sábado, 8 de março de 2008


Diogo Mainardi

Imbecilidades imobiliárias

"Lula se desmoralizou nos últimos anos. O que lhe resta é tentar pegar uma carona com Barack Obama. Mas Lula é pior do que Obama.

Pior em tudo. E o Brasil é pior do que os Estados Unidos. O que mais diferencia os dois países: no Brasil,a imbecilidade compensa"

Lula e Barack Obama têm um ponto em comum. Apenas um: o jeito para os negócios imobiliários.

Na última segunda-feira, começou em Chicago o julgamento do empresário Antoin Rezko. Ele é acusado de corromper funcionários de um fundo estatal.

Antoin Rezko ajudou a financiar a carreira política de Obama. Pior: ajudou-o a comprar sua casa, arrematando o terreno adjacente e repassando-o em seguida, a um precinho camarada, ao próprio Obama.

Cobrado pela imprensa, Obama declarou que, ao aceitar a ajuda de Antoin Rezko, cometeu uma "imbecilidade".

O caso de Lula é mais antigo e mais conhecido. A sua imbecilidade foi ter morado por nove anos numa casa de propriedade do advogado Roberto Teixeira, sem pagar aluguel.

O assunto surgiu quando um antigo dirigente do PT acusou algumas prefeituras petistas de favorecer uma empresa ligada a um familiar de Roberto Teixeira.

O PT abriu um inquérito para apurar a denúncia. Interrogado pela Comissão de Ética do partido, Lula contou que, depois da campanha eleitoral de 1989, chamou Roberto Teixeira e lhe comunicou o seguinte:

"Roberto, você não precisa dessa casa, não precisa, tem muitos imóveis aqui, eu vou ficar nessa casa". E, de fato, ficou. Nove anos. Sem pagar aluguel.

Como se trata de Lula – e a gente sabe como ele é –, um bom negócio acabou emendando em outro bom negócio. Quando ele saiu da casa de Roberto Teixeira, comprou um apartamento de cobertura. Quem lhe ofereceu a oportunidade?

Sim: Roberto Teixeira. Lula deu alguns detalhes sobre o negócio aos comissários do PT: "Eu falei: ‘Roberto, eu não tenho dinheiro.

Estou pedindo para o Paulo Okamotto vender meu carro e estou querendo vender um terreno’. Roberto falou: ‘Eu compro o teu carro’. Aí eu vendi o terreno por 72 paus e comprei o apartamento".

Isso tudo é velharia. É velharia o fato de que o carro de Lula foi vendido por um valor acima do de mercado. É velharia o fato de que ninguém registrou em cartório a venda de seu terreno por 72 paus.

Os protagonistas dos dois negócios imobiliários prosperaram. Lula se tornou presidente da República. E Roberto Teixeira se tornou um advogado com acesso ao presidente da República.

Lula se desmoralizou nos últimos anos. O que lhe resta agora é tentar pegar uma carona com Barack Obama. O DIP lulista já fez a patetice de associar um ao outro.

Mas Lula é pior do que Obama. Pior em tudo. E o Brasil é pior do que os Estados Unidos. Pior em tudo. O relacionamento de Obama com seu financiador está sendo escarafunchado pela imprensa e pela promotoria pública dos Estados Unidos.

Obama sentiu o efeito disso na semana que passou, com os primeiros sinais de esvaziamento de sua candidatura a presidente. É o que mais diferencia os dois países: no Brasil, a imbecilidade compensa.

Ponto de vista: Claudio de Moura Castro

A guerra dos alfabetizadores

"Vós, investigadores, não deveis confiar em autores que, apenas pelo emprego da imaginação, se fazem intérpretes entre a natureza e o homem, mas somente naqueles que exercitaram seu intelecto com os resultados de experimentos."
Leonardo da Vinci

Atômica Studio

Antes mesmo de Francis Bacon, Da Vinci já mostrava o caminho da ciência experimental, cujos avanços mudaram a face da Terra. Alguns ramos da ciência embarcam em naves espaciais. Mas, entre nós, há educadores que, nessa matéria, continuam refestelados em seus uivantes carros de boi.

As discussões sobre como alfabetizar uma criança ainda não seguiram os conselhos de Da Vinci: se há dúvidas, é preciso buscar os "resultados de experimentos". Os vôos da imaginação só cobrem a decolagem do processo científico. A aterrissagem é no solo do mundo real.

Circulam pelo menos quatro escolas de pensamento. Há uma que afirma ser a leitura um processo global. Aprende-se a ler frases inteiras, blocos de palavras. Ao lidar com um assunto palpitante, tudo dá certo.

Esse é o método exaltado pelos gurus e adotado quase universalmente. Outra escola afirma que o melhor é metodicamente aprender sons e letras. É o método fônico, neto do velho bê-á-bá. Uma terceira seita fica entre as duas anteriores.

Adota o processo fônico, mas acha necessário contar uma história interessante, em paralelo à tarefa mecânica de aprender a associar sons e garranchos no papel.

Por último, há um grupo agnóstico, que afirma que, não importa o método, tudo depende do professor. Cada grupo cita seu guru favorito, e a discussão patina.

Como a capacidade de ler e entender é algo eminentemente mensurável, estamos falando de números. Por sorte, há números em abundância. Isso porque, como os Estados Unidos e a Inglaterra passaram por dilema semelhante, foi criado um Literacy Panel, encarregado de juntar todas as pesquisas sérias feitas sobre o tema (veja-se Diane McGuinness, O Ensino da Leitura, editora Artmed). Apareceram cerca de 100 000 artigos científicos.

Passando o pente-fino, sobreviveram menos de quarenta. Pelas mesmas razões que não é necessário ser engenheiro automobilístico para ver quem chegou em primeiro numa corrida, podemos medir qual método alfabetiza melhor sem entender suas teorias.

Os resultados são bastante claros e se aplicam ao português – por ser também uma língua fonética. Nem uma só pesquisa confiável mostrou vantagens para o método global.

A disputa foi entre variantes do método fônico. A combinação do fônico com uma contextualização ou enredo não mostrou bons resultados.

Ao que parece, a historinha que acompanha o aprendizado de letras e sons desvia a atenção e consome tempo dos alunos. É melhor primeiro aprender a ler bem e depois dedicar-se a entender o que está escrito. Observou-se também que, quanto mais fraco o aluno, mais o método fônico traz vantagens.

Tais resultados puseram uma pá de cal na controvérsia. Todos os países de Primeiro Mundo que haviam abandonado os métodos fônicos voltaram a adotá-los. Faz pouco, o ministro francês Gilles de Robien proibiu o global.

As pesquisas mostram vantagens sistemáticas para o fônico. Portanto, a hipótese dos agnósticos é negada. De fato, se o método fosse irrelevante, tais diferenças não existiriam.

Mas os agnósticos podem ter alguma razão quando se comparam professores que não conhecem bem nem um método nem outro. Nesse caso, as comparações não mostram nada.

Em ciência não há conclusões definitivas ou finais. Mas, até que se refutem as conclusões do Literacy Panel, o que sabemos hoje nos obriga a aceitar a superioridade do método fônico.

A sociedade brasileira tem o direito de fazer duas exigências aos que recebem salário (pago pelos contribuintes) para cuidar de alfabetização.

Que superem suas cruzadas ideológicas e se ponham de acordo. Que para isso se valham dos princípios da ciência empírico-dedutiva, que, desde Bacon, todos os cientistas aceitam (ou seja, o que valida uma hipótese são experimentos, não os gritos de seus defensores).

Claudio de Moura Castro é economista - (Claudio&Moura&Castro@cmcastro


E Gabriela ainda espera

Ao adiar o julgamento sobre o uso de embriões em pesquisas, o STF frustra os pacientes que não têm outra opção a não ser crer no potencial das células-tronco

CRISTIANE SEGATTO, DE BRASÍLIA

A FLOR NO COLO

Católica e defensora das pesquisas com células de embriões, Gabriela Costa diz ter rezado para iluminar os ministros do STF. E levou uma gérbera ao plenário, como forma de pressão

Gabriela costa é uma moça notável. Deixou de andar há cinco anos por causa da distrofia muscular do tipo cinturas, uma doença genética que rouba a força dos músculos. Nem por isso se lamenta. Trabalha, namora, se diverte.

Quando vê portadores de formas mais graves da moléstia, tem certeza de que está bem. A maioria vive um ciclo sem volta.

Primeiro, as pernas enfraquecem e os braços ficam imobilizados. Depois, falar e comer se torna impossível. Por fim, os pulmões e o coração entram em colapso. Quem vai discordar de Gabriela?

Na semana passada, ela era a mais clara expressão da vida durante a sessão do Supremo Tribunal Federal que pretendia dar um veredicto sobre a polêmica do uso de embriões humanos em pesquisas.

Uma manobra jurídica adiou a decisão por tempo indeterminado. O sonho de Gabriela ficou mais distante. Mas ela não desiste.

Antes da sessão, a brasiliense de 32 anos subiu a rampa do STF com uma confiança visível. Um amigo empurrava sua cadeira de rodas.

A moça manteve o rosto erguido, os longos cabelos soltos e, na mão direita, levava uma gérbera laranja. A flor é o símbolo da luta dos pacientes que ela coordena no Movimento em Prol da Vida (Movitae).

Na véspera, Gabriela escolheu seu melhor terninho e, antes de dormir, rezou. Católica e defensora das pesquisas com células de embrião – condições que, na visão dela, não são incompatíveis –, pediu a Deus que iluminasse a mente dos 11 ministros.

Do fundo do plenário, na fila reservada aos cadeirantes, Gabriela foi testemunha de um momento marcante. Segundo o ministro Celso de Mello, o tema em discussão “é o assunto mais importante da história do STF”.

Como raramente acontece na mais alta corte de Justiça brasileira, os ministros estão diante de uma questão de princípios. Têm a missão de examinar valores que se contrapõem: o direito à vida, o direito à saúde, a livre manifestação do progresso científico, o respeito à fé religiosa.


08 de março de 2008
N° 15534 - Cláudia Laitano


Direito

Se o leitor, como eu, trabalha em um ambiente em que há sempre um aparelho de televisão ligado é possível que tenha interrompido sua rotina por alguns minutos esta semana para acompanhar pela TV Justiça a votação da ação de inconstitucionalidade contra o artigo da Lei de Biossegurança que autoriza as pesquisas com células-tronco embrionárias.

E, se parou diante da televisão, talvez tenha vibrado com o relatório do ministro Carlos Ayres Britto - justificando seu voto favorável à pesquisa com um texto em que Shakespeare, Fernando Pessoa e, por essa ninguém esperava, Tom Zé foram chamados a contribuir na argumentação.

Ficar empolgado diante da TV Justiça já seria um momento histórico, mas a votação desta semana foi memorável porque obrigou o país a pensar não somente a respeito dos imprevisíveis rumos da ciência, mas também sobre algo bem mais concreto e imediato: as leis que queremos obedecer.

O interesse de boa parte da opinião pública por esse debate, de gente como eu e você, que não sabe de genética muito mais do que as regrinhas para saber se os olhos do filho vão ser verdes ou castanhos, talvez não tenha a ver exclusivamente com um apoio genérico a todo tipo de pesquisas científicas que acenem com alguma esperança para quem não tem outra saída a não ser confiar nos avanços da ciência.

Em toda essa discussão, o pano de fundo evidente é a queda de braço velada entre uma visão religiosa e uma política de Estado.

É claro que faz parte da brincadeira democrática que todos tenham direito de dar o seu pitaco diante dos temas de interesse público. Nesse sentido, a Igreja Católica não só pode como deve deixar suas idéias bem claras para seus fiéis e também para quem vai tomar as decisões políticas.

O problema é a sensação de que, no Brasil, as convicções da Igreja Católica sobre determinados assuntos vêm sendo historicamente superdimensionadas. Como cidadã, me incomoda imaginar que uma posição religiosa chegue ao ponto de influenciar temas como a pesquisa científica em um Estado que se diz laico desde a Constituição de 1891.

Minha torcida diante da TV Justiça, portanto, não era apenas pelas pesquisas com as células-troncos embrionárias, mas principalmente pela independência das leis diante do lobby de um dogma religioso.

Como membro da União dos Juristas Católicos, o ministro Menezes Direito, que atrasou a bola para o goleiro pedindo vista da ação, obviamente já tem uma opinião formada sobre a Lei de Biossegurança, em vigor no país há três anos - caso contrário, falha como católico e, infelizmente, também como jurista. Resta saber o que motivou sua atitude, a posição religiosa ou a responsabilidade como ministro da mais alta corte do país.

E para não dizer que não falei em Dia das Mulheres, vai aqui minha homenagem à heroína da semana: a ministra Ellen Gracie, que deu um banho de lucidez no encerramento da votação no STF, abrindo o voto e aproveitando para dar um pito elegante - como só uma mulher poderosa sabe fazer - no colega que provocou a interrupção da votação:

"O motivo que me leva a adiantar o voto é que essa ação entrou no STF em 30 de maio de 2005. São passados três anos.

Tenho certeza de que será trazido dentro em breve pelo senhor (dirigindo-se a Menezes Direito). Sabe-se que as pesquisas em geral, se não ficaram paralisadas, pelo menos sofreram sensível desestímulo nesse período". Nada mal, dona Ellen.

quinta-feira, 6 de março de 2008



06 de março de 2008
N° 15532 - Nilson Souza


Elas

Elas chegaram ao mundo mais tarde, provavelmente porque se demoraram diante do espelho do tempo até ter certeza de que estariam apresentáveis aos trogloditas que as esperavam.

Por isso, coube-lhes cuidar da caverna, manter o fogo aceso, alimentar as crias e marcar com risquinhos na parede os dias de solidão, enquanto os companheiros não voltavam da guerra e da caça.

Assim, tornaram-se hábeis para ocupar espaços, exímias no manejo das chamas da alma, inigualáveis moldadoras de personalidades e pacientes estrategistas de sentimentos.

Elas sempre foram consideradas frágeis. Mas enquanto eles exercitavam a musculatura abatendo mamutes, trocando o pneu do carro ou jogando futebol, elas desenvolviam a força oculta da sedução, o poder das artimanhas do bem e do mal, a arte de preparar os mais deliciosos venenos do prazer. Tornaram-se, assim, no decorrer dos séculos, senhoras de seus senhores.

Elas nunca esconderam o medo. Porém, enquanto eles exibiam a duvidosa coragem do combate, elas aprenderam a curar feridas, a conviver abnegadamente com as doenças, a encarar com inexplicável destemor o rosto da morte e a chorar em silêncio as mais sofridas perdas. Tornaram-se, assim, sem ocultar as lágrimas, modelos de coragem.

Elas só conseguiram ingressar há pouco tempo no mercado de trabalho, porque o outro lado do portão era domínio deles, que tinham a exclusividade das máquinas e ferramentas, sabiam se localizar no mapa das esquinas desconhecidas, dirigiam carruagens e veículos motorizados, construíam pontes e muros.

Também era deles o monopólio do conhecimento, das ciências, das letras e da travessia de mares e nuvens.

Então elas abriram delicadamente a porta do calabouço, insinuaram-se pelas vielas da modernidade e passaram a ocupar seus lugares no trem que as levaria ao futuro.

Elas só não assumiram ainda o comando do planeta por astúcia, pois sabem o quanto eles são sensíveis à idéia de perda de controle.

Mas já conquistaram espaços inimagináveis em séculos de supremacia masculina - e continuam buscando, pacientemente, o direito à igualdade total. E tudo isso sem renunciar à beleza, à maternidade, à vocação para a paz.

Elas têm um dia especial para reverenciar esta história bonita que elas vêm escrevendo dia a dia - com talento, com sensibilidade, com intuição, com inteligência e com o mais sublime dos sentimentos de suas indecifráveis almas: o amor incondicional.

Com ar seco e muito sol por aqui, que tenhamos todos uma excelente quinta-feira.

quarta-feira, 5 de março de 2008



05 de março de 2008
N° 15530 - Martha Medeiros


Antes de partir

Um filme cujos protagonistas são Jack Nicholson e Morgan Freeman, com diálogos bem construídos e um humor inteligente (mesmo tratando de um assunto difícil como a finitude da vida) já entra em cartaz com vantagem, mesmo que o roteiro não seja lá muito surpreendente.

Antes de Partir não é mesmo surpreendente, mas isso também pode ser uma coisa boa. Ficamos sempre correndo atrás de fórmulas novas quando deveríamos nos dedicar mais a reforçar certas verdades.

E a verdade do filme, se pudesse ser resumida numa frase, seria: aproveite o tempo que lhe resta. Nada que você já não tenha escutado mil vezes.

Nicholson e Freeman interpretam dois sessentões que descobrem estar com uma doença terminal. Os prognósticos apontam seis meses de vida para cada um, no máximo um ano. E agora? Esperar a extrema-unção numa cama de hospital ou buscar a extrema excitação?

Sem piscar, eles aventuram-se pelo mundo praticando esportes radicais, conhecendo lugares exóticos, desfrutando todos os prazeres de uma vida bem vivida - claro que um deles é milionário e banca tudo, detalhe que nos falta na hora de pensar em fazer o mesmo. Você não pensa em fazer o mesmo?

Você, eu e mais 6 bilhões de homens e mulheres também estamos com a sentença decretada, só não sabemos o dia e a hora.

Está certo que é morbidez pensar sobre isso quando se é muito moço, mas alcançando uma certa maturidade, já dá pra parar de se iludir com a vida eterna, amém. Com dinheiro ou sem dinheiro, faça valer a sua passagem por aqui. Não sei se você percebeu, mas viver é nossa única opção real.

Antes de nascermos, era o nada. Depois, virá mais uma infinidade de nada. Essa merrequinha de tempo entre dois nadas é um presentaço. Não seja maluco de desperdiçar.

Ok, quantos de nós podem sair amanhã para um safári na África, para um tour pelas pirâmides do Egito, para um jantar num restaurante cinco estrelas na França?

Ou teria coragem de saltar de pára-quedas e pisar fundo num carro de corrida numa pista em Indianápolis? Se não temos grana nem dublês, então que a gente se divirta com outro tipo de emoção, que o filme, aliás, também recomenda.

Reconheçamos o básico: uma vida sem amigos é uma vida vazia. O mundo é muito maior que a sala e a cozinha do nosso apartamento. A arte proporciona um sem-número de viagens essenciais para o espírito. Amar é disparado a coisa mais importante que existe.

Que mais? Desmediocrize sua vida. Procure seus "desaparecidos", resgate seus afetos. Aprenda com quem tiver algo a ensinar, e ensine algo àqueles que estão engessados em suas teses de certo e errado.

Troque experiências, troque risadas, troque carícias. Não é preciso chegar num momento limite para se dar conta disso.

O enfrentamento das pequenas mortes que nos acontecem em vida já é o empurrão necessário. Morremos um pouco todos os dias, e todos os dias devemos procurar um final bonito antes de partir.

Uma ótima Quarta-Feira - Dia Internacional do Sofá. Aproveite para aqueles amassos.

terça-feira, 4 de março de 2008



04 de março de 2008
N° 15529 - Liberato Vieira da Cunha


Uma freira no bar

Logo que comecei no jornalismo me mandaram entrevistar um expoente das artes. Foi uma conversa agradável, mas dela lembro uma única frase. À saída, fui apresentado à sua vasta pinacoteca e meu anfitrião deteve-se ante um desenho.

Dizem que é de Rembrandt; comprei em Amsterdã logo depois da II Guerra, de um vendedor de rua, por 50 dólares.

Desde então a minúscula tela freqüenta meus sonhos. É bom, volta e meia, dar corda à imaginação, já que a realidade, neste país e no mundo, se revela de momento pouco inspiradora.

Você está folheando, distraído, a edição de Os Lusíadas que herdou de seu bisavô. E então tropeça numa página marcada por um velho pedaço de envelope. E de repente percebe que o gasto selo que o decora é nada menos do que um Olho de Boi de 1843.

Você está se livrando de uns papéis que encontrou na gaveta oculta da cômoda que arrematou num Brique. E aí cai em suas mãos uma carcomida partitura, ao pé da qual se lê a assinatura de um certo Ludwig van Beethoven.

Você colide com uma arca, no porão da casa que lhe tocou no testamento de sua tia Viridiana.

Por mera curiosidade, examina o conteúdo e dá com uma silente caixa de música. Mas logo escuta uma sinfonia: a dos 37 perfis do Rei Luís XIV, esculpidos em moedas de puríssimo ouro.

Não sei o Rembrandt. Os vendedores de rua de Amsterdã não te entregam um Rembrandt por 50 dólares, ainda que em ásperos tempos. Mas o Olho de Boi, o autógrafo de Beethoven, os ducados do Rei Sol te converteriam instantaneamente num eleito da fortuna.

Todas essas são fantasias improváveis.

Uma vez porém me vi face a face com um tesouro incalculável. Estava hospedado, naturalmente que a convite, no Atlantic, de Hamburgo. Havia senhores de casaca e de cartola no passeio fronteiro à recepção, que abriam a porta de teu táxi e te protegiam da neve.

À noite, no bar, cavalheiros e damas, trajados de smokings e de vestidos longos, dançavam na pista de sândalo, ao som de um Steinway.

A certa altura, no entanto, surgia naquele ambiente ostentoso uma sóror descalça, que suplicava ao distinto público uns trocados para o asilo que mantinha. Indiferente ao frio, aos olhares altivos, recolhia migalhas e tornava aos ventos glaciais do Alster.

Até hoje me pergunto se haverá no universo fortuna maior que a de sua fé, sua solidariedade e seu coração.

Ainda que com chuva por aqui, que tenhamos todos uma ótima terça-feira.

domingo, 2 de março de 2008


DANUZA LEÃO

As prioridades

Nós costumamos tratar melhor as pessoas a quem conhecemos pouco, e mais: que nos dão pouca bola

QUAL É A pessoa que você trata melhor neste mundo? Não vale dizer assim, sem nem pensar -"meu pai, minha mãe, meus filhos".
Feche os olhos e faça uma reflexão profunda:

quando você chega em casa e tem um monte de recados na máquina, para quem você liga primeiro? Para sua mãe, que está em ótima saúde, ou para aquela pessoa que ficou de dar a resposta sobre um projeto?

Para seu pai, que joga vôlei todos os dias, ou para aquela mulher maravilhosa, seu sonho de consumo há anos? Bem, respondidas essas perguntas, vamos em frente.

É doloroso, mas é verdade: cada um de nós procura primeiro pelo que mais o está interessando naquele momento, e que pode até ser o pai ou a mãe -mas quase nunca é. A não ser, claro, quando esse pai ou essa mãe ficaram de responder a algum pedido, seja de que tipo for, para o filho querido.

Mas se, no fundo do seu coração, você detectar que o telefonema é só para saber se você melhorou da gripe, pensando bem, dá perfeitamente para fingir que foi do trabalho direto para o cinema e ligar amanhã de manhã, não é mesmo?

E por que será que as mães têm a mania de saber da evolução da gripe de seus filhos?

Com filho é diferente. Não há pai ou mãe -mãe, sobretudo- no mundo que não interrompa a mais importante das reuniões de trabalho para atender a um telefonema do filho, e ainda está para nascer uma que tenha coragem de mandar dizer que naquele momento está ocupada. Aliás, é só saber que é ele que está chamando para dar um aperto no coração; será que está bem?

Será que está precisando de alguma coisa? Será que caiu e quebrou a perna?

Não há uma só que consiga pensar que, se ele está telefonando, tão mal assim não pode estar.

Voltando aos recados: se for aquela pessoa bem famosa, que você conhece mas que não chega a ser um amigo, você liga correndo, não liga? E se for sua antiga babá, que te segurava no colo e contava histórias para você dormir?

Você adora ela, claro, mas depois de um dia tão duro -ah, dá para ligar amanhã, claro que dá. Tem mais: você já reparou como são bem tratadas as pessoas com quem a intimidade é pouca?

É duro de admitir, mas costumamos tratar melhor as pessoas a quem conhecemos pouco, e mais: que nos dão pouca bola.

E isso em todos os níveis, sobretudo quando se trata de amor. Por que a maior parte das pessoas ama tão apaixonadamente quem não aparece, quem trata meio mal, quem não ama direito?

Esses são absolutamente irresistíveis, enquanto daqueles que nos amam de paixão a gente pode até gostar, mas com uma mal disfarçada indiferença. Nada mais desestimulante do que ter certeza; aliás, certeza seja do que for, sobretudo do amor de um homem.

Nada deixa você mais viva, digamos assim, do que estar na corda bamba, sem saber o que vai ser do seu amanhã. Será que ele vem? Essa falta de segurança -exatamente a tal segurança que se busca em todos os momentos- é que move o mundo.

É ela a responsável pelas academias de ginástica, pelos salões de cabeleireiro, pela indústria da moda, e mente quem diz que quer ficar bonita "para ela mesma". Pois sim.

As mulheres fazem tudo para ficarem desejáveis para um homem em particular ou para todos em geral, e se conseguem um dia ter certeza da estabilidade no amor, ai do outro.

Feliz ou infelizmente, as pessoas que mais nos amam são as que tratamos com mais displicência.

Tratamos assim nossos pais, e assim nos tratam nossos filhos, pela certeza desse amor eterno e incondicional. Não é justo que seja assim, mas desde quando a vida é justa?

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 1 de março de 2008



02 de março de 2008
N° 15527 - Martha Medeiros


Aonde é que eu ia mesmo?

Às vezes estou no meu quarto e penso: vou à sala buscar meus óculos. Quando estou no corredor, já esqueci o que ia fazer na sala

Uma vez escrevi uma crônica que se chamava "Coisa com coisa". Era sobre a minha vexaminosa tendência de trocar o nome das pessoas. Não apenas nomes de pessoas que mal conheço, mas também nomes de parentes.

Parentes próximos, como filhos. Com o tempo, comecei a trocar também nomes de objetos, a me embaralhar com os verbos e a perder palavras que estavam na boca da língua. Desculpe, quis dizer na ponta da língua. Ou seja, passei a não dizer mais coisa com coisa.

Pois tenho novidades: piorei muito.

Às vezes estou no meu quarto e penso: vou à sala buscar meus óculos. Quando estou no corredor, já esqueci o que ia fazer na sala. Quando chego à sala, olho em volta e tento descobrir o que fui fazer ali. Não recordo.

Fico feito uma barata tonta: "O que era mesmo?". Volto pro quarto de ré, pra ver se a memória é resgatada no rewind, feito fita rebobinada, mas não adianta. Dali a dois minutos, lembro: ah, eu ia pegar os óculos! Onde mesmo?

Tenho comentado isso com alguns amigos, na esperança de que me olhem com piedade e me recomendem um bom médico, mas o que mais escuto é: "Comigo tem sido a mesma coisa".

Pesquisei com conhecidos dos 19 aos 90 anos. Com todos tem sido assim. Alzheimer geral. Tem alguma coisa errada, e não é só comigo.

Li recentemente uma matéria que associa a falta de memória com a falta de sono. É uma teoria. Os especialistas entrevistados para a matéria recomendam que a gente não abra mão de dormir oito horas seguidas.

Dizem que isso não é balela, que ajuda mesmo o cérebro a descansar e a retomar as tarefas do dia seguinte com funcionamento pleno. Maravilha. Oito horas de sono. Me explique como.

Eu apago a luz cedo. Antes da meia-noite. Às vezes às 22h30min. Tenho perdido o Saia Justa por causa disso. O Manhattan Connection. A minissérie Queridos Amigos. Meu sono está me emburrecendo, mas quando os olhos pesam, não há outra saída a não ser capitular.

Desligo o abajur e apago junto na mesma hora. Só que às 4h da matina minha cabeça acorda sozinha! A cabeça, essa maldita. Ela então faz um apanhado geral dos problemas a serem resolvidos no dia seguinte.

Na verdade, nem problemas são, mas durante a madrugada qualquer unha encravada vira um câncer terminal. Você sabe como é, a noite potencializa o drama. Então fico eu ali fritando nos lençóis, pensando, pensando. Verbo desgraçado: pensar.

Quando consigo pegar no sono de novo, o despertador faz o seu serviço: me desperta. Cedíssimo: hora de levar os filhos (o nome deles, mesmo?) ao colégio. Há quem tenha reunião no escritório.

Outros, massagem. Outros precisam ir para a parada de ônibus. Quem consegue hoje em dia dormir oito horas de sono cravado? Os milionários, e nem eles, eu acho.

Tampouco tenho sonhado. Não há sono suficiente para criar uma historinha com começo, meio e fim. Freud teria dificuldade em trabalhar hoje em dia: dorme-se pouco. E lembra-se menos ainda. Fim de era para o descanso e a memória. Do que eu estava falando mesmo?

A solução é mudar a rotina. Ver menos televisão. Ter menos obrigações. Morar em lugares mais silenciosos. Ter menos vida noturna. Menos compromissos. Menos agenda.

Menos e-mails. Menos contatos profissionais, mais amigos. Menos trabalho, mais férias.

Menos filhos: é difícil decorar dois nomes. Filho único é mais fácil. E deixar de frescura e pendurar logo aquele troço medonho que prende as hastes dos óculos ao nosso pescoço.

Ainda que com chuva nesta Porto, que por isso, não está nada alegre, tenhamos todos um ótimo domingo.

Diogo Mainardi

A minha enxaqueca

"O aspecto que mais me intrigou nos relatos sobre a enxaqueca é que gente de talento conseguiu transformar o sofrimento debilitante em literatura, em arte, em filosofia.

O segundo aspecto foi seu exato oposto: como eu nunca tirei nada do sofrimento, como eu sou um macaco"

Eu sofro de enxaqueca. Oliver Sacks sofre de enxaqueca. Lewis Carroll sofria de enxaqueca. Isso é o que a gente tem em comum. O que muda radicalmente é a forma de reagir aos sintomas.

Oliver Sacks usou sua enxaqueca para refletir sobre a geometria neural. Lewis Carroll inspirou-se em sua enxaqueca para imaginar Alice no País das Maravilhas, com a protagonista que cresce e encolhe.

Eu, quando tenho um ataque, limito-me a cambalear até o banheiro, abrir a torneira da pia e engolir um comprimido de cloridrato de naratriptana.

É raro conseguir delinear com tanta clareza a diferença entre a mentalidade científica (Oliver Sacks), a mentalidade artística (Lewis Carroll) e a mentalidade simiesca (Eu).

O New York Times tem um blog sobre enxaqueca. Oliver Sacks é um de seus cinco colaboradores. Ele se interessa particularmente pelos delírios visuais produzidos pela enfermidade. Compara-os aos mosaicos árabes. Há também quem os compare à arte pontilhista de Georges Seurat, outro enxaquecoso ilustre.

Segundo Oliver Sacks, as figuras geométricas que perturbam a vista, durante os acessos de enxaqueca, refletem uma espécie de faxina que ocorre no córtex cerebral, quando todo o conhecimento adquirido é guardado no devido lugar: as meias escuras na gaveta de cima, as camisas azuis penduradas nos cabides, as calças apertadas na cintura separadas para dar ao zelador.

A teoria de Oliver Sacks é que as células cerebrais se reorganizam simetricamente, e que essa simetria celular corresponde aos nossos conceitos mais elementares de beleza.

Eu sou um neófito da enxaqueca. Meu primeiro ataque aconteceu apenas dois anos atrás. Foi igual ao da maioria das pessoas: dor paralisante de um lado do rosto, náusea, sensibilidade ao ruído, formas geométricas piscando nos olhos.

Naturalmente, fui ler sobre o assunto. Olha Nietzsche entrando no sanatório para tratar da enxaqueca! Olha Nietzsche passeando no Lago Maggiore para se distrair da enxaqueca!

Olha Nietzsche comentando a enxaqueca em Ecce homo! O aspecto que mais me intrigou nos relatos sobre a moléstia foi aquele que já adiantei no primeiro parágrafo: como tanta gente de talento conseguiu transformar o sofrimento debilitante em literatura, em arte, em filosofia.

O segundo aspecto que mais me intrigou foi seu exato oposto: como eu nunca tirei nada do sofrimento, como eu sou um macaco.

Num tempo dominado pela mais absoluta demagogia intelectual, em que todas as idéias parecem se equivaler, em que qualquer macaco pode abrir um blog e opinar sobre Lewis Carroll e Georges Seurat, a história da enxaqueca ajuda a restabelecer alguns valores.

Ela dá ordem e simetria ao pensamento humano, como acontece, em escala microscópica, com as células cerebrais, de acordo com a teoria de Oliver Sacks. Meias escuras na gaveta de cima. Camisas azuis penduradas nos cabides.

Ponto de vista: Lya Luft

Por que nos mutilamos?

"Uma maturidade tranqüila e uma velhice elegante são mil vezes preferíveis à caricatura em que nos tornamos na busca da juventude eterna"

Numa página de revista, deparo com um espetáculo deprimente: uma mi-lionária americana de 62 anos entra num restaurante expondo a fotógrafos e freqüentadores um rosto tão desfigurado por plásticas, preenchimentos e outros processos que não era só feio e disforme, mas assustador.

Nada mais ali combinava, as sobrancelhas em alturas diferentes, os olhos artificialmente enviesados estavam desemparelhados e o nariz sumia num rosto de lua cheia, fruto de inadequados esticamentos e exageradas invasões.

Há poucos dias vi por acaso uma conhecida que não encontrava fazia anos. Reconheci-a de longe, de costas para mim, e quando ela se virou na cadeira senti um choque. O corpo elegante de uma mulher madura era o mesmo.

O rosto era uma coisa redonda e intumescida, lisa, com pouco das verdadeiras e simpáticas feições de que eu me lembrava tão bem.

Os lábios estavam enormes, com algo de genital, os olhos pareciam pequenos demais, e seu nariz adunco, em lugar de ter sido corrigido para um pouco menos adunco – embora nunca tivesse sido feio –, era uma pobre batatinha perdida numa paisagem hirta e inexpressiva.

Ilustração Atômica Studio

Sei que no folclore a meu respeito consta entre outras coisas que sou "contra cirurgia plástica". Nada mais incorreto e tolo.

Eu mesma, viúva pela primeira vez aos 49 anos, de maneira súbita e brutal, aos 51 tinha o rosto tão devastado pelo abalo que um amigo, excelente cirurgião, fez um lifting discretíssimo e pequeno, que não me rejuvenesceu – nem eu quereria –, mas talvez tenha tirado um pouco do ar cansado e triste demais.

Portanto, sou a favor de recursos, não para enganar o tempo, o que em geral acaba em resultados desfavoráveis e patéticos, pedindo sempre mais e mais intervenções, mas para abrandar, eventualmente corrigir.

A fim de que a pessoa, homem ou mulher, se sinta bem na própria pele. Não para que aos 60 a gente pareça ter 30 anos, e aos 80 viva a melancólica ilusão de ter 50.

Não é a juventude que interessa, mas a felicidade e a alegria. Olhar-se no espelho e poder dizer: bem, esta sou eu, aqui está a minha história, o que for excessivo vou corrigir, mas não quero ser uma adolescente eterna, a não ser que minha alma permaneça infantilóide.

Observo uma atriz importante dando entrevista e na contraluz estão evidentes as marcas impiedosas de cirurgias, fios de ouro, ou seja lá o que for, e outras intrusões que aos poucos vão se manifestando.

Logo virão novas intervenções para corrigir aquilo, e assim será, talvez, até o fim da vida. A não ser que um amigo, um familiar ou um médico piedoso lhe diga para parar, em lugar de se torturar numa busca irracional fadada ao fracasso. A angústia por manter-se jovem muito além dessa fase pode levar aos maiores desatinos.

Como os modelos que se nos apresentam em nossa cultura superficial indicam que o bom é ter sempre 15 anos, se não tivermos alguma bagagem interior (o que inclui a cultural) para remar contra a correnteza, em breve faremos parte da legião de mutiladas, as quais têm pouco delas mesmas, peles fanadas expostas em decotes ousados de precários vestidinhos.

Nem todo mundo vai gostar do que escrevo aqui e digo em muitas palestras: dirão que madureza e velhice implicam doença e deterioração. Uma maturidade tranqüila e uma velhice elegante são mil vezes preferíveis à caricatura em que nos tornamos na busca do paraíso perdido, que é também uma ilusão.

Pois a juventude nunca foi a melhor época da vida nem a única época interessante, embora possa cintilar e ferver mais. A cada fase da vida seu próprio encanto e, claro, suas próprias dores.

Então, quem sabe a gente – homens e mulheres – procure gostar de si um pouco mais, trocando a fatal tentativa de negar o tempo por saúde, equilíbrio, beleza real e alegria, que fazem um bocado de falta neste mundo nosso.

Lya Luft é escritora

O valor da felicidade

Um estudo questiona a eficácia dos antidepressivos. E novas pesquisas mostram que a infelicidade pode ser boa para nós

david cohen, amauri segalla, kátia mello e martha mendonça

Confira a seguir um trecho dessa reportagem que pode ser lida na íntegra na edição da revista Época de 03/março/2008.Assinantes têm acesso à íntegra no leia mais no final da página.

Quando foi lançado nos Estados Unidos, em 1987, o mais famoso medicamento antidepressivo do mundo chegou a ser apontado, pela revista Scientific American, como um “anjo que ilumina as trevas da alma”.

O Prozac foi o primeiro de uma série de remédios que visam alterar o nível de serotonina, uma substância química do cérebro relacionada à sensação de prazer. Com as mudanças das últimas duas décadas no modo como a ciência médica encara a depressão, esses medicamentos se tornaram campeões de venda.

O número de pílulas consumidas no mundo inteiro pulou de 4 bilhões, em 1995, para 10 bilhões, em 2004, um aumento de 150%. No Brasil, também se registrou um salto. Há três anos, 20,6 milhões de comprimidos foram vendidos no país. No ano passado, foram 24,4 milhões (um aumento de 18,5%).

Por isso, um estudo lançado na semana passada na Public Library of Science Medicine (Biblioteca Pública da Ciência Médica) causou grande impacto.

O pesquisador Irving Kirsch, da Universidade de Hull, no Reino Unido, e seus colegas revisaram os estudos clínicos de vários antidepressivos e concluíram que, nos casos de depressão leve, seus efeitos não são melhores que os de placebos.

(Os placebos, pílulas sem substância ativa, são usados em um grupo separado de pacientes para avaliar quanto da melhora se deve ao remédio e quanto apenas ao efeito psicológico de ser atendido e medicado.)

Kirsch utilizou estudos que a indústria não havia divulgado. Os laboratórios foram obrigados a liberá-los pela Food And Drug Administration, o órgão regulador de medicamentos dos Estados Unidos. A indústria rebateu a conclusão, dizendo que Kirsch analisou poucos estudos.

Além disso, outro estudo, lançado também na semana passada pelo Escritório Nacional de Pesquisas Econômicas dos Estados Unidos, afirma que o uso de antidepressivos ajuda a diminuir a taxa de suicídios.

Essa discussão provavelmente terá vida longa. E dá força a uma questão de fundo: por que buscamos com tamanha avidez a felicidade?


01 de março de 2008
N° 15526 - Cláudia Laitano


Três trilhas não triviais

1) A trilha do mês - Todos os dias da semana já foram cantados. Tem música de quem odeia segunda-feira, música de quem dá graças a Deus porque é sexta, música que conta a trágica história de um sangrento domingo de guerra. Os meses, me parece, são menos inspiradores.

Cadê as músicas sobre junho, novembro, agosto? O momesco fevereiro talvez seja o mês mais celebrado na música brasileira, mas a canção definitiva sobre uma determinada época do ano você sabe bem qual é.

O músico e crítico gaúcho Arthur Nestrowski, autor de uma das mais brilhantes análises da obra-prima de Tom Jobim, costuma dizer que ninguém sabe de cor a letra inteira de Águas de Março - mas todo mundo sabe cantar.

É como um hino nacional, uma melodia gravada no código genético musical da nação. "Tom Jobim escreveu canções alegres e tristes, nostálgicas e utópicas, de introspecção, de sedução, de exaltação.

Águas de Março parece tudo isso ao mesmo tempo. Só poderia ter sido escrita por ele, mas toca no limite de uma arte sem autor, que cai no ouvido como uma fruta cai do galho, perfeita", observa Nestrovski no livro Três Canções de Tom Jobim, que tem ainda ensaios de Lorenzo Mammi (Sabiá) e Luiz Tatit (Gabriela).

Porque hoje é sábado, um sábado de março - e ainda por cima deve chover - seus ouvidos merecem esse agrado: bote Elis e Tom a cantar Águas de Março para você.

2) A trilha da semana - Julio Iglesias e Iron Maiden fazem show em Porto Alegre na semana que vem. Fico pensando se existe alguma pessoa que vai aos dois espetáculos - não a trabalho ou contra a vontade (para levar alguém, por exemplo), mas movido por um genuíno, ainda que exótico, ecletismo musical. Cartas para o e-mail ali em cima.

3) A trilha do afeto - Março mal começou e um dos melhores filmes do ano já passou por Porto Alegre, dentro da programação do Festival de Verão.

O documentário Jogo de Cena (que tem uma imperdível sessão de pré-estréia ainda hoje à noite) é daqueles filmes que ficam se desdobrando na memória horas depois que você sai do cinema.

O ponto de partida de Eduardo Coutinho é aparentemente simples: com um anúncio no jornal, o diretor convidou mulheres com mais de 18 anos para contar suas histórias diante de uma câmera. Oitenta e três se apresentaram, 23 foram escolhidas.

O filme tem os depoimentos de algumas delas e a interpretação de atrizes (Fernanda Torres, Marília Pêra e Andrea Beltrão, entre elas) para alguns desses relatos reais.

O resultado é uma reflexão profunda sobre a complexa arte de interpretar histórias alheias e as próprias, sobre falso e verdadeiro, documentário e ficcção, mas é também uma tocante homenagem ao universo feminino, mostrando como essas mulheres (todas as mulheres?) vivem experiências como maternidade, luto, desejo e frustração. Uma das cenas mais emocionantes mostra uma das personagens cantando uma cantiga de ninar.

É a canção que ela cantava para a filha, e também a que ela ouvia na infância - juntando as pontas de uma história familiar que ela ainda não foi capaz de resolver.

A história dessa personagem é única, mas não é difícil entender por que todos saem do cinema tocados pela cena. Porque uma cantiga de ninar é sempre uma certidão de nascimento do afeto, uma trilha sonora amorosa, impressa na nossa memória, à qual recorremos instintivamente quando a marcha do tempo dispara e transforma a criança embalada na mãe que embala seu filho.

A cantiga de ninar nos inventa, nos sobrevive e ultrapassa. Como o amor de uma mãe por um filho - e desse filho pelos seus.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008



28 de fevereiro de 2008
N° 15524 - Nilson Souza


Marias-vitórias

A humanidade se enternece quando um bebê sobrevive ao abandono, como aconteceu esta semana com a menina encontrada numa lixeira de São Gabriel - ironicamente a cidade gaúcha que tem o nome do anjo da Anunciação.

Mas esse tipo de ocorrência se tornou tão comum em nosso país, que o Congresso já analisa uma proposta de lei para possibilitar que mães de filhos indesejados façam seus partos nos hospitais sem se identificar, podendo deixá-los abrigados e cuidados em vez de descartá-los na rua.

A idéia ressuscita a medieval roda dos enjeitados, sistema criado pela Igreja no século 12 para o recolhimento anônimo de crianças que os pais não podiam ou não queriam criar.

Apesar de bem-intencionada, a proposta também provoca resistências, especialmente de quem acha que a nova legislação poderá adiar para as calendas gregas a necessária discussão sobre planejamento familiar em nosso país.

Não quero entrar neste debate, pois não me reconheço habilitado para tanto. O que desejo abordar neste texto despretensioso é a curiosidade do nome escolhido pelas pessoas que recolhem e abrigam bebês abandonados, especialmente para as meninas.

Quase sempre passam a ser chamadas de Vitória - homenagem óbvia ao triunfo sobre a improbabilidade de sobrevivência.

O filhote do homem, como sabemos, vem ao mundo desprovido de resguardos naturais. Se não for alimentado, morre de fome e sede. Se não for coberto, morre de frio. Se não for protegido dos perigos e das doenças, perece inexoravelmente.

E só cresce sadio se continuar recebendo assistência durante a infância. Precisa de alguém que lhe guie os primeiros passos, precisa de alguém que lhe indique os caminhos do futuro, precisa - para se orientar na adolescência - de amor e atenção permanentes.

Sem apoio, os filhotes humanos sequer conseguem atravessar saudáveis de corpo e alma a areia movediça da juventude, que também é cheia de armadilhas e abandonos.

As marias-vitórias, infelizmente, são filhas de marias-derrotas.

Não conheço o texto da nova lei, mas ela será bem-vinda se contribuir para salvar bebês e aliviar a culpa das mães desesperadas ou perturbadas que se desfazem das suas crias, sabe-se lá com que sofrimento.

De minha parte, se tivesse poderes para editar uma norma a respeito deste complexo assunto, redigiria apenas um artigo de quatro palavras: "Nenhuma criança será abandonada". E o complementaria com um inciso mais sintético ainda: "Nunca".

Uma excelente quinta-feira, esta que com certeza, estará cheia de torcedores pelas ruas, com as camisetas de seus times , comemorando as vitórias de goleada ontem a noite.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008


Elio Gasperi

O BRASIL PRECISA COMEÇAR A DEPORTAR

Peter Collecott, o embaixador de Sua Majestade Britânica, precisa se acautelar. Duzentos anos depois de sua primeira visita ao Brasil, lorde Strangford está armando encrencas com Pindorama.

Só pode ser dele a idéia de criar juntas de triagem para os nativos que desejam visitar o Reino Unido.

Do jeito que as coisas estão, de cada cem brasileiros que compram passagem e descem no aeroporto de Londres, três são deportados. Em 2006, foram 4.985 mil, conforme revelou o repórter Rafael Cariello.

Lorde Strangford foi um craque. Arrancou de dom João VI um tratado que, entre outras coisas, deu aos ingleses residentes na terra o privilégio de serem julgados por tribunais formados por compatriotas.

Agora, ele quer criar juntas inglesas para julgar brasileiros em aeroportos brasileiros. Deve ser mágoa das chicotadas que levou de um estribeiro de dona Carlota Joaquina.

Os acordos firmados pelos governos das duas nações dizem que os brasileiros não precisam de visto para entrar na Grã-Bretanha, nem os ingleses para vir para cá.

Como há milhares de nativos interessados em entrar na Inglaterra, ou em outros países da Europa, em busca de trabalho e sem a devida documentação, os governos se protegem. A Polícia dos aeroportos faz a triagem no olho e pede provas de que o viajante não está mal-intencionado.

Essas exigências variam de país para país e vão da passagem de volta ao comprovante da reserva de hotel, passando por dinheiro no bolso e até demonstração do propósito da viagem. As sentenças dos guardas são quase sempre irrecorríveis e, às vezes, néscias.

É direito de ingleses, espanhóis e europeus em geral recusar o ingresso de estrangeiros. Quanto a isso, nada há a fazer.
Nada mesmo?

Talvez haja. Basta criar um sistema de reciprocidade. Quando um avião da British Airways descer em Guarulhos, pede-se aos passageiros que mostrem reserva de hotel, passagem de volta e uma quantia em dinheiro vivo.

Não tem? Volta, mesmo que seja um físico a caminho da Argentina para uma palestra. Pode-se fazer o mesmo com o vôo seguinte, da Iberia. Por cortesia, os deportados ficariam sempre num patamar equivalente à metade dos brasileiros punidos.

Se esse remédio parecer radical, o Itamaraty pode informar aos embaixadores Collecott e Peidró Conde, da Espanha, que a reciprocidade só será aplicada em 2009.

Até lá, ingleses e espanhóis, que não estiverem com a papelada em ordem, serão convidados a assinar a seguinte declaração:
'Cheguei a este aeroporto sem os documentos necessários para atender às exigências que o governo do meu país impõe aos brasileiros.

Em nome das boas relações entre os dois povos, solicito, pela presente, que seja dispensado desse procedimento.'
Assinou, fica. Não assinou, volta.

Lorde Strangford ameaça restabelecer a necessidade do visto. Se esse for o único caminho, nada a fazer, pois é preferível ser obrigado a solicitar o carimbo dos ingleses (exigindo a mesma coisa deles) do que ser tratado como vagabundo, ou vagabunda, por Polícia de aeroporto.

Em tempo: por mais que os europeus azucrinem os brasileiros, nada os aproxima da inépcia dos serviços consulares americanos.

Eles exigem que os nativos peçam visto e avisam que a demora para marcar uma entrevista está em 109 dias no Rio de Janeiro.

A espera em Pequim é de 15 dias, em em Buenos Aires, de dois.

Pois é... olho por olho, dente por dente, não é assim...? Uma ótima quarta-feira esta que marca o Dia Internacional do Sofá.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008



26 de fevereiro de 2008
N° 15522 - Liberato Vieira da Cunha


O belo e a verdade

Tomem professores bem preparados e bem pagos, adicionem um currículo variado, temperem tudo com índices baixíssimos de repetência e estará servida a receita da escola ideal.

Ela existe, e não fica nos Estados Unidos, no Japão ou na Alemanha nem em outras potências econômicas, mas na discreta Finlândia, dona do melhor sistema de ensino do mundo, segundo conta a Veja do dia 20.

Não há milagres na fórmula. Os alunos estudam toda a manhã e parte da tarde, os docentes do ensino fundamental precisam ter diploma de mestrado, o gasto público com educação vai a 6,1% do PIB (no Brasil não passa de 3,9%), as salas de aula não dispensam o giz e o quadro negro - e naturalmente alguns computadores - e os diretores são responsáveis pela criação de um ambiente agradável para os estudantes.

Esses e mais alguns detalhes do gênero tornaram o sistema de formação finlandês o mais eficiente entre 57 nações, segundo avaliação feita pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O Brasil disputa algumas das últimas posições, com países como a Tunísia e a Indonésia.

Alguns segredos do sucesso da nação nórdica não são difíceis de descobrir. As crianças e os jovens estudam, além das matérias básicas, ecologia, ética, música, artes e economia doméstica.

São obrigadas a aprender duas línguas estrangeiras, número que, se o aluno quiser, pode dobrar para quatro. Não é preciso ser doutor em pedagogia para imaginar que um currículo tão atraente torna a escola ainda mais.

Mais do que isso: transforma-a de uma simples agência de transmissão de conhecimentos num espaço criativo. É o que falta entre nós, além de uma carreira bem estruturada e bem remunerada para os professores, que os estimule a um constante aprimoramento pessoal e profissional.

Dinheiro empregado em educação não é despesa, é investimento. E é preciso não esquecer que quando um aluno encontra mais do que disciplinas burocráticas à sua espera, ele se desenvolve como ser humano, ele cresce - e se acrescem seus interesses e seus sonhos.

Pois nunca é demais lembrar que é para isso que existe a formação: ensinar crianças e adolescentes a amar o belo e a verdade.

Enqanto em Florianópolis chove por aqui faz sol e meu desejo é de que tenhas uma ótima terça-feira.

domingo, 24 de fevereiro de 2008


FERREIRA GULLAR

Repressão e preconceito

Está tudo muito errado; escolheram reprimir os desejos mais genuínos em função das normas

VAMOS FALAR a verdade: a sociedade em que vivemos é pura repressão. Já foi pior, claro, muito pior. Houve tempo em que as mulheres não podiam mostrar nem o pé, quanto mais as coxas ou a barriguinha, como mostram hoje. Naquela época, os homens apenas imaginavam como seria o corpo da mulher com quem iam se casar.

Hoje, podem vê-lo inteiro, da barriga às nádegas, com exceção talvez do púbis. Por que a repressão? Por mero preconceito, pelo propósito moralista que tomou conta da sociedade.
Não nascemos nus?

Por que então temos de andar cobertos de roupas, que nos escondem o corpo? Disse que hoje as mulheres mostram quase tudo, mas isso na praia, porque, fora de lá, escondem quase tudo. Claro, não como antigamente, quando tinham que se cobrir de saias e mais saias, blusas e corpetes.

E os homens? Esses, coitados, tendo que imitar os hábitos europeus, sufocavam dentro de roupas pesadas, paletós e coletes. O calor insuportável terminou por obrigá-los a aliviar a vestimenta, mas, até hoje, homem que se respeita usa paletó e gravata.

Às vezes, alguns tiram a gravata, mas dificilmente tiram o paletó, a camisa, as calças; a cueca, então, nem pensar. Por que não podemos andar nus como os índios?

Não nascemos nus? Nos países frios, no inverno, admito, não dá para abandonar as roupas, mas, nos trópicos, as roupas são a expressão dos preconceitos morais e da repressão religiosa.

Os únicos que se aventuram a ficar nus em pêlo são os nudistas, mas apenas em certas praias, e não por culpa deles; por culpa, sim, da hipocrisia social que obrigaria a polícia a prendê-los. Por que não se pode entrar nu num banco, já que obscenidades maiores são lá praticadas com permissão da lei?
A verdade é que a repressão está presente em todos os momentos de nossa vida. E de tal modo introjetou-se em nós que, quase automaticamente, vamos impondo-a sobre cada pessoa, mal começa a entender as coisas.

Não pode pôr a mão na boca, o dedo no nariz, juntar a chupeta do chão e chupá-la, trepar na cadeira de balanço, aproximar-se do fogão, brincar com faca e tesoura, chupar bola de gude.

Não pode nada, nada! Além disso, tem de obedecer aos mais velhos -mesmo os que tenham mais de 30 anos-, aturar as gaiatices dos irmãos, apanhar sem revidar etc. Em seguida, vem a fase escolar, que nos obriga a soletrar, decorar, aprender a ler, a escrever, a contar, a dividir, a multiplicar.

Ou seja, o sujeitinho que nasce livre é transformado em outra pessoa, metido numa camisa-de-força, engessado, robotizado. E se se rebela, paga caro; conforme seja, cortam-lhe a mesada; se insiste, termina internado ou preso, vira bandido.

E depois reclamam que o cara virou bandido! Se ele gosta de birita, maconha, cocaína, crack ou ecstasy, é problema dele. Mas não, pai, mãe, polícia, a sociedade inteira se volta contra ele. E depois ainda se tem o desplante de afirmar que vivemos numa democracia.

Como democracia, se o cara tem que se sujeitar às imposições sociais? Por quê? Se o cara cheira, fica doidão e sai assaltando os caretas, é problema dele. O assaltado que se vire. Eu gostaria de saber por que esse preconceito contra quem gosta de drogas.

Não tem gente que gosta de alpinismo, de asa-delta, de mascar chiclete, comer chocolate, malhar na academia? E então? Cada um nasce com suas manias e preferências, que devem ser respeitadas pelos demais, do contrário não se pode falar que vivemos numa sociedade que respeita os direitos dos cidadãos.

A verdade é que não respeita. Nem o poderia, uma vez que quase nunca as normas sociais coincidem com as necessidades e desejos das pessoas.

Por exemplo, se o cara tem preferências sexuais, que escapam ao que se chama de normalidade, está sujeito, conforme o caso, a condenações judiciais ou até linchamento por parte dos fanáticos defensores daquelas normas.

Se o sujeito nasceu pedófilo, por que sua preferência sexual é considerada crime? Por que punir alguém que apenas obedece a impulsos inatos que lhe são impostos pela natureza?

Está tudo muito errado. Por razões que ignoro -mas que refuto liminarmente-, os homens escolheram reprimir seus desejos mais genuínos e seu modo espontâneo de vida em função de normas, disciplina, valores que, como observou Nietzsche, só favorecem os fracos e covardes. Só esses necessitam de leis repressoras para compensar a natural superioridade dos fortes.

Agora, se alguém me pergunta se permito que defequem em minha sala e não no vaso do banheiro, respondo que devem fazê-lo no vaso. E que dêem a descarga, certo?

DANUZA LEÃO

Um presente

Existem alguns arco-íris que são meio pela metade. Mas aquele era tão lindo que parecia feito a compasso

DIA SIM, DIA NÃO, eu, que moro no Rio, ando na Lagoa durante uma hora. Andar é uma mania dos cariocas, para conservar a saúde.

Meu horário é seis da tarde, mas nesse último mês tem sido difícil. Os dias amanhecem lindos, ensolarados, céu azul, mas a partir das três horas o céu começa a ficar cinza, e daí a pouco começa a chover. Um verão atípico, pois isso tem acontecido quase todos os dias.

Na última segunda-feira, quando desci para andar, o céu era um chumbo, e fiquei na dúvida: vai ou não chover? Perguntei a meu porteiro, ao do edifício ao lado, os dois me tranqüilizaram: não, não vai chover. Acreditei, e lá fui eu.

Quando cheguei à Lagoa, o tempo estava meio estranho: olhando para o lado da Barra, céu azul e sol. Do outro lado, nuvens negras anunciavam um temporal.

Como eu já estava indo, resolvi apostar no melhor e comecei a andar. Uns 800 metros depois caiu uma chuva daquelas, mas daquelas mesmo.

Dizem que o mundo é dividido entre os que usam e os que não usam guarda-chuva e sou das que acham a chuva uma delícia, sobretudo quando está fazendo calor; mas aquela era demais.

Para piorar a situação, tinha ido ao cabeleireiro e feito uma escova naquela manhã, e se meu cabelo molhasse seria uma catástrofe. Mas não havia nada a fazer, a não ser esperar. Sentei num banco debaixo de uma árvore, rezando para a chuva passar.

Enquanto esperava, olhei o céu: a mesma coisa. De um lado sol, do outro lado chuva. Foram 15 ou 20 minutos difíceis: se decidisse voltar para casa, ia ficar encharcada. Quanto tempo ainda duraria aquela tortura?

A chuva, daquelas bem de verão, passou. As últimas gotas ainda caíam quando voltei a andar, e quando olhei para o céu, o milagre: um arco-íris.

Na verdade não é um milagre, é um fenômeno explicado pela ciência e que acontece às vezes, mas que é tão lindo, mas tão lindo, que é difícil de acreditar que esteja mesmo acontecendo.

O enorme arco-íris ligava um morro a outro. Existem alguns arco-íris que são meio pela metade, e com cores meio desbotadas.

Mas aquele era tão lindo, tão inteiro, tão perfeito, que parecia feito a compasso; as cores vivas, nítidas, belas, um verdadeiro presente da natureza -e que presente.

Na volta, comecei a prestar mais atenção ao caminho que faço todos os dias, automaticamente. Algumas árvores haviam florescido e as flores estavam caídas no chão, dando a impressão de serem tapetes amarelos.

E havia outras, nas quais nasce, no tronco, um tipo de flor em vários tons de vermelho; vi turistas estrangeiros maravilhados, pegando as flores, provavelmente para levar para seus países, de lembrança. Elas eram lindas, e eu nunca havia notado que existiam.

Quando fiz o caminho de volta, o sol continuava a brilhar, e voltei para casa feliz; mais feliz do que se tivesse ido a qualquer museu e visto as mais lindas obras de arte.

Feliz e pensativa; como conheço razoavelmente a natureza humana -a minha, sobretudo-, não será impossível que em uns meses, quando estiver fazendo o mesmo percurso, no lugar de prestar atenção nas montanhas, na luz, que muda a cada dia, nas flores, que podem ter caído ou estarem enfeitando as árvores, esteja distraída e tensa, pensando que é hora de declarar o imposto de renda, ou no inevitável novo escândalo que acontecerá no país.

E isso - quando e se acontecer- será muito melancólico.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 23 de fevereiro de 2008


Diogo Mainardi

Massa e kebab

"Para Elias Canetti, o populacho revanchista que incendiou o Palácio de Justiça em Viena serviu como um prenúncio do nazismo. Para mim, a massa bestializada que foi assistir ao espetáculo de Claudia Leitte em Copacabana provou apenas que eu preciso sair menos de casa"

Lula e Isaiah Berlin. Os dois nomes foram citados juntos, lado a lado, ombro a ombro, no mesmo parágrafo de um editorial de O Estado de S. Paulo. É sempre espantoso quando um encontro desses acontece:

– Isaías, apresento-lhe Lula. Lula, este é Isaías, o filósofo. Isaías, tente explicar ao Lula o significado do conceito "liberdade negativa". Não, Lula: liberdade negativa não é o abuso da liberdade, é o contrário. Isaías, tente explicar novamente, por cortesia.

Não, Lula: "As pessoas escrevem o que querem e ouvem o que não querem" não pode ser considerado um exemplo de liberdade negativa. Acho melhor a gente ir embora, Lula. O Isaías prefere ficar sozinho. Sim, Lula, o Isaías está morto.

No último domingo, testemunhei outro encontro inusitado: Claudia Leitte e Elias Canetti. Fui jantar com meus filhos num restaurante árabe de Copacabana. Meio de transporte: bicicleta.

Um filho na cadeirinha dianteira, outro filho na cadeirinha traseira. No caminho de volta para casa, fomos imersos pela gigantesca onda humana que acabara de assistir a um espetáculo da cantora Claudia Leitte, na Praia de Copacabana. Imediatamente, pensei em Elias Canetti.

Ele relatou que o evento decisivo de sua vida ocorreu em 15 de julho de 1927, quando foi arrastado por uma horda de arruaceiros que depredou e incendiou o Palácio de Justiça em Viena. Toda a sua obra foi inspirada pelo episódio. Em particular, o romance Auto-da-Fé e o tratado Massa e Poder.

Eu senti uma inquietude similar à de Canetti no último domingo, quando fui arrastado pelas centenas de milhares de pessoas que debandaram depois do espetáculo de Claudia Leitte, com meus filhos na bicicleta e a barriga cheia de homus e kebab.

Onda humana. Eu nunca uso figuras de linguagem. Nesse caso, ela cabe: Canetti identificou onze símbolos que representam as massas. Um desses símbolos é o mar. A massa de espectadores de Claudia Leitte era representada por um símbolo que não chegou a ser contemplado por Canetti: o Smirnoff Ice.

Para Canetti, o populacho revanchista que incendiou o Palácio de Justiça em Viena serviu como um prenúncio do nazismo. Aquela gente estava pronta para seguir o primeiro demagogo sanguinário que aparecesse.

Para mim, a massa bestializada que foi assistir ao espetáculo de Claudia Leitte em Copacabana, formada por uma gente embriagada, barulhenta, porca, feia e de pernas curtas, provou apenas que eu preciso sair menos de casa.

O que demonstra de uma vez por todas – como se isso fosse necessário – que eu jamais serei um Elias Canetti.

Tenho bastante intimidade com Elias Canetti. Li suas memórias e sei praticamente tudo sobre ele, de seu nascimento até sua morte.

Sim, Lula, o Elias também está morto. A partir de agora, vou me dedicar ao estudo da vida e da obra de Claudia Leitte. Ela pode ser um prenúncio dos desastres do nosso tempo.

Ponto de vista: Stephen Kanitz

O suplício das malas

"Se quisermos fazer bonito em hospitalidade e receber os turistas aposentados do mundo todo, vamos ter de humanizar os nossos aeroportos"

Depois de doze horas viajando num avião a 12 000 metros de altura, seu corpo está cansado, sua cabeça está zonza, devido ao fuso horário, e seus reflexos diminuem.

Seu corpo está ligeiramente inchado, reduzindo sua força, medida por centímetros cúbicos de massa muscular. Provavelmente, você está ligeiramente desidratado, o que limita sua capacidade na troca de calor.

Daqui a alguns minutos, quatro malas virão em sua direção a 10 quilômetros por hora, e você terá cinco décimos de segundo para capturar suas alças e com um forte solavanco levantar de 25 a 32 quilos no ar, numa espetacular explosão de energia, e, finalmente, colocar as malas, uma a uma, a seu lado.

Só que, na maioria das vezes, você erra na coordenação motora e só consegue capturar a bendita alça quando a mala já está fugindo de você, na direção contrária. Isso significa 20 quilômetros por hora de diferença. Ao todo, você despenderá 1 280 joules de energia em menos de um minuto.

Ilustração Atômica Studio

Com a elevação no número de passageiros aposentados, com mais de 65 anos, viajando merecidamente mundo afora, o cirurgião Antonio Luiz Macedo vem notando algo muito preocupante.

Com todas as precondições do início deste artigo, mais a vida sedentária dos aposentados, está aumentando assustadoramente o número de lesões internas devido a esses heróicos atos de bravura.

Dias depois surgem os primeiros sinais de hérnias inguinais, dores musculares, luxações, microrrompimento de tendões, que passam despercebidos e muitas vezes terminarão em cirurgias.

No Brasil, o custo de uma cirurgia dessas não sai por menos de 4 000 reais. No exterior, nem se fala. Tudo isso porque a maioria dos aeroportos do mundo decidiu economizar 150 reais, que é o custo de dez fortes carregadores trabalhando por uma hora, que poderiam entregar-lhe as malas num carrinho, pronto para você empurrar.

Os aeroportos do mundo devem ter sido projetados por jovens engenheiros que nada entendem do corpo humano ou que nunca viajaram. Construíram esteiras rolantes e carrosséis caríssimos para facilitar a vida dos carregadores, não dos passageiros.

Em vez de passageiros se digladiando em torno desses carrosséis, não é difícil imaginar um sistema no qual as malas fossem colocadas em ordem, com o número dos assentos, do mesmo jeito que as companhias aéreas as receberam: juntinhas num carrinho de mão.

Sistema parecido já existe no Aeroporto de Denver, para equipamentos de esqui. Se engenheiros conseguem construir aviões que voam, certamente conseguiriam bolar um sistema de entrega de malas muito mais amigável do que o que temos hoje em dia.

No mínimo, as companhias aéreas poderiam disponibilizar dez carregadores para ajudar os velhinhos e as velhinhas que precisam de auxílio, como havia antigamente. Isso representaria 0,06% a mais no custo do avião. "Nossas esteiras se tornaram desumanas", afirma o doutor Macedo, com toda a razão.

Se nossos médicos estão preocupados com saúde, em vez de lutar pela volta da CPMF, devem lutar pela redução dos riscos à saúde e de despesas médicas desnecessárias como essa.

O problema não é somente de quem tem início de hérnia ou sofre uma distensão muscular totalmente desnecessária no meio de uma viagem. Muitas pessoas idosas se enganam com os novos métodos cirúrgicos minimamente invasivos, que não deixam quase cicatriz e cortam o tempo de internação pela metade.

Eles reduzem a cicatrização por fora, mas por dentro continua a mesma encrenca, o que exige tempo e comedimento. Há recém-operados que se esquecem disso e dois meses depois estão lá na fila, lutando pelas malas, sem saber dos perigos que correm.

Não são as companhias aéreas as culpadas pelas esteiras. São os aeroportos, que estão economizando e destruindo ainda mais o turismo receptivo deste país, hoje dominado por aposentados do mundo inteiro, sem mordomos nem ajudantes de bordo para auxiliá-los.

Se o Brasil quiser fazer bonito na área de turismo e hospitalidade, se quiser receber os turistas aposentados do mundo, cheios da grana, mas sem energia, vamos ter de humanizar os aeroportos na chegada e na saída, lembrando que mala de 32 quilos não é para qualquer um levantar.

Stephen Kanitz é administrador - (www.kanitz.com.br)