sexta-feira, 4 de abril de 2008



04 de abril de 2008
N° 15561 - Liberato Vieira da Cunha


Como vai você?

Tem pessoas a quem você pergunta: como vai? - e elas contam. Não dizem: tudo bem; ou: tocando o barco. Desfiam um rol de infortúnios, queixam-se de uma gripe, de um mau negócio, das perfídias de uma dama, do presidente George W. Bush.

Gripes são acidentes de percurso, aos quais estou sujeito eu, uma vizinha que espirra há dias no elevador e, suspeito, o próprio inventor da vacina contra esse prosaico desconforto.

Maus negócios são tropeços da sorte, às vezes devidos a excesso de confiança no próximo. Conheço senhoras tão pérfidas quanto lindas, em especial as que me negam cinco segundos de sua sedutora atenção. Já o presidente Bush é um trágico clown da História.

É melhor responder, quando perguntam como vai?, que tudo bem, que tocando o barco. Pois se a cada tempo incumbem seus pesares, não faltam também momentos de branda plenitude.

Por um sábio conselho, não lembro de quem, penso sempre à noite, nas horas quietas que precedem o sono, em algo de bom que me tenha sucedido.

Nada de grandioso. Podem ser três ou quatro palavras atenciosas, partidas exatamente de quem menos se esperava, um trecho esquecido de música que se redescobre ao acaso, uma boa notícia há muito aguardada.

Ou então um brando coquetel de tudo isso, mais dois ou três amenos episódios triviais, que te aquecem o coração de súbita ternura pela espécie humana.

Desconfio que haja leitores percorrendo este canto de página com uma ponta de descrença. É natural e compreensível. Não, não sou médico da alma, nem conheço os segredos da paz de espírito.

Há contudo pequenos truques que ajudam a conviver com a dura lida da sobrevivência. E é próprio do ofício dos cronistas dividir com sua variada, múltipla circunstância desimportantes retalhos de suas opacas singraduras.

A mim conforta inventariar memórias amenas, hábitos banais, receitas de bem-viver.

Talvez seja pouco. Mas há milênios constatei que me falta uma inclinação: a de semear amarguras.

Ainda bem que faltou essa vocação para o Liberato. Uma ótima sexta-feira e um excelente fim de semana.

quarta-feira, 2 de abril de 2008



02 de abril de 2008
N° 15559 - Martha Medeiros


Trilhas sonoras

Há quem não goste de teatro (muitos) e quem não goste de cinema (muito poucos), mas não gostar de música é grave: eu não compraria um carro usado dessa criatura.

Não abro mão de uma boa trilha sonora, e hoje vou indicar duas: justamente uma de cinema e outra de teatro. E cruzar os dedos para que tenhamos o mesmo gosto, que é algo muito subjetivo e pessoal.

Comprei um CD (sim, eu ainda compro CDs) e, assim que acabei de ouvi-lo, deu vontade de correr pro computador e indicá-lo privadamente para no mínimo 20 amigos. Mas tendo uma coluna no jornal, estou aqui indicando publicamente para milhares deles, até porque é um disco belo e sofisticado, e assim faço minha parte pra tentar diminuir a deselegância do mundo.

Estou falando da trilha sonora do filme My Blueberry Nights, que estreará no Brasil dia 11 de abril com o título Um Beijo Roubado e que já chega com jeito de cult. É dirigido pelo chinês Kar Wai Wong, que deu ao mundo uma jóia cinematográfica chamada Amor à Flor da Pele, um dos filmes mais delicados e marcantes de 2001.

My Blueberry Nights destaca a estréia como atriz da cantora Norah Jones, que contracena com Jude Law - deve ter sido um sacrifício. Todo rodado nos Estados Unidos, já há uma boataria de que é realmente um filme especial.

Mas, enquanto ele não chega aos cinemas, aguarde-o escutando a própria Norah na sensual faixa de abertura do CD, e também Cat Power, Cassandra Wilson e, entre outros, Ry Cooder - quem não lembra da trilha de Paris Texas?

Bote-o pra tocar num volume um pouquinho acima do razoável, num momento só seu, quando estiver "por aqui" de tudo e de todos, e com um cálice de vinho na mão - se não estiver dirigindo, é claro.

A outra dica é uma peça de teatro baseada em um texto alemão, com elenco gaúcho e música majoritariamente britânica. Estou falando de Homens (último final de semana no Instituto Goethe). Preste atenção em como Beto Suman conseguiu montar uma trilha moderna e clássica ao mesmo tempo - e extremamente pop.

A seleção destaca David Bowie (seis músicas dele!) e ainda tem Kraftwerk, Beastie Boys, Kasabian e um Rolling Stones de lambuja.

Aliás, sexta-feira estréia o documentário sobre os Stones filmado pelo grande Martin Scorsese. Programa obrigatório. Nesse caso, a trilha sonora é o filme.

Uma ótima quarta-feira, aproveite o Dia Internacional do Sofá.

sábado, 29 de março de 2008



30 de março de 2008
N° 15556 - Martha Medeiros


Aventureiros

Ter uma família não é nada ruim para quem tem espírito de aventura.

Mas, para quem não lida bem com o imponderável, o melhor é deixar pra lá

Você está na dúvida se quer ter filhos, então resolve visitar um casal de amigos que tem duas crianças.

É a oportunidade de observar a rotina de uma família bem constituída e descobrir se é um modelo de vida que você e seu marido gostariam de reproduzir. A grande noite chega. O menino tem 6 anos, e a menina, 3.

A casa está um circo, há um pano amarelado aparecendo por baixo do sofá e na televisão está passando o DVD do Shrek. "Ninguém mais ouve música aqui em casa, só trilha sonora infantil", comenta sua amiga com um sorriso perturbado. Aliás, sua amiga não senta, está sempre em pé, de um lado para o outro.

A menina não quer comer nada. O menino diz que está sem sono, apesar de tropeçar nas próprias pernas. A menina abre sua bolsa (não a dela: a sua!), tira de dentro o celular e aperta em todas as teclas.

O menino chora porque não quer ir pra cama: não quer, não quer, não quer. A menina dança no meio da sala e não deixa ninguém conversar, exige a atenção todinha pra ela. O garoto passa voando por um copo e o quebra.

A menina pede para você emprestar a pulseira que você está usando, aquela feita de delicadíssimos cristais que podem arrebentar por qualquer coisinha.

Ao sair do jantar, você e seu marido olham um para o outro, se beijam no elevador e, sorrindo, decidem: claro que vamos ter os nossos! Vai ser totalmente diferente!

Não adianta. Quem nunca teve filho projeta um futuro mirabolante: "Os meus serão calmos, estudiosos, comerão só alimentos saudáveis, dormirão cedo, não fumarão, serão sociáveis, esportistas, gostarão de livros, viverão junto à natureza, terão muitos amigos e irão à missa".

Amém. Você pode evitar de ter uns pestinhas, educação funciona. Mas é bom estar preparado para imprevistos. Filho é uma incógnita.

Pode odiar tudo o que você adora, pode ter um humor diferente do seu, pode querer morar numa comunidade no meio do mato, pode não ser chegado aos estudos, pode ser um gênio:

nosso controle é relativo. Muitíssimo relativo. Quem acha que ser mãe e pai é criar alguém à sua imagem e semelhança, começa mal.

Ter filhos é um ótimo projeto pra quem não é egoísta e entende o significado das palavras responsabilidade, respeito, adoração e liberdade. Filhos são outras pessoas, não são nós.

Não querê-los é um desejo tão legítimo quanto querê-los, encontra-se felicidade em qualquer situação, não obrigatoriamente nas convenções.

Mas creiam-me: vale a pena. Uma filha quer ser médica, a outra quer trabalhar com moda. Uma anda com saias curtíssimas e pinta as unhas de rosa-choque, a outra não tira o jeans e o All Star.

Uma sonha em conhecer o mundo todo, a outra reclama de almoçar fora. Uma toca guitarra, a outra é um projeto de patricinha. E ambas odeiam o verão!! Fazer o quê, internar?

Me divirto com as minhas duas. Ter uma família não é nada ruim, mas sempre vai ser muito diferente do que se imaginou.

Portanto, pra quem tem espírito de aventura, bem-vindo a bordo, mas quem não lida bem com o imponderável, melhor mesmo deixar pra lá. Ou é um prazer, ou melhor não ter.

Um excelente domingo especialmente para você. Vá na Redenção ou ao Moinhos de Vento, ou ao Marinha, não importa. Respire ar puro, caminhe e divirta-se neta Semana de Porto Alegre.

Diogo Mainardi

Entendeu, Tabatha?

O blog de Paulo Henrique Amorim está em nome da Nexxy Capital Brasil Ltda., de Luiz Roberto Demarco. A internet é assim. Os blogueiros jornalistas podem criar uma nova identidade por dia. Mas sempre dá para descobrir quem manda neles

Quando um internauta faz uma piada, ele acrescenta: "Hahahahahaha". Pode ser também: "Kkkkkkkkkkk". Ou simplesmente: "Rsrsrs". A internet representa o retorno da risada enlatada. É como se fosse um episódio de A Feiticeira. Agora, Tabatha tem um blog.

Além da risada enlatada, a internet também reintroduziu a claque. Blogueiros enchem de comentários elogiosos os blogs de outros blogueiros. E blogueiros enchem de comentários elogiosos seus próprios blogs, usando identidades falsas.

Os jornalistas que foram afastados da grande imprensa procuraram se reciclar na internet. Eles cancelaram o passado e se apresentaram como promotores de um jornalismo independente e transparente, trombeteando a internet como o caminho para o futuro.

Na realidade, o que ocorreu foi o contrário: eles retomaram algumas das práticas mais antigas e mais imundas do jornalismo, como a chantagem, a mentira, a propaganda do poder e a matéria paga.

O internauta bocó, da risada enlatada e da claque, certamente é mais propenso a ser ludibriado pela imprensa marrom instalada na internet.

Por sorte, os instrumentos para policiar esse tipo de jornalismo encontram-se na própria internet. Posso mostrar como isso acontece, citando um caso menor, muito menor.

Recentemente, Paulo Henrique Amorim foi demitido do iG. No dia seguinte, ele abriu um blog com seu nome. Um leitor sugeriu que eu desse uma espiada no registro do blog. Descobri que seu servidor era a Nexxia.

A Nexxia pertence a Luiz Roberto Demarco, aquele da Lojinha do PT, o comércio on-line dos produtos licenciados pelo partido para arrecadar fundos eleitorais: bonés, camisetas, broches, relógios.

Fiz um podcast sobre o assunto. Paulo Henrique Amorim me chamou de mentiroso, mas imediatamente tratou de mudar o servidor.

Fui escarafunchar o novo registro do blog de Paulo Henrique Amorim. A Nexxia sumiu. Na parte inferior da página, porém, aparece um número: # 4330799.

Clicando nesse número, a gente é direcionado para outra página. Nela, revela-se que o blog de Paulo Henrique Amorim estava em nome da Nexxy Capital Brasil Ltda., de Luiz Roberto Demarco.

O negócio fica ainda mais esquisito do que isso. Sabe como está registrado o domínio nexxy.com.br? Ele está registrado em nome da PHA Comunicação e Serviços S/C Ltda.

Nesse jogo de propriedades cruzadas, Paulo Henrique Amorim tem o domínio da Nexxy e a Nexxy tem o domínio de Paulo Henrique Amorim.

Tanto o blog de Paulo Henrique Amorim quanto o domínio da Nexxy foram registrados com o mesmo documento:
003.534.337/0001-77.

Uma rápida consulta no site da Receita Federal permite dizer que esse é o número de CNPJ da Nexxy. Paulo Henrique Amorim escondeu o homem da Lojinha do PT, mas ele continua lá, dando as cartas. Pelo menos até o momento em que redijo este artigo.

A internet é assim: basta uma clicada para alterar o próprio perfil, basta uma clicada para apagar a própria folha corrida. Os blogueiros jornalistas podem criar uma nova identidade por dia. Mas sempre dá para descobrir quem manda neles. Entendeu, Tabatha?

Ponto de vista: Lya Luft

"Minha mulher é uma santa"

"Mulheres que ‘perdoaram’ o marido e continuaram com ele – a não ser quando há um recíproco e real desejo de refazer a relação – têm no olhar uma tristeza como de viuvez que não se apaga"

Ilustração Atomica Studio

Nada país tem seus espantalhos. Aqui, figurões se esbaldam contratando bailarinas com cartões pagos por nós, os trouxas. Simples assim.

Nos Estados Unidos, flagrados em algo imoral (para eles), batem no peito em público, com a "santa esposa" ao lado. Por que essas mulheres reprimem a dor e a vergonha, apoiando o malandro diante de todos?

Pressões políticas das quais não sabem se esquivar? Medo da solidão? Melhor infeliz, mas casada? Aí a gente fecha um olho e fica desgraçada para sempre? Casamento pode ser uma doença a dois.

"Minha mulher é uma santa", dizem os puladores de cerca desde o tempo das cavernas. Essa figura da "santa" em casa é um mito a ser removido do nosso imaginário: quase sempre elas são acumuladoras de ressentimento e mágoa, que um dia, ou no dia-a-dia, se vingam até sem perceber.

Com cobranças, com acusações, ridicularizando o maridão diante de outros, jogando os filhos contra ele. E, se um dia houver uma separação, pobre do moço: sobre ele serão lançadas todas as fúrias possíveis.

A mim essa figura constrange tanto quanto a "santa" mulher exposta à violação do privado pelo público diante do seu país, o que aparece especialmente nos Estados Unidos.

Diante das câmeras sôfregas ou no segredo da casa, a mulher naturalmente perdoa, deve perdoar? Ainda é o que se espera dela? Consegue eventualmente perdoar e seguir a vida com esse parceiro, sem ressentimentos, corroendo a vida por baixo do tapete? E por que razões permanece com ele?

Há quem, sabendo-se traída, argumente curto e grosso: "Agora tenho sossego na cama". "Eu me vingo gastando os tubos", ou ainda: "É pelo bem dos filhos" (eles exigem o martírio materno).

Mulheres que "perdoaram" o marido e continuaram com ele – a não ser quando há um recíproco e real desejo de refazer a relação – têm no olhar uma tristeza como de viuvez que não se apaga.

E o parceiro, confiante na impunidade, já ocupado em novas aventuras, nem se dá conta disso, enquanto a mulher segue em frente, remoendo sabe-se lá que dúvidas, passando sabe-se lá que valores aos filhos, e que modelo às filhas. A mãe vítima é um peso do qual dificilmente hão de se livrar.

E quando esse drama vem a público, com mulheres firmes ao lado de quem enxovalhou amor, confiança e família, mas por apego a cargo ou poder bate no peito, assistimos talvez ao último degrau na descida ao inferno pessoal feminino.

Todo o esforço para que em nossa cultura a mulher se valorize anulava-se no rosto devastado junto ao atrapalhado dom-juan americano, campeão de hipocrisia, que ganhou a imprensa semanas atrás:

ele fazia do combate à prostituição sua bandeira, mas era freguês de caderno de um caríssimo clube de alegres moças. Nem o nome ele precisava dar: era o Cliente Número Nove.

Flagrado, pediu desculpas e prometeu se comportar, como o moleque que roubou maçãs do quintal da vizinha. "Minha mulher é uma santa", há de dizer na roda de amigos. Mais um ser humano ferido de morte. Simples assim.

Lya Luft é escritora


Ela vai resistir?

Como a crise provocada pelo vazamento de informações sigilosas de gastos pessoais do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afeta o futuro de Dilma Rousseff, a candidata preferida de Lula para 2010

Ricardo Amaral

O fim do verão de 2008 deveria ser a temporada de maturação da candidatura da ministra Dilma Rousseff à Presidência da República.

Faltando pouco mais de dois anos para a eleição de 2010, Dilma ainda está longe de ser a candidata oficial à sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas ela é a “primeira da fila”, na definição de um colega do Planalto.

A poderosa chefe da Casa Civil passou as últimas semanas de março em favelas do Rio de Janeiro e em cidades do Nordeste, visitando obras e projetos ligados ao Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

À sombra da popularidade do presidente, que a chamou de “mãe do PAC”, Dilma deveria faturar politicamente o projeto de investimentos de R$ 500 milhões. Mas sua agenda política andou para trás, por problemas na retaguarda da Casa Civil.

A “mãe do PAC” terminou a semana sob a suspeita de ter sido a madrinha de uma engrenagem que pôs na rua informações sigilosas sobre despesas pessoais do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e da mulher dele, a professora Ruth Cardoso.

Trata-se de um maço de 13 folhas de papel, relacionando os nomes de Fernando Henrique e dona Ruth a gastos com aluguel de veículos, material de higiene pessoal, alimentação, bebidas e até lixas para unhas.

Não há na lista nenhuma despesa que possa ser considerada exorbitante para um ex-presidente da República e sua família, mas a legislação proíbe que esses gastos, feitos com dinheiro público, sejam divulgados.

A chefe da Casa Civil deveria ser a guardiã dos segredos que vazaram, e por isso está no primeiro lugar de uma outra fila – da linha de tiro.

Os papéis foram parar nas páginas da revista Veja – que acusou o governo de tê-los produzido para chantagear a oposição – e do jornal Folha de S.Paulo, que acusou a subchefe da Casa Civil, Erenice Guerra, de ter mandado reunir os dados sobre despesas de FHC e dona Ruth nos arquivos da Presidência.

A ministra nega que tenha feito qualquer coisa que possa ser chamada de um dossiê contra os adversários políticos (Clique aqui e leia a entrevista), mas admite que os papéis reproduzem dados que estavam sob sua responsabilidade.

“Temos uma base de dados sobre gastos da Presidência deste governo e do anterior”, diz a ministra. “Fantasiar isso como dossiê para chantagem é rebaixar o processo político.”

Ela abriu uma sindicância para apurar o vazamento e, numa conversa com o presidente Lula na noite da terça-feira, prometeu entregar a cabeça do responsável. “Não transforme esse caso num problema maior do que ele já é”, disse Lula a Dilma, de acordo com três outros auxiliares diretos do presidente.

A coleção de cabeças cortadas do governo Lula tem exemplares vistosos. Os ex-ministros José Dirceu, antecessor de Dilma na Casa Civil, e Antônio Palocci, ex-ministro da Fazenda, foram tão poderosos quanto Dilma ou até mais.

Ambos caíram debaixo de acusações pesadas e depois de ter recebido de Lula apoio e conselhos. Dilma será a próxima? A pergunta que se faz em Brasília é se ela conseguirá resistir, estando sob suspeita e sob o bombardeio da oposição.

Sobre as suspeitas, o Planalto argumenta que tinha a obrigação de organizar a relação de despesas deste governo e do anterior, mas não conseguiu ainda explicar por que foram à luz apenas as do período FHC.

A simples suspeita de que o governo teria usado a máquina pública para levantar informações contra adversários políticos é um problema enorme. “Isso é gravíssimo, é o Estado policial sendo instaurado pelo PT”, diz o deputado Raul Jungmann (PPS-PE), de oposição ao Planalto.

“A acusação de montar dossiês não tem como colar na imagem da ministra, porque não combina com o perfil de pessoa séria que ela tem”, diz o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), aliado do Planalto. “O lugar que ela ocupa no governo, sua importância, é que explica o que está ocorrendo.”

A CPI Mista dos Cartões Corporativos, que caminhava para um tedioso zero a zero entre Planalto e oposição – ambos trabalhando para não revelar os gastos secretos do atual governo e do anterior – ganhou novo fôlego com o vazamento.

Na semana passada, numa tumultuada reunião que durou cinco horas, o Planalto fez valer sua maioria e derrotou, por 14 votos a 7, um requerimento convocando a ministra para esclarecer o episódio.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mandou carta ao Senado, abrindo mão do sigilo sobre suas despesas pessoais. A iniciativa é inócua, porque o sigilo protege a Presidência da República, não seus eventuais titulares, mas serviu para acossar politicamente o governo.


29 de março de 2008
N° 15555 - O Prazer das Palavras
Cláudio Moreno


Quantas palavras?

Em meio aos balões e docinhos de um aniversário de criança, fui apresentado a uma risonha senhora que, muito faceira, declarou ser leitora fidelíssima desta coluna e, ato contínuo, sem tir-te nem guar-te, desferiu a pergunta que trazia engatilhada: quantas palavras, a meu ver, uma pessoa deve saber para se considerar razoavelmente culta?

Eu, que estava em animado diálogo com um incomparável cachorrinho-quente de festa, com seu molhinho cheio de reminiscências proustianas, prometi, encabulado, que dedicaria ao tema o próximo O Prazer das Palavras, que vem a ser o de hoje.

Confesso que eu próprio, há alguns anos, andei tentando determinar, com um mínimo de precisão, o que poderia se considerar um vocabulário satisfatório para alguém que conclui um curso superior.

Quantas palavras ele deveria conhecer? E um professor como eu, que leciona e escreve há tanto tempo, quantas palavras guarda em seu depósito?

Pois quanto mais perguntava, quanto mais pesquisava, mais me convencia de que é impossível chegar a uma cifra aceitável; basta dizer que lingüistas famosos, ao fazerem estimativas sobre o léxico que um profissional recém-formado deve dominar, sugerem números que vão de escassos 12.000 a espetaculares 70.000 vocábulos.

Essa discrepância impressionante de opiniões tem justificativas bem concretas. Em primeiro lugar, não sabemos se aqueles cientistas levaram em conta, para seus cálculos, o vocabulário ativo ou o vocabulário passivo.

O primeiro, sempre menor, é composto daquelas palavras que me vêm à mente quando escrevo ou quando falo; o segundo é formado pelas palavras que reconheço no texto ou na fala das outras pessoas.

Quem estudou uma língua estrangeira sabe muito bem que o segundo, o passivo, chega a ser duas ou três vezes maior do que o ativo.

Em segundo lugar, o meu léxico não se resume a uma lista, maior ou menor, de palavras, mas inclui também - e é esse o fator que acaba com qualquer precisão nas estimativas - um estoque de elementos mórficos do nosso idioma (sufixos, prefixos, radicais gregos e latinos), bem como as regras que me permitem combiná-los.

É esse "saber" que me possibilita decompor, facilmente, o significado de palavras que eu jamais tinha visto antes (e que não faziam parte, portanto, nem do meu vocabulário passivo).

Como já estou acostumado ao radical grego filo ("amigo, apreciador"), que enxergo em pedófilo e cinéfilo, meu olho nem pisca quando leio, no jornal, que "bochófilos argentinos, chilenos e uruguaios vêm participar de um torneio em Venâncio Aires".

Depois que o cacerolazo argentino foi editado aqui com o nome de panelaço, o sufixo "-aço" ganhou também esse significado de "manifestação de protesto", produzindo-se, em seguida, bandeiraços, apitaços, tratoraços e sinetaços -

o que me permite entender também o que sejam os beijaços, sessões de beijocação indiscriminada que o movimento gay vem patrocinando, em vários pontos do país, como forma de repúdio ao não-reconhecimento da união legal entre homossexuais.

A rigor, essas palavra não estavam registradas em meu vocabulário, mas assim mesmo eu decifrei instantaneamente seu significado.

E aí? Elas entram no nosso cálculo? Certamente meu leitor deverá ter percebido que temos aqui um saco sem fundo, já que o número dessas palavras potenciais é praticamente infinito.

Quem possui um estoque básico de elementos gregos e latinos, por exemplo, vai decifrar muitas combinações no momento em que as vir pela primeira vez.

Para que meus alunos do curso de Direito se dessem conta disso, eu costumava resolver pequenas equações morfológicas: se hipopótamo significa, literalmente, "cavalo do rio", e meso significa "no meio", fica claro por que se chamava de Mesopotâmia a região entre os rios Tigre e Eufrates- e por que a região de Entre Rios, entre o rio Uruguai e o Paraná, é conhecida como a "Mesopotâmia argentina".

Era um desafio ao raciocínio e à dedução, mas, é claro, nem sempre produzia o resultado esperado. Uma questão de prova tinha o seguinte enunciado: "Se misógino é o que tem aversão às mulheres, e bígamo o que casa duas vezes, o que seria um misógamo?".

Dois ou três iluminados acertaram: "aquele que tem aversão ao casamento" - mas os demais demonstraram um esforço comovente e uma criatividade delirante:

"o que casa duas vezes com a mesma pessoa"; "quem não consegue casar"; "o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo"; "alguém que detesta ter uma só esposa";

"quem casa com parente"; "uma pessoa com duas personalidades"; "quem casa com pessoa de raça diferente"; e, por fim, mas não menos estarrecedor, "quem contrai meio casamento". Bem, não digam que eu não tentei... Mas o tema continua.


29 de março de 2008
N° 15555 - Cláudia Laitano


Você não está sozinho

No início dos anos 90, uma pequena grande banda chamada R.E.M. gravou a música Everybody Hurts - algo como "todo mundo sofre".

A letra, simples e eficiente, lembra que as dores vão e vêm - e que por mais solitária que pareça uma experiência de infelicidade, ela é inevitavelmente compartilhada por boa parte da espécie: "Segure a onda/ Todo mundo sofre/ Você não está sozinho".

Essa canção doce e triste, que desde então tem servido de conforto em momentos difíceis para fãs de todas as idades, foi originalmente composta mirando o público adolescente.

Não os garotos de propaganda de refrigerante, sempre sorridentes e com a chapinha em dia, mas aqueles de carne, osso e espinhas, que enfrentam com dificuldade as mudanças e os novos desafios que vêm com o fim da infância.

Quem já teve 15 anos sabe como nessa etapa da vida é difícil colocar idéias e sentimentos sob perspectiva, entender que tudo que parece definitivo e absoluto, e às vezes doloroso, tende a não ser tão grave assim.

O clipe da música, outro pequeno clássico pop, mostra pessoas trancadas em um congestionamento, absorvidas por seus dramas cotidianos, cercadas de gente e ao mesmo tempo isoladas. O alvo eram os jovens, mas adultos de qualquer grande cidade identificam a cena. A solidão urbana é quase tão universal quanto as crises da adolescência.

"Você não está sozinho" parece voltar a dizer Michael Stipe, vocalista e compositor do R.E.M, ao falar publicamente de sua homossexualidade em uma reportagem publicada na semana passada na revista americana Spin.

Para quem acompanha a carreira da banda, a revelação não é exatamente surpreendente - muito pelo contrário. Mesmo assim, durante anos Michael Stipe foi cobrado por não fazer uma declaração pública explícita como essa que foi publicada agora pela revista.

Em parte, pela curiosidade maliciosa que cerca a vida de todas as celebridades - especulações sobre a vida sexual dos famosos fazem sucesso desde os tempos de Cleópatra - , mas também pelo significado simbólico de uma declaração desse tipo.

Aos 48 anos, o cantor admitiu que apenas agora chegou à conclusão de que falar de um assunto privado poderia ser importante para outras pessoas: "Hoje eu reconheço que ter figuras públicas que falem abertamente sobre sua sexualidade pode ajudar algum garoto, em algum lugar".

Em uma época em que anônimos e celebridades fazem da exposição da vida privada quase um gênero paralelo de ficção, a entrevista de Michael Stipe poderia soar banal - assim como a da atriz Jodie Foster, também assumindo a homossexualidade em público pela primeira vez, em dezembro do ano passado.

Mas para aqueles artistas que preferem se impor pelo trabalho e não pelas peripécias da vida particular, revelações desse tipo nunca são banais.

E se justificam apenas quando servem a um propósito que ultrapassa suas trajetórias individuais.

Com suas declarações, Michael Stipe e Jodie Foster ajudam a desmistificar uma condição que pode trazer sofrimento para adolescentes e suas famílias quando faltam esclarecimento e empenho para lidar com a questão de forma honesta e natural.

Às vezes, um simples "você não está sozinho" pode fazer toda a diferença.

quinta-feira, 27 de março de 2008



27 de março de 2008
N° 15553 - Nilson Souza


A cara de Porto Alegre

Um garçom, uma ascensorista, uma engraxate, um taxista e um vendedor de flores disputam a eleição informal que Zero Hora promove para homenagear os porto-alegrenses nesta semana de aniversário da capital gaúcha.

Os candidatos foram indicados pelos leitores e selecionados por uma equipe de jornalistas, pelo critério das citações e da exclusão de celebridades como Paulo SantAna e Paixão Côrtes.

A Cara de Porto Alegre, nesta promoção, será a de um cidadão comum - ainda que cada indivíduo, por mais anônimo que pareça, tenha peculiaridades que o tornem incomum perante os demais.

Gostei muito dos personagens escolhidos, pois me parecem extremamente representativos do povo da minha cidade. Não os conheço pessoalmente, mas tenho certeza de que qualquer um dos cinco será merecedor desta distinção.

Basta observar as atividades que exercem. Todos trabalham com o público. Se receberam o reconhecimento da indicação espontânea é porque exercem seus ofícios com dedicação, eficiência e simpatia. Além disso, suas ocupações são emblemáticas.

O garçom é quase sempre aquele sujeito que procuramos tratar pelo nome já no primeiro encontro, porque a intimidade nos faz crer que seremos bem servidos. Quando o cara é esperto, gentil e brincalhão, conquista até mesmo os clientes mais exigentes. O garçom, muitas vezes, é mais do que um simples atendente: é psicólogo, pai, amigo e confidente.

Se o garçom for eleito, farei um brinde para ele.

A ascensorista nos leva para o céu dos arranha-céus e nos devolve em segurança à realidade do chão, sem cobrar ingresso pelo passeio. Discreta no seu cantinho, exerce o poder mágico de acalmar claustrofóbicos, orientar desorientados, elevar espíritos e baixar tensões e pretensões.

Talvez mereça o último andar do pódio.

Engraxate é aquela criatura que nos pega pelos pés e nos dá um lustro na alma, especialmente quando tem espírito alegre, sabe contar anedotas ou aplicar uma batucada de discretas cócegas. Como não admirar alguém que consegue transformar poeira em brilho e nos trata com o carinho das pelúcias?

Será justo se o prêmio for parar nas suas mãos manchadas de trabalho.

O taxista nos conduz pelos labirintos da metrópole, conhece todos os rumos e todas as saídas. Pode ser um contador de histórias ou um silencioso acompanhante dos nossos pensamentos em trânsito. Quando é hábil, sabe acelerar sonhos e frear preocupações.

Se couber a ele a bandeirada da vitória, serei o primeiro a aplaudir.

Mas tem um homem que semeia rosas na noite dos porto-alegrenses e mistura seu canto ao perfume das flores.

Ainda que, com temperatura elevada neste Rio Grande, tenhamos todos uma ótima quinta-feira.

quarta-feira, 26 de março de 2008



26 de março de 2008 | N° 15552
Martha Medeiros


Jogo de cena

O novo documentário de Eduardo Coutinho, Jogo de Cena, merece ser visto por inúmeros motivos.

Primeiro, é um show de humanidade. Na tela, uma seqüência de depoimentos de mulheres anônimas de todas as gerações e classes sociais. Elas contam seus dramas particulares como se estivessem numa sessão de psicanálise.

São dramas parecidos com os de todo mundo: relações complicadas com filhos, separações conjugais, sonhos que foram adiados, superações, o enfrentamento da morte, mas cada uma dessas histórias torna-se única pelo foco, pelo close, pela atenção que somos convidados a dar para cada uma dessas desconhecidas: atenção que quase não damos a mais ninguém aqui fora.

O pulo-do-gato da obra é que esses depoimentos são intercalados pela aparição de atrizes famosas que interpretam essas mulheres anônimas, repetindo o mesmo texto.

Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão aceitaram o desafio, e aí vem o instigante do filme: não chegaram lá, apesar de toda a tarimba que possuem. Os depoimentos verdadeiros dão um baile nos depoimentos encenados.

Fica evidente que ninguém consegue reproduzir uma emoção verdadeira, a não ser que não seja confrontado com a referência que o inspirou, ou seja: essas atrizes dão vida a personagens fictícios em novelas e peças de teatro com total competência, a gente até acredita que seus personagens existam, mas quando eles existem mesmo e são confrontados com a interpretação que recebem, a interpretação é desmascarada como tal.

É incrível ver a reação das atrizes diante do resultado, elas ficam desestabilizadas por não conseguirem dramatizar com naturalidade aquilo que não é arte roteirizada, e sim vida real.

E é nessa desestabilização que as atrizes também mostram sua faceta mais humana - e acabam por participar do documentário com depoimentos delas mesmas. Aí funciona.

Enfim, é um jogo de espelhos fascinante.

Por fim, mas não menos importante, todas as mulheres que aparecem no filme, por mais que tenham vidas sofridas - e como têm! - não perdem sua graça.

No auge de seus depoimentos dilacerantes, surge uma ou outra frase que faz a platéia gargalhar, porque todas elas conseguem, em algum momento de sua narrativa, buscar algo que atenua o drama, que alivia a pressão, que relativiza o que está sendo contado.

Não importa que elas não sejam grandes intelectuais: são inteligentes em sua postura de vida, sabem que até do sofrimento é possível arrancar um sorriso.

Fiquei orgulhosa delas e de todas as mulheres que, mesmo mergulhadas em dor, não perdem a noção de que a vida é apenas uma breve passagem e merece ser curtida com esperança e sem reverência extrema. No final das contas, ficou claro que a tal alegria brasileira é mesmo redentora.

Hoje Dia Internacional do Sofá, aproveite e que tenhamos todos, uma excelente quarta-feira.

terça-feira, 25 de março de 2008



25 de março de 2008
N° 15551 - Liberato Vieira da Cunha


As chamas do paraíso

Ao que lembro, o único sorteio que ganhei foi no Colégio das Dores.

Me vi agraciado com uma flamante bola de couro número 5, que não tardou a ser estropiada nos torneios de futebol da Rua João Manoel.

Mesmo assim, não desisto de seduzir a esquiva dama que atende por Fortuna. A cada vez que a Mega Sena acumula 40 milhões, preencho um único cartão, sempre apostando em números invariáveis. Se por engano ou distração algum dia fosse premiado, não compraria um iate, uma Ferrari ou um jatinho.

Me presentearia com uma ilha, pendurada entre o céu e o mar, em algum ponto do Pacífico Sul.

Ergueria ali uma casa ampla, confortável e simples. Ornaria suas paredes com honestas falsificações de bailarinas de Degas e das sombras e luzes de Georges de La Tour. Dotaria as estantes da Lírica de Camões, das Memórias Póstumas de Brás Cubas, dos heterônimos de Pessoa.

Anestesiaria de Bach, Beethoven e Brahms enseadas e montanhas, horizontes e areias, vagas e palmeiras, mas não de modo a calar a sinfonia dos pássaros.

Despertaria cedo para ouvir o derradeiro canto das sereias, contemplaria o mergulho do último reflexo do luar sobre os corais submersos, receberia os amigos, a aragem do oceano, o azul das tempestades, as amadas por quem penou de paixão meu inquieto coração.

E escreveria. Comporia um livro em que se contivessem vórtices e vértices, desejos e paixões, cenas, frases, momentos, gestos, posses e entregas, êxtases e angústias, palavras esquecidas, reflexões interditas.

Para que, quando frágil me surpreendesse; e não me restassem nem mais o canto das sereias e os corais submersos;

e entrevisse o vulto da Barqueira, batesse um súbito vendaval e o livro e a casa e as bailarinas de Degas e os heterônimos de mim mesmo fossem consumidos em uma legião de partículas imersas nas chamas de luz que desde o início da eternidade ardem no paraíso.

Ótima terça-feira, e para os que começam o mestrado de Economia lá na PUC, cuja aula inaugural é hoje, sucesso e boa sorte nas suas pesquisas e propósitos.


25 de março de 2008
N° 15551 - Cláudio Moreno


Nossas musas

Desde Hesíodo, a maioria dos autores gregos usa o mito de Pandora para explicar a criação da mulher.

Uns dizem que essa criatura, moldada pelos deuses, teria vindo para aliviar a solidão masculina; outros, entre os quais se alinha Hesíodo, acusam-na simplesmente de ser uma forma maquiavélica de castigar os pobres machos indefesos.

Não abraço nenhum dos dois partidos porque ambos pressupõem a crença ingênua de que a mulher nasceu para servir ao homem, seja como prêmio, seja como punição. Para explicar a presença feminina no planeta, prefiro recorrer ao mito das Musas.

Foi Zeus quem as gerou. Preocupado em tornar o mundo melhor e mais cheio de beleza, o rei do Olimpo visitou, por nove noites sucessivas, o leito de Mnemósine, a deusa da Memória; nove meses depois, nasceram as nove Musas, a quem devemos dons maravilhosos como a música, a dança, a poesia e todas as outras artes, bem como o talento e a intuição.

Viviam sempre alegres e sorridentes; dançavam e cantavam com extrema doçura e leveza, acompanhadas pela lira de Apolo, a quem obedeciam.

Eram bonitas e graciosas, sempre vestidas com roupas diáfanas e esvoaçantes. Alguns chegam ao cúmulo de dizer que elas tinham olhos cor de violeta.

Sendo mulheres exemplares, tudo nelas estava voltado para a preservação da vida. Embora o sacrifício de animais fosse comum nos altares gregos, as Musas rejeitavam qualquer derramamento de sangue e só aceitavam oferendas de água fresca, leite ou mel.

Amavam a paz, e jamais escultor ou pintor ousou representá-las armadas, como costumavam fazer com Atenas ou Artêmis, deusas guerreiras.

Sim, eram pacíficas e benfazejas, mas tolo seria quem pensasse que isso era sinal de fraqueza, como veio a descobrir o pobre Tamiris, poeta tolo e presunçoso.

Todos sabiam que as Musas penetravam na mente dos mortais para torná-los criativos; o artista afortunado que recebesse sua visita não teria problemas para encontrar o ritmo e as palavras certas para suas composições - mas não adiantava convocá-las, porque, assim como a fome, o amor ou a alegria, elas só viriam quando assim decidissem.

Tamiris quis assumir o controle e as desafiou para um concurso musical: se vencesse, poderia possuir todas as nove; se perdesse, elas fariam com ele o que quisessem.

Elas o derrotaram, tiraram-lhe os olhos, a lira e a memória, para puni-lo, como diz nosso poeta Antônio Cícero, pela insensatez de querer possuir aquelas que já o possuíam.

E ai da mulher que ousasse competir com elas! As Piérides, hábeis cantoras, desafiaram as Musas - e elas as transformaram num bando de gralhas barulhentas.

As sereias, que tinham corpo de ave e rosto de mulher, caíram no mesmo erro de enfrentá-las - e elas tiraram-lhes as penas, fazendo com que nunca mais pudessem voar.

Assim eram elas, e ainda o são, as nossas musas: doces e suaves, trazem beleza e paz para os que sabem tratá-las como merecem; para os outros, no entanto... Cuidado com elas!

domingo, 23 de março de 2008


DANUZA LEÃO

Nossos nobres colegas

Minha sugestão é que os deputados e senadores passassem a ter um salário de R$ 70 mil

QUEM NÃO GOSTARIA de ter seu salário triplicado? Todos nós, inclusive - e sobretudo - os deputados. Então, vamos batalhar para que isso aconteça.

Sinceramente, acho que deputados e senadores ganham pouco. O salário não passa de R$ 12 mil e uns quebrados, mais R$ 35 mil de despesas de gabinete e R$ 15 mil de verba indenizatória. Total: R$ 62 mil.

Minha sugestão é que os deputados e senadores passassem a ter um salário de R$ 70 mil. Em qualquer lugar do mundo R$ 70 mil é um belíssimo salário, só que todas as despesas -todas - teriam que ser pagas pelos próprios.

Vamos organizar: para começar, o governo deveria vender todos os apartamentos que, supostamente, serviriam de moradia a seus congressistas e cortar a ajuda de custo de R$ 3.000 para quem preferisse morar num apart.

Com R$ 70 mil dá para pagar aluguel, não dá? Vendendo os apartamentos, cairiam as despesas de geladeira, máquina de lavar, televisão, sofás, roupa de cama, enfim, tudo que é necessário para que um representante do povo more com conforto.

Ah, e os carros: cada um compraria o seu, pagaria seu próprio motorista, suas multas, quando elas existissem, e sobretudo a gasolina, aquela que daria para ir à lua não sei quantas mil vezes.

E os assessores; cada um teria quantos quisesse, e nada os impediria de contratar a mãe, a mulher, os filhos, noras, genros, etc. O dinheiro sendo deles, teriam todos o direito de fazer o que quisessem com ele.

Também poderiam alugar uma casa para dar suas festas com direito às mais lindas moças da cidade, pois a conta não seria paga pelo governo.

As passagens poderiam ser quantas fossem, desde que pagas do seu próprio bolso e a imprensa, que no fundo é a culpada de tudo, não poderia reclamar de nada, pois cada um faria do seu dinheiro, ganho honestamente, exatamente o que quisesse.

Seria necessário um conselho de ética para fiscalizar tudo, inclusive para escolher quais os deputados que não perdem as reuniões da ONU, mas não sei se essa seria uma boa idéia (aliás, o que fazem esses deputados em Nova York?).

O último Conselho de Ética acabou desmoralizado, quando Marcílio Marques Moreira foi contra um ministro que era também presidente de um partido.

E como hoje, com a informática, qualquer empresinha chinfrim pode fazer "conference calls", todas as reuniões que custam fortunas, inclusive a de Davos, poderiam ser feitas pelas tais "conference calls", o que seria uma imensa economia para todos os países.

E o deputado que quisesse ir a Paris com sua esposa compraria passagens em cinco módicas prestações, pelo cartão. Mais: os deputados trabalhariam onze meses por ano, sem direito a faltar, tendo apenas um mês de férias, como qualquer cidadão.

O único problema é que para que tudo isso acontecesse seria preciso que os 500 e não sei quantos deputados votassem a favor dessas medidas - aliás, pra que tanto deputado?-, e fosse diminuído também o número de senadores. Tem sentido, Roraima ter o mesmo número de senadores que São Paulo?

Mas sabe quando é que alguma dessas coisas vai acontecer? Nunca. Porque ninguém, sobretudo os políticos, vão querer abdicar de nenhum dos privilégios que eles mesmos criaram para si.

Se não fosse pela bela arquitetura de Niemeyer, a vontade que dá é de jogar uma bomba - várias, aliás - e acabar com Brasília.

danuza.leao@uol.com.br

sexta-feira, 21 de março de 2008



Que nesta Páscoa, você receba muitas bênçãos dos céus e encontre junto ao ninho do

coelhinho, além dos ovinhos embrulhadinhos, muita paz, muitas flores, muitas alegrias e

muitas energias renovadas.

Que esta passagem traga realmente renascimento, amor, esperança e libertação!

Você é uma pessoa muito especial!

"Disse Jesus: Eu vim para que tenham vida e vida completa!" (João 10:10b)

quinta-feira, 20 de março de 2008



20 de março de 2008
N° 15546 - Nilson Souza


A música da vida

Dona Ana é um show. Já a tinha visto dirigindo o seu fusquinha no Fantástico, mas esta semana tive o prazer de ouvi-la numa entrevista mais demorada, no rádio. Fiquei encantado.

Ela falou de sua vida, de seu trabalho voluntário e de seus planos para o futuro. E passou tanta energia, tanta vibração positiva, tanta sinceridade e tanta ternura na sua fala que tive vontade de aplaudi-la, mesmo estando sozinho dentro do meu carro e com as duas mãos no volante.

Aplaudi com o coração e com um misto de lágrimas e risos que brotaram espontâneos. Dona Ana Variani é uma fenômeno comovente.

Ela tem 97 anos, mora em Bento Gonçalves e pretende renovar a sua carteira de habilitação no mês que vem. Dirige diariamente o seu fusquinha 74, num trajeto entre sua casa e o Lar do Ancião, para o qual dá assistência social gratuita.

Lá estão hospedados cerca de 60 idosos, todos mais jovens do que ela. Mas dona Ana, com o seu metro e meio de altura e uma disposição incomum, movimenta-se entre os velhinhos, dá comida na boca para uma vovozinha, conversa com outra e deixa no ambiente o perfume de seu vigor quase centenário.

Parece um personagem de filme, uma espécie de gnomo do bem, capaz de apaziguar o mundo com o toque de sua mão trêmula e manchada pela passagem do século.

É uma mulher solidária, mas também determinada na busca de seus objetivos. Agora mesmo, resiste bravamente ao desejo do filho de afastá-la da direção do carro - com o compreensível propósito de preservá-la dos riscos de um trânsito cada vez mais agressivo e perigoso. Os argumentos de dona Ana, porém, são irrefutáveis:

- Dirigir é o meu único prazer. E eu ainda tenho boa vista e estou no meu juízo.

Mais juízo é impossível. De tão ajuizada, foi transformada em garota-propaganda da prefeitura de sua cidade natal, a qual promove com desenvoltura.

No início do mês, foi homenageada pelo governo do Estado com o Troféu Ana Terra, em reconhecimento ao seu trabalho social e comunitário. Nada mais adequado.

Dona Ana - forte, corajosa, capaz de suportar privações e de reconstruir vidas - poderia muito bem ser uma daquelas mulheres extraordinárias da literatura de Erico Verissimo.

Outro dia, vendo uma entrevista de Oscar Niemeyer, centenário e lúcido, falando sobre sua extensa obra e seus projetos atuais, fiquei pensando: "Bom mesmo é o arquiteto que o criou".

Agora, vendo e ouvindo dona Ana falar de sua vidinha simples, de sua obra maravilhosa e de seus planos futuros, ouso parafrasear o reconhecido projetista para fazer o fechamento deste comentário: "A vida talvez seja mesmo apenas um sopro, mas algumas pessoas conseguem transformá-lo numa bela música".

Uma ótima quinta-feira Santa para todos nós ainda que com temperatura super elevada por aqui, conforme pode-se ver aí a esquerda na Previsão do Tempo.

quarta-feira, 19 de março de 2008



19 de março de 2008
N° 15545 - Martha Medeiros


Furor tibetano

Semana passada, para explicar a uma amiga certas alterações do meu estado de espírito, fiz uma analogia: disse a ela que me sentia como se tivesse vivido durante muitos anos no Tibete e de repente tivessem me transferido para o Timor Leste.

Ela riu do contraste. Até dias atrás, quando alguém mencionava o Tibete, estava sugerindo um local de absoluta paz, perfeito para meditação, introspecção, suavidade.

Tibete, para mim, sempre foi sinônimo de calmaria, felicidade plena, compreensão mútua, dias longos, as montanhas em total comunhão com os seres humanos, enfim, um lugar hipoteticamente paradisíaco - não fosse o tédio e a facilidade de se pegar no sono.

Pois o Tibete está nas páginas de todos os jornais não por causa desse astral onírico e antiestresse, mas pelos conflitos e protestos dos tibetanos contra a dominação chinesa em Lhasa, a capital que virou mais um centro nervoso do mundo, o que, aparentemente, está em total contradição com os dogmas budistas.

Quem conhece bem a história tumultuada do Tibete sabe que essa ilusão de ele ser um país transcendental é apenas isso, uma ilusão - mas quem de nós não precisa de uma ilusãozinha de que a paz sobrevive em algum lugar?

Quando vi as imagens de monges chutando vidraças e atirando pedras em edifícios públicos, pensei: o mundo acabou mesmo. Monges tomados pela raiva! Revoltados! Agindo como estudantes da UNE em 1968! Como dói o desfacelamento de um estereótipo.

Mais uma vez um clichê se confirma: nada é o que parece ser. Nossa irritante mania de rotular tudo e todos impede que a gente enxergue o óbvio: pessoas calmas explodem, pessoas egoístas podem ser generosas, pessoas inteligentes fazem burradas, pessoas inexperientes acertam, pessoas chiques agem de modo horroroso, pessoas idosas têm muita energia - vai depender da situação.

Quando me perguntam se sou corajosa, respondo: corajosa para o quê? Para viajar sozinha, para entrar numa favela à noite, para brigar pelas minhas idéias, para matar uma lagartixa?

Sou corajosa e medrosa, varia conforme a circunstância. Você, por exemplo, é uma pessoa alegre?

Depende onde e quando: alegre pra missa de sétimo dia, alegre pra feriado na praia, alegre pra reconhecer firma em cartório, alegre pra aumento de salário?

Ninguém corresponde 100% a um rótulo. Vale para todos os adjetivos e todos os pronomes pessoais: eu, tu, ele, nós, vós e eles, os tibetanos, esses odaras que também perdem a cabeça quando estão em jogo seus ideais.

Ainda que com chuva, conforme previsão que você pode conferir aí a esquerda no Blogger, que tenhamos todos uma ótima quarta-feira Santa.

terça-feira, 18 de março de 2008



18 de março de 2008
N° 15544 - Liberato Vieira da Cunha


Mutum

Mutum é um lugar que existe em mais uma dimensão: primeiro ele foi apenas um ponto da geografia de Minas Gerais, um lugar encantado e remoto, com a singela e terrível beleza de um fim de mundo, terra fértil mas quase desabitada;

depois, ele existiu na imaginação de Guimarães Rosa, que em 1956 lançou o livro Campo Geral, dentro do qual há uma novela de mesmo nome passada lá no Mutum, com a história do menino Miguilim; agora, ganhou forma e cartaz pelo filme de Sandra Kogut que assim se chama, Mutum.

Está nos cinemas e precisa ser visto por todo mundo que alguma vez foi menino tímido, criança amada e desamada, pequeno ser humano desejoso de conhecer o mundo para lá do horizonte familiar e/ou que tenha precisado haver-se com alguma perda forte.

O filme não requer nenhuma preliminar para ser apreciado, mas necessita de atenção, quando menos para o som das falas, sotaque muito diverso dos que conhecemos na redondeza ou pela televisão. A história se passa num confim do sertão, local afastado de tudo, depois do qual nada mais há; o tempo é agora, sem disfarces;

o ambiente, uma fazenda pobre, onde vive uma família patriarcal, pai, mãe, avó paterna, empregados e cinco filhos, um deles o Miguilim, aliás Thiago (personagem feito com muito acerto por Thiago da Silva Mariz).

O enredo é difícil de resumir sem machucar ou avançar demais: Thiago, de seus 9 anos, está voltando para casa, depois de haver ido à cidade para ser crismado, e vai reencontrar a família: seu querido irmão Felipe (Wallison Felipe Leal Barroso, o ator), mais jovem e mais tranqüilo que ele, seus outros irmãos, sua avó quieta, e principalmente a mãe (Izadora Fernandes, exemplar no papel) e o pai, um truculento fazendeiro em crise, por um motivo dos mais relevantes para um patriarca como ele - sua mulher, a mãe de seus filhos, uma pessoa triste a partir dos olhos, talvez o esteja traindo.

Tem ainda o tio Terez, irmão do pai, que é quem leva e traz Miguilim/Thiago. Mais não se deve dizer agora, antes de o prezado leitor ir até o cinema.

Ou ir até o livro de Guimarães Rosa, que, como quase sempre ocorre, é melhor que o filme, pelas nuances que pode colocar à disposição do leitor.

Mas dizer isso não implica diminuir o filme, absolutamente: ele nos transporta para aquela secura afetiva da relação do menino com o pai, que julga seu filho alguém que o menospreza, assim como nos mergulha no oceano do afeto de Thiago com sua mãe, um daqueles momentos da vida em que o reconforto engolfa e supera qualquer dificuldade.

Sandra Kogut, em seu filme, teve a sabedoria de deixar implícitos certos momentos narrativos que Guimarães Rosa também deixou na sombra, o que é um acerto enorme em matéria de cinema, esta arte jovem que tantas vezes apela para o óbvio em nome da clareza.

E não cabe dizer mais, porque seria revelar o que o espectador tem que viver lá, na hora.

O filme conseguiu reunir de novo, num mesmo relato, a peculiar mescla de delicadeza, profundidade e atenção para os afetos mais antigos da experiência humana.

Se amanhã será quarta-feira santa, hoje deve ser terça-feira santa. Que ela seja ótima para todos nós.

segunda-feira, 17 de março de 2008



17 de março de 2008
N° 15543 - Kledir Ramil


Coisas estranhas

Nosso dia-a-dia é cheio de coisas estranhas. Coisas com as quais nos acostumamos a conviver, mas se formos pensar direito, parecem de outro mundo. Apesar de nós mesmos termos inventado ou descoberto.

Eletricidade - é a prova de que Deus existe, ou pelo menos de que "há muito mais coisas entre o céu e a terra do que possa imaginar nossa vã filosofia". Não se vê, não se ouve e não tem cheiro, ou seja, é um negócio sobrenatural. Você só descobre o que é a eletricidade quando enfia os dois dedos na tomada e sente uma força poderosa, que queima até a raiz dos cabelos.

Lâmpada - um bulbo de vidro, com uma pequena resistência em forma de mola, que ao ficar incandescente ilumina tudo à sua volta. Não me pergunte como. Pra mim, é coisa do além.

Telefone celular - aparelho que toca musiquinhas chatas, em alto volume. Serve para tirar fotografias, escutar mp3, enviar torpedos e compartilhar seus problemas pessoais com as pessoas à sua aolta. Ah, e também para conversar com os outros, à distância.

Saca-rolhas - um pedaço de ferro retorcido, imitando um rabo de porco, que serve para abrir garrafas de vinho. O homem já inventou coisas admiráveis, no entanto o vinho continua sendo tampado com uma bucha de cortiça e destampado com um parafuso. Deve ser por uma questão sentimental. Ou talvez esteja aí o segredo de certos bouquets e sabores. Detalhe para o saca-rolhas de canhoto, com a espiral pro outro lado.

Elevador - caixa grande, cheia de botões, usada para carregar verticalmente pessoas de um andar a outro. Substitui, com vantagens, a escada, desde que haja energia elétrica.

Porta automática - um tipo de porta inteligente que percebe que você chegou e quer entrar. Ou sair. É uma evolução do famoso portão da caverna dos tesouros de Ali Babá, que funcionava ao comando da frase mágica: abre-te Sésamo!

Internet - entidade abstrata que cresce de forma assustadora e descontrolada. Há teorias que sustentam que é um vírus de origem alienígena.

Computador - máquina de escrever que também serve para jogar paciência. O grande prejuízo é que, ao escrever, o computador não imprime automaticamente cada letra.

Você precisa primeiro terminar o serviço. Depois, vai necessitar um outro equipamento para fazer essa função. Claro, você terá que comprar uma impressora.

Mas o pior não é isso, é o preço do cartucho de tinta que é preciso trocar o tempo todo. Mais uma armadilha do mercado de consumo, por sua vez, uma das coisas mais estranhas inventada pelo homem.

Ótima segunda-feira e uma excelente semana santa. Prepare-se para o coelhinho no domingo

domingo, 16 de março de 2008

Não esqueça de desligar o rádio antes de assitir ao vídeo.


DANUZA LEÃO

Rejeição e culpa

Para um filho, os pais devem amá-lo sobre todas as coisas e dedicar todos os momentos de sua vida a ele

NÃO É PRECISO muita coisa para que a gente se sinta rejeitado. A tendência natural é pensar que ninguém gosta da gente, ou pelo menos não tanto quanto se precisa. E disso se precisa muito.

Começando pelo básico: alguém acha que é -ou foi- amado suficientemente pelo pai e pela mãe?

Claro que não. E aquele dia em que os dois saíram para jantar fora e ir ao cinema? Você, com cinco anos e resfriado, queria que eles ficassem a seu lado, contando uma história, e dessa noite nunca se esqueceu.

É a maior prova de que eles jamais gostaram de você. E quando eles se separaram, a culpa não foi toda sua?

E quando o pai, já separado, foi convidado para aquele fim de semana de sonho, e propôs trocar o tal fim de semana que ia passar com o filho; ele se sentiu tão rejeitado e abandonado quanto um menino de rua, e o pai vai passar o fim de semana - e o resto da vida- massacrado pela culpa.

As crianças vão para o analista se queixar dos pais, os pais vão para o analista para dizer que foram péssimos pais, e assim la nave va.

Mas um dia essas crianças crescem, se casam, têm seus filhos, se separam, se apaixonam e agem com seus filhos exatamente como seus pais agiram com ele.

Vão todos para o analista, claro, e aos 50, 60 anos, continuam se queixando; um de ter sido rejeitado, o outro sofrendo por não ter dado mais atenção aos filhos.

Todos têm razão, claro, mas querer que um pai ou uma mãe aos 25, 30 anos, em plena juventude, com os hormônios explodindo, passem as noites em casa contando histórias para os filhos na hora de dormir é contra qualquer lei da natureza, e um dia eles vão entender.

Qual seria a solução? Ter filhos aos 40, depois de ter feito todas as loucuras? Não sei. Para um filho, os pais devem amá-lo sobre todas as coisas, e dedicar todos os momentos de sua vida a ele.

Eu conheço um que, aos 45, leva a namorada para a praia para vê-lo surfar, e ai dela se se virar para pegar um sol nas costas. E ai daquele pai que uma noite não pode passar uma hora jogando um joguinho na televisão porque precisa entregar um trabalho no dia seguinte.

Se tiver marcado um cinema, esse filho, aos 40, ainda vai lembrar do assunto, achando que seu pai e sua mãe não foram como deveriam ter sido -e sofrendo, claro.

Queremos atenção total dos que nos cercam, sobretudo quando somos crianças, e quando envelhecermos é que vamos saber o que é falta de atenção de verdade. Para que isso não aconteça, é preciso ter vida própria, e desde cedo.

Mas quantos momentos teriam sido tão bons, se mãe e filho pudessem se dizer francamente "naquele dia quase te matei, de tanta raiva", e darem uma boa risada, lembrando.

Porque isso acontece, entre pessoas normais. E falar também dos momentos, jamais verbalizados, em que a mãe amou -e ama- esse filho loucamente, mais que qualquer coisa na vida, e que depois que ele cresceu nunca mais disse, porque não faz parte da nossa cultura fazer declaração de amor a filho grande, até porque ele é o primeiro a não querer ouvir essas coisas depois que cresce, olha que mundo mais louco.

Ah, se a gente pudesse botar eles no colo quando desconfia que estão tristes, e abraçar, apertar, cobrir de beijos, como quando eram pequenos; mas como eles cresceram, não se pode. Mas ah, se eles soubessem; ah, se a gente conseguisse dizer.

danuza.leao@uol.com.br