sábado, 10 de maio de 2008



10 de maio de 2008 | N° 15597
Nilson Souza


Vidas no sótão

O ciclone que causou estragos no Estado me prestou um grande favor no último sábado: sem computador nem televisão, por falta de energia elétrica, aproveitei o dia para organizar parte de minha biblioteca, que fica no sótão da casa.

O sótão é o porão de cima, aquele lugar pouco freqüentado dos sobrados onde a gente costuma depositar coisas supérfluas.

O meu, porém, é habitado por fantasmas vivos e mortos - os personagens imaginados por García Márquez, Vargas Llosa, Isabel Allende, Erico Verissimo, Jorge Amado, Herman Hesse, Somerset Maugham, Anatole France e vários outros inquilinos de múltiplas nacionalidades.

Sentei num banquinho de madeira, daqueles de tomar mate em galpão, e passei horas pincelando a poeira das páginas, parando de vez em quando para reler um ou outro trecho antes de devolver o volume à estante. Meus livros contam muitas vidas, inclusive a minha.

Ainda tenho o Coração, de Edmundo de Amicis, que ganhei aos 11 anos graças à generosidade dos meus colegas de quinta série, que me escolheram o Melhor Companheiro da turma, numa antiga promoção do Rotary Clube.

Guardo com carinho um Clarissa, de Erico, comprado em sebo para confirmar a leitura que fiz na biblioteca da Base Aérea, onde prestei serviço militar.

Na mesma época conheci Sidarta e Demian, de Hesse, encantos da Juventude. Já na faculdade li As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, e, coisa obrigatória daqueles anos 70, As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Ainda não fecharam.

Cada livro me lembra uma fase da minha vida, da minha carreira. Realinhei obras didáticas do Curso de Contabilidade, todos os manuais da minha atual profissão até chegar no imperdível Elementos do Jornalismo, de Bill Kovack e Tom Rosenstiel, e folheei com saudades meus compêndios de Educação Física, passando pelo fichário das aulas de recreação que preparei para o meu estágio numa escolinha de periferia.

Depois vieram as paixões adultas - Casa dos Espíritos e demais Allendes, Cem Anos de Solidão e outros Márquez, Memorial do Convento e todos os Saramagos que consegui reunir.

Todos eles receberam um lustro de carinho e voltaram para seus lugares no porão de cima do meu sobrado azul. Já escurecia quando devolvi o sótão aos seus verdadeiros donos - os amoráveis fantasmas da literatura e alguns construídos à imagem e semelhança de minhas vidas passadas.

terça-feira, 6 de maio de 2008



06 de maio de 2008
N° 15593 - Cláudio Moreno


Vale a pena

Cantado e exaltado por todos os poetas, o amor, alvo da busca incessante de qualquer homem ou mulher que esteja vivo, sempre foi visto como um perigo incontornável. Ninguém o considera inofensivo; todos respeitam o seu poder, pois sabem o quão facilmente ele pode se transformar em dor e sofrimento.

Ao longo de incontáveis milênios, a espécie humana aprendeu muito bem essa lição, e não é por acaso que todas as línguas do mundo falem nas "feridas do amor", que doem demais, custam muito a fechar e deixam cicatrizes para sempre.

Os gregos, com sua incomparável imaginação, expressaram tudo isso no belo mito de Psiquê e de Eros, o jovem deus do Amor.

Psiquê era tão bonita que os próprios poetas não tinham palavras para descrevê-la. Embora seu pai e sua mãe fossem mortais como nós, as pessoas que a viam ficavam tão estupefatas com sua beleza que a tomavam por uma filha da própria deusa Afrodite.

Tanto sua fama se espalhou que começaram a chegar, de toda a parte, peregrinos que vinham prestar devoção àquela nova divindade.

Quando Afrodite percebeu que seus santuários estavam ficando vazios, sua cólera foi terrível: convocou seu filho, Eros, o belo deus de asas brancas, que vivia percorrendo os palácios e as aldeias para semear, com suas flechas invisíveis, a desconcertante loucura do amor.

"Vais castigá-la por mim; faz com que ela se apaixone pelo mortal mais desprezível", disse a deusa, sem imaginar a surpreendente reviravolta que sofreria seu plano: ao ver a linda Psiquê adormecida, Eros ficou tão perturbado que deixou cair sobre o próprio pé a flecha que ia lançar. O feitiço tinha atingido o feiticeiro, e ele se apaixonou perdidamente pela princesa.

É claro que, no fim de tudo, depois de muitas peripécias, a jovem vai se tornar imortal e os dois vão viver felizes para sempre. Antes disso, porém, houve um momento em que Psiquê pensou que jamais iria casar. Intimidados por sua beleza, os homens a admiravam à distância, mas não ousavam se aproximar.

O pai, preocupado com a filha, foi perguntar ao oráculo de Apolo se ela teria marido; a resposta o deixou aterrorizado: "Não é com um homem que Psiquê vai casar, mas com um monstro cruel, feroz e traiçoeiro, que voa pelos ares e a todos queima com sua chama e fere com suas pontas aguçadas.

Ninguém está livre dele, nem mesmo os próprios deuses". Nós, que conhecemos o desfecho da história, sabemos que o oráculo estava falando de Eros - e não estranhamos as sombrias palavras que ele usou para se referir ao amor, porque sabemos que é assim mesmo.

Amar é tão perigoso e fascinante quanto caminhar pela borda de um vulcão; é um risco terrível, mas, como diz muito bem Edgar Morin, é sempre um belo risco a correr.

domingo, 4 de maio de 2008


DANUZA LEÃO

A vida a dois

E os amigos? A mulher implica com os dele, e ele com os dela, o que é um dos problemas do casamento

O GRANDE problema da vida é que, mesmo quando duas pessoas são muito próximas, uma delas quer, com freqüência, exatamente o oposto do que quer a outra -e isso nos mais variados campos.

A mãe quer que o filho vá para a cama às dez horas -razão suficiente para que ele queira ir às três da manhã. E como resolver esse problema, a não ser usando da autoridade no que ela tem de mais antipático e antidemocrático?

Ponderar, explicar que a aula no dia seguinte começa cedo, tentar entrar num acordo, é apenas uma ilusão; cada um quer fazer o que quer e bem entende, e ceder, em nome do bom senso e da civilidade, deixa uma das partes -a que cede- de péssimo humor.

Com toda a razão, aliás. Existe coisa mais insuportável do que ir ver o filme que o namorado quer quando a vontade é ver um outro?

Jantar no restaurante que o amigo escolheu, fazer a viagem que o marido achou mais interessante, na época que ele decidiu ser a melhor? Mas para não ficar só é preciso ceder, e geralmente quem cede é sempre o mesmo -uma grande injustiça, aliás.

A marca e a cor do carro, o bairro onde vão morar, o tipo de comida que a empregada faz, as frutas que são compradas na feira, tudo costuma ser decidido sempre pelo gosto de um dos dois -e o outro que se habitue.

Só num ponto não há acordo: quem não gosta de alho não vai tolerar, jamais, que o outro chegue em casa com a prova do crime cometido no almoço; este é um tema sem nenhuma esperança de solução.

E os amigos? A mulher costuma implicar com os dele, e ele com os dela, o que é um dos grandes problemas do casamento.

Mas como estão os dois apaixonados e dispostos a qualquer coisa para que dê certo, cada um cede -olha aí a palavra de novo- um pouco; um dia saem com os dela, no outro com os dele, o que significa que sempre um vai estar com um certo mau humor quando chegar em casa -mas tudo pelo amor.

Ah, mas por que não se pode fazer apenas o que se quer? Poder até pode, mas para isso é preciso abrir mão de um marido, namorado ou caso -o que tem sido, aliás, a escolha de muita gente, nos últimos tempos. Mas será esta a solução?

sábado, 3 de maio de 2008



04 de maio de 2008
N° 15591 - Martha Medeiros


Doidas e santas

"Estou no começo do meu desespero/e só vejo dois caminhos:/ou viro doida ou santa". São versos de Adélia Prado, retirados do poema A Serenata.

Narra a inquietude de uma mulher que imagina que mais cedo o ou mais tarde um homem virá arrebatá-la, logo ela que está envelhecendo e está tomada pela indecisão - não sabe como receber um novo amor não dispondo mais de juventude. E encerra: "De que modo vou abrir a janela, se não for doida? Como a fecharei, se não for santa?".

Adélia é uma poeta danada de boa. E perspicaz. Como pode uma mulher buscar uma definição exata para si mesma estando em plena meia-idade, depois de já ter trilhado uma longa estrada onde encontrou alegrias e desilusões, e tendo ainda mais estrada pela frente?

Se ela tiver coragem de passar por mais alegrias e desilusões - e a gente sabe como as desilusões devastam - terá que ser meio doida. Se preferir se abster de emoções fortes e apaziguar seu coração, então a santidade é a opção. Eu nem preciso dizer o que penso sobre isso, preciso?

Mas vamos lá. Pra começo de conversa, não acredito que haja uma única mulher no mundo que seja santa. Os marmanjos devem estar de cabelo em pé: como assim, e a minha mãe???

Nem ela, caríssimos, nem ela.

Existe mulher cansada, que é outra coisa. Ela deu tanto azar em suas relações que desanimou. Ela ficou tão sem dinheiro de uns tempos pra cá que deixou de ter vaidade. Ela perdeu tanto a fé em dias melhores que passou a se contentar com dias medíocres. Guardou sua loucura em alguma gaveta e nem lembra mais.

Santa mesmo, só Nossa Senhora, mas cá entre nós, não é uma doideira o modo como ela engravidou? (não se escandalize, não me mande e-mails, estou brin-can-do).

Toda mulher é doida. Impossível não ser. A gente nasce com um dispositivo interno que nos informa desde cedo que, sem amor, a vida não vale a pena ser vivida, e dá-lhe usar nosso poder de sedução para encontrar "the big one", aquele que será inteligente, másculo, se importará com nossos sentimentos e não nos deixará na mão jamais. Uma tarefa que dá para ocupar uma vida, não é mesmo?

Mas além disso temos que ser independentes, bonitas, ter filhos e fingir de vez em quando que somos santas, ajuizadas, responsáveis, e que nunca, mas nunca, pensaremos em jogar tudo pro alto e embarcar num navio-pirata comandado pelo Johnny Depp, ou então virar uma cafetina, sei lá, diga aí uma fantasia secreta, sua imaginação deve ser melhor que a minha.

Eu só conheço mulher louca. Pense em qualquer uma que você conhece e me diga se ela não tem ao menos três dessas qualificações: exagerada, dramática, verborrágica, maníaca, fantasiosa, apaixonada, delirante. Pois então. Também é louca. E fascina a todos.

Todas as mulheres estão dispostas a abrir a janela, não importa a idade que tenham. Nossa insanidade tem nome: chama-se Vontade de Viver até a Última Gota.

Só as cansadas é que se recusam a levantar da cadeira para ver quem está chamando lá fora. E santa, fica combinado, não existe.

Uma mulher que só reze, que tenha desistido dos prazeres da inquietude, que não deseje mais nada? Você vai concordar comigo: só sendo louca de pedra.

Ótimo domingo...Excelente iníco de semana para você.

Diogo Mainardi

Eu sou BBB- Você é BBB-

"Pelos critérios da Standard & Poor’s, o Brasil é um bom pagador. O fato de ser classificado como BBB- equivale a ter o próprio cadastro aprovado no crediário do Ponto Frio. Já dá para comprar um freezer a prazo no mercado financeiro mundial"

Gilberto Freyre chegou perto. Bem mais perto do que Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Em todas as suas obras, eles se dedicaram a interpretar o Brasil. Mais do que isso: eles se empenharam em definir o Brasil. E fracassaram. Quem finalmente realizou o feito foi a Standard & Poor’s. Seus analistas acabam de definir o Brasil como BBB-.

O país cabe inteirinho nessa nota. Pode jogar fora aquela sua cópia surrada de Casa-Grande & Senzala. O debate nacional está encerrado. O Brasil é BBB-. Eu sou BBB-. Você é BBB-. Um dia, com certa dose de sorte, poderemos nos tornar BBB+.

Pelos critérios da Standard & Poor’s, o Brasil é um bom pagador. O fato de ser classificado como BBB- equivale a ter o próprio cadastro aprovado no crediário do Ponto Frio.

Já dá para comprar um freezer a prazo no mercado financeiro mundial. Depois de obter o reconhecimento internacional, o Brasil foi tomado por uma onda de euforia. O assunto contaminou todos os debates. Um professor de medicina da Universidade Federal da Bahia declarou que o batuque do Olodum é um exemplo de primarismo musical.

O presidente do Olodum reagiu comparando-o a Adolf Hitler, e acrescentou que o grupo, como o Brasil, tem sua "qualidade reconhecida internacionalmente". Isso significa que, numa hipotética Standard & Poor’s da música, o primarismo do Olodum estaria na categoria BBB-.

Se o risco de tomar um calote por aqui diminuiu, o risco de tomar um tiro na testa continuou igual. No mesmo dia em que os jornais comemoravam o BBB-, conferido pela Standard & Poor’s, O Globo publicou uma reportagem sobre os 18.000 cadáveres recolhidos todos os anos das ruas do estado do Rio de Janeiro.

Em média, cada cadáver demora sete horas para ser recolhido pelo Corpo de Bombeiros. Esse também é um bom critério para classificar os países: o grau de naturalidade com que se relatam os horrores cotidianos. Em 23 de abril, O Globo deu a seguinte notícia, escondida numa página interna, num bloco de 7 por 7 centímetros:

"Parte do corpo de uma mulher foi queimada ontem em plena Avenida Brasil, na altura de Guadalupe. Segundo testemunhas, homens trouxeram o corpo da Favela da Eternit. A mulher teve cabeça, braços e pernas arrancados. O tronco, então, foi colocado dentro de pneus para que os bandidos ateassem fogo".

Depois disso, nada mais. A mulher esquartejada e incinerada sumiu do noticiário. Ninguém se espantou com sua morte. Ninguém tentou interpretá-la. Pode jogar fora seu Gilberto Freyre.

Pode desmembrá-lo, colocá-lo dentro de pneus e atear-lhe fogo. O Brasil é ainda mais rudimentar do que ele supunha. Nosso primarismo é ainda mais bestificante. Aqui só resta um Olodum mental, um dum-dum-dum mental.


Diamantes descartados

"Países vencedores são os que operam bem na nova economia do conhecimento. Nessa nova economia, a riqueza mais preciosa são os cérebros bem lapidados. Lamentavelmente, jogamos no lixo essa matéria-prima"

Imaginem uma empresa cuja especialidade é receber cristais para lapidar. Quando aparece um diamante no meio, como não sabe lapidá-lo, ela o joga fora. Essa empresa existe? Infelizmente, existe. O seu nome: escola.

Ocasionalmente, despontam alunos muito mais talentosos que os demais. Estima-se que somem 3% da população. São diamantes em meio ao cascalho e ao cristal.

Como faz sentido dar um tratamento apropriado ao tipo de talento (e à idade própria para a intervenção), todos os países de educação bem-sucedida criam programas especiais para os talentosos. Na Inglaterra e na França, eles ganham acesso às melhores escolas.

Nos Estados Unidos, há escolas destinadas a eles (magnet schools) ou programas especiais dentro das escolas regulares (honors programs). Na Rússia (e em Cuba, por sua influência), há colégios para os talentosos nas artes, nos esportes e nas áreas acadêmicas.

No Brasil, quando vêm de famílias mais ricas, os talentosos são identificados e recebem a educação apropriada. Mas e quando são de famílias pobres? São ignorados pela escola.

Tanto na teoria tupiniquim quanto na prática, eles devem ser "integrados" aos demais. No entanto, como já foi demonstrado pela boa pesquisa, os talentosos são impedidos de desabrochar no tipo de escola que o Brasil oferece. Desajustam-se ou fingem ser medíocres, a fim de evitar conflitos e embaraços. São diamantes descartados.

Ilustração Atômica Studio

Diante da recusa dos sistemas públicos em lapidar esses diamantes, algumas organizações empresariais resolveram tomar o problema em suas mãos. Já faz tempo, a Fundação José Carvalho recrutava jovens talentosos no Recôncavo Baiano, para que freqüentassem o seu próprio colégio.

O Bom Aluno, no Paraná, também recebe alunos talentosos de escolas públicas, dando a eles bolsas para que estudem em bons colégios privados. O Ismart também seleciona alunos pobres da rede pública, oferece um programa de reforço escolar durante dois anos e concede bolsas de estudos para os melhores colégios do Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza.

A escola da Embraer (operada pelo Pitágoras) recruta todos os seus alunos nas escolas públicas das vizinhanças de São José dos Campos, mediante concurso. Como o sistema de seleção mostrou-se muito competitivo, os aprovados são alunos extraordinários.

Embora seja cedo para apresentar resultados definitivos, os alunos do Ismart tendem a se colocar acima da média de seus colegas, nos colégios freqüentados (que, segundo o Enem, estão entre os vinte melhores do Brasil). A escola da Embraer é a 17ª melhor do Brasil.

Ou seja, são alunos pobres ou muito pobres cujo excepcional desempenho escolar prenuncia uma carreira profissional brilhante.

Não obstante, além de praticamente não haver programas para os mais talentosos, as autoridades não gostam de ver tais alunos pescados de suas péssimas escolas públicas.

Acham errado premiar alguns poucos com uma educação compatível com o seu talento. Assim sendo, esses programas encontram problemas quando tentam aplicar os testes que permitem identificar os diamantes que vão lapidar.

Os diamantes não devem ser lapidados, isso seria injusto para com o simples cascalho, que, quando lapidado, tende a ser mais opaco. É o princípio da igualdade forçada de resultados, aplicado pelo expediente de tolher os mais talentosos. É uma justiça social muito caolha, pois os ricos mais talentosos não são desperdiçados.

Hoje, os países vencedores são aqueles que operam bem na nova economia do conhecimento. E, nessa nova economia, a riqueza mais preciosa são os cérebros bem lapidados. Lamentavelmente, jogamos no lixo essa matéria-prima.

Segundo o geneticista russo Wladimir Efroimson, "o talento não é uma propriedade privada, é uma propriedade pública e ninguém tem o direito de desperdiçá-lo".

De fato, é uma espantosa burrice jogar fora o único recurso que nos daria acesso à economia do conhecimento. É cometer o haraquiri do desenvolvimento. Está na hora de refletir sobre as nossas políticas públicas, para que não continuemos a perder essa riqueza.

Claudio de Moura Castro é economista (Claudio&Moura&Castro@attglobal.net)

CARINA RABELO

Revel@dos pela web

A rede se tornou um poderoso instrumento para artistas se lançarem e olheiros encontrarem novos talentos

PRECOCE Mallu Magalhães, 15 anos, estourou com apenas quatro canções no MySpace, em dezembro do ano passado. Em três meses, já recebia propostas de gravadoras e convites para shows. Foi um dos sucessos da Virada Cultural, em São Paulo, em abril

Ela só precisou de um violão para ficar famosa. Depois de colocar sua primeira música no site MySpace, composta por ela e gravada na sua própria casa em dezembro do ano passado, Mallu Magalhães se tornou uma referência no cenário nacional de rock alternativo.

Em apenas três meses, a garota de 15 anos e quatro canções já estava na agenda de festivais de música independente de São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Rio de Janeiro.

Desde então, não pára de receber ligações de gravadoras que batalham contratos de exclusividade. Na última semana de abril, a jovem consolidou seu sucesso repentino. Mallu foi uma das atrações da Virada Cultural, festival gratuito anual na capital paulista, que reuniu 3,5 milhões de pessoas neste ano.

“É maravilhoso poder cantar para uma multidão a céu aberto”, diz a menina, de voz doce e atitude madura, que desde os cinco anos ouve Beatles e Led Zeppelin, tocados no violão ou assobiados pelo seu pai, um engenheiro apaixonado por música.

“Meus pais me apóiam muito e entendem que às vezes preciso faltar às aulas para ensaiar”, diz Mallu, que passa cerca de seis horas por dia nas lojas à procura de CDs raros e, no resto do tempo livre, pesquisa na internet sobre artistas de canções folk.

Histórias semelhantes à de Mallu pipocam pelo Brasil. Nem em seus mais distantes sonhos a paulista Laura Neiva, 14 anos, que nunca fez aulas de teatro, imaginava receber um papel importante no filme À deriva, de Heitor Dhalia, diretor do longa O cheiro do ralo.

Através de uma despretensiosa página no Orkut, a menina foi localizada pela equipe de produção do filme em setembro do ano passado e convidada para testes. “Achei uma loucura.

Como alguém podia achar que eu aceitaria um convite feito pela internet?”, conta a garota. Numa coincidência do destino, uma das suas amigas conhecia um professor de teatro que reconheceu a pessoa que deixou o recado no Orkut.

Três meses depois, Laura aceitou o convite. Após três dias de oficina de teatro, ela esbanjou talento e ganhou o papel de filha da atriz Débora Bloch com o ator francês Vincent Cassel.

“Ela superou as nossas expectativas. Procurávamos apenas uma menina bonita, desconhecida do público. Achamos mais do que isso. Uma futura grande atriz”, garante Chico Acioly, preparador de elenco do filme.

REVELAÇÃO Laura Neiva, 14 anos, foi descoberta no Orkut pelos produtores do filme À deriva, de Heitor Dhalia. Após três dias de oficina de interpretação, a garota, que nunca estudou teatro, ganhou o papel de filha de Débora Bloch e do ator francês Vincent Cassel na produção

A indústria cultural precisa se reciclar e apresentar “caras novas” ao mercado todos os anos, o que fomenta uma rede de “olheiros” (caçadores de talentos), ávidos por novas possibilidades de investimento. São profissionais que navegam diariamente por sites, blogs, fotologs e comunidades em busca de artistas desconhecidos.

“A gente está sempre de olho no que rola pela internet, e usa como critério o que é bem feito e o que pode render um retorno do público”, afirma Luiz Pimentel, gerente de conteúdo do MySpace Brasil. A internet, vista no passado como uma ameaça às gravadoras, se tornou parceira das empresas.

“A rede virtual facilita a divulgação de produtos e o encontro de novos talentos, além de democratizar a comunicação com o público”, opina Marcelo Soares, diretor de novos negócios da Som Livre.

Com a rede, a resposta do mercado é rápida e pode surpreender até mesmo os mais talentosos. Fechar contratos com grandes empresas e fornecer conteúdos para sites de marcas consolidadas não estava nos planos de André Czarnobai, 28 anos, quando ele estudava jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Durante uma greve da faculdade em 1997, ele decidiu se comunicar com os amigos via e-mail através de um tipo de publicação informal de baixo custo, conhecida entre jornalistas como fanzine. Os textos agradaram tanto que, em quatro meses, André e oito colaboradores transformaram o fanzine na revista eletrônica Cardosonline, em homenagem ao apelido que o autor tinha na faculdade.

Em 2001, a revista tinha cinco mil assinantes e mais de 300 colaboradores. Em 2002, o jovem inquieto descobriu o mundo dos blogs e, desde então, percebeu que as suas idéias poderiam render bons contratos.

O sucesso dos seus textos humorísticos, que mesclam ficção e realidade em narrativas literárias, levou uma editora gaúcha a propor a compilação dos contos num livro.

Em 2005, foi publicada a obra Tavernas e concubinas, que levou Czarnobai a fechar parcerias com agências de publicidade no Brasil, México, na Colômbia e Argentina. Há um mês produziu um documentário para a GNT, presta “consultoria criativa” para o mercado audiovisual e já prepara um novo blog.

“Sempre procurei fazer tudo por conta própria em vias alternativas, sem esperar que as coisas aconteçam”, comenta. Com tantos bons exemplos de sucesso e possibilidades no mercado, cabe aos novos artistas usar, e abusar, da internet. É de graça e funciona.


03 de maio de 2008
N° 15590 - Cláudia Laitano


Da amizade

Um dos textos mais delicados já escritos sobre a amizade foi publicado no finzinho do século 16 por um autor que, ainda hoje, qualquer um lê com imenso gosto e interesse.

No ensaio Da Amizade, Montaigne (1533 - 1592) descreve sua relação com o filósofo e escritor francês La Boétie (1530 - 1563) ao mesmo tempo em que reflete sobre um sentimento que, segundo ele, supera em duração e profundidade o amor. A afeição pelo sexo oposto, segundo ele, "é mais ativa, mais aguda, mais áspera; é uma chama temerária e volúvel".

Já o valor da amizade "estende-se a todo o nosso ser: é geral e igual; temperada e serena; soberanamente suave e delicada, nada tendo de áspero nem de excessivo". Um trecho desse ensaio de Montaigne, transposto para o contexto amoroso, é citado por Chico na canção Porque Era Ela, Porque Era Eu.

Tentando explicar por que sua amizade com La Boétie havia sido tão intensa e lhe fazia tanta falta (a convivência estreita dos dois foi de apenas quatro anos, até a morte precoce de La Boétie, aos 33 anos), Montaigne explica da forma mais simples e profunda possível: "Porque era ele, porque era eu".

Se vivesse nos tempos de hoje e ainda por cima trabalhasse (na remota hipótese de poder conciliar a rotina de escrever seus ensaios com a obrigação de trabalhar), Montaigne talvez dedicasse algumas linhas ao ambiente de trabalho e ao tipo de relações de amizade que ali se estabelecem.

Relações que surgem não por escolha, mas por circunstâncias mais ou menos aleatórias, e que ainda assim ocupam na nossa vida um espaço central - quem consegue dedicar à família ou aos amigos por eleição oito horas diárias de convívio além de incontáveis almoços e cafezinhos?

Conhecemos profundamente um colega próximo de trabalho. Sabemos sua opinião sobre quase tudo, antecipamos suas reações, reconhecemos dias bons e dias ruins, sem, muitas vezes, chegarmos ao nível de intimidade que nos faz freqüentar sua casa ou trocarmos as confidências, que, em geral, guardamos para os amigos de eleição.

Por essa intimidade que nem sempre se completa, os colegas de trabalho entram e saem de nossa vida sem muita solenidade, como turistas que voltam para casa depois de um longo período de estada em um país estrangeiro.

Às vezes, a convivência se encerra nela mesma, e o ex-colega entra naquele rol indistinto de pessoas que passaram pela nossa vida: colegas de escola, amigos de amigos, ex-amantes.

Às vezes, a camaradagem no ambiente de trabalho, mesmo quando não chega à mesa de bar ou à festa de aniversário, impõe uma marca que ultrapassa a própria convivência. Como se chama esse tipo de amizade? Cadê Montaigne para falar sobre ela?

Convivi com o jornalista Tuio Becker (1943 - 2008) durante 10 anos, os primeiros da minha vida profissional. Ao longo de tantos almoços, cafezinhos e dias aparentemente iguais de rotina de trabalho, fui aprendendo com o Tuio não só as lições básicas, e indispensáveis, de cinema, teatro, música e dança, mas a essência do próprio jornalismo cultural - que é respeitar (e procurar conhecer) a tradição sem nunca perder o entusiasmo pela novidade.

Tuio distribuiu generosamente sua cultura e seu bom humor até o último dia de trabalho no jornal, há sete anos, quando se aposentou.

Formou e informou todos os que tiveram o privilégio de conviver com ele ao longo de mais de 30 anos de jornalismo. Por que ele fez tanta diferença na minha vida? Porque era ele, porque era eu.

sexta-feira, 2 de maio de 2008



02 de maio de 2008
N° 15589 - Liberato Vieira da Cunha


Hotel do Luar

Tem uma pousada em Porto Alegre, fronteira à Catedral Metropolitana, ao Palácio Piratini, à Assembléia Legislativa, ao Tribunal de Justiça, ao Theatro São Pedro, ao Memorial do Ministério Público.

É amplamente arejada, não dispõe de recepção, nem cobra diárias. Chama-se Marechal Deodoro e seus únicos leitos são os bancos de madeira e os canteiros gradeados.Trata-se de um estabelecimento de alta rotatividade.

De dia hospedam-se ali senhoras levadas a passeio por elegantes cães de sua particular estima e consideração, crianças que se divertem no rústico playground, namorados, funcionários das repartições vizinhas, fregueses de seu gratuito solarium, ruidosas delegações dos movimentos sociais, grevistas, filósofos, pichadores de estátuas, skatistas, jogadores de pelada, vendedores, políticos que cumprimentam conhecidos e desconhecidos com essa efusão tão própria da aproximação das eleições.

O grupo mais constante, no entanto, é o dos deserdados de esperança. À noite são praticamente os únicos que mantêm suas reservas nesse singularíssimo albergue risonho e franco - ou nem tanto.

No tempo das novelas de rádio, havia uma que se chamava Hotel do Luar. Não há mais novelas de rádio, mas a denominação é adequada ao vasto abrigo sob as árvores. Dizem que em Porto Alegre os moradores de rua não passam de umas poucas centenas.

Pois então a comissão de frente deve viver na Praça da Matriz. Dormem, em especial nesta época de ensaio de outono, transidos de frio. Preparam magras refeições em gastos utensílios de latão. Bebem, o que não raro os torna agressivos. Suplicam moedas aos passantes.

Há clochards em Paris, outsiders em Londres ou em Nova York, andarilhos em Roma ou em Madri. Mas, salvo engano, são pessoas que escolheram, por íntima vocação, esse tipo de hospedagem na vida. Não creio que seja o caso da mui leal e valorosa.

Aqui, os humilhados e ofendidos foram sentenciados sem culpa ao abandono no Hotel do Luar. Não é preciso preencher ficha de registro. E eles não tiram o sono dos múltiplos poderes que os rodeiam.

Ótima sexta-feira e um excelente fim de semana.

sábado, 26 de abril de 2008



27 de abril de 2008
N° 15584 - Martha Medeiros


Nós, os homens

Recentemente participei de um evento em um bar de Porto Alegre, onde foi organizado um sarau filosófico (totalmente informal e divertido, senão nem estaria lá) cujo tema a ser debatido era a felicidade.

Na hora de dar início ao papo, um dos anfitriões da noite pegou o microfone para me apresentar à platéia e então fui surpreendida. Ele disse mais ou menos o seguinte: "Eu deveria chamar agora uma das melhores colunistas do país, mas eu prefiro dizer que ela é um dos melhores colunistas do país, porque acho que ela já ultrapassou esse sexismo".

E me chamou. Tirado o susto de eu estar, na opinião dele, entre os the best of, o que me agradou é que não sou mesmo chegada a clubes da luluzinha e sempre defendi que homens e mulheres fazem parte da mesma turma, logo, adorei essa ampliação de mercado.

Foi um bom começo para debater a felicidade, sensação que se atinge, entre outras coisas, pelo espírito aberto e pelo bom humor, e não pelo complexo de perseguição: "Humm, será que ele foi machista e quis dizer que sou boa porque escrevo como um homem?".

O gênero humano é designado pelo masculino: quando se diz que o homem está destruindo o planeta, não significa que não haja mulheres contribuindo para a devastação. Somos todos homo sapiens, expressão que sugere uma figura de barba e bigode, mas também podemos ser chamados de pessoas, substantivo feminino plural. Tudo retórica, né?

Nós, os escritores. Nós, os brasileiros. Nós, os cozinheiros. De que sexo somos nós enquanto coletividade? Neka Menna Barreto, Roberta Sudbrack, Carla Pernambuco e Carol Heckmann, pra citar a categoria profissional homenageada nesta edição do Donna ZH, estão entre os grandes chefs de cozinha do Brasil, ao lado (não atrás, nem na frente) de Alex Atala, Felipe Bronze, nosso estimadíssimo José Antonio Pinheiro Machado e os franceses que aqui se instalaram, Philippe Remondeau, Claude Troisgros e Olivier Anquier, quase brazucas, não fosse o sotaque.

Toda essa confusa e delirante introdução é pra dizer que, além de não me importar em ser considerada "um deles" (sejam eles quem forem) e prometer me esforçar mais para continuar sendo um bom colunista (ops, quis dizer boa), a partir de agora vou me dedicar a ser também uma cozinheira ao menos razoável.

Porque é inadmissível que, ao contrário da maioria dos meus amigos machos, que são ótimos de forno e fogão, eu não consiga preparar meus próprios suflês, não saiba o ponto certo de cozinhar um camarão, não tenha noção de como se deixa uma batata frita bem sequinha, deixe sempre o bife passar do ponto e mal saiba como temperar uma salada decentemente.

Está decidido: às panelas. A partir deste mês vou ter aulas com uma mulher e serei ainda mais feliz: vou cozinhar feito um homem.

Um excelente domingo e um ótimo início de semana.

Diogo Mainardi

Caiu na rede é peixe

"Em 2006, o ministro da pesca foi a Limoeiro do Ajuru, no Pará. Ele decidiu transformar o compromisso oficial num ato da campanha eleitoral de Lula. O deputado Carlos Sampaio declarou que nunca viu um caso mais vexatório de uso da máquina pública"

Quem? Altemir Gregolin? Sim, Altemir Gregolin. É o ministro da Pesca. Para enquadrá-lo melhor: é do PT. Para enquadrá-lo melhor ainda: pertence à corrente mais à esquerda do partido, "A Esperança É Vermelha", cuja plataforma é "fazer do Brasil uma democracia digna desse nome".

Em 6 de outubro de 2006, Altemir Gregolin foi a Limoeiro do Ajuru, no Pará. Ele participou de um ato para a entrega de carteiras de pescador aos moradores locais. Fato número 1: era um compromisso oficial, organizado pelo Ministério da Pesca e financiado com dinheiro público.

Fato número 2: o ato ocorreu em plena campanha eleitoral, espremido entre o primeiro e o segundo turnos. Altemir Gregolin, cumprindo a promessa de fazer do Brasil uma democracia digna desse nome, decidiu transformar o compromisso oficial num ato da campanha eleitoral de Lula. Lá pelas tantas, em seu discurso, ele disse o seguinte:

– Eu estou achando que vocês são peitudos. Vocês deram para o presidente Lula 6.495 votos, 54% dos votos daqui vocês deram para o presidente Lula. Eu quero agradecer em nome do presidente. Isso é muito importante, vou levar para o presidente, vou mostrar para o presidente.

Depois conclamou, em meio aos aplausos:

– E ainda vai aumentar mais essa votação no segundo turno, não é verdade?

Verdade. Lula aumentou seus votos no segundo turno. O tempo passou e, como todos os outros abusos cometidos no primeiro mandato, o assunto parecia definitivamente enterrado.

Até que, no último dia 10 de abril, Altemir Gregolin foi à CPI dos Cartões. Vic Pires, deputado do DEM, interrogou-o sobre os fatos de Limoeiro do Ajuru.

O ministro, mais peitudo do que seus pescadores, negou que pudesse ter feito campanha política num ato oficial. A seguir, entrevistado na TV, desafiou Vic Pires a apresentar provas de sua denúncia.

Se é isso que ele quer, eu apresento as provas. O ato público foi todinho filmado. Fiz um pot-pourri dos melhores momentos do DVD e o descarreguei no site de VEJA. Está lá: a chegada do ministro, a entrega das carteiras, o ministro agradecendo em nome de Lula, o ministro pedindo votos para Lula no segundo turno.

Depois de ver as imagens, o deputado Carlos Sampaio o denunciou ao Conselho de Ética e à procuradoria-Geral da República. Declarou também que nunca viu um caso mais vexatório do que esse de uso da máquina pública e de improbidade administrativa.

Lula gosta de pesca e de pescado. Entre seus gastos sigilosos, disponibilizados pelo TCU, há desde o caviar comprado no Mercadinho La Palma até os 30 quilos de bacalhau que fartaram sua ceia de Natal.

Em 7 de abril de 2003, foi feita uma despesa de 1.480 reais para comprar 1 quilo de barbatanas de tubarão, iguaria conhecida por suas propriedades afrodisíacas. A pesca de tubarões para a retirada de suas barbatanas é proibida no Brasil.

A gente sabe, no entanto, que nada é proibido no Brasil lulista, nem a pesca de tubarões, nem o uso de dinheiro público para a pesca de votos.

Para quem já defendeu o impeachment de Lula, como eu, agora só resta defender o indiciamento do ministro da Pesca. É uma perspectiva bem mais mísera. Mas foi o que aconteceu com o país: nossas perspectivas se tornaram bem mais míseras.


Ponto de vista: Lya Luft
Menina quase morta, sozinha

"Não a vi abraçada, levada no colo por alguém desesperado que tentasse lhe devolver a vida, que a cobrisse de beijos, que a regasse de lágrimas. Estava ali deitada, a criança indefesa, como um bicho atropelado com o qual ninguém sabe o que fazer"

Como grande parte do país, acompanho obsessivamente o caso da menininha de 5 anos brutalmente maltratada, espancada, jogada no chão, esganada, e finalmente atirada pela janela como um gato morto. Corrijo: nenhum de nós jogaria pela janela um gato morto.

Talvez um rato: se encontrasse um rato morto em minha casa, num gesto insensato eu o pegaria pela ponta do rabo e o jogaria pela janela (a minha também fica num 6º andar). Seria, além disso, mal-educado: não se jogam coisas pela janela de apartamentos. Nem menininhas, mortas ou vivas.

Escrevo aqui com o maior cuidado: não devo afirmar que pai e madrasta trucidaram a menina e se livraram dela como se fosse um pedaço de lixo. Para isso temos a polícia, num trabalho de primeiríssimo mundo.

Então: alguém a espancou, atirou-a ao chão, talvez lhe quebrando ossinhos da bacia, e a esganou por três minutos. O termo "esganar" é meio antigo: como será apertar por três minutos o pescoço de uma criança de 5 para 6 anos?

É difícil entender o tempo de agonia e dor de três minutos. Quem faz fisioterapia eventualmente é instruído: contraia esse músculo por vinte segundos. Tentem contar os 180 segundos que compõem três minutos de pavor.

Ilustração Atômica Studio

Essa história terá sua explicação em breve. Mas quem cometeu essa bestialidade terá seu merecido castigo neste país das impunidades e das leis atrasadas e frouxas?

Recentemente, aqui perto, um menino de 15 anos confessou na maior frieza o assassinato de dezessete pessoas. Quinze deles já foram confirmados. "Matei, sim." Talvez tenha acrescentado, num dar de ombros: "E daí?".

Por ser menor de idade, como tantos assassinos iguais a ele, foi para uma dessas instituições de ressocialização nas quais não acredito para esses casos pavorosos. Logo estará livre para reiniciar com alegria sua atividade de serial killer. E, se perguntarem a razão, talvez diga como um jovem criminoso que assaltou um amigo meu: "Nada.

Hoje saí a fim de matar alguém". Nossas leis vão finalmente, segundo entendi nas palavras do novo presidente do Supremo, ser realistas, graves, portanto justas? Eu quero mais: pena de morte para casos como os que citei, independentemente da idade.

Pelo menos prisão perpétua, sem misericórdia. Quem cometeu o horrendo crime de São Paulo deve apodrecer numa prisão pelo resto de sua miserável vida.

A menininha atirada no minúsculo jardim de seu edifício, ainda viva, ficou ali por muito mais que três minutos. Imagino sua alminha atônita e assombrada, no escuro. Ainda presa ao corpo, ainda presente.

Na loucura que o caso provoca, porque ela poderia ser nossa criança sobre todas as coisas amada, o que mais me atormenta é a sua solidão.

Não a vi, em nenhum momento, abraçada, levada no colo por alguém desesperado que tentasse lhe devolver a vida que se esvaía, que a cobrisse de beijos, que a regasse de lágrimas, que a carregasse por aí gritando em agonia e pedindo ajuda. O que teria feito a pobre mãe se estivesse presente.

Estava ali deitada, a criança indefesa, como um bicho atropelado com o qual ninguém sabe o que fazer.

Na nossa sociedade, em que as sombras mais escuras do nosso lado animal andam vivas e ativas, lá ficou, por um tempo interminável, caída, quebrada, arrebentada, e viva, a menina quase morta. Sozinha.

Lya Luft é escritora


A arte de envelhecer

As novas descobertas que ajudam a abrandar os sinais da passagem do tempo e garantir uma velhice cheia de vida

IRENE RUBERTI, CAROLINA MELO E SUZANE FRUTUOSO

EM PAZ COM O ESPELHO
Adriana, de 58 anos, com as filhas gêmeas Bianca (à esq.) e Chiara, de 24. “O importante é viver bem todas as fases da vida”, diz a mãe

A paisagista Adriana Giuliano Miniguini, de 58 anos, é daquelas mulheres maduras que, sem esforço, atraem olhares. Na juventude, a beleza da italiana criada no Brasil era tamanha que as pessoas paravam para observá-la. Adriana continua feliz com sua aparência.

Tem rugas, mas nunca quis aplicar Botox ou se submeter a grandes tratamentos estéticos. “As rugas são o sinal de uma nova fase na minha vida.

O importante é viver bem todas elas”, diz. A forma como encara o envelhecimento é tão positiva e sábia que influencia as três filhas, Bianca, Chiara (gêmeas de 24 anos) e Natália, de 34. “Queremos seguir os passos de nossa mãe. Há pessoas que fazem mil tratamentos, mas não são felizes. Nunca se sentem realmente bonitas”, diz Natália.

Além da genética, que parece favorecer as mulheres da família Giuliano Miniguini, elas se beneficiam de bons hábitos adquiridos na infância. A alimentação sempre foi saudável, com frutas, verduras, legumes e carnes magras. Todas fizeram balé, como a mãe.

As quatro freqüentam academias, para manter o corpo em forma. Cuidam da pele, com limpeza, hidratação e filtro solar, diariamente. Não têm o menor interesse em disfarçar os anos vividos, uma das maiores obsessões contemporâneas.

Artistas sofrem essa pressão contra o envelhecimento com freqüência. Recentemente, uma maquiadora perguntou ao ator Stepan Nercessian, de 54 anos, por que não fazia uma plástica para tirar as bolsas sob os olhos.

“Não quero matar o velho que vou ser”, disse ele. “Quero me olhar no espelho com 70 anos e ver como realmente sou.” Essa reação é uma exceção.

Para camuflar a idade, homens e mulheres se entregam aos mais variados tratamentos estéticos sem medir esforços e conseqüências. Alguns exageram no Botox e ficam com a expressão paralisada. Submetem-se a sucessivas cirurgias plásticas e ganham um aspecto de boneco de cera.

Quase sempre, o excesso de intervenções provoca mais estranhamento que admiração (Clique aqui e confira a opinião de internautas sobre o visual de celebridades).

Apesar dos avanços da medicina, a descoberta da pílula da juventude continua sendo um sonho distante

Um dos motivos que tornam a velhice um fantasma é o medo das restrições impostas pelo envelhecimento. O corpo começa a dar sinais de cansaço.

A pele perde o viço. O cérebro murcha. Aos 50 anos, o encéfalo pesa em média 1,3 quilo. Quinze anos depois, costuma ter 200 gramas a menos. O sistema nervoso fica mais lento. A massa muscular diminui. A gordura aumenta.

Apesar dos avanços da medicina, que têm contribuído para o aumento da expectativa de vida, a ciência está muito longe de descobrir uma pílula da juventude. Mas existe uma receita para envelhecer com mais qualidade de vida. Ela consiste em cinco simples recomendações:

comer menos
movimentar-se mais
usar e abusar do cérebro
realizar atividades em grupo
nutrir alguma forma de espiritualidade


26 de abril de 2008
N° 15583 - Nilson Souza


Balões ao vento

A não ser que ocorra um milagre, dificilmente será encontrado com vida o padre paranaense que decolou pendurado num cacho de balões de festa, cheios de gás hélio.

A aparente loucura me lembra uma poesia do simbolista Alphonsus de Guimarães, que exemplifico com a primeira e a última estrofes: "Quando Ismália enlouqueceu,/ pôs-se na torre a sonhar.../ Viu uma lua no céu,/ viu outra lua no mar./(...) As asas que Deus lhe deu/ ruflaram de par em par.../ Sua alma subiu ao céu,/ seu corpo desceu ao mar...

Mas somente 24% das pessoas que responderam à enquete do programa Polêmica, da Rádio Gaúcha, acham que o religioso agiu movido pela loucura. A maioria dos votantes (66%) cravou na palavra "irresponsabilidade".

Especialistas na arte de voar confirmam que o padre realmente desprezou algumas precauções básicas, como o manejo do equipamento que serviria para indicar sua localização às equipes de acompanhamento.

Mas ele não era marinheiro de primeira viagem: já havia, inclusive, voado do sudoeste do Paraná até a Argentina, num percurso de mais de cem quilômetros e pendurado no mesmo tipo de balões. Só que desta vez o vento soprou para o lado errado.

O curioso desta tragicômica história é que o pároco de Paranaguá teve um antecessor histórico ilustre, o também padre Bartolomeu de Gusmão, que no século 18 levantou do chão um prosaico balão de papel grosso, cheio de ar aquecido.

Na época, o engenhoso jesuíta imaginou o seu balão mágico depois de observar uma bolha de sabão flutuando numa camada de ar quente. Só que também fez as suas trapalhadas. Numa das tentativas, o balão pegou fogo e quase provocou um incêndio no palácio do rei português dom João V, seu protetor.

O padre brasileiro que inventou a Passarola - este era o nome da máquina voadora - é também personagem de um dos melhores romances do português José Saramago, O Memorial do Convento, que conta a história da construção de uma catedral em Mafra, como agradecimento do monarca a Deus por lhe ter dado um herdeiro.

Meu personagem favorito do livro é Blimunda, uma mulher com o poder extraordinário de enxergar dentro do corpo das pessoas e no interior de objetos.

Só ela mesmo seria capaz de prospectar o que se passou na cabeça do padre aventureiro quando ele resolveu assumir o risco de decolar com mau tempo e sem a garantia de que seria localizado pelo resgate em caso de acidente.

Entre os ouvintes do Polêmica, 5% acham que ele fez isso por simples aventura. Outros 5% concluíram que foi por fé.

De onde se conclui que a fé até pode mover montanhas, mas não guia balões.

quarta-feira, 23 de abril de 2008



23 de abril de 2008
N° 15580 - Martha Medeiros


Não sorria, você está sendo filmado

Sou incentivadora de alguns métodos clássicos para garantir a segurança pública - por exemplo, policiais bem remunerados e bem treinados, e em quantidade suficiente para monitorar as ruas.

Mas não sou fanática. Tenho me constrangido com um procedimento que está se tornando comum nos "prédios inteligentes", todos eles de escritórios. Falo dessa mania irritante de nos ficharem na recepção.

Antes de pegar o elevador, é preciso passar por uma catraca. E, antes da catraca, há os recepcionistas que, não bastasse pedirem nossos documentos (até aí, ok) pedem para nos fotografar e também para que a gente aplique nossa digital num sensor para que a visita fique registrada para a posteridade.

Não deve ser muito diferente de entrar num presídio, só que não estou visitando nenhuma cadeia de segurança máxima, quero apenas consultar um dentista.

Outro dia fui bem antipática num desses halls de entrada. Logo eu, que costumo ser uma flor de condescendência.

Pediram documentos, dei.

Pediram para tirar foto, tirei.

Pediram para aplicar minha digital numa máquina, apliquei.

Mas minha digital não ficou registrada. Sei lá, o teclado do computador deve ter gasto meus dedos.

Então, a recepcionista me perguntou: posso passar um hidratante na sua mão?

Juro, sou calma, uma monja beneditina, mas não vou passar um hidratante qualquer no meio de uma tarde calorenta só porque minha digital não está sendo bem registrada por uma máquina incompetente.

Vim trazer minha filha para uma consulta de revisão, e não trazer escondido um celular para um traficante.

Coitada da moça, estava ali apenas cumprindo ordens. Eu não disse nada disso, não nesse tom, mas admito, me recusei a passar o tal creme.

Acabaram me deixando entrar, a contragosto, temendo que eu violasse todos os códigos de segurança e estivesse escondendo uma Uzi embaixo do vestido a fim de cometer uma carnificina naquele prédio todo espelhado.

Ah, me deu vontade mesmo de incorporar um Javier Bardem, de cabelinho chanel e portando uma arma de matar gado. Onde os fracos não têm vez, rá-tá-tá-tá.

Da mesma forma, meu espírito selvagem aflora cada vez que vejo uma placa avisando: sorria, você está sendo filmado! Sorrio nada. E quase viro um Hannibal Lecter quando passo por aquelas portas giratórias e intimidatórias dos bancos, onde revistam nossa bolsa como se vasculhassem nossa alma.

Sei que são tempos difíceis e paranóicos, sei que todo esse aparato serve para identificar criminosos, mas cá entre nós: é uma praga essa histeria com segurança. Daqui a pouco essa vigilância insana vai se tornar mais desconfortável do que ser gentilmente assaltado.

Dia Internacional do sofá - Aproveite a quarta-feira.

domingo, 20 de abril de 2008


DANUZA LEÃO

Noiva pobre, marido rico

Será que ele abre uma conta em nome dela, dá cartão de crédito ou diz para mandar as contas para a secretária?

CASAMENTO JÁ é difícil; casamento com marido rico, por incrível que pareça, é mais difícil ainda. Costuma caber à família da noiva bancar o vestido, o enxoval e todas as despesas.

Afinal, um casamento é um casamento, e existem a igreja, as flores, a música, o vestido da mãe da noiva, da irmã da noiva, da avó da noiva, as damas de honra, e a festa propriamente dita. E o champanhe, claro.

Se o noivo for rico e se oferecer para bancar todas as despesas, fica tudo mais fácil. Afinal, tem que fazer bonito perante a família dele, os amigos dele etc.

Mas depois da lua-de-mel começa a vida real, e chega a hora de conversar sobre as despesas da casa. Falar de dinheiro é sempre um estresse, e entre apaixonados, pior ainda.

Será que ele abre uma conta no banco em nome dela, dá um cartão de crédito, ou diz para mandar as contas para a secretária?

Ela precisa saber até quanto pode gastar; será que ele diz? Assunto difícil, mesmo vindo de um marido. E se ele não disser, será que ela pergunta? E se resolver passar num shopping e comprar um vestidinho, tudo bem, ou ele pode achar ruim?

Detalhe: quanto mais rico ele for, pior. Se houver um teto para os gastos, ela pode achar que, diante da fortuna dele, é pouco; se não houver limite, ela pode sair gastando que nem uma louca -afinal, quem nunca comeu melado etc. Ele vai ter que dizer qual o limite, ela pode não gostar, aí já viu.

E em viagem? Um homem ao lado, pagando cada conta, nem pensar; e toda mulher precisa de um dinheirinho de bolso para comprar um chocolate, um batom, umas coisinhas de farmácia, pagar um táxi. Será que de manhã, na hora de sair, ele põe uma nota de cem dólares na bolsa dela, assim como quem não quer nada?

Pedir ela não pede, mas se tiver um cartão de crédito daqueles dourados, ou o mais mais de todos, o de platina, pode ouvir um "vê lá se não exagera nas compras, hein?"

Detalhe: se gastar muito pouco é capaz de ele achar que ela tem cabeça de pobre -é, tem homem assim. São raros mas existem. Digamos que o casal seja convidado para uma festa.

Uma festa não é só um lindo vestido: tem sapato, bolsa e jóias. Ela faz charme e diz que quer comprar um vestido bem bonito para ser a mais linda da festa -para ele. Mas pergunta até quanto? E homem lá sabe quanto custa roupa de mulher? Uma complicação.

Outro problema: se ela -que é pobrinha- se casa com ele -que é rico-, como fica a família dela? O irmão, que nunca foi nem a Búzios, passa a ter direito a férias em Nova York ou continua a ter como sonho de consumo ir a Porto Seguro, de ônibus, passar uma semana?

Um terreno mais do que fértil para grandes embates: ou ela briga com o marido, ou o irmão briga com ela. Ele pode dizer, cheio de razão, que se casou com ela, não com a família dela.

Mas na hora em que ele negar a seu querido cunhado o que para ele seria uma migalha, ela vai continuar no mesmo bom humor?

Exceto nos romances, filmes e novelas, essa história de mulher pobre que se casa com homem rico é muito complicada; mas Deus é grande e o final é sempre feliz -as mulheres têm jogo de cintura e se habituam a qualquer coisa na vida, até a um marido rico.

Difícil, mas difícil mesmo, é quando um homem pobre se casa com uma mulher rica. Começa no namoro; na hora de pagar a primeira conta do restaurante, quem puxa o cartão de crédito?

danuza.leao@uol.com.br

FERREIRA GULLAR

O cachorro como obra de arte

A arte de vanguarda, que nasceu contra a institucionalização, é refém da instituição

ANO PASSADO, em 2007, um costarriquenho, que se diz artista e se chama Guillermo Habacuc Vargas, pegou na rua um cão vira-lata, amarrou-o numa corda e o prendeu à parede de uma galeria de arte, onde o animal ficou definhando até morrer de fome. Tratava-se, segundo ele, de uma "instalação perecível", uma obra de vanguarda.

Pois bem, para o espanto das pessoas que já se tinham revoltado com a crueldade de Habacuc, a Bienal de Arte Centro-Americana de Honduras acaba de convidá-lo para dela participar com a referida "obra" e concorrer a um dos prêmios do certame.

Será tudo isso verdade ou apenas uma "pegadinha"? Custa crer que o dono de uma galeria de arte permita que um exibicionista pirado amarre ali um pobre cão e o deixe morrer de inanição. Como se deu a coisa?

O animal urinava e cagava preso à parede, ganindo desesperado? As pessoas iam assistir a esse espetáculo de sadismo e ninguém se revoltou nem nenhuma sociedade protetora dos animais protestou?

A possibilidade de ter o cão morrido sem que ninguém tenha sabido está fora de questão, uma vez que o objetivo desse tipo de "autor" é precisamente chamar a atenção sobre si, já que nenhum outro propósito pode ser considerado.

Mais surpresa causa ainda a notícia de que a Bienal de Honduras o tenha convidado a repetir, nela, aquele mesmo espetáculo de crueldade e sadismo.

Não obstante, essa informação está em vários sites, e surgiu até um movimento de protesto -um abaixo-assinado- para impedir que a Bienal mantenha o convite. Se o que Habacuc queria era escandalizar e ganhar notoriedade, conseguiu, ainda que a notoriedade própria aos torturadores e carrascos.

Não obstante, apesar da repercussão que o cerca, esse fato não é tão novo assim. Sem a mesma dose de cocô e urina nem a mesma animalidade, outras "obras" e atitudes ocorridas antes são reveladoras do impasse a que chegaram a arte dita de vanguarda e as instituições que a exibem, particularmente as Bienais.

Uns poucos anos atrás, um gaiato enviou para a Bienal de São Paulo, como sua obra, a seguinte proposta: abrir uma segunda porta na exposição por onde as pessoas entrariam sem pagar.

Não podia ser aceita, pois implicaria sério prejuízo ao certame, mas também não poderia ser rejeitada, porque, sendo a Bienal "de vanguarda", tal rejeição comprometeria sua imagem.

Em face disso, adotou-se a seguinte solução: improvisar, nos fundos do prédio, uma portinha meio secreta, garantida por um guarda que a manteria aberta por apenas uma hora e só permitiria a entrada de dez visitantes, no máximo. E assim as coisas se acomodaram, salvando-se a audácia do artista e o caráter vanguardista da instituição.

Pode ser que me engane, mas a impressão que tenho é de uma luta farsesca entre falsos inimigos que necessitam um do outro para existir: sem o espaço institucional (galeria, museu, Bienal), não existe a vanguarda e, sem a vanguarda, não existem tais instituições. E a gente se pergunta: mas a vanguarda não nasceu contra a arte institucionalizada? Pois é...

Voltemos ao cachorro. O tal Habacuc pegou o cachorro na rua e o levou para a galeria de arte a fim de fazer dele uma "instalação perecível", ou seja, uma obra de arte.

Se o tivesse levado para um galpão qualquer e o deixasse lá morrendo de fome, ele não passaria de um pobre vira-lata vítima de um maluco. Mas, como o Habacuc é artista -ou se diz-, levou-o para uma galeria de arte e aí o pobre cão, de cão virou instalação, por obra e graça do espaço em que o puseram para morrer.

Esse é um dado que os críticos de arte (também de vanguarda) teimam em ignorar, ou seja, que, nessa concepção estética, é o espaço institucional que faz a obra: por exemplo, um urinol igualzinho ao de Duchamp, se estiver no Pompidou, é arte; se estiver no banheiro de um boteco, é urinol mesmo, pode-se mijar nele à vontade.

É, portanto, diferente da Mona Lisa, que depois de roubada do Louvre, em 1911, e levada para um quarto de hotel na Itália, continuou a obra-prima que sempre foi. É que a chamada arte conceitual dispensa o fazer artístico e afirma que será arte tudo o que se disser que é arte, mas desde que o ponham numa galeria ou numa Bienal.

Ou seja, a essência da arte de vanguarda, que nasceu contra a institucionalização da arte, é contraditoriamente, a instituição; não está nas obras e, sim, no espaço institucionalizado em que ela é posta.

Talvez por isso, a próxima Bienal de São Paulo não terá obras de arte: exibirá apenas o espaço institucional vazio, que as dispensa.

sábado, 19 de abril de 2008



20 de abril de 2008
N° 15577 - Martha Medeiros


All we need is love

Recentemente manifestei meu entusiasmo com o documentário Shine a Light, que mostra um impactante show dos Rolling Stones intercalado por alguns poucos depoimentos e rápidas cenas de bastidores.

Recebi vários e-mails (como tem roqueiro no sul), porém três pessoas ficaram desapontadas por eu enaltecer a obra dirigida pelo Scorsese e não ter escrito uma única linha sobre Across the Universe, que ainda segue em cartaz, com trilha dos Beatles, banda que meu eleitorado sabe bem o quanto sou fã.

Um ainda lembrou que escrevi a respeito antes mesmo de assisti-lo, mas por que não depois? Passei pro lado do diabo?

O musical vale pela trilha sonora (ave, Beatles!) e por alguns bons momentos de psicodelismo, mas achei um filme sem vigor, irregular, de uma rebeldia pueril. Pra quem viu Tommy, Pink Floyd The Wall e Hair, pra citar alguns parentes próximos, Across the Universe me pareceu apenas simpático.

Mas pra não dar a impressão de que virei a casaca, e já que o assunto principal desse DonnaZH são os verdadeiros luxos, me rendo: Across the Universe narra uma história de amor, e o amor é o luxo supremo, ao lado da arte, outro luxo indispensável.

Aqui fora das telas, na vida real e mundana, os amores não têm sido eternos e nem infinitos enquanto duram, até porque não duram. São rápidos flashes de entusiasmo, são apostas, são ensaios, são tentativas, são experiências para constar do currículo pessoal de cada um.

Parecem mais fugas do que encontros. Amores quase perversos em sua instantaneidade, em sua fragilidade, em seu medo. Medo de quê? Sei lá, de vingarem: vá que dê certo.

Melhor fazer a fila andar, já que não é fácil administrar um amor. Porém, mais difícil ainda é viver sem ele, e lá vão todos em busca de beijos a granel e realizações automáticas de desejos, tudo muito aflito, sem norte e sem calma. Onde estão as grandes e verdadeiras paixões?

O reconhecimento do amor, a dedicação a esse sentimento, o usufruto dessa emoção passa por uma sensibilidade especial que nada a tem a ver com as urgências de uma sociedade que não sabe mais frear e aquietar-se. Quem nos ajuda a resgatar o amor, aquele amor que merece ser chamado como tal, é a arte.

É ela que nos treina para o exercício da contemplação e para o respeito à solidão, porque só ama direito quem não tem medo de ficar sozinho, quem não usa o amor como salva-vidas, como muleta. E é aí que vou tergiversar e recomendar um terceiro filme que já saiu de cartaz há um tempo, mas está disponível em DVD:

Um Lugar na Platéia, produção francesa sem grandes pretensões, de uma delicadeza hoje incomum, que conta várias pequenas histórias de pessoas que amam e outras que não possuem ninguém, mas todas elas apaixonadas pela música, pela escultura, pelo teatro, pelo cinema, pelos livros e por tudo o que faz a gente se emocionar e se reconhecer como seres humanos.

Foi o filme de amor mais bonito a que assisti nos últimos tempos, um filme sobre o amor-próprio, sem o qual nenhum outro amor funciona.

Um ótimo domingo e um excelente feriado.

Diogo Mainardi

O quilombo do mundo

"O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade das leis que instituíram as cotas raciais no Brasil. É uma chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras"

Barack Obama, num debate eleitoral, na última quarta-feira, respondendo a uma pergunta sobre as cotas raciais:

– Se olharem minhas filhas, Malia e Sasha, e disserem que elas estão numa situação bastante confortável, então (raça) não deveria ser um fator. Por outro lado, se houver um jovem branco que trabalhe, que se esforce, e que tenha superado grandes dificuldades, isso é algo que deveria ser levado em consideração.

Barack Obama costuma mudar o discurso de acordo com a platéia. O que ele disse a uma platéia branca em Filadélfia pode perfeitamente ser desmentido daqui a uma semana, diante de uma platéia negra numa igrejinha batista, no interior da Carolina do Norte.

Mas o fato é que ele quebrou um tabu e defendeu abertamente o fim das cotas raciais. O poder público, segundo ele, tem de ajudar os pobres em geral, conforme os méritos de cada um, e não os negros em particular.

O Brasil macaqueou o sistema de cotas raciais dos Estados Unidos. E macaqueou tarde, num momento em que o próprio candidato negro à Casa Branca já admite aboli-lo.

O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade das leis que instituíram as cotas raciais no Brasil. É uma chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras.

O ministro Carlos Ayres Britto deu um voto a favor do sistema de cotas raciais, argumentando o seguinte: "É pelo combate a situações de desigualdade que se concretiza o valor da igualdade". Isso se aplicaria se a desigualdade se originasse na universidade. A gente sabe que a realidade é outra.

A gente sabe que a desigualdade nasce no ensino básico, e é lá que ela tem de ser combatida. A má qualidade da escola pública cria uma casta de párias analfabetos, os intocáveis da tabuada, dalits brancos e negros, que nunca poderão se igualar aos que estudam na escola particular.

É desolador ter de repetir sempre a mesma lengalenga. E a lengalenga é: o Brasil gasta dinheiro de mais na universidade e dinheiro de menos no ensino básico. Se é para macaquear os Estados Unidos, temos de macaqueá-los por inteiro.

A universidade pública americana cobra mensalidade dos alunos. Quem pode pagar, paga. Os outros se arranjam com bolsas, empréstimos ou bicos. Se o Brasil fizesse o mesmo, cobrando mensalidade na universidade pública, sobraria mais dinheiro para investir onde importa: no bê-á-bá.

O sistema de cotas raciais foi rapidamente introduzido na universidade brasileira, beneficiando-se de um ambiente que sempre soube acolher as idéias mais regressivas, como o petismo bandoleiro e o parasitismo estatal getulista. O Brasil se refugiou no passado. O Brasil é o quilombo do mundo.


Uma manchete histórica

"Juro nominal não é juro, minha gente, é a grande mentira que ministros e banqueiros divulgam para facilitar a colocação de seus títulos financeiros nas mãos dos desavisados. O importante não são as reuniões do Copom, mas, sim, saber o valor do juro real e quando ele vira negativo"

A manchete de primeira página da Folha de S.Paulo de 19 de março de 2008 foi um marco na história do jornalismo brasileiro, que merece comentário e elogios. A manchete noticiou o seguinte: "Juro real dos EUA fica negativo com o sexto corte seguido".

Nenhum jornal do mundo alertou seus leitores de que os juros viraram negativos e de que quem aplicasse em títulos públicos americanos iria, a partir daquele dia, perder dinheiro.

Jornais como o The New York Times e o Wall Street Journal publicaram o contrário, que os investidores continuariam a ganhar dinheiro, à taxa de 2,25% ao ano, uma informação incorreta e enganosa.

Jornais e jornalistas americanos discutem há mais de vinte anos por que o jornalismo econômico está lentamente perdendo espaço. Mais intrigante ainda é analisar por que o leitor médio não está disposto a pagar o preço justo da informação, justamente na era da informação. A imprensa precisa subsidiar o custo do jornalismo em geral com a verba dos anunciantes.

Você pagaria uma boa soma em dinheiro para receber manchetes corretas, avisando-o de que você poderia perder dinheiro? Claro que sim! Talvez esse seja o âmago da questão.

O jornalismo econômico nem sempre fornece informação útil suficiente para motivar o leitor a pagar o custo desse jornalismo informativo. Pagar caro para ler informação incorreta, como nesse caso, e ainda ter de ler sobre a desgraça alheia, dossiês e escândalos, simplesmente não compensa.

A Folha de S.Paulo, portanto, fez história ao mostrar que o importante para o leitor é o juro real, e não o juro nominal. Sonhei vinte anos para ver esse dia, razão de meu contentamento e aprovação. Abusei da paciência dos leitores de VEJA nestes anos escrevendo nada menos que seis Pontos de vista batendo sempre nessa mesma tecla.

Juro nominal não é juro, minha gente, é a grande mentira que ministros e banqueiros divulgam para facilitar a colocação de seus títulos financeiros nas mãos dos desavisados.

Professores de jornalismo deveriam ensinar a seus alunos que juro real é pleonasmo, é uma redundância lingüística. Nenhum jornalista econômico escreve dinheiro real, dólar real, câmbio real, importações reais. Juro (real) é simplesmente juro, como o dinheiro, o dólar e o câmbio. O juro nominal é propaganda enganosa.

Pior: o juro (real) varia toda semana, todo mês, mas essas mudanças nunca são noticiadas. O importante não são as reuniões do Copom, mas, sim, saber o valor do juro real e quando ele vira negativo, como apontou a Folha com todas as letras.

Em 1981 o Fed aumentou o juro nominal americano, o que desencadeou a moratória da dívida e o início da década perdida. Nenhum jornalista econômico publicou corretamente o fato na época, que coincidentemente seria semelhante ao noticiado pela Folha: "Juro real americano se torna negativo com o aumento da inflação americana".

O Brasil ficaria mais rico pagando juros negativos, e não mais pobre, como noticiaram os demais jornais. O juro (real) caíra, e não subira, como noticiaram.

Intelectuais como Celso Furtado, que iniciaram o movimento em prol da moratória, teriam caído no ridículo se a população tivesse sido informada da verdade. Recusar-se a pagar uma dívida quando os juros se tornam negativos ou menores é um equívoco monumental.

Outro exemplo foi a crise de 1929, causada em parte por um erro semelhante do jornalismo econômico da época. Nenhum jornal publicou em 1931 a notícia que explicaria a quebra dos bancos nos anos seguintes. "Deflação nas commodities eleva os juros (reais) de 1% para 10% ao ano".

A maioria dos jornais da época publicou, como agora, que os juros nominais foram reduzidos para 2%, para evitar uma recessão! Um jornalista da época que informasse corretamente que o juro (real) subira 1 000% teria alertado leigos e estudiosos para o óbvio.

Aumentar juro em 1 000%, no início de uma pequena recessão, é jogar lenha na fogueira e transformá-la numa enorme recessão – como de fato aconteceu.

Por isso, tenho o dever de aplaudir essa manchete da Folha de S.Paulo publicamente. Não é um mero detalhe ou diletantismo jornalístico, é a quebra de um paradigma de mais de setenta anos que teria evitado duas enormes recessões que atrasaram o Brasil uns vinte anos no mínimo.

Stephen Kanitz é administrador (www.kanitz.com.br)