de ninguém e não consegue evitar que o outro perceba o quanto ele adoraria estar fazendo outra coisa. De antemão, este infeliz está desperdiçando uma das maiores maravilhas de ser médico: a alegria de ser escolhido por quem precise ser cuidado.

Muitas vezes, o paciente, por limitações do seu plano de saúde, também não tem liberdade de escolha, e se estabelece então a mais deprimente das relações pessoais, aquela regida pela tolerância bilateral e simétrica. E este sentimento é indisfarçável: o médico que tolera o paciente inevitavelmente perceberá que é tolerado por ele.

Nenhuma autoestima resiste à percepção de que, na relação vazia por falta de vínculo afetivo, não há mais do que tolerância. E o fato desta resignação ser mútua não ajuda nada, porque, tal qual o ódio e a vingança, a indiferença mais agride o odioso do que o odiado.

Todos reconhecem que, quando adoecemos, multiplicamos vulnerabilidade e carência, talvez até com mais intensidade do que outros, mas em todas as áreas da atividade humana encontramos tolerantes e tolerados, num revezamento degradante de amargura, transferência de culpa, agressividade, ódio e ressentimento.

A tolerância às circunstâncias desagradáveis amordaça o espírito, submetendo-o ao contínuo exercício da humilhação, que mutila sua vítima no plano individual e, quando transferido para o coletivo, é responsável pela mais degradante das tragédias sociais: a perda da capacidade de indignação. Sem esta válvula de escape, perde sentido toda a preocupação com o futuro, entorpecido pela náusea constante de que pior não pode ficar.

Que isto sirva de alerta aos redatores dos discursos políticos do futuro próximo: nossa tolerância acabou.

J.J. CAMARGO

02 DE ABRIL DE 2022
OPINIÃO DA RBS

EXALTAÇÃO EQUIVOCADA

Foi descabida a "Ordem do dia alusiva ao dia 31 de março", divulgada pelo Ministério da Defesa, em alusão à passagem dos 58 anos do golpe de 1964. Assinado pelo agora ex-ministro Walter Braga Netto, o texto faz o desserviço de acirrar ainda mais os ânimos no país, já exausto pela polarização destrutiva. Não bastasse a consequência infausta, costura uma série de retalhos argumentativos torcidos que, em conjunto, forçam a interpretação de que a ruptura institucional ocorreu em nome da democracia e, nos anos seguintes, a fortaleceu. Trata-se de conclusão fantasiosa sem amparo nos fatos e, por isso, é estéril como tentativa de recontar a História.

Tem respaldo a afirmação de que a deposição de João Goulart, executada pelos militares, contou com o apoio de parcela considerável da população, de organizações religiosas e empresariais, da mídia e de outros segmentos à época. É verdadeiro ainda que o Brasil experimentou, nos primeiros anos, um período de acelerado crescimento econômico.

O que se seguiu no país, entretanto, foi desastroso em todos os aspectos. A ditadura mergulhou os brasileiros em uma noite de trevas autoritárias que perdurou por 21 anos. Mortes, desaparecimentos, tortura, censura implacável à imprensa e às artes, perseguição política, cassação de mandatos e outros direitos civis, cidadãos e políticos no exílio, Congresso fechado e Judiciário amordaçado. Na economia, o regime legou altíssimo endividamento externo, hiperinflação e aumento da concentração de renda. Algumas dessas mazelas apenas a volta da democracia foi capaz de contornar, embora persista o desafio de diminuir a desigualdade social.

Mesmo que o mundo, quase seis décadas atrás, vivesse sob a sombra da Guerra Fria, é equivocado sustentar que a derrubada de Jango seria justificada por um risco de o Brasil cair nas garras do comunismo. Democracias têm os remédios legais, que não os da força, para uma eventual substituição de governantes. Ao se optar pelos tanques, não se restabeleceu a paz nem a estabilidade institucional, como sustentou a "ordem do dia" de Braga Netto. Pelo contrário. Além dos arbítrios, suscitou a mobilização também violenta e armada de opositores do regime, tampouco comprometidos com a democracia.

É possível encontrar na história das nações inúmeros episódios lamentáveis que então pareciam legitimados pelas circunstâncias e, assim, até angariaram adesões, para depois serem percebidos como erros graves. Reconhecê-los é sinal de amadurecimento de uma sociedade e de grandeza. Exaltá-los significa o contrário. O enaltecimento extemporâneo do regime militar não interessa inclusive à ampla maioria da geração atual integrante das Forças Armadas, compromissada com sua verdadeira missão constitucional e que presta relevantes e reconhecidos serviços ao país. A população brasileira, por sua vez, fez uma opção inequívoca pela democracia, pela prerrogativa de votar, pela liberdade de se expressar e pelos direitos civis. Ditaduras escancaradas ou disfarçadas, de qualquer espectro ideológico, devem ser sempre condenadas. Nunca celebradas. 


02 DE ABRIL DE 2022
FLÁVIO TAVARES

A RENÚNCIA

A renúncia do governador Eduardo Leite é insólita e inexplicável. Afinal, ele não detalhou por que deixa o governo e abandona as responsabilidades que lhe deu o povo.

Renunciar a algo pode ser gesto altruísta. Assim ocorreu ao longo dos séculos com santos e sábios, que renunciaram às facilidades do mundo para dedicar-se ao próximo. Com isso, passaram do menor ao maior, tal qual servos da humanidade toda.

Renunciar é altruísta quando se desprezam as honrarias, sejam quais forem. Em qualquer caso, porém, é sempre um gesto pessoal. No Brasil de 1961, a renúncia de Jânio Quadros, antes de completar sete meses de governo, gerou uma crise que quase nos levou à guerra civil. Só décadas mais tarde, ele confessou ao neto que a renúncia fora uma manobra para tentar obter "plenos poderes" e tornar-se "ditador constitucional".

Não é este o caso da renúncia de Eduardo Leite. Pelo contrário, ao renunciar, ele passa de general a soldado raso, para seguir como aspirante a candidato presidencial na eventual desistência de João Doria.

Mas a renúncia é insólita, porque Leite não era proprietário do cargo, só exercia um mandato que lhe deu o povo, o único que, nas democracias, tem poder soberano. Cada eleitor tinha um quinhão naquilo que, mesmo inadequadamente, chamamos de "propriedade do cargo".

Até quem nele não votou também era mandatário, pois se governa para todos. As diferenças são apenas no processo eleitoral. Empossados, os eleitos servem a todos.

Assim, pergunto-me se a renúncia não soa como desprezo ao mandato conferido pelo povo.

Pergunto-me também quais as orientações que nos dão as tais "pesquisas" sobre a eleição presidencial feitas por telefone em rápidas consultas a 2 mil pessoas, como se fossem a tendência de milhões de eleitores.

Não serão um embuste que induz a votar em X ou Y, sem explicar o que são ou propõem? Calam-se sobre planos de governo ou o passado de cada um. Tudo se reduz a números ocos, que não ajudam a decidir sobre o voto.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

02 DE ABRIL DE 2022
INFORME ESPECIAL

O lustre

São mais de 30 mil cristais, 96 lâmpadas, 600 quilos e quatro metros de comprimento. Como uma joia fulgente, o lustre do Theatro São Pedro, em Porto Alegre, fascina expectadores e ilumina um dos mais tradicionais palcos do Brasil.

A cada início de temporada (e sempre que necessário), o gigante dourado é levado até o solo com o auxílio de cabos de aço - e da força física de quatro a cinco homens. Neste ano, o ritual acaba de se repetir (veja as fotos ao lado).

- As lâmpadas foram revisadas e os cristais, lavados e recolocados no lugar. É sempre especial ver as pedras de perto, tocar nelas. É uma honra cuidar de algo tão precioso - diz o diretor operacional da casa, João Antônio Pires Porto, que trabalha há 35 anos no local.

De certa forma, o lustre do São Pedro, inaugurado em 1858, simboliza a história de resiliência e regeneração do próprio teatro.

Nos idos de 1880, o candelabro original - um presente do governo francês à Província de São Pedro do Rio Grande do Sul - sumiu. Não se sabe bem como, mas o objeto com 68 mangas de cristal (e um dispositivo para evitar que a cera das velas caísse sobre o público) teria sido encontrado em Rio Pardo, sem parte dos pingentes. O atual candeeiro é uma reprodução dele, confeccionada na Capital, na última grande reforma do espaço cultural.

Em 1973, corroído por cupins, o edifício teve de ser fechado. À época, coube a Eva Sopher (1923-2018) liderar a recuperação, junto do arquiteto Carlos Antônio Mancuso. Todo o miolo do teatro foi refeito. O forro recebeu nova pintura, com exemplares da flora e da fauna nativas (na última foto ao lado), e o velho lustre foi recriado. Na reinauguração de 1984, o castiçal renasceu ainda mais belo e reluzente, tal qual o Theatro São Pedro.

a saber

Na próxima reforma do teatro (que deve começar em 2023, para adaptar a casa às atuais exigências de acessibilidade e prevenção contra incêndio), o mecanismo de tração do candelabro de cristais ganhará um motor. A medida vai facilitar a conservação.

INFORME ESPECIAL

sábado, 26 de março de 2022


26 DE MARÇO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Onde foi parar minha vida?

Procuro embaixo do tapete, dentro do açucareiro... cadê? Ainda ontem ela estava aqui, diante dos meus olhos, anotada nas páginas da agenda, o passo a passo dos meus dias, com horários regulados, almoço e jantar, reuniões de trabalho, namorado no fim de semana.

"Ainda ontem" é vício de linguagem. Não faz tão pouco tempo assim, já que entrementes houve uma pandemia que nos paralisou por dois anos, e quando ela começava a ser controlada, veio essa guerra que alterou os batimentos cardíacos de todos, então não foi ainda ontem que eu tive uma vida medianamente organizada, mas lembro bem dela, não pode estar tão longe. Atrás da geladeira, esquecida na garagem... cadê?

Todas as lives começavam com a mesma pergunta: qual será o legado dessa crise, como vai ser quando o vírus deixar de ser uma ameaça, que pessoas nos tornaremos depois dessa experiência? Ah, seremos mais solidários, levaremos em conta o coletivo, teremos mais consciência da nossa fragilidade, inventaremos novas profissões para impulsionar a economia, tudo vai mudar, nada vai mudar. Foi chute para tudo que é lado e ainda aguardo as confirmações dos prognósticos. De certo, mesmo, é que a vida que eu tinha aproveitou que eu estava distraída com o rebuliço do mundo e picou a mula.

Restou essa desatinada buscando a si mesma. Na gaveta do banheiro... será?

Olha eu ali no posto abastecendo o carro para dirigir 800 quilômetros, sem medo do cansaço ou do preço da gasolina. Olha eu em frente ao computador pesquisando uma passagem barata para voar até um país caro (Paris e Londres não pareciam tão distantes). Olha como eu dormia mais de cinco horas por noite e tinha cinco quilos a menos: lembranças enviadas pelo Facebook, tentando me convencer que aquela continua sendo eu mesma (coitado, até ele ficou no passado).

Nos álbuns de fotografias, escondida nas páginas de um livro... onde ela se esconde de mim, a vida que era minha e que não sei onde foi parar?

Mas parou. É fato. Paralisou no sinal vermelho e o motor apagou. Alguns veículos passam por mim em baixa velocidade e gritam pela janela que estou atrapalhando o tráfego. Outros estão apagados também, ao meu lado, aguardando reboque. Parei, paramos. Você não?

Pode ser apenas um longo agora, reflexão necessária sobre este vácuo entre o que fomos e o que seremos. No fundo é a mesma vida, ainda que pareça vida nenhuma. Talvez tenhamos alcançado o tão desejado "depois da pandemia", mas não consigo retomar do mesmo ponto onde parei, nem realizar um novo parto de mim mesma, desaprendi a partir e acho tudo bem estranho: sério que usei a palavra entrementes nesse texto? Vou continuar procurando, a vida de antes deve estar em algum lugar.

MARTHA MEDEIROS

26 DE MARÇO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Nosso porto

A primeira lembrança: não lembro.

Talvez seja a Redenção, mas também pode ser a pracinha perto de casa ou mesmo o pátio da casa da avó. Uma coisa era certa: tinha um cheiro que até hoje algumas ruas de Porto Alegre têm, cheiro que não se sente em nenhum outro lugar. Tempero? Chá? As flores ficando amareladas no vaso da sala?

Por um bom tempo, todas as lembranças são de Porto Alegre.

Sorvete com a família na sorveteria Nevada, da Cristóvão Colombo. No verão de calor quase sólido, o meio da rua tomado por cascudos - fora os que vinham voando e entravam no cabelo, para pavor das crianças.

E o sorvete no Mercado Público. A taça de creme, chocolate e morango sempre aos sábados, com o pai.

Os jogos no Olímpico. Depois do almoço de domingo, minhas irmãs - uma delas virou casaca e hoje é colorada -, eu e o pai nas cadeiras. Enquanto ele tentava ver Espinosa e Ivo Wortmann em campo, as filhas pedindo para comer absolutamente tudo o que estivesse à venda. Overdose de cachorro-quente com churros com pipoca com picolé. Sobre a bola rolando, nada a declarar. Daí nasceu meu irmão e nós três fomos para o banco.

As lojas do centro com a mãe. Não que ela gostasse de me levar, já que a objetividade não existe quando se vai às compras com uma criança pequena a tiracolo, coisa que a gente só descobre mais tarde, com os próprios filhos. As lojas preferidas: todas. De tecidos, roupas, quinquilharias, ferragens, farmácias. As bijuterias da Sloper, praticamente uma Disneylândia na Rua da Praia. A Livraria do Globo, de onde ninguém saía sem um livrinho de colorir com água, que fosse.

Ipanema, para onde nos mudamos no início da minha adolescência, o que me obrigou a deixar uma vida de 12 anos para trás. Parece pouco, mas é uma história. De repente, o nada. O colégio desconhecido, o medo de não fazer novos amigos. Mudar de bairro é mudar de planeta, quando se tem 12 anos.

O tempo sendo contado pelo que já podia fazer sem a tutela dos pais. Pegar ônibus, linhas Serraria e Juca Batista, a parada na frente da nossa casa. Sair de noite para as festinhas na AABB e no Clube do Professor Gaúcho. Daí para a primeira cerveja e o primeiro beijo, não necessariamente nessa ordem, a vida foi um pulo.

Engraçado como a Zona Sul era muito mais longe, naquele tempo. De lá até a Fabico, nas vizinhanças do Planetário, levava-se a eternidade. Entre uma e outra, havia a Osvaldo Aranha, os cinemas e os bares. Era preciso ser forte para ir às aulas. Nem sempre eu fui.

Então, um dia, a pessoa acorda adulta e tudo vira uma lembrança só. Trabalho, morar sozinha, amores que depois a gente renega, outros que renegam a gente. Encontrar um caminho, trocar de caminho, não se achar nunca. Quando se conhece outros lugares, Porto Alegre perde um tanto da mágica que tinha lá no início. Não se envelhece sem realidade, o que vale para pessoas e para cidades. De qualquer jeito, voltar para Porto Alegre é sempre um respiro. Algo como sentir, outra vez, o cheiro de tempero, de chá, das flores ficando amareladas no vaso da sala. O cheiro de casa.

Feliz aniversário, meu porto.

CLAUDIA TAJES