sábado, 5 de julho de 2008



05 de julho de 2008
N° 15653 - Nilson Souza


A máquina do apocalipse

Li uma reportagem sobre o acelerador de partículas que os cientistas pretendem acionar na Suíça antes do final do ano e me veio à cabeça este verso de Jorge Drexler, que nos próximos dias se apresentará em Porto Alegre:

"No somos más/ que una gota de luz,/ una estrella fugaz,/ una chispa, tan solo,/ em la edad del cielo..."

Somos mesmo quase nada diante da grandiosidade do universo, mas somos bem pretensiosos. Agora mesmo, vamos tentar reproduzir na experiência científica referida o momento da criação do mundo, por meio do experimento mais ousado da história da física.

A idéia é recriar, num gigantesco equipamento enterrado no solo europeu, o badalado Big Bang - a explosão inicial que a ciência identifica como origem de tudo o que existe, em contraposição ao criacionismo religioso.

O que buscam os cientistas com o tal acelerador? Um troço inimaginável para qualquer cérebro normal. Uma coisa ínfima conhecida pelos físicos como "Bóson de Higgs", que seria a partícula original da transformação de energia em massa.

Segundo li, o tal bóson, se aparecer, não durará mais do que algumas frações de segundo. Mas será o suficiente para comprovar a teoria científica da criação explosiva do mundo. Os especialistas em átomos estão bem excitados.

Mas já apareceram alguns agourentos para dizer que pode dar tudo errado, que o tal acelerador tende a criar um buraco negro capaz de engolir tudo o que já foi criado.

Ou seja: uma vez acionada a máquina do começo do mundo, produziria o seu fim, seríamos todos sugados para a invisibilidade eterna, levando conosco o planeta inteiro, casas, automóveis, cidades, continentes, a Lua, as estrelas, a galáxia inteira.

Dizem os especialistas que os tais buracos são terríveis e insaciáveis, concentram tamanha força gravitacional que nem a luz lhes escapa. Ou seja, até o final do ano poderemos todos ser condenados a viver para sempre na escuridão.

Vá entender uma maluquice dessas!

Prefiro a teoria romântica de Jorge Drexler. Não somos mais que uma piada de Deus, diz o inspirado cantor uruguaio na sua bela canção Edad del Cielo. Ele certamente vai cantá-la no próximo dia 21, no Teatro do Bourbon Country.

Acho que devemos ir lá, antes que o acelerador do apocalipse seja acionado.

quinta-feira, 3 de julho de 2008



SOBRE A LEI SECA

É incrível como o brasileiro pode ser cínico e duvidar de coisas sagradas.

Por exemplo, da lei. Conheço gente que, embora apoiando a Lei Seca para quem vai dirigir, garante estar sentindo o cheiro de que ela não vai pegar.

É um cheiro de álcool. Há quem duvide até da idoneidade dos nossos policiais e jure que vai ter guarda fazendo plantão em porta de boate com uma pergunta na ponta do bafômetro: 'Com nota ou sem nota?'.

Os mais explícitos dirão, segundo essas más línguas, 'prefere pagar R$ 900 ou 50 pilas?'. Não creio que funcione assim. Deve ser mais sutil.

Esse pessoal cético acha que de noite todos os gatos são pardos e bêbados, o que facilitaria um entendimento com base no toma-lá-dá-cá ou no toma-lá-e-dá-aqui. Se bebeu, cara, tem que pagar.

Se a lei realmente for aplicada, pensem bem, todos os problemas do Estado estarão resolvidos. Basta colocar um fiscal na frente de cada bar, boate, restaurante e bordel. A coleta de dinheiro será extraordinária.

Além disso, não haverá mais desemprego. Será necessário um verdadeiro exército de controladores. Dizem que já funcionou em outros países. O princípio é bom.

Tem especialista afirmando que o importante não é o controle de cada motorista, mas a punição prevista em caso de acidentes graves. Em conseqüência, haverá um efeito dissuasivo, sem contar a possibilidade de punir realmente os infratores.

O problema, contudo, são os efeitos perversos: indústria da multa e corrupção. Dos males, sustentam alguns, o menor. É comum ouvir motoristas bradar contra a indústria da multa. Quando perguntados, porém, se cometeram as infrações, não têm como negar.
A vida, enfim, está ficando organizada.

O sujeito vai ao bar, mas não bebe nem fuma. No restaurante, come salada e evita alimentos gordurosos. Parece que o principal efeito da nova lei será o incentivo às festas em casa. Um retorno à família. Só que o anfitrião terá de aceitar que muitos convidados fiquem para dormir.

Claro que tudo isso é bom para os táxis. Os mais otimistas garantem que essa lei obrigará o Brasil a investir em metrôs. É o único jeito de transportar em segurança todos os bêbados de cada noite.

Outra hipótese é de uma influência sobre os casamentos, com o crescimento do número dos casais em que só um saberá dirigir.

Talvez, sem querer, o Brasil esteja descobrindo a solução para os engarrafamentos. Não, não dá para se entusiasmar, os engarrafamentos noturnos ainda são bastante raros.

Certos casais vão usar um sistema de rodízio. Um dia, bebe a mulher, no outro, bebe o marido.

No caso de um deles ser abstêmio, o outro terá mais chances de virar alcoólatra. Todos podem imaginar a cena: o marido bebendo todas, e a mulher, pacientemente, esperando para levá-lo para casa.

O contrário também pode ser imaginado. Difícil é crer que aconteça. Sem dúvida, essa lei vai contribuir para melhorar a parceria entre marido e mulher. Eu sou totalmente a favor dessa lei.

Já era a favor da proibição da venda de bebidas alcoólicas em estádios de futebol. Não tem outro jeito. Tenho todas as razões para ser favorável a esse tipo de legislação. Defendo a vida. Sem contar que não sei dirigir. Nem pretendo aprender.

Carro é um trambolho: tem o estacionamento, há sempre um ladrão de olho, taxas, tem de levar no mecânico, passa-se a vida trocando e pagando o carro. Pensando bem, a partir de agora, a vantagem de ter carro é não poder beber.

juremir@correiodopovo.com.br

Ainda que com chuva que seja uma excelente quinta-feira para todos nós.

sábado, 28 de junho de 2008



29 de junho de 2008
N° 15647 - Martha Medeiros


Compro, logo existo

Uma amiga acabou de chegar de Londres. Adorou, lógico. Mas ela disse que os preços estão um escândalo, uma exorbitância. Pensei: então é pra lá que eu vou.

Explico: eu também cheguei de viagem, estive em Buenos Aires, e os preços por lá estão igualmente um escândalo... de tão baixos! Algum problema nisso? Sim, há um problema nisso.

Óbvio que é sensacional ter transporte público barato (uma viagem de metrô está por cerca de R$ 0,60 e qualquer corrida de táxi dentro dos bairros mais procurados não custa mais do que R$ 5).

Nada como tomar um bom vinho sem ter vontade de chorar quando chega a conta, e comprar um casaco pra vida toda pagando três vezes menos o valor que pagaríamos aqui.

O problema? Já digo.

Quem gosta de viajar, mas gosta mesmo, aproveita seu tempo para caminhar pela cidade, apreciar prédios históricos, conhecer parques, entrar em livrarias, visitar museus e galerias de arte, vasculhar lojas de discos atrás de alguma novidade, jantar bem, ir a espetáculos e tomar um café com calma em algum lugar charmoso enquanto observa os transeuntes. Claro, fazer umas comprinhas também está no roteiro.

O problema, enfim: numa cidade com preços atraentes como Buenos Aires todo o resto (museus, shows, parques, cafés) fica para quando sobrar tempo - no caso de. O objetivo passa a ser comprar. Ir a todos os shoppings. Gastar até o último centavo, trazer tudo o que puder, abandonar-se à compulsão.

Eu, que estou longe de ser uma consumista crônica e me orgulho do meu comedimento, também fiquei impressionada com os preços argentinos. Uma pessoa controlada faz o quê?

Aproveita uma tarde para comprar o que precisa e segue seus dias curtindo o que a cidade tem a oferecer em termos culturais, ambientais, artísticos.

A questão é saber diferenciar o que se precisa e o que não se precisa, e se formos honestos, chegaremos à conclusão de que não precisamos nem da metade do que consumimos.

Eu gosto de bugigangas, e minhas compras em viagem quase sempre se restringem a artigos de papelaria, acessórios (pulseiras, echarpes) e algum artesanato, são os meus suvenires habituais, coisinhas coloridas e inventivas que me fazem lembrar da viagem pra sempre.

Mas se você entra em surto por causa de preço bom, vai encher três malas extras de coisas volumosas que, tudo bem, são baratas, mas que também são encontradas em Porto Alegre, e em Porto Alegre você nem olharia para elas, não importa quanto custassem.

Teve um momento em que me vi dentro de uma loja revirando cabides e me deu um estalo: o que estou fazendo aqui? Que ânsia é essa de "aproveitar" os preços?

Tenho que aproveitar a cidade, o meu tempo livre, a minha companhia, o meu olhar estrangeiro, a minha sede de informação, a minha curiosidade, e não me sobrecarregar de sacolas. É preciso estabelecer uma fronteira entre se apaixonar de verdade por um artigo e se apaixonar por comprar, simplesmente.

Da próxima vez, Londres. É perfeito. Olha-se algumas vitrinas, suspira-se e toca-se em frente até um dos arrebatadores parques da cidade para fazer um belo e barato piquenique.

Consumo consciente: Rui Spohr, preocupado em viabilizar projetos de inclusão social, colocou à venda uma camiseta confeccionada por ele onde se lê a frase: "A sofisticada originalidade do simples".

Quem comprar a camiseta, estará contribuindo para a Instituição Kinder, que presta atendimento educacional a crianças e adolescentes com deficiências múltiplas. Maiores informações no site http://estilistaruispohr.blogspot.com

Excelente domingo, um ótimo início de semana e um Feliz mês de julho.

Diogo Mainardi

O flanelinha dos ares

"Em 22 de agosto de 2006, Roberto Teixeira foi recebido no Palácio do Planalto. Perguntei por que a Varig teria pago as suas despesas da viagem a Brasília. Ele respondeu candidamente que ‘aproveitava as idas aos tribunais e passava no Planalto’"

22 de agosto de 2006. Lula está no Palácio do Planalto. Agenda do dia:

12:30 Lakshmi Mittal

15:30 Senadora Chikage Oogi

16:00 Conselho Brasil x Japão

Dá para encaixar um encontro com Roberto Teixeira? Dá. Sempre dá. Roberto Teixeira foi recebido por Lula. Segundo ele, tratou-se de uma mera visita de cortesia. Nada a ver com seu trabalho para a Varig. Nesse caso, porém, por que é que a Varig teria pago as suas despesas da viagem a Brasília?

Foi o que eu perguntei a Roberto Teixeira, por meio de sua assessoria de imprensa. Ele respondeu candidamente que "aproveitava as idas aos tribunais e passava no Planalto". Isto mesmo: a Varig pode ter bancado seu encontro com Lula, mas o propósito da viagem era outro.

Denise Abreu, no dia de seu depoimento, entregou ao Senado Federal uma mala abarrotada de documentos. Estou com cópias de alguns deles na minha frente. Referem-se às duas semanas que antecederam o encontro de Roberto Teixeira com Lula, no Palácio do Planalto.

Em 10 de agosto, a Anac decidiu cancelar os "hotrans" e os "slots" da Varig. No dia seguinte, esse cancelamento foi comunicado oficialmente a Cristiano Martins, genro de Roberto Teixeira.

Os "hotrans" e os "slots" da Varig em Congonhas eram o que a companhia aérea tinha de mais valioso. Em torno deles, desencadeou-se uma batalha. De um lado, a Anac. Do outro, Roberto Teixeira e o Palácio do Planalto. "Hotrans" e "slots" correspondem às vagas nos aeroportos. Roberto Teixeira brigou pela posse dessas vagas, como um flanelinha dos ares.

Em 16 de agosto, Cristiano Martins remeteu à Anac o plano de negócios da empresa, que incluía "hotrans" e "slots". Em 17 de agosto, Valeska Teixeira protocolou na Anac um pedido de registro da companhia.

Nesse período, ocorreu aquilo que, na diretoria da Anac, se tornou conhecido como Dia do Bife: um encontro de mais de oito horas, no Palácio do Planalto, coordenado pela secretária executiva de Dilma Rousseff, Erenice Guerra. Ela pressionou para que a Anac concedesse imediatamente um certificado homologando a Varig.

O coronel Jorge Velozo usou a imagem do cozimento de um bife para ilustrar a impossibilidade de queimar etapas a fim de acelerar o processo. Longe do microfone, o coronel Jorge Velozo confirma os detalhes intimidatórios do Dia do Bife. Eu testemunhei isso. Perto do microfone, ele é muito mais acanhado.

Em 22 de agosto, a Anac se reuniu para determinar a abertura do processo licitatório dos "hotrans" e dos "slots" da Varig. No mesmo dia, Roberto Teixeira deu um pulinho no Palácio do Planalto, para se encontrar com Lula. O que aconteceu depois disso?

O juiz Luiz Roberto Ayoub acolheu um recurso apresentado pelo compadre do presidente e desautorizou a Anac, alegando a necessidade de dar um "tratamento excepcional" à Varig. Em 24 de agosto, ele mandou intimar toda a diretoria da Anac.

O flanelinha dos ares garantiu suas vagas em Congonhas. Honorários: 5 milhões de dólares.

Ponto de vista: Claudio de Moura Castro

O Senai na mira do governo

"É um risco trocar um operador historicamente bem-sucedido pela ingerência de outro com folha corrida muito mais incerta. Arriscamo-nos a passar de cavalo para burro"

Ilustração Atômica Studio

Depois de conhecerem o Senai em São Paulo, diretores de escolas de formação profissional da Alemanha mencionaram em seus relatórios que não seria apropriado oferecer cooperação técnica às escolas visitadas.

No máximo, poderiam trocar experiências. Em minha passagem pela OIT e pelo Banco Mundial, o Senai era sempre citado como o exemplo mais eloqüente de boa formação profissional em país do Terceiro Mundo. Visitei dezenas de suas escolas e somente nos doutorados o Brasil oferece qualidade equivalente.

Nos dias que correm, duelam o governo e o Senai. Mais uma tentativa de estatização? Ou de arrancar uma lasca do seu orçamento? O MEC quer ensinar ao "Sistema S" como operar suas escolas?

Como as propostas não são escritas, fica tudo meio no ar. Disputa de poder com sindicatos patronais? Exumação tardia das controvérsias entre soluções privadas e públicas? Talvez os fatos iluminem as batalhas políticas e ideológicas.

Afirma-se que o "Sistema S" não deveria cobrar dos técnicos (o que ocorre em alguns estados), e sim oferecer-lhes ensino gratuito, uma vez que recebe verbas públicas. Esse argumento é tolo. Justificadamente, para poder oferecer mais cursos, o sistema passou a cobrar das empresas e de alunos capazes de pagar.

Mas usa todo o tributo compulsório para oferecer cursos gratuitos ou subsidiados a 1,1 milhão de operários. Comprometidos os recursos, não há como oferecer mais gratuidade. Para cada técnico dispensado de cobrança seria necessário tirar vários operários do sistema.

Um argumento politicamente explosivo é o de que as federações surripiam recursos do Senai, permitindo-se mordomias espantosas. Tal promiscuidade é injustificável.

Felizmente, os gastos do Senai são rotineiramente examinados pelo Tribunal de Contas da União e pelos órgãos estaduais correspondentes. Como nos últimos cinco anos não foram impugnados vazamentos para federações, se eles existem, a falha é dos tribunais.

A guerra dos números ainda não tem vencedores. O Senai é acusado pelo MEC de ser mais caro (por aluno/hora) que os técnicos e universidades federais. Dados do Senai revelam equívocos nas estimativas do MEC que, quando corrigidos, mostram o Senai menos caro, mesmo sem incluir os aposentados do MEC (que, para economistas, são um custo inalienável).

Ainda assim, o Senai ofereceu no ano passado 100 000 atendimentos às empresas, faz pesquisa aplicada, patenteia e mantém equipamentos de última geração em suas escolas.

O MEC propõe criar um fundo com o orçamento do "Sistema S" para ser distribuído de acordo com os méritos de cada curso, medidos por testes que vai preparar. Na teoria, parece interessante (aliás, por que o governo não aplica o sistema antes em suas próprias universidades e com seus próprios técnicos e tecnólogos? Ou no FAT?).

Na prática, há cursos profissionalizantes para centenas de ocupações, cada um podendo ser oferecido em diversos níveis. Não há como o MEC realizar 2 milhões de testes profissionais em oficinas, sobretudo porque jamais fez algum. Tampouco o Ministério do Trabalho conseguiu fazer certificação ocupacional, depois de trombetear suas intenções por décadas.

Por outro lado, a prática consagrada internacionalmente é avaliar os cursos pela empregabilidade efetiva dos graduados e pelo desempenho nos empregos. Sob tais critérios, o "Sistema S" mostra bons resultados. Mas isso jamais foi praticado pelo MEC, que desconhece o destino dos graduados de suas escolas técnicas e universidades.

Obviamente, o "Sistema S" tem falhas que precisam ser impiedosamente cobradas. O Senai e o Senac acumularam uma sólida reputação, mas são teimosos como mulas e respondem lentamente. O Sebrae é criativo, mas com altos e baixos.

Como o Sesi e o Sesc não oferecem formação profissional, para alguns são uma relíquia do papel paternalista dos empresários no Estado Novo. Por que, por exemplo, seus orçamentos são superiores aos do Senai e do Senac?

É um risco trocar um operador historicamente bem-sucedido pela ingerência de outro com folha corrida muito mais incerta. Arriscamo-nos a passar de cavalo para burro. Mas, se as ameaças servirem para corrigir as falhas do "Sistema S", não terão sido em vão.

Claudio de Moura Castro é economista - Claudio&Moura&Castro@cmcastro.com.br


A nova era dos nômades digitais

Como a tecnologia da mobilidade está mudando nossos hábitos e nosso estilo de vida
Luciana Vicária e Thais Ferreira



O travesseiro da universitária Cibele Lima, de 23 anos, vibra às 6h30 todas as manhãs. E não pára de tremer até que ela aperte uma tecla verde localizada debaixo dele.

O confortável travesseiro de espuma não é a última novidade tecnológica do mercado. Tampouco tem alarme. Mas embaixo dele repousa um despertador especial: seu celular.

Cibele não sabe explicar por que o coloca ali. Diz que se sente bem em tê-lo ao alcance das mãos. “Sinto por ele o mesmo que sentia por minha boneca favorita, que eu costumava levar para o berço”, diz. “Ele me dá segurança.”

O celular de Cibele fica ligado dia e noite. A bateria, segundo ela, acabou no máximo três vezes nos últimos 365 dias. Ficar sem ele é um sacrifício, diz Cibele. Ela ainda se lembra, em detalhes, do dia em que passou 12 horas longe de seu celular: “Era como se eu vivesse uma profunda crise de abstinência”.

A jovem esqueceu o aparelho em casa. Só se deu conta quando já estava dentro do ônibus, a caminho da faculdade. Passou o dia sem falar com as pessoas. De vez em quando andava de um lado para o outro, vasculhava a bolsa. “Eu até ouvia ele tocar baixinho. Mas acho que era minha imaginação.”

Para Cibele, o celular é o objeto mais importante na vida. É mais valioso que seus documentos, que o relógio de pulso e até que sua câmera fotográfica. Ela não está sozinha: 18% dos brasileiros se sentem viciados em seus celulares, de acordo com a empresa de pesquisas Ipsos, num estudo divulgado com exclusividade por ÉPOCA.

A taxa é superior à de vários países desenvolvidos. A pesquisa, realizada com 6 mil pessoas de todas as classes sociais, avalia o impacto da mobilidade no cotidiano. Ela replicou aqui um levantamento feito em cinco países da Europa: Reino Unido, Sué­cia, Espanha, Alemanha e França.

As respostas às questões elaboradas pela London School of Economics and Political Science, o mais importante centro de pesquisas e debates políticos da Europa, mostram como o celular está modificando comportamentos da sociedade.

Os brasileiros na faixa de 16 a 24 anos fazem 30% mais ligações e mandam 50% mais mensagens de texto que a geração de 45 a 59 anos. Entre as pessoas de meia-idade, 11% dizem que se sentem indesejadas se o celular não toca pelo menos uma vez por dia. Esse sentimento é relatado por 30% dos jovens.

A média geral dos brasileiros é 22%. “Os jovens estão na ponta de um novo estilo de comportamento, que deve virar o padrão nas próximas décadas”, diz a socióloga americana Noelle Chesley, da Universidade Cambridge, que estuda como as gerações reagem diferentemente à tecnologia.

A principal característica da nova geração é sua mobilidade. A partir do momento em que não faz mais diferença estar em algum lugar para ter, a todo momento, acesso a serviços, pessoas ou informações, mudamos o jeito de nos relacionar com o espaço.

O antropólogo James Katz, chefe do Departamento de Comunicação da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, compara os novos usuários de celular às tribos tuaregues que cruzam o Saara em cima de seus camelos. “Somos nômades modernos”, diz.

A diferença, segundo ele, é que os tuaregues estão à procura de novas pastagens para o gado. E os nômades modernos estão em busca de novos espaços físicos para estudar, trabalhar e se relacionar.


28 de junho de 2008
N° 15646 - Nilson Souza


Ele

Recebemos esta semana em nossa Redação a visita do escritor Sergio Faraco e ele nos contou coisas chocantes sobre o ofício de escriba. Disse, por exemplo, que jamais sabe como serão os finais de seus inexcedíveis contos quando começa a escrevê-los.

Deu a entender que se deixa conduzir pelo texto, como se fosse um principiante e não o reconhecido autor de histórias antológicas que todos admiramos. Pior, e suprema heresia nesta era tecnológica: confessou que redige tudo à mão primeiro e só depois se aproxima cautelosamente do computador para dar o trato final.

A garotada da assistência arregalou os olhos, incrédula. Mas o mais espantoso de seu relato, pelo menos para mim que fui o autor de uma pergunta sobre o tipo de retorno que ele espera do público, foi esta revelação:

- Eu não me importo nem um pouco com o que o leitor pensa daquilo que escrevo!

Neste momento da preleção, nós, os mais calejados, também ficamos arregalados. Aprendi no meu longínquo curso de Jornalismo, pela voz do saudoso professor Ernesto Corrêa, uma lição inesquecível em uma frase, que ele disse ter copiado da parede da redação de um jornal norte-americano:

- Lembre-se que você está escrevendo para ELE!

O ele maiúsculo, explicou-nos o irreverente mestre na ocasião, significava o leitor. Significa você, que está me lendo agora. Escrevo meus textos jornalísticos e também estas crônicas bissextas para que você leia.

Sei, tem muita gente que escreve para as gavetas, já fiz muito disso também, mas acredito que mesmo esses autores voluntariamente anônimos têm lá no fundo de suas tímidas almas a certeza de que um dia alguém os lerá.

Ops, não vou começar a filosofar agora. Volto a Faraco e à sua quase arrogante declaração. Para dizer que ele tem uma justificativa plausível para a sua aparente indiferença pelo leitor.

- Não dou a mínima para críticas ou elogios simplesmente porque sempre procuro fazer o melhor.

Como seu leitor, e conhecendo sua obsessiva busca pela palavra exata, pela frase perfeita, pela mensagem ao mesmo tempo concisa e emocionante, eu poderia atestar que ele sempre consegue fazer o melhor.

Mas, como respeito demais o meu leitor e tenho a pretensão de que o desavisado escriba possa estar entre os poucos que chegaram ao final deste texto, não vou aborrecê-lo com observações tão desimportantes.

sexta-feira, 27 de junho de 2008



27 de junho de 2008
N° 15645 - Liberato Vieira da Cunha


Um disco de vinil

Um dia meu pai chegou em casa com um pequeno milagre. Um único disco, comprado na Casa Coates, continha uma sinfonia inteira de Beethoven.

- É um long-play - explicou.

E mais do que explicar, provou, colocando na eletrola a orquestra inteira da NBC, regida por aquele mágico chamado Arturo Toscanini.

Ensinou-nos então que, diversamente de nossa já alentada coleção de discos 78 RPM, aquele girava em 33 RPM, pois era gravado em microssulcos.

Não foi um exemplar solitário. Não demorou e éramos proprietários de uma larga seleção de elepês, a maioria dos quais dedicados à música clássica.

Sou dono até hoje de uma modesta amostra de discos de vinil, na maior parte devotados à música popular. Só aqui nesta sala onde escrevo, tem uns 50, número que se multiplica na estante do corredor.

Não sei se é ilusão minha, mas me parece que reproduzem músicas mais pura e autenticamente do que os giros dos CDs. Mas talvez não seja.

Leio em ZH que os elepês têm mesmo melhor qualidade de som. Leio mais, nesta boa reportagem de Gabriel Brust. Há mais de uma década a internet mostrou que a informação não precisava de mais de um meio físico isolado para ser armazenada. Podia correr por fios de forma epidérmica, aí incluída a música.

Isso significa na prática que está decretada a morte do CD, em benefício da ascensão e glória do MP3.

Mas não é improvável que dentro em breve me cheguem os primeiros sinais da agonia do MP3. As coisas mudam, a muitas rotações por minuto, neste começo de milênio.

Mas de algo estou seguro. O long-play, o elepê, o disco de vinil vão sobreviver.

Há lojas, nesta Porto Alegre, que continuam a vendê-los, tanto os antigos quanto os novos. Há pessoas, nesta Porto Alegre, que têm seus corações tocados de nostalgia.

Há gentes, como você e eu, que não aprenderam a resistir aos apelos de algumas capas, como esta que tenho agora na mão. Pois nela se resumem o jeito e o espírito das músicas dos Anos Dourados.

Ótima sexta-feira e um excelente fim de semana para todos nós.

quinta-feira, 26 de junho de 2008



O GRANDE CULPADO

ARTE PEDRO DREHER SOBRE FOTOS CP MEMÓRIA
Depois do meu texto radical da última segunda-feira, em que revelei toda a minha desconfiança em relação aos políticos, o deputado Germano Bonow me telefonou. Gentilmente, ele me lembrou que faltava um elo na cadeia de responsabilidade apresentada por mim: o eleitor.

Destacou ainda que, neste ano de eleições municipais, o eleitor poderá, se quiser, arrumar a casa. Não haverá desculpas. Nesse tipo de pleito, de proximidade, cada eleitor poderá recompensar ou punir bons e maus candidatos sabendo quem é cada um, o que faz, de onde vem e o que pretende.

Como não é politicamente correto dizer que os eleitores não sabem votar, fica combinado que eles o fazem em conhecimento de causa. São, portanto, co-responsáveis por aqueles que elegem. Como em 'O Pequeno Príncipe', cada um é responsável pela raposa que cativa.

Eu já propus que prefeitos, governadores e até o presidente da República sejam responsáveis pelos atos ilícitos dos seus secretários e ministros sabendo ou não previamente dos seus golpes. Vou ampliar agora a minha idéia de responsabilidade moral, que já era uma extensão da responsabilidade fiscal, para uma responsabilidade eleitoral.

Toda vez que um político roubar, mesmo que seja para financiar campanha, dez, cem ou mil dos seus eleitores devem ser sorteados para o acompanhar na cadeia. Se houver reincidência, a punição será dobrada. No caso de reincidência do eleitor, ou seja, votar de novo num ladrão, a pena será triplicada.

O eleitor é como a carta roubada da história de Edgar Allan Poe: está em cima da lareira e ninguém a vê por se encontrar num lugar óbvio. O culpado é quem elege. Claro que isso pode se tornar apenas um álibi para eleitos cínicos, ainda mais que essa parece ser uma qualidade essencial em política.

O único defeito dessa idéia é que, como político não vai para a cadeia, os eleitores também serão dispensados de cumprir pena. Há um ponto positivo: não acontecerá a explosão definitiva da população carcerária.

Talvez seja o caso de aceitar a sugestão de um leitor meu bastante antenado: parar de acusar os políticos de desvio de milhões de reais ou dólares. Isso absolve qualquer um.

Roubar muito é sinal de prosperidade, de ambição e de espírito empreendedor. O negócio é denunciá-los por roubo de pote de margarina. Aí é uma questão de princípio. Quem rouba pouco, lesa o alheio e dissemina maus hábitos. Em lugar de receber ou divulgar gravações, a mídia devia conferir o material das câmeras dos supermercados.

Como estou numa fase generosa, dando sugestões gratuitas, aqui vai mais uma proposta: cassar direitos políticos. Isso já existe? Não. Proponho cassar direitos políticos de eleitor que votar duas vezes num mesmo candidato corrupto.

Essa medida de profilaxia surtiria efeito a médio prazo. Outra possibilidade seria o título de eleitor com pontos, a exemplo da carteira de motorista. Cada vez que o eleitor votasse num salafrário, perderia pontos no título, até ter o documento cassado.

Nas carteiras de motorista, porém, tem gente que cobra para assumir infrações alheias. Duvido que alguém pague para transferir pontos perdidos do seu título de eleitor. O contrário seria mais provável.

Uma coisa me parece irrefutável: quem vota em ladrão conhecido, com culpa no cartório e na mídia, tem direito de ser roubado. É como assinar cheque em branco para político. Já imaginaram?

juremir@correiodopovo.com.br

Mesmo com chuva que promete chegar logo, pois que, já é real nas redondezas, que tenhamos todos uma ótima quinta-feira.

quarta-feira, 25 de junho de 2008



25 de junho de 2008
N° 15643 - Martha Medeiros

O vinho ou o carro

Uma coisa que me incomoda é andar de táxi numa cidade estranha. Me sinto impotente, já que o motorista, se for desonesto, pode dar voltas desnecessárias para aumentar o preço da corrida. Recentemente estive fora do país e tive a sensação de que havia sido roubada, mas provar como? Por que não pedi para descer antes? Porque não tinha certeza.

Agora vai ser diferente, porque vou andar de táxi na minha própria cidade, coisa que faço pouco. Daqui pra frente, irei e voltarei da casa de minhas amigas de táxi, irei e voltarei dos restaurantes de táxi, irei e voltarei das festas de táxi.

E a única vantagem é que os trajetos me serão familiares e não serei ludibriada, porque, afora isso, que xaropice. Em vez de ficar bem instalada no meu carro, com ar-condicionado, ouvindo meu som e dando carona para os amigos, vou virar refém de alguma cooperativa. Tudo porque eu adoro um bom vinho e me recuso a jantar tomando refrigerante ou água.

Eu bebo e pretendo continuar bebendo. Nunca provoquei um acidente sério, jamais dirigi na contramão ou fiz alguma insanidade nas ruas.

Do que se conclui que meu anjo da guarda está merecendo um aumento de salário. Ou que minhas doses não são tão exageradas assim. Mas agora não existe mais o conceito de exagero. Tolerância zero.

O Congresso aprovou a lei que torna todo acidente causado por motorista alcoolizado em um crime doloso, com intenção de matar. A sociedade aplaude, mas quem é a sociedade?

Não é uma entidade abstrata. Não é aquele pessoal que mora no edifício da esquina. É você, sou eu, criaturas civilizadas e de bom caráter, que se reúnem em torno de uma mesa para celebrar a vida tomando alguns drinques e que voltam pra casa ligeiramente mais alegres do que saíram, sem nenhuma intenção de matar - tanto que nunca matamos.

Porém, as estatísticas de violência no trânsito estão aí para provar que as infrações estão quase sempre associadas a bebida. Eu poderia estar citando, como praxe, os moleques que entornam um engradado de cerveja e depois voam a 120 km/h em vias urbanas só para se sentirem machos em seus possantes carros, essa coisa estúpida que a gente vê acontecer a toda hora.

Mas não: dessa vez estou virando o gatilho das palavras para mim mesma, que tenho idade mais que madura, uma consciência mais que formada, uma auto-estima bem resolvida, e que mesmo não tendo necessidades exibicionistas e respeitando meus limites, ainda assim já poderia ter provocado algum incidente num fim de festa. Bastaria uma única vez e babaus.

Para mim, vai ser uma difícil mudança de hábito. Gosto de dirigir, gosto de me sentir independente, e as pessoas com quem saio também gostam. Mas acabou esse conforto: freqüentarei os restaurantes perto da minha casa, de onde posso voltar a pé, ou virarei assídua dos táxis nas poucas vezes em que saio à noite.

Não há outra saída. E me ofereço como exemplo justamente para não perpetuar a hipocrisia de levantarmos a voz contra os problemas (função comum de colunistas e repórteres) esquecendo de fazer nossa parte para combatê-los.

Ninguém mais é inocente.

Eu não vivo sem um bom vinho, mas vou aprender a viver sem carro quando for preciso. A contragosto. Mas é uma questão de coerência com o que sempre preguei.

Bem, meus amigos, hoje tem sol e um céu azul embora o friozinho permaneça. Que tenhamos todos uma ótima quarta-feira. Aproveite, namore hoje, afinal é o Dia Internacional do Sofá.

domingo, 22 de junho de 2008


DANUZA LEÃO

No que dá ter juízo

Uma turma de desanimados, pois não temos mais coragem de beber além da conta, de falar bobagens

TENHO OUVIDO, cada vez mais, homens e mulheres reclamando da vida, dizendo que estão achando tudo chato, que são pouquíssimas as pessoas com quem querem conversar; sair, nem pensar.

Uma vez a cada 15 dias, para não virar bicho do mato de vez, aceitam ir jantar fora com dois, três amigos, e voltam dizendo "eu não tinha nada que ter ido, já sabia que ia ser uma chatice, da próxima não vou mais".

Jantares com mais gente, esses não há hipótese, e se houver pessoas famosas por serem interessantíssimas, mas que você não conhece, aí é que não vai mesmo.

Não há show de Chico Buarque, João Gilberto, Caetano, que entusiasme essa gente. Ah, o flanelinha, ah, a multidão, ah, a confusão da saída;

e se alguém propusesse que um desses cantores fizesse um show só para ele, alguma desculpa seria arranjada para não querer. A única coisa que os agrada é ficar em casa, vendo televisão ou lendo um livro, de preferência sós.

Mas os que trabalham em alguma coisa interessante têm uma saída: falar de trabalho. A vida vai ficando cada vez mais difícil, as pessoas cada vez mais sós, mas nem por isso infelizes. Qualquer coisa, menos estar com gente.
Dá para entender? Pensando bem, até que dá.

Houve um tempo em que essas mesmas pessoas eram a alegria das festas; dançavam, diziam bobagens, eram engraçadas, todo mundo gostava delas, o telefone não parava de tocar, e a vida era muito divertida.

O que aconteceu então? A idade que chegou? Não necessariamente, pois existem reclusos em todas as faixas etárias. As festas são menos animadas? Para eles são, mas há gente que não perde uma e acha todas ótimas.

Mas então que história é essa de não querer sair, não querer ver gente, não querer conhecer ninguém novo, nem -e sobretudo- Gisele Bündchen? Ah, os mistérios dessa vida.

Aí comecei a prestar atenção a essas pessoas, para saber em que elas mudaram -sim, porque está claro que foram elas que mudaram. O mundo continua o mesmo.

Lembrei de cada uma delas, pensando que nenhuma tinha responsabilidades, empresas, mulher, ex-mulher, filho. Todos podiam ir à praia, e há alguma coisa mais irresponsável do que passar a manhã pegando sol e dando um bom mergulho? E uma pessoa queimada de sol pode ser infeliz? Abaixo os dermatologistas, em primeiro lugar a felicidade.

Qual foi a mudança que aconteceu com cada um deles, que se tornaram preocupados com o futuro, com a bolsa, se subiu ou desceu, com os países asiáticos, com o futuro da China?

É que naqueles ótimos tempos ninguém tinha juízo. A vida corria mansa, sem uma só preocupação com o o futuro -futuro? E isso existia?-, mas com o tempo fomos ficando responsáveis e ganhando juízo.

De tanto ouvir nossos pais dizendo "essa menina precisa criar juízo", criamos, e somos hoje uma turma de desanimados, quase deprimidos, pois não temos mais coragem de falar bobagens, cobiçar ostensivamente a mulher do próximo, beber além da conta, dar um grande vexame, e sobretudo, sobretudo, deixar de ir ao trabalho numa quarta-feira para ir à praia, porque criamos juízo.

Como era bom o tempo em que não tínhamos nenhum.

danuza.leao@uol.com.br

JOSÉ SIMÃO

Socuerro! A Gisele já tá coroa!

Desfile agora é pocket show: uma hora de espera pra três minutos de diversão!

BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta! Piada pronta e enlatada: "Quadrilha rouba festa junina".

E a grande e única novidade é que o Dunga foi promovido. De burro pra jumento. É verdade. No jogo contra o Paraguai, gritavam: "Burro, burro". E no jogo contra a Argentina: "Jumento, jumento". É um upgrade!

E um amigo meu artista plástico comprou um pincel caro pra caramba. Aí chegou em casa e viu o que estava escrito: "Pêlo de marta!" Isso já é perseguição. Pincel Pêlo de Marta. Depilaram a madame. Rarará!

Aliás, diz que o Kassab vai fazer uma campanha antiecológica: a favor do DESMARTAMENTO! E eu tava vendo uma matéria sobre cirurgia de troca de sexo, quando apareceu um oficial do Exército recém-operado. Escrito embaixo: EX-CABO!

E uma prefeita do PSDB inaugurou um arraiá chamando Pau de Santo Antônio de Mastro de Festejos Juninos. Tucanaram o pau de santo Antônio! Rarará!

E eu sei como resolver o problema da Amazônia. Cimenta tudo e vira estacionamento? Não, faz 18 buracos e vira campo de golfe! Rarará! Fashion Bicha! Adoro as modelos.

Tem uma tão branca que parece a larva da dengue. A Volta das Minhocas Albinas! Um monte de osso se equilibrando em salto alto. Rarará! E quando elas andam parece que vão partir ao meio!

E são todas franguinhas. A Gisele já tá coroa! Tia, me passa o cabide! E o pessoal da Fashion Bicha é tão fashion que, quando vai ao banheiro, só faz Cocô Chanel!

E desfile agora é tudo pocket show. Três minutinhos. É como no Playcenter: uma hora de espera pra três minutos de diversão! Eu adoro moda, e moda no Brasil é jeans e camiseta.

Aí as bibas vão pra boate e tiram a camiseta! Roupa é pra tirar.Como disse uma amiga minha: "Eu não quero roupa fácil de usar, quero roupa fácil de tirar".

E todo ano eu conto a mesma piada: sabe por que as modelos têm um neurônio a mais que os cavalos?

Pra não fazer cocô na passarela. De repente, elas pensam que é Sete de Setembro. Rarará! E acabou a frescura. Moda agora é mercado. Todo mundo sério!

E a maior invenção da moda: sandália Havaianas. A coisa mais democrática do mundo. Todo mundo usa: do mendigo ao surfista.

E eu tava vendo um programa policial quando apareceu um PM: "Estamos na captura de um elemento pardo de bermuda e sandália Havaianas". Então prende o Brasil!

Nóis sofre, mas nóis goza. Hoje, só amanhã. Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

simao@uol.com.br

MARIA RITA KEHL

O impensável

Não haverá solução se a outra parte da sociedade, a zona sul, não se posicionar radicalmente contra esse extermínio não oficial

O INIMAGINÁVEL acontece. Supera nossa capacidade de prever o pior. Conduz-nos até a borda do real e nos abandona ali, pasmos, incapazes de representar mentalmente o atroz. O pior pesadelo do escritor Primo Levi, em Auschwitz, era voltar para casa e não encontrar quem acreditasse no horror do que ele tinha a contar.

Acreditar no horror exige imaginá-lo de perto e arriscar alguma identificação com as vítimas, mesmo quando distantes de nós. Penso no assassinato dos cidadãos cariocas David Florêncio da Silva, Wellington Gonzaga Costa e Marcos Paulo da Silva por 11 membros do Exército encarregados de proteger os moradores do morro da Providência.

Assassinados por militares, sim, pois não há diferença entre executar os rapazes e entregá-los à sanha dos traficantes do morro rival. A notícia é tão atroz que o leitor talvez tenha se inclinado a deixar o jornal e pensar em outra coisa.

Não por insensibilidade ou indiferença, quero crer, mas pela distância social que nos separa deles, abandonamos mentalmente os meninos mortos à dor de seus parentes.

Abandonamos os familiares que denunciaram o crime às possíveis represálias de outros "defensores da honra da instituição". Desistimos de nossa indignação sob o efeito moral das bombas que acolheram o protesto dos moradores do Providência.

Nós, público-alvo do noticiário de jornais e TV, que tanto nos envolvemos com os assassinatos dos "nossos", viramos a página diante da morte sob tortura de mais três rapazes negros, moradores dos morros do Rio de Janeiro.

É claro que esperamos que a justiça seja feita. Mas guardamos distância de um caso que jamais aconteceria com um de nós, com nossos filhos, com os filhos dos nossos amigos.

O absurdo é uma das máscaras do mal: tentemos enfrentá-lo. Façamos o exercício de imaginar o absurdo de um crime que parece ter acontecido em outro universo. Como assim, demorar mais do que cinco minutos para esclarecer a confusão entre um celular e uma arma?

E por que a prisão por desacato à autoridade? Os rapazes reclamaram, protestaram, exigiram respeito -ou o quê? Não pode ter sido grave, já que o superior do tenente Ghidetti liberou os acusados.

Mas o caso ainda não estava encerrado? O tenente, que não se vexa quando o Exército tem que negociar a "paz" no morro com os traficantes, se sentiu humilhado por ter sido desautorizado diante de três negros, mais pés-de-chinelo que ele?

Como assim, obrigá-los a voltar para o camburão -até o morro da Mineira? Entregues nas mãos dos bandidos da ADA em plena luz do dia, como um "presentinho" para eles se divertirem? Era para ser "só uma surra"? Como assim?

Imaginaram o desamparo, o desespero, o terror? Não consigo ir adiante e imaginar a longa cena de tortura que conduziu à morte dos rapazes. Mas imagino a mãe que viu seu filho ensangüentado na delegacia e não teve mais notícias entre sábado e segunda-feira. E que depois reconheceu o corpo desfigurado, encontrado no lixão de Gramacho.

Imagino a cena que ela nunca mais conseguirá deixar de imaginar: as últimas horas de vida de seu menino, o desamparo, o pânico, a dor. "Onde o filho chora e a mãe não escuta" era como chamávamos as dependências do Doi-Codi onde tantos morreram nas mãos de torturadores.

Ainda falta imaginar a promiscuidade entre o tenente, seus subordinados e os assassinos do morro da Mineira: o desacato à autoridade é crime sujeito a pena de morte e a tortura de inocentes é objeto de cumplicidade entre traficantes e militares?

Claro, os traficantes serão mortos logo pelo trabalho sujo do Bope. Se outros cidadãos morrerem por acidente, azar; são as vicissitudes da vida na favela.

Quando membros corruptos da PM carioca mataram a esmo 30 cidadãos em Queimados, houve um pequeno protesto em Nova Iguaçu. Cem pessoas nas ruas, familiares dos mortos, nada mais. Nenhum grupo pela paz foi até lá.

Nenhuma Viva Rio reuniu gente de branco a marchar em Ipanema. Ninguém gritou "basta!" na zona sul. Não é a mesma cidade, o mesmo país. Não nos identificamos com os absurdos que acontecem com eles.

Não haverá um freio espontâneo para a escalada da truculência da Polícia e do tráfico, nem para o franco conluio entre ambos (e, agora, membros do Exército) que vitima, sobretudo, cidadãos inocentes.

Não haverá solução enquanto a outra parte da sociedade, a chamada zona sul -do Rio, de São Paulo, de Brasília e do resto do país-, não se posicionar radicalmente contra essa espécie de política de extermínio não oficial, mas consentida, a que assistimos incrédulos, dos negros pobres do Rio.

MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta, autora do livro "Sobre Ética e Psicanálise" (Cia. das Letras, 2002).

sábado, 21 de junho de 2008



22 de junho de 2008
N° 15640 - Martha Medeiros


Um homem para combinar com o vestido

Dois filmes em um. É assim que defino o badaladésimo Sex and the City.

Assisti a pouquíssimos episódios da série de tevê, e essa falta de intimidade com as quatro moças me deu um certo distanciamento para analisar o que se passa ali, na tela do cinema, naquela Nova York hiperglamurizada, onde o mundo fashion é um quinto personagem.

Em minha análise de leiga, considero que a primeira parte do filme vai até a cena do casamento de Carrie com Mr. Big. Até ali, vi mais ou menos o que estava preparada para ver: um desfile non-sense de roupas que nenhuma mortal se atreveria a vestir à luz do dia (alguns dos modelitos eu não vestiria nem no escuro, mas como sigo a cartilha do "menos é mais", não sirvo de parâmetro).

Percebi também uma certa histeria feminina, aquele desespero que fica latente quando um grupo de mulheres se encontra para falar de bolsas, sapatos e homens, nessa ordem. Uma confraria de colecionadoras - dos três itens!

Até mesmo a direção do filme, nessa primeira parte, me pareceu mais frenética, ou eu é que estava lenta demais e não consegui acompanhar a rapidez dos acontecimentos e a excitação daquelas quatro.

Então acaba a cena do casamento, e a impressão que dá é que houve uma troca de roteirista - um novo filme começa. Não que se transforme automaticamente num drama existencialista francês.

Segue glamouroso, divertido, mas já não é tão fútil. É como se as quatro tivessem levado um balde de água fria (de certa forma, levaram) e resolvessem parar de pensar como colegiais, dando lugar a questionamentos mais maduros.

Claro, a profundidade é a mesma da série de tevê - água pela canela - mas o filme mostra claramente a confusão que algumas mulheres fazem ao alcançar sua independência: acreditam que o individualismo faz parte do pacote. Não é bem assim.

Trabalhar, ganhar nosso próprio dinheiro, defender nossas idéias, o.k., é imprescindível. Mas estamos tão obcecadas em proteger essa importante conquista que passamos a ter dificuldade em partilhá-la com quem, a priori, não faz parte do nosso time: eles.

Se por um lado é muito bacana ver no filme as quatro personagens cultivando uma amizade saudável, íntima e verdadeira entre elas, por outro soa meio antigo que essa amizade seja a única maneira de elas conseguirem conjugar a primeira pessoa do plural: nós. Nós, mulheres. Nós, as poderosas. Nós com nossos filhos, nossas secretárias e nossos amigos gays.

Na hora de pensar em "nós" em termos de casal, surge a dificuldade do relacionamento. Algumas mulheres encaram os homens como acessórios de luxo. Não pega bem sair de casa sem um homem, assim como não pega bem sair de casa com qualquer roupa. É como se os homens tivessem que combinar com nosso vestido.

Seguimos acreditando que mulher sem homem é uma mulher incompleta, e eles acabaram se transformando, também, num objeto de consumo. Só que estruturar uma relação afetiva requer bem mais do que bom gosto.

De todos os Manolo Blahnik, Prada e Louis Vuitton que fazem parte do elenco de Sex and the City, o que mais curti foi ver as mulheres se darem conta de que, ao abrirem seus closets, não encontrarão um amor prêt-à-porter.

Desaprendemos a dizer "nós" quando tivemos que lutar pelos nossos direitos: maternidade, profissão, sexo livre, tudo isso passou a dizer respeito ao "eu" da mulher, e foi fundamental esse mergulho particular para chegar até aqui.

Agora é hora de reaprendermos a dizer o "nós", não mais como a parte submissa da dupla, e sim como parceiras de um homem que já entendeu o novo mundo em que vive, já nos aceitou como independentes, e que agora nos quer menos controladoras e mais amigas, mais amantes, e por que não dizer, mais despidas.

Gostei, ela sabe das coisas. Um ótimo domingo para todos nós e um excelente início de semana.

Diogo Mainardi

O cimento da tragédia

"É um erro imaginar que se possa combater a criminalidade com a reforma de uns casebres, o Extreme Makeover: Home Edition da Igreja Universal. Se a Nona Brigada de Infantaria Motorizada subisse o morro para desmantelar o tráfico, talvez a barbárie pudesse ser contida"

– O presidente Lula gostou muito, dando a ordem para que fosse executado.

Do que é que Lula gostou tanto assim? Do projeto Cimento Social, do bispo Crivella. Quem declarou isso foi o vice-presidente José Alencar, num ato público, no Rio de Janeiro, menos de três meses atrás.

O bispo Crivella está sendo politicamente responsabilizado pelo que aconteceu na última semana, quando alguns soldados arregimentados pelo projeto Cimento Social se envolveram no assassinato de moradores de um morro carioca.

Mas havia alguém acima dele. Quem? O de sempre: Lula. Segundo José Alencar, o projeto só saiu porque Lula mandou o Ministério das Cidades liberar o dinheiro. E só saiu também porque o presidente mandou o Comando Militar tocar as obras na favela.

O projeto Cimento Social tinha tudo para dar errado. E deu. O cadastro dos moradores cujas casas seriam reformadas foi feito por integrantes da Igreja Universal, do bispo Crivella.

O Ministério das Cidades liberou o dinheiro antes mesmo que o projeto de lei sobre a matéria fosse aprovado. As obras foram usadas como material de propaganda do bispo Crivella, candidato à prefeitura do Rio de Janeiro. O Comando Militar do Leste emitiu um parecer contrário ao projeto, temendo algo parecido com o que de fato ocorreu.

Um documento militar acusou dois assessores do bispo Crivella – chamados de Eduardo de Tal e Gilmar de Tal – de negociar uma trégua com os traficantes do Comando Vermelho, que dominavam o morro. Foi desse projeto que Lula de Tal gostou muito, "dando a ordem para que fosse executado".

Lula loteou a Petrobras e o Banco do Brasil. Agora sabemos que ele deu um passo adiante e loteou também as Forças Armadas. O PRB, do bispo Crivella, aparentemente ficou com a Nona Brigada de Infantaria Motorizada, que ocupou por seis meses seu curral eleitoral.

O Instituto Pereira Passos me forneceu os dados sobre a criminalidade na zona atendida pelos militares, no primeiro trimestre de 2008, comparando-os aos do mesmo período do ano anterior. Aumentaram os roubos.

Aumentaram os furtos. Os assassinatos diminuíram ligeiramente. Para Tarso Genro, a tragédia demonstrou de uma vez por todas que é um erro empregar soldados no combate aos traficantes. Como assim? Quem combateu os traficantes? Os soldados só ajudaram a caiar uns muros e a trocar umas telhas.

O que a tragédia demonstrou foi justamente o contrário: é um erro imaginar que se possa combater a criminalidade com a reforma de uns casebres, o Extreme Makeover: Home Edition da Igreja Universal.

Se a Nona Brigada de Infantaria Motorizada subisse o morro para desmantelar o tráfico, talvez a barbárie pudesse ser contida.

Os soldados entregaram os suspeitos de pertencer ao Comando Vermelho aos assassinos de um bando inimigo, o Ada. Pelo que se soube, o chefe do Ada gostou muito. E deu a ordem para que eles fossem executados.

Ponto de vista: Lya Luft

Ainda se caçam bruxas

"Cair na armadilha do rancor primitivo e da atitude destrutiva torna a vida uma selva onde pessoas honradas são impedidas de executar projetos positivos, e às vezes têm sua vida injustamente aniquilada"

O motorista de táxi de um aeroporto deste Brasil xingava um político, acusado no rádio por ter-se encontrado ali mesmo, dias atrás, com um suspeito de corrupção. "Viu só?", ele vociferava, "viu só?".

Cansada de aeroporto e do assunto – e porque logo antes alguém tinha me dito: "Olha aí o fulano, fotografado ao lado do sicrano, que é suspeito de corrupção! Certamente ele também é..." –, fui curta e direta: "Meu filho, se sua namorada conversar com uma moça desonesta e disserem que por isso ela também é desonesta, você vai gostar?".

Ele olhou sobre o ombro, meio espantado: "Sabe que a senhora tem razão?". Comentei: "Chama-se a isso caça às bruxas". Chegando ao meu destino, não tive tempo de explicar mais.

Na Idade Média, uma tropa de psicopatas autorizados caçava gente com o entusiasmo com que se caçariam animais selvagens.

O maior divertimento era julgar, esfolar vivo e queimar na fogueira, depois de outros inimagináveis sofrimentos. Quem eram as vítimas da Igreja daqueles tempos? Em geral mulheres simples, que lidavam com o que hoje chamaríamos medicina alternativa – a sabedoria popular de suas antepassadas.

Havia também os bruxos, os que diferiam da doutrina religiosa ou da política dominante, contrariavam alguma autoridade, ou, ainda, aqueles cujo vizinho não ia com sua cara. Relatos e atas oficiais desses processos públicos enchem milhares de páginas da época, e nos dão vergonha de ser humanos.

Eu, que em dois livros infantis criei a simpática e marota Bruxa Boa Lilibeth, achava que neste mundo dito moderno nossa falta de limite estava só na má-criação em casa e na escola, na inversão de público e privado, no interesse pelas calcinhas de certas moças (ou na falta delas) e na postura geral de desleixo que se espalha.

Engano meu. Melhoramos, nos civilizamos, cortamos alguns preconceitos. A servidão, ao menos concreta e legal, acabou.

Servidões morais temos muitas. Uma delas é esse impulso primitivo, das cavernas, de destruir, essa ferocidade no julgar e sentenciar, essa vontade de que o outro se dê mal. Parecemos doentes de ansiedade por ver alguém enxovalhado, por baixo, sem remissão. Muito além da lei e da Justiça, queremos sangue – ainda que seja o sangue moral, o sangue da alma.

Sou quase fanática contra os crimes, incluindo a corrupção. Valorizo muitíssimo a lei. Quero o infrator julgado e severamente punido. Apóio todas as justas ações da polícia para proteger a sociedade, isto é, cada um de nós. Mas desgostam-me procedimentos que agridem levianamente, interrogatórios em vez de diálogos, ataques de qualquer ângulo, a execução moral de inocentes na fogueira da opinião pública, mais disposta a ver o mal em tudo.

Por toda parte no país, ao lado da Justiça e da lei que funcionam, esta parece ser a hora dos cantos escuros da psique humana e da democracia, lá onde lei e Justiça não funcionam direito. Ainda bem que a maioria de nós não é assim.

Naquela mesma viagem, numa palestra, um grupo de jovens questionava a agressividade com que se tratam pessoas em situações como as das mais variadas CPIs, desde o tempo do falecido mensalão. Há interrogatórios violentos, alusões cruéis, ofensas diretas; quebram-se todos os limites da decência em que deviam ocorrer dignamente perguntas e esclarecimentos entre homens dignos.

Os jovens tinham razão na sua perplexidade. Respondi que bastava ler um pouco de história dos povos para ver que não há nada de novo entre nós. Às vezes, como grupos ou como sociedade, adoecemos.

Não é generalizado, não é permanente: por isso podemos acreditar em respeito no convívio público.

Cair na armadilha do rancor primitivo e da atitude destrutiva torna a vida uma selva onde pessoas honradas são impedidas de executar projetos positivos, e às vezes têm sua vida injustamente aniquilada.

É quando as bruxas boas fogem nas suas vassouras, deixando-nos um mundo mais sombrio.

Lya Luft é escritora

Ruth de Aquino, de Pequim

Especial China - A nova superpotência

ÉPOCA foi a Pequim, Xangai e a vilarejos rurais para entender esse país que atrai de empresas a jovens estrangeiros em busca do mundo novo. Nesta reportagem e na série que publicaremos até as Olimpíadas de Pequim, tentaremos desvendar o mistério chinês

Confira a seguir um trecho dessa reportagem que pode ser lida na íntegra na edição da revista Época de 23/junho/2008.

Assinantes têm acesso à íntegra no leia mais no final da página.

CONTRASTE

As gêmeas Huizi (à esq.) e Liangzi, de 18 anos, vivem num campus universitário em Pequim. Huizi se veste assim e pinta cada unha com esmalte de cor diferente. Liangzi foi produzida para lembrar a China antiga. Como todas as jovens urbanas, não querem casar antes dos 30 anosQuando as gêmeas nasceram, há 18 anos, na província de Liaoning, no nordeste chinês, seus pais se sentiram abençoados.

Era como tirar a sorte num país que proíbe mais de um filho. Ter gêmeos era uma forma de driblar legalmente o decreto governamental que criou na China uma geração de 90 milhões de filhos únicos – estudiosos, trabalhadores, competitivos, patriotas e orgulhosos de ser chineses.

Num país de mais de 5 mil anos, regido mais pela superstição que pela religião, os pais deram às filhas os nomes de Chen Huizi e Chen Liangzi. Chen é o sobrenome das gêmeas (na China, o nome de família vem em primeiro lugar). Huizi significa “filha inteligente”, e Liangzi “filha de bom coração”.

Elas tinham 17 meses quando seus pais se divorciaram. O divórcio ainda é um tabu tão forte na China que as duas mentiram para mim num primeiro momento: disseram que o pai havia morrido. Como os jovens do interior, de família pobre com alguma posse, Huizi e Liangzi foram enviadas a Pequim para estudar na universidade. Dormem com mais quatro estudantes.

Não usam celular porque a mãe acha caras as tarifas. São exceção. Há mais de 540 milhões de celulares na China. As gêmeas querem ser aeromoças. “Para aprender etiqueta, saber comer com garfo e faca e voar no céu”, diz Huizi, cinco minutos mais velha que Liangzi. Não sonham casar tão cedo. Acham a vida de casada um tédio.

Sua diversão maior é cantar nos karaokês, numa das centenas de salas fechadas e computadorizadas, em prédios da rede Party World, onde imitam suas cantoras favoritas: a coreana Cai Yan ou a banda S.H.E, de Taiwan.

As duas irmãs acham o presidente, Hu Jintao, e o primeiro-ministro, Wen Jiabao, “boas pessoas, que se preocupam com os pobres e os velhos”. Sabem que a internet é filtrada por dezenas de milhares de censores, mas não se importam. “A internet é proibida”, diz a “filha inteligente”. Elas não têm televisão. Devem assistir às Olimpíadas na TV comum da universidade.

Não imaginavam que os Jogos já custaram ao país US$ 34 bilhões, nem avaliam quanto isso significa, porque recebem 600 iuanes de mesada (US$ 90). Sabem que a festa olímpica vai começar no dia 8 do mês 8 de 2008, porque o número oito tem o som de “prosperidade” no mandarim, idioma chinês.

Encontrei Huizi, a “inteligente”, ao lado de uma escola de wushu, conjunto das artes marciais chinesas, à espera do namorado. Estava vestida como posou para a foto ao lado, um visual pop.

Sua irmã foi produzida num longo de seda vermelho da estilista Gu Lin. Nos trajes, a convivência entre o novo e o antigo na China borbulhante de hoje. O calor era tão intenso em Pequim que cobrou um preço sobre a magreza etérea das moças. Liangzi, a “de bom coração”, desmaiou na sessão de fotos na rua.

Para as gêmeas, que vivem num país onde filmes com sexo, livros políticos e shows de rock americano são proibidos, o Ocidente é sinônimo de “mistério”. Para nós, ocidentais, a China é exatamente o mesmo.

Um mistério. Na China, um carro é registrado a cada seis segundos. Cidades brotam como cogumelos. Arranha-céus sobem como aspargos no horizonte.

A China é um caleidoscópio que confunde, irrita e fascina. Tudo impressiona pela magnitude. São quase 10 milhões de quilômetros quadrados, 1,3 bilhão de habitantes, um quinto da população mundial. São 56 etnias, mas 92% pertencem à etnia Han. O idioma oficial, o mandarim, tem 80 mil caracteres.


21 de junho de 2008
N° 15639 - Nilson Souza


Madrastas

O filme Branca de Neve e os Sete Anões acaba de ser escolhido o primeiro de seu gênero pelo Instituto de Cinema Americano, que divulgou esta semana o ranking das cem melhores obras cinematográficas dos últimos cem anos.

O cinema deu forma, cores e a emoção do movimento a esta que é uma das mais fantásticas histórias infantis de todos os tempos, recolhida pelos irmãos Grimm na memória popular alemã, mas de origem desconhecida.

É uma fábula cheia de mensagens positivas, mas com uma terrível maldição que perdura até hoje: a rotulação das madrastas como pessoas más e invejosas.

Branca de Neve é linda e ingênua, os anões são trabalhadores e simpáticos, o príncipe é valente e generoso, mas o personagem mais marcante da história é mesmo a rainha, com seu espelho mágico, seu ciúme e sua maçã envenenada.

É em torno dela que a trama gira. Na ânsia doentia de ser mais bela do que a enteada, ela se transforma em bruxa e abre a caixa de maldades.

Nenhuma é bem-sucedida, pois até o sono eterno acaba sendo interrompido pelo beijo de Sua Alteza. Mas o estereótipo ficou: madrasta virou sinônimo de mulher má. O Aurelião chega a usar um palavrão para definir o termo: mulher ou mãe descaroável. Credo!

Pois bem, os costumes mudaram e hoje cada família tem uma ou mais madrastas, pois as pessoas casam-se, descasam-se, recasam-se, e as crianças crescem convivendo com homens e mulheres que nem sempre são os seus pais biológicos.

Neste contubérnio moderno, muitas mães emprestadas, certamente a absoluta maioria, desmentem o rótulo, são carinhosas, cuidam bem dos filhos das outras mulheres, amam e se esforçam para serem amadas.

Para driblar o estigma, algumas preferem ser chamadas de tias, de amigas, de qualquer coisa que não lembre a denominação infamante. Ainda que de vez em quando uma ou outra encarne o espírito da bruxa má, são exceções.

Quase todas que conheço fazem o possível para vencer a maldição, dedicam-se de corpo e alma à conquista dos enteados e ficam felizes quando recebem um retorno em carinho e reconhecimento. São umas injustiçadas as madrastas.

Mereciam, no mínimo, que a história fosse reescrita e que o filme festejado recebesse uma continuação, para a qual permito-me imaginar um final feliz. Uma criança beija a bruxa e o feitiço se desfaz: todos nós acordamos e paramos de estigmatizar estas segundas mães.

Ótimo sábado excelente fim de semana especialmente para você.

sexta-feira, 20 de junho de 2008



20 de junho de 2008
N° 15638 - Liberato Vieira da Cunha


As pessoas em geral

Uma leitora, que requer anonimato, e que por isso aqui chamarei de X., me escreve para contar uma fábula. Em sua pequena cidade, que apelidarei de Y., desabou certa vez um ciclone.

Depois que as pessoas em geral trataram de desimpedir as ruas, de abrigar as famílias sem lar no ginásio municipal, de cobrir as casas que tinham perdido o telhado, o boêmio local perguntou o que fariam pela Praça da Matriz.

A Praça da Matriz possuía um roseiral, um chafariz que à noite projetava uma cascata em várias cores, três estátuas de ninfas tombadas pelo vendaval. Tudo aliás estava arrasado pelo vento e pela tormenta.

As pessoas em geral opinaram que aquilo podia esperar, mas o boêmio local, que tratarei de Z., espantosamente sóbrio, argumentou que a Praça da Matriz ocupava um lugar no coração de todos eles e que seria uma vergonha deixá-la assim, humilhada e ofendida.

E com tanta segurança discursou que as pessoas em geral reservaram um fim de semana para repor o roseiral, iluminar a cascata e reerguer as ninfas às suas posições originais.

Foi quando o boêmio local lembrou que a biblioteca, inundada por uma espécie de maremoto, merecia atenção urgente. As partes inferiores das estantes, precisamente onde ficavam as obras históricas, eram as mais maltratadas. As pessoas em geral torceram o nariz para aquele capricho, mas terminaram montando um pelotão de resgate dos livros ameaçados.

O boêmio local recordou então o museu que, como ficava numa ladeira, represara em seus degraus as vagas. Toda a sala que preservava a herança dos primeiros povoadores havia sido alagada. As pessoas em geral acharam um desperdício, mas uma equipe foi destacada para salvar potes, flechas, cachimbos de gerações de índios exterminados.

O boêmio local não descansou.

Evocou as perdas do Arquivo Público, do Cemitério, do Solar da Condessa, do Coral dos Meninos, da Orquestra de Violões, do Clube de Xadrez.

Sustentou que, como todos se tinham dado as mãos na adversidade, era hora de se mostrarem mais solidários e renunciarem a pequenos egoísmos. Só que, a essa altura, as pessoas em geral começaram a achar que ele estava muito saliente e o trancafiaram dentro de uma garrafa.

Neste dia/noite quando começa o inverno, chove nesta Porto e que por isso não está nada alegre. Mesmo assim, uma ótima sexta-feira e um excelente fim de semana.

sábado, 14 de junho de 2008



15 de junho de 2008
N° 15633 - Martha Medeiros


Dentro da mala

Viajar de avião já teve seu encantamento, hoje é um incômodo. Fila no check in, controle de bagagem, detector de metais, espera na sala de embarque e o indefectível aviso de que o vôo sairá com atraso.

Depois ficar enlatado dentro da aeronave mal podendo se mexer, rezar para que um jatinho não colida com a gente, que o controlador de vôo não esteja cansado e, por fim, ter que aguardar sua mala surgir na esteira, e ela sempre será a última a aparecer.

Se aparecer.

Na última vez que saí do país, viajei com uma mala, digamos, bem nutrida. Fiquei fora 15 dias e levei um pedacinho da minha vida comigo. Passei por todas as etapas da chatice de voar e quando chegou a hora da esteira, adivinhe: extravio.

Nenhuma notícia da bagagem. A recomendação que recebi da companhia aérea: "Vá para seu hotel e quando localizarmos sua mala, a entregaremos lá. No máximo até amanhã ela aparece".

Numa cidade estranha, em outro país, eu me encontrava apenas com a roupa do corpo e meus documentos. Nada mais. "No máximo até amanhã" era uma infinidade de tempo, isso na hipótese de ela reaparecer mesmo. E se a mala tivesse sido desviada para a Namíbia e de lá nunca mais voltasse?

Eis uma experiência para avaliar seu apego às coisas que realmente importam. Claro que você vai lembrar daquele vestido que talvez nunca mais veja ou do sapato que usou só uma vez, mas isso tem mesmo tanto valor? Eu sentia falta era da minha escova de dentes.

E de uma foto que eu havia levado das minhas filhas, e que era a minha preferida. E de um anel que joalheiro nenhum daria um níquel, mas que pra mim valia como se fosse um diamante da Tiffany. O anel havia sido da minha avó.

E meu secador de cabelos. E meu creme depilatório. E meus batons. "No máximo até amanhã" eu teria virado uma mulher das selvas.

Dentro da mala estava meu diário de viagens, onde já havia relatado os primeiros dias transcorridos, além das dicas de lugares sugeridos pelos amigos e observações que, de cabeça, não conseguiria recuperar. Dentro da mala, também, a máquina fotográfica já com um monte de fotos armazenadas.

Uma farmácia em qualquer esquina resolve as necessidades práticas mais urgentes, mas e aquilo que não se substitui? Como, por exemplo, uma echarpe que foi comprada há anos num mercado de rua e que, dito assim, parece um trapo, mas que é uma peça de estimação com história na minha vida.

É nestas horas que a gente pensa: ok, são coisas materiais, tudo se repõe ou se esquece. Mas às vezes elas não estão apenas na categoria do material, e sim do emocional. Não se repõe nem se esquece.

Eu já sentia saudades de tudo isso e, mesmo podendo comprar qualquer jeans e camiseta para seguir viagem, me sentia desconfortavelmente nua.

À noite, a mala estava no hall do hotel, devolvida intacta. Reouve o anel da minha avó, meu diário de viagens, a máquina fotográfica e a echarpe. Tudo parte da memória, que, no final das contas, é o que mais tememos perder pelo caminho.

Ótimo domingo excelente final de semana.