sábado, 9 de julho de 2022


09 DE JULHO DE 2022
INFORME ESPECIAL

Vinte anos de sucesso

Carla Estrella Tellini é uma mulher poderosa. Sob seu comando, está o maior grupo gastronômico multimarcas do sul do Brasil, sediado em Porto Alegre, com 17 operações, 293 colaboradores e faturamento estimado em R$ 60 milhões em 2022. Carla é o cérebro, o coração e o pulso do grupo Press, que está celebrando 20 anos, em plena expansão.

São nove marcas consolidadas, entre elas grifes gaúchas como o Press Café, o Bah Restaurante e o Press do Cais.

Em 2002, em parceria com a empresária Jaqueline Meneghetti (hoje à frente do Dionísia, bar de vinhos), Carla idealizou a rede de cafeterias que revolucionaria o segmento na Capital, com baristas especializados e produtos de alta qualidade - incluindo o uso de grãos selecionados, produzidos em uma tradicional fazenda do interior de São Paulo.

Quatro anos depois, cansada de "frequentar restaurantes franceses em casas velhas", ela inovou outra vez: criou o Press Bar e Restaurante. Em um espaço moderno e sofisticado, apostou em algo meio fora de moda - a "comida de mãe". Foi um sucesso. E não parou aí.

Em 2008, na contramão da gastronomia étnica, molecular e rebuscada, a executiva lançou o Bah. Seria o abre-alas de um movimento que, pouco depois, alçaria a comida regional ao topo dos mais badalados menus brasileiros. A ideia era simples e disruptiva: valorizar a culinária local com "savoir-faire". Chique, inovador e emblemático.

A mesma lógica levaria Carla a investir, em 2021, no Cais Embarcadero, criado em uma zona até então abandonada às margens do Guaíba, e a fundar uma rede de xis, no auge dos hambúrgueres gourmet. Ousada, ela nunca teve medo de arriscar.

- Sempre soube o que quis e sempre mergulhei de cabeça. Tudo isso partiu de inquietações genuínas. Tem muita verdade no que construí - resume Carla.

E tem mesmo.

INFORME ESPECIAL

sábado, 2 de julho de 2022


As mesas mancas de minha vida

Em qualquer restaurante a que eu vou, sento-me numa mesa manca. Sempre desfruto do infortúnio de me definir pela mesa manca entre dezenas de opções. Meu olho é treinado para o erro. Sou um ímã da vertigem. A família já espera o meu sorteio, a manutenção do padrão de comportamento, e ri da minha maldição.

Não sei se é um aviso de Deus para indicar que venho desperdiçando uma brilhante vocação de marceneiro, se é um alerta para trocar o rumo das palavras pela madeira, se é um chamado da humildade para abrir uma oficina no fundo de casa e aplainar as farpas do cotidiano. Não sei se é um sinal veemente do destino ou um acaso absurdamente extraordinário.

A minha tábua da lei é viver no desequilíbrio durante as refeições, respirar fundo com a reincidência, conservar a calma e procurar dobrar um guardanapo grosso para fixar o móvel e não sentir que estou almoçando ou jantando no balanço de um barco. Luto contra a trepidação, o terremoto, sou um sismógrafo dos pratos e copos.

No último domingo, fui com amigos conferir um endereço de comida caseira. Estranhamente, a mesa não se encontrava bamba. Testei a retidão da tábua colocando o peso de ambas as mãos. Passou no autoexame do Inmetro: nenhuma inclinação. Será que eu havia chegado ao fim da minha sina? Será que viria um período de prosperidade e de firmeza na minha biografia?

Por curiosidade, espiei os pinos por baixo da toalha quadriculada. Não é que já existia um calço? Meu sorriso não atingiu todos os dentes.

Ou seja, eu continuava a optar pela mesa manca do salão. Não rompi a constância e a cartografia dos meus hábitos. Seguia sendo o mais azarado dos comensais. Só que era uma mesa operada, reabilitada, com cirurgia nos seus joelhos.

Eu levantei o calço por curiosidade, porque ele exibia uma cor incomum, espelhada, azulada, com alguma figura desenhada. Não parecia um mero papel ou papelão. O calço correspondia a uma surpreendente nota de cem reais. Uma garoupa afogada no seco.

Quem pode esnobar e colocar como apoio uma nota de cem reais? Eu fiquei imaginando um magnata incomodado com o desnível, impaciente para pedir ajuda aos garçons e decidido a resolver o problema com uma cédula de tantas que recheavam a sua carteira. Largou ali como uma poupança renegada, sem juros do tempo. Legou o valioso suporte para o bem-estar dos próximos clientes. Não deve nem ter percebido o desfalque, não se agachou novamente para recuperar o seu dinheiro.

Óbvio que não iria levar a nota comigo. Tenho educação e princípios, não carrego o que não é meu. Não sou do time do "achado não é roubado". Não enfiei no bolso, assobiando, para ninguém perceber. Não quero sofrer de culpa ou dormir de consciência pesada. Preciso dar o exemplo para os meus filhos.

Eu deixei a nota no restaurante. Ela me ajudou a pagar grande parte da conta.

E a mesa ficou manca para a minha próxima visita.

CARPINEJAR

02 DE JULHO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Esquerda caviar

Há quase 30 anos escrevo sobre relações humanas, e mesmo a política fazendo parte disso, nunca foi meu tema preferido, mas anda difícil evitá-la. Dessa vez foi um leitor, que num arroubo de originalidade, me chamou de esquerda caviar.

João (te chamarei de João, para não te expor), esquerda caviar é uma expressão usada para acusar alguém de ser socialista e ao mesmo tempo levar uma vida luxuosa, o que seria uma contradição, uma hipocrisia.

Mas a questão não é comer mortadela ou caviar, ser socialista ou capitalista, de esquerda ou de direita. São ideologias diferentes, mas acredito que seus conceitos podem ser flexíveis. Eu, por exemplo, votei algumas poucas vezes em candidatos conservadores. A maioria dos meus votos foi para candidatos de centro-esquerda. Nunca votei na extrema direita. Isso diz alguma coisa, mas não diz tudo.

As decisões de um presidente afetam toda a população, só que não da mesma forma. Dependendo das ações que ele tomar, posso ter meus textos censurados ou meu salário desvalorizado pela inflação. Mas, a despeito do que ela faça, a probabilidade de eu ter que dormir em uma calçada ou ser asfixiada dentro de um camburão é nula. 

Ou seja, tem gente que precisa do governo pelas mesmas razões que eu preciso, e muito, muito, muito mais gente que precisa do governo por razões que eu não preciso. É nessas pessoas, João, que temos que pensar primeiro, porque elas não têm privilégios, não escrevem para jornais, não dão entrevistas. Se ninguém se importar com elas, continuaremos tendo políticos governando só para alguns, não para todos.

Não tenho apartamento em Paris, quem me dera, mas se tivesse, isso não impediria de me posicionar por um país menos desigual. Não há uma campanha na rua reivindicando a troca do sistema socioeconômico, o que existe é um clamor, vindo de todas as classes, por mais consciência ambiental, por um estado laico, por uma cobrança de impostos mais justa, por responsabilidade pela saúde da população, por investimento em educação de qualidade, esse tipo de coisa. 

Ninguém supõe que seja possível igualar o padrão financeiro de todos, mas é possível que a distância entre quem ganha mais e quem ganha menos não seja tão indecente. O país se desenvolve quando mais gente estuda, porque aí mais gente trabalha e consome, e a economia cresce. Parece simples (não é), mas um governante tem que ter ao menos o propósito de construir algo nesse sentido. Destruir tudo é moleza.

É isso, João. Feio seria se eu me lixasse para a dor dos outros e pensasse apenas no meu umbigo. A esquerda que você combate é imperfeita, óbvio, mas está longe de ser radical, só busca uma visão mais humanitária da sociedade. Quanto ao caviar, provei uma ou duas vezes. Não é essa coisa toda.

MARTHA MEDEIROS

02 DE JULHO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Tribunal semanal

Quatro juízes e uma juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos derrubaram na semana passada a lei de 1973 que permitia a prática do aborto no país. Quatro juízes e uma juíza com mais de 50 anos, situação financeira para lá de confortável, uns nomeados por Donald Trump, outros pelos Georges Bushes. Mais distantes dos problemas e das dores de quem se confronta com a necessidade de interromper uma gravidez, impossível.

Será feita a vontade deles. Corta para o Brasil.

Também na semana passada, o caso da menina de Santa Catarina, grávida aos 11 anos por conta de um estupro, movimentou corações e redes. Rapidamente, a Suprema Corte da Internet formou com a juíza que queria que a criança levasse a gestação por mais algumas semanas, embora os riscos todos para a menina. É como se diz: cidadão de bem está sempre preocupado com o feto. Criança em perigo, com fome, com frio, sem casa, sem escola, sem futuro, que se arranje.

A solução que a juíza de Tijucas queria dar ao caso era esperar o nascimento para entregar o bebê para adoção. "A tristeza de vocês é a felicidade de um casal", lacrou ela para a mãe da menina, compulsoriamente afastada da filha e desesperada para interromper a gestação dentro dos instrumentos da lei.

A sensibilidade de advogados e juízes que defenderam o direito da criança foi mais forte que as vontades da juíza, aliás, já promovida e afastada do caso. Mas ficou um amargo na garganta de quem vociferava pela não interrupção: custava esperar mais um pouquinho e entregar o bebê para adoção?

Passam-se uns dias, outro caso estremece a internet.

Uma atriz de 21 anos, também grávida por conta de um estupro, decide levar a gestação até o fim e entregar o bebê para adoção - sonho dos militantes pela vida do parágrafo ao lado. Porque ela é uma pessoa conhecida, a coisa vaza e, depois de o marido de uma enfermeira tentar vender a informação, ela acaba publicada por um colunista especializado em televisão e miséria humana. Uma cidadã de bem, sempre em busca de holofotes, pega carona no assunto para se promover. E pronto. A atriz se vê obrigada a revelar publicamente a sua versão dos fatos, na tentativa de pôr fim ao massacre.

O veredito da internet não demorou a sair. Onde já se viu levar a gestação até o fim e depois passar a criança adiante?

Moral da história: essa história não tem moral. Julgou-se que a menina estuprada de Tijucas devia dar o bebê para adoção, mas da atriz estuprada esperava-se, no mínimo, um belo chá de fraldas nas páginas da Caras.

Depois dos casos acima, os militantes pela vida foram obrigados a abandonar temporariamente suas pregações para fiscalizar as intimidades alheias. Veio o Dia do Orgulho LGBT+ e, se você quiser manter seu bom humor, nunca leia os comentários em matérias com temáticas gays, trans e outras. Ninguém merece.

Uma coisa não se pode negar, os juízes da vida alheia não descansam nunca. Estão sempre na ativa. Até porque, na passiva, eles não gostam.

Vai vendo, Brasil.

CLAUDIA TAJES

02 DE JULHO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Há exceções, mas, em geral, existem quatro modelos que mantêm os relacionamentos de pé. As regras implicam exceções notáveis. Faça uma análise honesta, querida leitora e estimado leitor. Quase todos os casais podem ser enquadrados nos quatro modelos que descreverei. Enfatizo: quase todos...

O primeiro modelo foi descrito em um romance de 1938: O Feijão e o Sonho (Orígenes Lessa). O escritor paulista inventou um poeta, Campos Lara, idealista e que deseja fazer poesia tradicional. A esposa, Maria Rosa, é prática e luta com os devaneios do marido. Ela era o feijão, cotidiano; ele, o sonho. Em todo casal, um é dado a voar com sua imaginação idealista. Do outro lado, até pelo saudável equilíbrio, o cônjuge prático sabe que não existe almoço grátis. O feijão, confiável e concreto, tende a ser o mais chato. O sonho puro (insustentável e não pragmático) é mais leve.

O casal do segundo modelo trata de duas concepções de tempo. A primeira, agostiniana: o tempo é uma criatura e, como foi feito pelo Supremo Poder, é um dom. O tempo deve ser usufruído de forma generosa e levando em conta uma confiança em um arquiteto superior que o concebeu. A outra pessoa trata do tempo relógio, o tempo do mercador, como definiu o historiador Le Goff. Um se entrega ao deleite indiscernível do passar dos dias. O outro metrifica, coloca em planilha Excel e compartilha da máxima calvinista do time is money. Onde os dois acabam entrando em rota de conflito? Em geral, nas viagens: um quer executar planos minuciosos; o outro deseja se entregar às novas paisagens. Claro que há casais com combinações de tipos: o feijão tende à planilha, o sonho, à sensação agostiniana, de presente contínuo.

Já fiz crônica sobre a flor e o jardineiro. É o terceiro tipo. Sim, o casal amoroso apresenta cuidados recíprocos, jamais à mesma proporção. Um sempre tenderá ao papel do jardineiro, pensando em regar, adubar e, fato necessário, podar suas rosas. O outro membro da associação conjugal será mais flor. Com o tempo, isso parece até natural na gramática afetiva. A flor tende ao mimo; o jardineiro, ao mau humor orgulhoso por fazer tudo. O jardineiro pode ser feijão e usar o relógio do mercador. A flor é do tempo fluido e viceja no sonho.

Nenhum ser humano pode se orgulhar de estar 100% liberto do pensamento mágico. Faz parte da nossa espécie. Passamos mais tempo em cavernas, tomados de terror pelos raios e trovões, do que em laboratórios de física. É um peso cultural instintivo. Porém... Pensemos bem: sempre há no casal um feiticeiro e um cientista. O quarto modelo fala daquela dualidade curiosa. Vamos fazer um almoço no jardim? Um consultará a previsão do tempo ou pensará em lugares alternativos e plano B para situação de chuva. O outro jogará um ovo no telhado para Santa Clara.

Queremos prosperidade no lar? É possível pensar em um bom investimento ou... comer nhoque da sorte, todo dia 29, com uma nota de dólar sob o prato e ingerindo as primeiras porções de pé?

A casa precisa de proteção? Há vários caminhos. O assim chamado cientista procurará seguros residenciais, verificará trancas e alarmes, estimulará a presença de extintores e indicará algum treinamento familiar, em casos de emergência. O feiticeiro plantará um vaso com sete ervas protetoras contra olho-grande, colocará um elefante com o derrière voltado contra a porta, comprará um olho grego e alguma imagem protetora para pôr junto às saídas da residência. Em alguns casos mais elaborados, o feiticeiro fará disposição de espelhos, cristais, fontes de água e outras posições para reorganizar, a seu favor, o fluxo energético da casa.

Para garantir coesão textual, vamos lá: o feijão/time is money/jardineiro/cientista andará ao lado do sonho/tempo dom de Deus/rosa/mago. São, claro, tipos ideais. Quem compra cristais e os alinha cuidadosamente na estante da sala está em atitude de jardineiro, mais do que de flor. Crê, sinceramente, que o ato protegerá a casa e busca agir como protagonista. Se a casa tiver o privilégio raro de nunca ser assaltada, quem pode garantir que foram as trancas de ferro, a segurança contratada da rua ou as trancas energéticas do alinhamento dos cristais? Quem pode, de verdade, garantir a eficácia?

O mistério da natureza é o acasalamento entre os tipos descritos. Um mago sofrerá escárnio e atritos com um cientista ao lado. O racional perderá a paciência com o intuitivo mágico. Não obstante, a seta de Cupido aproxima, com frequência, um tipo ao seu polo oposto. Motivo de tal atração bizarra? Podem existir as causas em dois campos. Uma pessoa do casal dirá freudianamente: "Eu me aproximo da minha sombra, do denegado em mim". Outro, inclinado ao Taoismo, dirá: "São Yin e Yang na conspiração dos fluxos universais!".

Estaria inscrito nas estrelas ou seria fruto de um impulso psíquico? A esperança está no amor, que, claro, é um processo químico e um destino cármico ao mesmo tempo, como sabem os casais harmoniosamente polares.

LEANDRO KARNAL

02 DE JULHO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

Um dia, Aspásia de Mileto foi para Atenas. Com 20 e poucos anos, ela estava no esplendor de sua beleza e sabedoria, e Atenas, igualmente, mas muito rica. Era uma mulher em sociedade de muitos varões guerreiros, uns brutos, outros sensíveis, nenhum capaz de intimidá-la, como ninguém conteve Safo de Lesbos, 200 anos antes, como ninguém deterá as mulheres, 2,5 mil anos após. O que a saga de Aspásia diz para os que pensam história e sociedade, mulheres e poder, ontem e hoje?

Aspásia (470-após 428 a.C.) sabia que enfrentaria duros desafios, mas embarcou no navio e desembarcou para arrolar-se como estrangeira naquela cidade amiga. Do porto do Pireu, viu o cume ainda devastado da Acrópole, onde logo se ergueria, com sua ajuda, o templo de Palas Atena, deusa fêmea, senhora das estratégias, tecelã e astuta. Ao marulho do mar somavam-se murmúrios reais e imagináveis de uma cidade tagarela, que falava de tudo, e um dia muito falaria de Aspásia, de seu sagrado poder. Ela era também do mundo de Afrodite, e sua beleza distribuía-se com dons de Eros. Onde todos iam e vão aprender, ela foi ensinar, e montou sua escola, para mulheres. 

Fez cativos muitos homens, inclusive aquele mestre da filosofia que dizia, com falsa humildade, nada saber, mas que soube reconhecer que o pouco que sabia aprendeu de uma mulher; esta mesma, natural de Didima (templo de Apolo em Mileto), camuflada como Diotima, no diálogo sobre o amor, Banquete. Um comediante fez dela, em Os Acarnianos, a causa da guerra entre Esparta e Atenas, equiparando-a a Helena, em tramas de sexo e poder. O maior líder da cidade corria atrás de seu beijo, na ágora ou em sua casa, e no leito que repartiram, onde geraram filho. Seus conselhos eram admirados e de seus cílios partia olhar brilhante, que até hoje ilumina.

Que mulher Aspásia poderia ser em Atenas? Estrangeira (meteca), jamais seria uma cidadã, polítides, a quem se reservava condição de abelha, mélissa, cativa de deveres, nem foi escrava, doula, sem a posse de seu corpo. Talvez concubina, pallaké, mas seus dons eram mais que eróticos, e os homens a buscariam também para ouvir os versos que cantava com doçura e as belas ideias que sibilava, e a chamariam companheira - hetaira, sabendo que ela não era uma porné - prostituta. 

Mordidos por sua glória, maledicentes a acusaram de impiedade (asebeia), talvez para agredir seu namorado famoso. Diante dessas categorias, Aspásia, cujo nome significa "bem-vinda", poderia ser simplesmente o que foi, mulher plena e livre, bela e sábia, que veio de fora e dominou uma cidade imperialista, e fez-se um nome denso em imagens e poderes.

O destino desta mulher mostrou o que se podia e se pode realizar mesmo em situações adversas, como era o caso da condição feminina naquela cidade falocrática. Essa história, como a história dos feitos culturais daquela era, não serve para indultar uma sociedade firmada, como todas as demais em todas as épocas, em variadas violências e hipocrisias, mas serve para mostrar, Cristina, que é possível contar a história de uma cidade só com os nomes de mulheres artistas.

FRANCISCO MARSHALL

02 DE JULHO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

PRETO E POBRE, HOMEM PROVA QUE NÃO VENDIA MACONHA MAS SEGUE PRESO

O paciente entrou algemado. O funcionário que me ajuda no atendimento veio com a chave. O rapaz magrinho se coçava, de dar aflição. Chegou a pedir licença para esfregar as costas contra a soleira da porta. Quando levantei a camiseta surrada que ele vestia, confirmei o óbvio: escabiose.

Desde os tempos do antigo Carandiru, as prisões masculinas que frequentei vivem infestadas de sarna.

Nas celas coletivas dos centros de detenção provisória, os CDPs, ocupadas por mais de 20 homens à espera de julgamento, o parasita deita e rola. Alojado na pele, causa lesões nas axilas, nas dobras dos dedos, na região pubiana, no pênis e nas nádegas, para depois se espalhar pelo corpo todo. O ato de coçar machuca a pele e serve de porta de entrada para bactérias que formam furúnculos e abscessos.

Pedi que tirasse a roupa. Era uma infestação tão intensa e generalizada, que provocava descamação grosseira da pele. Em vários locais havia feridas infectadas.

Falei que prescreveria uma injeção de penicilina, sabonete contra a sarna e dois comprimidos de ivermectina, droga que o deixou assustado: "Eu estou com covid?". Expliquei que ivermectina é bom para sarna e inútil para a covid. Enquanto preenchia a receita, perguntei em que artigo estava enquadrado: "Trinta e três, doutor".

Mulheres e homens presos evitam falar dos crimes cometidos, preferem se referir a eles pelo número do artigo do Código Penal.

"Maconha ou cocaína?"

"O que é isso, doutor? Nunca usei nem mexi com essas coisas."

"O que você traficava?"

"Casca de fruta ralada."

"Ô meu! Atendo em cadeia há mais de 30 anos. Você tá me tirando?"

"Não, doutor, com todo respeito. Eu vendia casca de fruta pros maluco fumar na quebrada."

"E dá barato?"

"Ô se dá. O baguio é doido."

Contou que trabalhara como mecânico dos 15 aos 25 anos numa oficina na Grande São Paulo. Ganhava o suficiente para alugar a casa de dois cômodos em que morava com a mulher e o filho pequeno. Em 2016, quando ele e a mulher ficaram desempregados, a solução foi mudar para a pequena chácara do avô, na periferia de Caieiras.

Para não viver às custas do avô aposentado, fazia o que aparecesse. Foi servente de pedreiro, entregador, carregador, guardador de carro, vendedor de porta em porta e segurança de um desmanche, local em que conheceu o amazonense que veio com a história dos indígenas que fumavam as cascas da tal fruta.

Ele não levou a sério, mas resolveu experimentar. Não precisou comprar, na chácara havia quatro pés carregados. Ralou a casca e deixou no sol para secar por três dias. Quando deu as primeiras tragadas, sentiu o baque.

"Doutor, do céu, fiquei leve, solto no ar, na paz, tudo psicodélico em volta."

Daí, para começar a vender "pros maluco" das redondezas, foi um passo. O entra e sai na chacrinha não preocupou o avô, incapaz de entender o gosto daquela gente que comprava casca de fruta.

Comercializava cada saquinho pequeno a R$ 50, quantia de um dia inteiro de trabalho nos bicos que fazia. Comprou roupa para a família, TV nova, brinquedos para o filho, presentes para o avô. A vida melhorou tanto que não fazia sentido procurar emprego.

Um dia apareceu um PM. Queria saber em que lugar estava a plantação de maconha, única justificativa para tanto movimento no portão. Trazia dois saquinhos apreendidos com um usuário.

"Quando expliquei qual era o conteúdo, o homem ficou bravo, ameaçou me bater. Eu insisti, ele continuou duvidando, até que falei para fazer um teste: se ele sentisse o efeito me deixava livre." Preparou um cigarro e recomendou ao policial que pegasse leve, porque o "baguio era muito doido".

O conselho não foi seguido. Sem sentir efeito, o PM deu uma tragada atrás da outra, apesar das admoestações. De repente: "O barato veio com tudo. O cidadão estonteou, falava que saiu do corpo, que estava ali, mas não estava mais, que as árvores contorciam, que o meu cachorro ria da cara dele".

O policial descumpriu o trato. Enquadrado no artigo 33, o rapaz aguardava sentença havia cinco meses. Quando eu disse que não seria condenado por vender casca de fruta, e que um advogado conseguiria libertá-lo, esboçou um sorriso: "Advogado, eu? Preto e pobre".

Você, leitor, deve estar curioso para saber que fruta é essa. Pois vai ficar na curiosidade, como eu. Ele não quis contar, alegou segredo de ofício.

DRAUZIO VARELLA

02 DE JULHO DE 2022
MONJA COEN

FORÇA

Onde está sua força? Está na mente? Nos músculos? É seu corpo que controla a mente ou a mente que controla seu corpo? O que é a mente? Como medi-la, senti-la, pegá-la, acalmá-la ou excitá-la? E seu corpo, você o conhece, sente, percebe, respeita?

O que é a essência do ser? Há uma essência? Você já procurou por si mesmo? Foi ver se estava na esquina? Encontrou-se no espelho da parede ou no espelho da vida? O que é encontrar o seu eu verdadeiro? Há um eu falso? Seriam falsas as caretas que fazemos para fingir um poder que não temos? Será que de tanto fingir, nos tornamos?

Quem é você? Pergunte a si: quem sou eu? O que sou eu? Ser humano é humildade e terra misturada com céu e água. Percebe a pequenez e reconhece a grandeza de cada criatura?

O caminho do meio é uma via de curvas, de lombadas, de retas e de surpresas: para a direita, para a esquerda, com muitos erros e defeitos é perfeita. Pode sempre ser restaurada, resguardada, protegida e abençoada.

Pergunte, investigue, questione a si, a tudo e a todos. Sem a curiosidade, sem a procura não há encontro. Somos seres humanos e temos capacidade, direito e dever de questionar e descobrir a verdade. Não apenas o que nos contam, mas o que também não é contado. Quase invisível para quem não quer ver. Você quer ver, quer saber, conhecer?

O saber nos faz bem. Ler, estudar, pesquisar, ver, entender, diagnosticar e curar. Progredir, avançar, ir adiante e atuar. Tirar as máscaras e acabar com as mascaradas. Fim dos abusos, das falsidades. Transparência, confiança, encontro, respeito tornam possível viver em harmonia. Viver bem, compartilhar, cooperar.

Querer é poder? Então, a força da mente faz acontecer? Leva à ação correta?

Não repita jargões e frases de efeito. Penetre a verdade, torne-se real. Querer apenas não basta. É preciso planejar e agir. Sem dividir e separar, podemos juntar, multiplicar, melhorar. Unir para pensar e atuar para o bem de todos.

É tempo de aumentar a força que nos força a ser fortes. Força tem a ver com motivação, liberdade e ação. Força da mente se junta com força do corpo. Não só individual, mas social e coletivo. Somos. Interligados a tudo e a todos.

Apreciemos o desafio do agora. Momento de transformar, modificar, agir. A vida é um processo incessante. Cíclico em espiral - ascendente ou descendente. Depende de você, mas não só de você.

Não espere para agir. Espere o momento adequado. Como e quando decidir o que fazer e quando fazer? O que falar e quando falar? Como pensar? É possível não pensar? Ir além do pensar e não pensar. Experimente.

Quer na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença estamos comprometidos com a existência. Não deixe a pergunta calar. Não tenha pressa. Apenas urgência. Não aceite uma resposta feita e fácil. Pode até ser verdadeira. Verifique novamente. Não é apenas a rima que torna uma fala real. O que precisa rimar é amor com respeito, o não medo com a inclusão. Sem dívidas e com dúvidas, esperançamos, agimos, pensamos, falamos e nos tornamos a grande transformação de paz e harmonia possíveis aqui e agora.

Onde estamos é o lugar certo. A hora é agora. Que a força nos force a ser quem somos: livres, despertos, responsáveis, cuidadosos, filhos e filhos da Terra, do Sol, da Lua e do Ar. Força do core, do centro do ser, do coração da vida. Inspirando e expirando os batimentos se regularizam, corpo-mente em harmonia e a força provoca ventos de Norte a Sul, de Leste a Oeste.

Mãos em prece

MONJA COEN

02 DE JULHO DE 2022
J.J. CAMARGO

OS DESCARTÁVEIS

"A miséria de uma criança interessa a uma mãe, a miséria de um rapaz interessa a uma rapariga, a miséria de um velho não interessa a ninguém." (Victor Hugo)

Os médicos de verdade nunca se habituam com a ideia de atribuir naturalidade à morte simplesmente porque ela é o inevitável ocaso de todas as vidas. E muita gente passeia por aí porque em algum momento em que tudo parecia perdido alguém não desistiu.

Esta questão não é linear, mas como norma o exercício médico só será considerado maduro se no caminho desse esforço, pessoal e tecnológico, houver a perspectiva de uma vida digna. O que, evidentemente exclui aquelas situações de tratamentos fúteis, nos quais a protelação da vida é apenas um ritual de execrável crueldade. Com o paciente e sua família.

Os aspectos legais e humanitários sempre vêm à tona quando se considera a interrupção de tratamentos inócuos, muitas vezes caros e invariavelmente dolorosos.

A decisão de abandonar o tratamento só é tolerável para o médico que está convicto da irreversibilidade do quadro clínico com desfecho iminente. Sem essa convicção, a tendência lógica, e eticamente correta, é observar um pouco mais.

Em situações trágicas como grandes guerras e pandemias, há uma dramatização natural do contexto, quando as decisões sob tensão fazem de cada caso uma batalha emocional, e desencontros de opinião podem ser dramáticos e rudes, especialmente se arbitrados por estranhos que, distantes dos dramas pessoais, seguem à risca normas inflexíveis baixadas por burocratas, naturalmente despidos de qualquer resíduo de afeto.

A exposição profissional a esse tipo de exigência gerou uma enorme carga de sofrimento aos médicos que, no auge da pandemia, foram obrigados a estabelecer prioridades, quando ficou evidente que não havia hospitais, leitos, ventiladores e medicações para todos os necessitados, e então pacientes mais jovens e com melhores condições de recuperação foram priorizados.

A mortalidade, seguindo estes critérios de seleção, foi devastadora em lares de idosos, alguns deles com doenças neurológicas degenerativas, com qualidade de vida comprometida e convenientemente guardados em ambientes alheios que emprestassem um mínimo de dignidade à espera indeterminável pela complementação da morte.

Quando algum desses velhinhos adoecia, exigindo cuidados de terapia intensiva, indisponíveis nesses asilos que nem de oxigênio dispunham, o desespero tomava conta dos assistentes e voluntários que, pendurados nos telefones de emergência, rapidamente descobriam que a senha para eliminar qualquer tipo de ajuda estava na resposta à primeira pergunta: "Que idade tem o seu paciente?". Sempre seguida da promessa falsa de que a primeira ambulância disponível seria encaminhada para aquele socorro.

A banalização da morte, a sensação massacrante de que algumas delas poderiam ter sido evitadas, a pressão da imprensa por dados atualizados, o número crescente de casos, a falta de prazos definidos para alimentar a esperança, a indefinição do futuro das vacinas e a quebra diária do recorde de mortandade produziram inusitada democratização do desespero.

Para dramatizar ainda mais uma situação já completamente caótica, médicos e enfermeiras, tensos e esgotados pela exigência desumana de enfrentar plantões intermináveis, submetidos ao exercício constante da impotência, foram convocados à função de consoladores de familiares que tinham perdido seus amados, desprovidos do afeto mais elementar: o da proximidade física no fim da vida.

Quando se encontrava um técnico chorando pelo corredor, ainda havia a dúvida se esse choro era pelo sofrimento compartilhado com uma família inconsolável ou pela notícia de que um colega de plantão tinha sido entubado ou morrido, porque a peste não poupava ninguém.

Comprovando que a pandemia foi uma tragédia universal, este é o argumento de Help (2021), um filme que é o relato/denúncia das condições sub-humanas dos lares de idosos na Inglaterra, no auge da pandemia, no ano de 2020.

J.J. CAMARGO

02 DE JULHO DE 2022
ARTIGOS

COOPERAR É ACREDITAR NA VIDA

Ao longo dos anos, a força do cooperativismo ganhou espaço, conquistou profissionais dos mais variados setores e mostrou o impacto gerado a partir da união de esforços para competir. Mais do que isso: são pessoas reunidas em prol de uma causa, com um objetivo comum, ou, ainda, é um sistema organizado que busca gerar resultados econômicos e sociais.

As cooperativas se constituem numa forma de trabalho que exige gestão e conhecimento, além de proporcionar aos seus cooperativados uma atuação com maior liberdade. Os resultados são surpreendentes e jamais seriam conquistados se cada um estivesse atuando individualmente, provando que a união da classe pode fazer a diferença.

No primeiro sábado do mês de julho é comemorado o Dia Internacional do Cooperativismo, uma data importante para enaltecermos o sucesso dos movimentos que podem ser observados em diversas áreas. Na saúde, por exemplo, o Sistema Unimed Brasil é a maior experiência de cooperativismo médico do mundo, presente em 84% do território brasileiro. Especificamente na saúde, é preciso que a cooperativa agregue outros conceitos, além de ser competitiva. Deve cuidar do outro, estar atenta às novidades do mercado e saber utilizar a tecnologia a seu favor. Esses devem ser os pilares da sua existência.

A Unimed Porto Alegre, que completou 50 anos, é um exemplo que nasceu da aliança de médicos em torno do mesmo objetivo: oferecer uma medicina de qualidade, atendimento humano, próximo e eficiente. A materialização desse desejo só foi possível graças à força da união, a partir do trabalho coletivo de profissionais que acreditaram nessa missão. Crescemos, nos fortalecemos e hoje somos mais de 6,5 mil médicos e 2.031 colaboradores, que atuam coletivamente para atender mais de 680 mil clientes por ano.

A partir do cooperativismo, que está presente no nosso dia a dia por meio de ajuda mútua, responsabilidade, solidariedade, honestidade, transparência, responsabilidade social e sustentabilidade, nos tornamos protagonistas da saúde e temos o compromisso de agir cada vez mais juntos. Porque cooperar é acreditar na vida.

Hoje comemora-se o Dia Internacional das Cooperativas. O mundo já reconhece o impacto econômico e social que o modelo gera nas comunidades em que atua. Tanto que 2012 foi definido pela ONU como o Ano Internacional das Cooperativas, reconhecendo-as com o lema "Cooperativas constroem um mundo melhor".

Pouco antes, o professor Raj Sisodia e outras lideranças lançaram o movimento Capitalismo Consciente - presente no Brasil e no Estado, com a criação da filial RS do Instituto Capitalismo Consciente Brasil (ICCB). O movimento prega a adoção de práticas conscientes que alinhem lucro e propósito para trazer prosperidade a todos. E qual a relação? Explico: as cooperativas são negócios conscientes por DNA.

E o movimento é baseado em quatro pilares, que podemos relacionar ao cooperativismo. O primeiro é o propósito maior. Cooperativas só nascem por um propósito - geralmente o de atender às necessidades de seus associados. Também possuem uma ligação umbilical com as comunidades onde atuam e um interesse genuíno na sua melhoria e prosperidade.

O segundo é a liderança consciente. As cooperativas são sociedades de pessoas, criadas e administradas por seus sócios, numa gestão democrática. Sua governança garante a consciência das lideranças, que nascem do meio da cooperativa, e por consequência, são fortemente orientadas pelo propósito da organização.

O terceiro é a cultura consciente - que são os princípios, valores e políticas orientadas para práticas conscientes. Podemos ver, por exemplo, que um dos princípios do cooperativismo, "interesse pela comunidade", sintetiza o quanto as cooperativas representam um negócio consciente.

Já o último pilar, orientação para stakeholders, estimula a preocupação com o impacto gerado nas partes interessadas do negócio e também é facilmente percebido nas cooperativas. Somos instituições locais e nosso sucesso está diretamente atrelado ao sucesso das comunidades onde estamos.

Assim, podemos afirmar que cooperativas são um exemplo do Capitalismo Consciente. Não por uma decisão estratégica, ou por uma campanha de marketing, mas sim por DNA.

 Presidente do Conselho de Administração da Unimed Porto Alegre - MÁRCIO PIZZATO


02 DE JULHO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

CONTROLE SOCIAL OU TUTELA?

Obsessão de políticos de viés autoritário, o cerceamento dos meios de comunicação independentes volta a ser cogitado na atual campanha eleitoral sob o surrado eufemismo de "controle social da mídia", que nada mais é do que a intenção de subordinar a informação livre a grupos organizados e a governantes avessos à fiscalização e à crítica. Quando um político levanta esta bandeira, está, na verdade, pretendendo controlar o direito dos cidadãos de receberem informações livres e opiniões plurais.

A liberdade de manifestação de pensamento é cláusula pétrea da Constituição, e a legislação brasileira já prevê regras claras para a imprensa, inclusive a respeito do direito de resposta. Além disso, não há maior controle para os veículos de comunicação e seus profissionais do que a escolha do público, que tem o direito democrático de decidir livremente e sem tutelas o que deseja ver, ler e ouvir.

Evidentemente cabe fazer distinção entre regulação econômica e regulação de conteúdo. A primeira já existe e sempre pode ser aperfeiçoada, de acordo com a legislação vigente e os respectivos trâmites legislativos. Regular o conteúdo, porém, não é função do governante de plantão nem de eventuais ocupantes de cargos políticos. É, acima de tudo, o discernimento do público para selecionar o que deseja receber, complementado pelo compromisso dos profissionais de imprensa com a ética, com a autorregulamentação e com a qualidade das notícias e opiniões divulgadas.

O fato de emissoras de rádio e TV serem concessões públicas no Brasil não dá o direito a governantes e dirigentes políticos de interferir ou discriminar determinados veículos e privilegiar outros, como frequentemente ocorre quando têm interesses contrariados. A imprensa existe exatamente para atuar com independência no monitoramento do poder. Sua primeira obrigação é com a verdade e sua lealdade prioritária é com os cidadãos.

Isso, porém, não significa que detenha o monopólio da verdade nem que deva ter poder ilimitado. Pelo contrário, os excessos devem ser sempre reparados na forma da lei, como prevê a própria Constituição ao assegurar, no seu Artigo 5º, o direito de resposta proporcional ao agravo, além da respectiva indenização por dano moral, material ou à imagem da parte eventualmente ofendida.

O que não cabe é o Estado controlar um setor que existe exatamente para fiscalizá-lo com a representatividade prática dos cidadãos. A imprensa, que já foi apelidada de cão de guarda da sociedade, não ambiciona ser o quarto poder - até mesmo porque outras instituições como o Ministério Público estão credenciadas para exercer este papel. A principal finalidade do jornalismo é oferecer aos cidadãos as informações de que eles necessitam para serem livres e se autogovernar, assim como opiniões plurais que lhes permitam fazer escolhas e assumir suas próprias posições.

O único controle aceitável para a mídia, portanto, é o direito "intutelável" dos cidadãos de escolherem livremente como querem se informar. 


02 DE JULHO DE 2022
MARCELO RECH

A fonte do mal

O escândalo de traficância de verbas no MEC é apenas mais um capítulo da novela sem fim da corrupção no Brasil. Há séculos o enredo de desvios públicos ganha novos personagens porque o foco do combate se concentra em uma das facetas das trambicagens - as pessoas que as praticam, quando, no fundo, o problema reside no nosso modelo de funcionamento de Estado.

As distorções nascem com o próprio Brasil, uma colônia com fins extrativistas para enriquecer a Coroa e os amigos do poder em Portugal, em geral só de passagem tormentosa e temporária por essas terras longínquas. Fosse a concessão de bons empregos ou a propriedade de terras, de lavras e títulos, quase tudo dependia dos humores e favores dos governantes de plantão.

Quatrocentos anos depois, o que mudou foi o teor das benesses. Agora, as concessões gravitam em torno dos fundos públicos, dinheiro dos contribuintes manejado como se fora uma fortuna privada disposta a bel-prazer pelo donatário. Um exemplo: a romaria de prefeitos e governadores a Brasília em busca de recursos deveria, por si só, indignar os que acham que a monarquia acabou em 1889. Mas a deturpação vai mais longe. É corriqueiro que um ministro, de qualquer governo, só marque uma audiência depois da intercessão de parlamentares da sua base política. E ai dele se não o fizer.

Pela ética pública brasileira, ninguém está fazendo nada de errado. Nem os ministros, nem os políticos, nem ninguém. Na verdade, esse é o nosso modelo de gestão do Estado, impregnado há séculos como normal e aceitável. Mas, no fundo, o governador-geral e a Corte seguem reproduzindo as mesmas cerimônias de beija-mão, com suas trocas de favores, para só então atender aos anseios dos súditos.

Soma-se à ascendência do critério político sobre o técnico a aberração das emendas parlamentares e temos o coquetel no qual a corrupção se esbalda, independentemente de quem seja o governante de ocasião. Na prática, as estripulias não cessarão enquanto se tolerar intermediações para liberar recursos ou que partidos disputem a tapa cargos de segundo escalão de uma autarquia anônima da qual só se ouvirá falar quando um escândalo vier à tona.

Há avanços no enfrentamento da corrupção, como a maior autonomia de órgãos de controle e fiscalização, mas eles não são onipresentes nem imunes a manobras. Como se vê todos os dias, hábitos e costumes herdados da colonização não mudam assim. A solução, portanto, é secar a fonte: reproclamar a República Federativa e desidratar os governos ao mínimo necessário para atender de forma justa, honesta e transparente a quem mais e de fato precisa. Mas a cultura política que vem desde a Colônia não admite abrir mão do poder de conceder e dos paparicos da Corte. E nem sequer uma reforminha administrativa consegue dar dois passos antes de ser abatida. 


02 DE JULHO DE 2022
J.R. GUZZO

Lula é bipolar com a corrupção

O ex-presidente Lula, candidato a voltar ao cargo nas eleições de 2022, é um homem rigorosamente bipolar quando se trata de corrupção. Numa parte do tempo, garante que nunca foi roubado um tostão em seus oito anos de passagem pela Presidência. Em seus momentos de maior agitação, diz até que não existe no Brasil "ninguém mais honesto" do que ele - o que realmente não seria pouca coisa. 

Como essa afirmação costuma ser recebida com risadas gerais, Lula, em outra parte do tempo, diz que "foi traído" pelos companheiros, que levou uma punhalada "nas costas" e que não sabia nada da roubalheira espetacular que aconteceu em seus dois mandatos - foi, simplesmente, a maior de toda a história mundial da ladroagem, mas ele nunca chegou a perceber nada.

Em sua última manifestação pública de campanha, Lula acionou a "fase 2". No primeiro momento, fez, sem que lhe tivessem perguntado nada a respeito, uma revelação interessante: contou que em sua estadia na Presidência foi avisado com 12 horas de antecedência de uma operação de busca da Polícia Federal na casa de um irmão. 

Pelo que deu para entender, ele quis dizer que não interferiu no trabalho policial, mesmo sabendo das coisas. Pelo que dá para uma criança de 10 anos concluir, 12 horas são tempo suficiente para o mais distraído dos irmãos preparar a melhor recepção possível para a polícia. Em seguida, fez um desafio ao radialista que o entrevistava: "Você sabe tudo o que acontece na sua casa? Você sabe o que o seu filho está fazendo?" Então: ele, Lula, também não poderia saber tudo o que acontece num governo com "1 milhão de pessoas".

Uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra, é claro. É impossível para o radialista, ou para qualquer um dos 8 bilhões de seres vivos no mundo, saber tudo o que acontece em suas casas - a menos que fiquem 24 horas por dia trancados ou que não tenham casa nenhuma. Com a autoridade pública, sobretudo a que pediu para ser eleita, é o contrário: o sujeito tem, sim senhor, a obrigação de saber que diabo estão fazendo em seu nome e em seu governo, o tempo todo. 

O sujeito é o presidente da República ou é um otário? No primeiro caso, o combate aos atos de corrupção é imediato e eficaz - faz, basicamente, que se roube pouco. No segundo caso, essa atitude de "não dá para saber" leva à maior roubalheira da história.

Os governos Lula têm a maior prova da prática de corrupção que se pode esperar de uma investigação criminal: os corruptores e os corruptos confessaram de livre e espontânea vontade os crimes que cometeram, em acordos oficiais com a Procuradoria. Mais: devolveram o dinheiro roubado, ou pelo menos parte dele, no valor de bilhões de reais. Por que um sujeito haveria de devolver dinheiro se não roubou nada? Só para agradar ao juiz e ao promotor? Para isso Lula nunca deu uma explicação, em nenhum dos seus dois polos. 

sábado, 18 de junho de 2022


18 DE JUNHO DE 2022
CAPA

"Precisamos nos olhar com mais generosidade"

Mônica Martelli elegeu Porto Alegre para a reestreia da peça Minha Vida em Marte, neste final de semana, e conversou com Donna sobre novos projetos, envelhecimento e maternidade

Quando soubemos que Mônica Martelli retornaria à Capital com a peça Minha Vida em Marte e que ela nos daria esta entrevista , ficamos em polvorosa. Com a mesma personalidade intensa, alegre e espontânea que empresta à sua personagem Fernanda no teatro, na série e nos filmes, a atriz falou conosco por telefone e atualizou as novidades aos fãs, ávidos por acompanhá-la novamente após sua saída do programa Saia Justa, do GNT, do qual participou por nove anos.

- Além de retornar aos palcos, que morro de saudade, estou preparando um novo programa de bate-papo e uma série para o streaming - revela.

Em parceria com sua irmã Susana Garcia, ela também escreve um roteiro sobre a vida do humorista Paulo Gustavo. - Era meio pai, meio irmão, me protegia - relembra, saudosa.

Com coragem e liberdade, a carioca de Macaé inspira mulheres de todas as idades ao viver suas vontades - sem medo de testar novas fórmulas e se perguntando: "O que eu quero hoje?".

Aos 51 anos posou nua pela primeira vez, celebrando uma fase "exalando alegria e felicidade". E, aos 54 anos recém-feitos, prioriza a criação da filha, Júlia, de 12 anos, e vive o amor com o empresário Fernando Altério, no qual diz ter "o melhor dos mundos".

- Depois dos 50, você coloca menos responsabilidade na mão do outro para te fazer feliz - reflete.

Como é reencontrar o público porto-alegrense após dois anos e meio de pausa pela pandemia?

Porto Alegre foi a primeira cidade que escolhi para voltar com a peça. Amo me apresentar aqui, tenho uma ligação de muito afeto com essa cidade que sempre me acolhe e recebe de forma carinhosa e respeitosa, que admira meu trabalho e que me entende. Inclusive, já abri sessão extra. É sempre um sucesso. Depois vou a Novo Hamburgo, Curitiba, São Paulo e Nordeste.

A peça mudou?

Ao assistir novamente para retomá-la me surpreendi, achei que faria muitas mudanças. A peça é tão atual, fala de todos os tipos de casamentos sobre o envelhecimento da mulher, a falta de libido, as tentativas de retomar a relação. É atemporal. A protagonista, Fernanda, de 45 anos, narra alegrias e dificuldades do casamento. Vive uma fase em que se sente invisível e tem medo de se separar. Esses e outros dilemas, como falta de tesão e acúmulo de mágoas, ela trabalha na terapia.

Você deixou o Saia Justa neste ano e os fãs ficaram chateados.

Diariamente, recebo mensagens sobre isso. Fui muito feliz sentada naquele sofá por nove anos. Aprendi muito com as pautas e debates. Me entreguei com espontaneidade, histórias e visão de vida. Ali vi o Brasil mudar, o movimento das mulheres se intensificar e avançar.

E quais os próximos projetos?

Fiz um piloto de programa só meu no GNT que se chama "Por Que a Gente é Assim?" (previsão de estreia em 2023) e agora concilio a criação com a agenda dos palcos, que estou com muita saudade e é prioridade. Será um programa de bate-papo, uma das coisas que mais gosto na vida. Além disso, estou escrevendo dois roteiros: uma do meu próprio filme Minha Vida em Marte 2, e outro de uma série para streaming que ainda não posso falar.

Sua história de sucesso inspira muita gente. Você acha que a realização da mulher hoje tem roteiro mais flexível?

Acho que sim. A mulher de 50 não é mais a que faz crochê e frango assado no domingo. Já entendemos que podemos mudar de emprego, marido e cidade. Estamos cada vez mais produtivas e ultrapassando as barreiras do machismo. O envelhecimento da mulher sempre foi visto como algo feio, uma desqualificação, e lutamos contra isso. Desde muito novas somos ensinadas a tomar decisões com pressa. É muito cruel ter que decidir tudo aos 20 anos: o que fazer da vida, a profissão e com quem casar. Ninguém tem maturidade para isso.

E você se cobrava muito?

Fui reconhecida aos 37, mas sofri muito até ali. Desde os 25 anos olhava à minha volta e via as pessoas dando certo nas carreiras e eu, nada. Me cobrava muito. Acho que hoje não tem mais isso. Cada um tem uma história, um tempo, nunca é tarde para nada. Podemos sempre recomeçar. A pior coisa é ter medo de tentar.

Você se considera corajosa?

A coragem não é a ausência de medo, é ir com medo mesmo. E não tenho medo de falhar. A sociedade nos cobra o acerto e, se você pautar sua vida nisso, fica com medo de arriscar. E aí não arrisca uma nova relação, um trabalho, pelo medo do fracasso. E o que é o fracasso? É uma nova experiência, amor.

Que passos você indica às mulheres que querem se reinventar, como sua personagem Fernanda?

O primeiro é desejar, querer muito; o segundo é ter coragem, vá com medo mesmo; e o terceiro, saber que é possível, que não há um único modelo de felicidade e de vida. Temos que testar novas possibilidades, entender o que desejamos, sair dessa prisão que são os formatos que um dia nos disseram que são certos. Não existe certo e errado. A vida oferece muitas possibilidades de felicidade.

Ter posado nua aos 51 ajudou na sua própria revolução?

Foi muito natural, tiro a roupa com facilidade. Mesmo sendo uma mulher dentro de um padrão estipulado, sempre tive questões com meu corpo, como toda mulher. Aprendemos, desde pequenas, a nos olhar no espelho e achar defeitos. Ao contrário dos homens que, aliás, como saiu naquela pesquisa recente: sete em cada 10 se acham bonitos. Se perguntar para as mulheres, sete entre 10 dirão que se acham feias. Também faço parte desse contexto.

Qual sua visão sobre transformações estéticas?

Cada um tem que se entender na própria pele, se ver com generosidade e saber se gostar. Faço tudo para ser uma mulher bonita aos 54 anos. Não posso querer ter 30 e não farei nada que me leve a isso, até porque não tem jeito (risos). Já fiz muitas coisas ligadas à dermatologia, botox, laser, mas com noção. Sempre perguntava ao Paulo Gustavo se tinha ficado bom, porque ele dizia a verdade. Agora peço à minha irmã: ??O dia que eu pirar você me fala, tá???

Você vive um grande amor. Como foi o reencontro?

As relações amorosas sempre ocuparam um lugar muito grande na minha vida, apesar da profissão ocupar um gigantesco. É muito bom se apaixonar aos 50, pois pensava: "se achar uma boa companhia, já está ok. Talvez já tenha vivido as paixões que tinha que viver...". E poder sentir de novo tanta emoção foi um presente. Mas acho que mereço, já sofri muito.

Amor tranquilo é maturidade?

É o desejo de viver isso de novo, é a sorte também - mas é você ajudar essa sorte, né, fazer acontecer. É ótimo, porque somos experientes, com filhos. Já sabemos mais quem a gente é e o que quer do outro, colocamos menos responsabilidade para te fazer feliz.

Moram juntos?

Não, nos vemos toda sexta, sábado e domingo e dá muito certo. No final de semana quero me arrumar para encontrá-lo. A gente se fala o tempo todo, troca opiniões, nos ajudamos, somos parceiros, mas o "massacre" da rotina, não temos. Estamos com o melhor que a relação pode trazer, o melhor dos mundos. Mas não é regra, no futuro pode mudar. Minha prioridade é minha filha, Júlia, que precisa mais de mim. Desejo que ela seja criada na nossa casa, no nosso mundo que amamos. É aquilo: o que desejo hoje?

Como é a relação com sua filha, Júlia?

É maravilhosa: estou entrando na menopausa e ela na puberdade, vamos ter que nos entender dentro dessa casa. Ela com a TPM dela e eu com a minha (risos).

O que você diria sobre a chegada da menopausa?

Não tenha medo dela. É um impacto, mas passa. Lembro da última vez que comprei absorventes e achei que nunca mais passaria por isso. Agora me pego pensando que logo mais estarei comprando novamente, porque minha filha de 12 anos está próxima de menstruar! São ciclos.

Como você vê o atual momento, de muitas possibilidades para as mulheres 50+?

Não temos que ter medo de envelhecer. Poder envelhecer é sorte. Não podemos deixar de fazer mudanças em nossas vidas, apesar da idade, porque viveremos muito ainda. Estamos conquistando cada vez mais espaços. Logo, que seja vivendo da melhor forma, sem arrastar dores e crises por tanto tempo. Pergunte-se "quem sou eu hoje?", "o que eu desejo?". São questões fundamentais saber o que me faz feliz e o que é ter uma vida interessante. 

O escritor Contardo Calligaris que diz: ??Mais que buscar felicidade, temos que buscar uma vida interessante". Se partirmos daí, acharemos caminhos melhores. E não precisam ser grandes revoluções. Pode ser inserir uma aula de ioga na rotina, fazer terapia, um curso. É uma portinha que você abre. E outras vão se abrir. A gente, quando quer mudar, acha que tem que ser uma grande revolução e, na verdade, são pequenas mudanças que podem gerar grandes revoluções nas nossas vidas. 

ADRIANA SIKORA