sábado, 9 de agosto de 2008


MAURO HALFELD

O que fazer quando a Bolsa está em queda

é professor, consultor de investimentos, comentarista da rádio CBN e escreve semanalmente em ÉPOCA.

Para enviar uma pergunta, acesse a coluna em www.epoca.com.br/halfeldPor que quem investe em ações costuma comprar na alta e vender na baixa? Porque pouca gente aceita ser solitária.

É difícil manter uma estratégia que vai na contramão do mercado – comprar pechinchas quando os amigos e os parentes estão vendendo e vender quando todo mundo está indo às compras. Mas quem tiver sangue-frio e convicção em relação a sua estratégia e desprendimento para enfrentar o barulho da multidão provavelmente vai colher bons resultados.

Eu nunca tinha investido em ações até novembro do ano passado. Seguindo a sugestão de um colega de trabalho, apliquei em um fundo de ações do meu banco pensando em complementar minha aposentadoria.

Já perdi mais de 20% de meu capital e não estou suportando ver o extrato da conta. O dinheiro não pára de evaporar e estou cada vez mais ansioso. O que devo fazer? – Paulo Henrique

Ganhar dinheiro no mercado de ações é uma tarefa para os fortes de coração. É preciso estar emocionalmente preparado para enfrentar as adversidades. Convém também manter certo desprezo pelo senso comum e ter frieza para não se arrepender antes da hora e juntar-se à multidão aos primeiros sinais de prejuízos.

Para quem se angustia com o vaivém do mercado e com as perdas registradas nos momentos de queda das cotações, a alternativa é andar junto com a multidão, mas bem pertinho da porta, para pular fora no primeiro sinal de pânico.

O problema é que você pode acabar saindo na hora errada, atraído por falsos boatos. Pior ainda, pode demorar a ouvir o alarme de incêndio e acabar morrendo pisoteado pelo resto do mercado.

Para fugir desse dilema, o ideal, Paulo, é manter a calma e procurar agir de forma coerente com seus objetivos financeiros de longo prazo. Mais cedo ou mais tarde, a razão acaba por voltar ao mercado. Aí, os mais nervosos pagarão a conta pelo desespero.

No mercado acionário, é preciso estar preparado emocionalmente para enfrentar as adversidades

Meu noivo quer que eu assine um acordo pré-nupcial, mas, sinceramente, fiquei meio ofendida. A família dele tem uma situação financeira melhor que a minha e me senti sendo excluída de uma parte da vida dele. O que devo fazer? – Fernanda

Em vez de você ficar ofendida, procure pensar nos benefícios que um acordo pré-nupcial pode trazer para seu casamento.

A transparência, a sinceridade e a confiança contribuem para reforçar a união do casal e, na falta delas, podem até levar à separação. Discutir questões financeiras antes de se casar é um excelente primeiro passo para uma relação dar certo.

Essa conversa, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, é muito saudável. Vai ajudar você e seu noivo a se preparar para enfrentar a vida a dois. Ninguém faz uma sociedade sem saber quais são os planos do sócio. No casamento, não deve ser diferente.

Por isso, encare o acordo pré-nupcial como uma grande oportunidade de saber quais são as ambições e os projetos de seu noivo e de expor suas idéias.

Pensem em como vocês vão fazer para realizar juntos esses planos e aproveitem para programar os investimentos para o futuro.

O acordo pré-nupcial é recomendado para quem já tem um bom patrimônio pessoal antes do casamento ou para quem tem empresas, filhos ou obrigações financeiras de uma relação anterior.

As pessoas que têm dívidas antes do casamento ou a expectativa de receber uma herança também devem pensar seriamente em fazer esse pacto.

Embora não seja nada romântico, ele é uma forma de os noivos se prepararem para o caso de separação ou morte de um dos cônjuges.

Recomendo que vocês busquem a orientação de um advogado para que tudo saia de acordo com a legislação. Desejo felicidades ao casal e uma excelente vida a dois!


09 de agosto de 2008
N° 15689 - NILSON SOUZA


Almas capturadas

Depois que a Celia Ribeiro me fez algumas observações filosóficas sobre fotografias, passei a olhar os retratos do tempo com um misto de curiosidade e espanto. Garantiu-me a nossa especialista em boas maneiras que as posições e os semblantes das pessoas na hora do clic são reveladores de seus sentimentos.

Um olhar oblíquo congelado para a eternidade, a proximidade ou o distanciamento, uma simples mão no ombro, tudo isso pode significar maior ou menor afeto de um personagem para o outro.

Numa foto de família, por exemplo, um bom intérprete de fisionomias é capaz de dizer quem é o filho favorito, qual é o estágio de relacionamento entre o casal, quem é amigo verdadeiro, quem está feliz com o momento e quem sorri apenas porque o fotógrafo mandou dizer xis.

Achei o tema fascinante. Nunca tinha observado fotografias com este olhar quase psicanalítico, embora já tenha percebido verdadeiras confissões no rosto de pessoas flagradas pela máquina.

Alguém já escreveu que o retrato é um texto visual, que registra não apenas o momento, mas também a história passada e as ambições futuras dos retratados. Pode ser. Porém o que mais me impressiona é essa sua capacidade de escancarar sentimentos.

Faz sentido: o rosto de uma pessoa normalmente expressa coragem, sofrimento, medo, paixão, alegria e tristeza. O rosto é o espelho da alma. Um retrato, portanto, nada mais é do que uma alma capturada.

Claro que as pessoas também posam para fotografias. A quantidade de expressões forçadas na hora da foto é infindável. Certamente fotografias desse tipo são menos reveladoras.

Quando a nossa colunista de elegância comentou sobre os sentimentos dos personagens fotografados, estava se referindo a retratos antigos, especialmente de parentes que se juntam para registrar alguma passagem da vida familiar.

Às vezes, a gente mesmo se vê numa foto e não tem certeza do que estava pensando ou sentindo naquele momento. Mas há situações em que não fica qualquer dúvida.

Tenho uma fotografia de quando tinha três ou quatro anos de idade, na qual apareço rindo muito, com um braço erguido e uma laranja na mão.

A câmera, não tenho dúvida, flagrou minha alma infantil num instante de felicidade plena, que nunca mais se repetiu. Por uma razão singela: eu estava no colo de meu pai.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008



08 de agosto de 2008
N° 15688 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Das melhores lembranças

Há sempre uma tempestade em minhas melhores lembranças.

Esta noite choveu muito, as janelas tremiam como navios avariados, eu quase podia ver as árvores encurvadas, a água batia nas vidraças com uma fúria de naufrágio e no entanto eu sonhei.

Sonhei meio desperto com uma ilha cercada de todos os vendavais – e isso me punha extremamente calmo, a salvo de correntes marinhas e baixios e arrecifes, e adormeci tão profundamente que quando acordei me sentia descansado de todas as minhas exaustões.

Ventava. Há sempre um vento em minhas melhores lembranças.

Aquele era um vento de agosto, capaz de girar pessoas e animais e coisas, apto a revolver pensamentos secretos e interditos, e me atirar em uma elipse sem âncora nem fundamento. E contudo eu me percebia tranqüilo, como um menino que acaba de descobrir o significado do universo.

E então desceu um sol trêmulo de inverno.

Há algo de estranho com o sol de inverno. Ele torna translúcidos os seres e as espécies e, enquanto olhava a transparência de minha circunstância, lembrei que há sempre um sol de inverno em minhas melhores lembranças. Nessa, tudo se revestia de uma nitidez inaugural, feito eu acabasse de inventar a aurora.

E aí entardeceu. Há sempre um entardecer em minhas melhores lembranças.

E se revestiram os tons do dia de um caleidoscópio de cores, e se incendiou o sol no horizonte, e eu me perguntei onde estava a estrela Vésper. Mas Vésper se ocultava – e eu tive de me distrair com uma miríade de outros astros e neles encontrei um reflexo de teu olhar azul.

Foi nesse momento que anoiteceu. Foi nesse instante que a treva se fez luz.

Foi nesse segundo que tu me surgiste nua e a chuva voltou a cair e eu adormeci em teu corpo como um guerreiro imerso em suas melhores lembranças.

Ótima sexta-feira e um excelente fim de semana

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

06 de agosto de 2008
N° 15685 - MARTHA MEDEIROS


A vírgula

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) completou cem anos em abril e aproveitou para lançar uma campanha muito útil a todos os brasileiros, não só aos jornalistas. Ela defende o uso correto da vírgula.

Todas as pessoas alfabetizadas escrevem. Escrevem e-mails, bilhetes, cartões, teses, contratos, receitas, blogs e mais um sem-fim de palavras.

Algumas escrevem para si mesmas, e, nesse caso, até dá para perdoar um certo relaxamento, mas a maioria escreve para ser lida por outro alguém, e quem faz isso ambiciona ser compreendido. Então. O uso correto da vírgula é crucial para alcançar esse objetivo.

No entanto, o critério para “uso correto” continua sendo, para muitos, o da respiração. As pessoas escrevem como se estivessem conversando, e se imaginam que fariam uma pausa dramática num determinado momento, pronto: decidem que ali cabe uma vírgula.

Entendo. Eu, às vezes, faço a mesma coisa. Por exemplo, deu vontade de não colocar entre vírgulas o “às vezes” que acabei de escrever.

Preferiria ter escrito: “Eu às vezes faço a mesma coisa”, porque eu, normalmente, falaria essa frase de forma veloz, e não pausada. Mas a vida não é tão simples. Salvo algumas licenças poéticas, é preciso seguir à risca os mandamentos da vírgula.

Não me pergunte quais são, não sei, sempre escrevi por instinto, mas a ABI sabe e resolveu entrar nessa campanha dando exemplos muito práticos, que transcrevo abaixo.

“A vírgula pode ser uma pausa... ou não:

Não, espere.
Não espere.

Ela pode sumir com seu dinheiro:

23,4%
2,34%

Pode ser autoritária:

Aceito, obrigado.
Aceito obrigado.

Pode criar heróis:

Isso só, ele resolve.
Isso só ele resolve.

E vilões:

Esse, Juiz, é corrupto.
Esse Juiz é corrupto.

Ela pode ser a solução:

Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião:

Não queremos saber.
Não, queremos saber.

A campanha termina dizendo que a vírgula muda tudo. Dou outro exemplo. Dia desses, um moço mandou um e-mail para um programa de rádio que começava assim: “Eu como colono...”

O radialista ficou injuriado, que pouca-vergonha era aquela? A vírgula que faltou poderia ter evitado o mico. “Eu, como colono, gostaria de...”. Pois é. Pequeninha, mas salva até reputações.

Ótima quarta-feira - Aproveite o Dia Internacional do sofá

domingo, 3 de agosto de 2008



03 de agosto de 2008
N° 15682 - MARTHA MEDEIROS


QUANDO DEUS APARECE

Tenho amigas de fé. Muitas. Uma delas, que é como uma irmã, me escreveu um e-mail me contando a maravilha que foi o recital do pianista Nelson Freire no Theatro São Pedro, recentemente. Ela escreveu: Nessas horas Deus aparece.

Fiquei com essa frase retumbando na minha cabeça. Deus não está em promoção, se exibindo por aí. Ele escolhe, dentro do mais rigoroso critério, os momentos de aparecer pra gente.

Não sendo visível aos olhos, ele dá preferência à sensibilidade como via de acesso a nós. Eu não sou uma católica praticante e ritualística - não vou à missa. Mas valorizo essas aparições como se fosse a chegada de uma visita ilustre, que me dá sossego à alma.

Quando Deus aparece pra você?

Pra mim, ele aparece sempre através da música, e nem precisa ser um Nelson Freire. Pode ser uma música popular, pode ser algo que toque no rádio, mas que me chega no momento exato em que preciso estar reconciliada comigo mesma. De forma inesperada, a música me transcende.

Deus me aparece nos livros, em parágrafos em que não acredito que possam ter sido escritos por um ser mundano: foram escritos por um ser mais que humano.

Deus me aparece - muito! - quando estou em frente ao mar. Tivemos um papo longo, cerca de um mês atrás, quando havia somente as ondas entre mim e ele. A gente se entende em meio ao azul, que seria a cor de Deus, se ele tivesse uma.

Deus me aparece - e não considere isso uma heresia - na hora do sexo, desde que feito com quem se ama. É completamente diferente do sexo casual, do sexo como válvula de escape. Diferente, preste atenção. Não quer dizer que qualquer sexo não seja bom.

Nesse exato instante em que escrevo, estou escutando My Sweet Lord cantado não pelo George Harrison (que Deus o tenha), mas por Billy Preston (que Deus o tenha também) e posso assegurar: a letra é um animado bate-papo com Ele, ritmado pelo rock’n’roll. Aleluia.

Deus aparece quando choro. Quando a fragilidade é tanta que parece que não vou conseguir me reerguer. Quando uma amiga me liga de um país distante e demonstra estar mais perto do que o vizinho do andar de cima.

Deus aparece no sorriso do meu sobrinho e no abraço espontâneo das minhas filhas. E nas preocupações da minha mãe, que mãe é sempre um atestado da presença desse cara. E quando eu o chamo de cara e ele não se aborrece, aí tenho certeza de que ele está mesmo comigo.

ótimo domingo e um excelente início de semana.

sábado, 2 de agosto de 2008


Diogo Mainardi

A guerra acabou

"Em matéria de sangue, o Iraque está normal. Proporcionalmente, nos últimos dois meses, matou-se menos no Iraque do que no Rio de Janeiro. Doeu? Doeu. Caiu do sofá estrebuchando? Estrebuchando e babando"

A guerra no Iraque acabou. Só que ninguém parece ter notado. O Iraque se tornou O Deserto dos Tártaros dos americanos. Isso mesmo: Dino Buzzati. No romance, os soldados italianos, entrincheirados num forte, preparam-se para o ataque do inimigo.

O ataque nunca acontece. Passam-se décadas e mais décadas. Aos 54 anos, o protagonista finalmente adoece e morre. Sem jamais ter abandonado o forte. Sem jamais ter combatido os tártaros.

Como é que alguém pode afirmar com tanta certeza que a guerra no Iraque acabou? Pelo número de fatalidades. Em julho deste ano, morreram apenas treze soldados americanos, oito dos quais em combate e os outros por causas acidentais ou naturais, como o protagonista de O Deserto dos Tártaros.

Compare com a mortandade do mesmo período do ano passado. Em julho de 2007, morreram 79 soldados americanos – seis vezes mais. O inimigo sumiu.

Uma queda semelhante ocorreu entre os civis iraquianos. Em julho de 2007, de acordo com o site independente Iraq Coalition Casualty Count, foram mortos 1 690 iraquianos.

A imprensa repetia todos os dias que o Iraque já mergulhara numa guerra civil, e que a estratégia dos Estados Unidos de aumentar o número de tropas fracassara tragicamente. De lá para cá, tudo mudou. Em julho de 2008, foram assassinados somente 402 iraquianos. A maioria em atentados de mulheres-bomba.

Pode-se argumentar que uma guerra é mais do que uma simples contabilidade macabra. Mas trata-se de um argumento fajuto. Uma guerra é isso mesmo: sangue. De um lado e do outro.

E, em matéria de sangue, o Iraque está normal. Aliás, esse foi o termo usado, na semana passada, pelo comandante militar dos Estados Unidos, o general David Petraeus: normal.

Agora, prepare-se para passar mal e cair do sofá estrebuchando: proporcionalmente, nos últimos dois meses, matou-se menos no Iraque do que no Rio de Janeiro. Doeu? Doeu. Caiu do sofá estrebuchando? Estrebuchando e babando.

A campanha presidencial americana, como o forte de Dino Buzzati, também reflete um distanciamento amalucado da realidade. A plataforma dos candidatos para a guerra no Iraque baseou-se no cenário de um ano atrás. Barack Obama apostou numa derrota americana e prometeu fugir em disparada.

John McCain apostou numa batalha longa e sangrenta, perfeita para alguém com seu passado militar. O que nenhum dos dois podia imaginar é que a guerra acabaria com tanta rapidez.

O primeiro-ministro Nuri al-Maliki, que era ridicularizado por todos, agora controla o país. Os soldados iraquianos, que se rendiam em massa aos insurgentes, acabam de iniciar a quinta campanha militar dos últimos meses, em Diyala. Os terroristas da Al Qaeda foram dizimados.

Os milicianos de Al Sadr se entregaram. Ao contrário do que dizia Barack Obama, os Estados Unidos derrotaram os tártaros. Ao contrário do que dizia John McCain, seus soldados já podem se preparar para a retirada.

Ainda está estrebuchando e babando?

Lya Luft

Sobre o meu pai Arthur

"Seu olho verde faiscava de brabeza ou transbordava de afeto. O rumor de seu passo no corredor botava o meu mundo em ordem. Sua risada era aberta e franca, seu abraço era cálido, sua alegria, generosa"

Nesta coluna homenageio meu pai Arthur, que morreu quando eu tinha 35 anos, e de quem, 35 depois, ainda recordo todos os dias, pelo seu legado de carinho, justiça, integridade e proteção, que até agora me dá força quando preciso dela (preciso muitas vezes).

As propagandas em torno do Dia dos Pais, se irritam pela comercialização (para quem deseja isso) em torno do afeto, servem de lembrete a quem anda esquecido do seu pai.

Então tenho lembrado com mais intensidade do meu, que era severo e terno. Seu olho verde faiscava de brabeza ou transbordava de afeto. O rumor de seu passo no corredor botava o meu mundo em ordem.

Sua risada era aberta e franca, seu abraço era cálido, sua alegria, generosa. Tinha momentos de melancolia, em que fitava um ponto distante longo tempo sem falar. Seu amor pela família foi talvez seu traço mais marcante.

Ensinou-me o nome das árvores do jardim e os cuidados com elas, para que dessem frutas doces. Transmitiu-me a noção do sagrado das coisas e das pessoas. Gostava de tranqüilidade, meu pai Arthur. Recusou sistematicamente os convites para deixar nossa pequena cidade e assumir cargos importantes.

Era atento e compreensivo, ajudou fugitivos da II Guerra, levava cobertores ou remédio aos pobres, aconselhava amigos e desconhecidos que vinham lhe pedir orientação.

Lembro-me do que relatou alguém que o procurou em casa, e ele, interrogado sobre sua vasta biblioteca, apontou os livros e disse com simplicidade: "Eles são meus amigos".

Ilustração Atômica Studio

Era também exigente, meu pai Arthur. Aborrecia-se com meu boletim invariavelmente medíocre, porque eu não gostava de estudar: queria ficar em casa, lendo em meu quarto ou debaixo de alguma árvore, e achava as regras de disciplina da escola antes cômicas do que respeitáveis. Além de negligente na escola, em casa não conseguia ser a menina prendada que minha mãe desejava.

Não podia competir com suas sobrinhas ou filhas de amigas, num tempo em que ser prendada era importante (para mim, era bobagem): meus bordados saíam tortos, minha incapacidade de arrumar a cama era patética, meu horror à cozinha era vergonhoso, eu respondia mal à minha mãe, ou lhe mostrava a língua.

Era um desastre, e me sentia assim. Quando as queixas de mãe e professores se tornaram excessivas, ele me pôs num internato.

"Para o seu bem", ele disse. Não esqueço a dor daquele dia e dos outros, nem a minha gratidão quando, dois meses depois, em uma visita, anunciei que se ele não me tirasse dali eu morreria, e ele me levou para casa. Por essa, e tantas outras coisas, dediquei-lhe especialmente um de meus livros, dizendo:

"A meu pai Arthur, para quem eu não era só uma criança: eu era uma pessoa". Ainda falo com ele, recorro a ele em minhas aflições, pedindo que, como fez em vida, me ajude em minhas trapalhadas. (Não sei como, mas ele ajuda.)

Nele, antecipando o Dia dos Pais que se aproxima, homenageio todos os pais que não vão ter o carinho dos filhos pequenos ou adultos, nem um telefonema alegre, nem um almoço ruidoso, nem mesmo um recado.

Homenageio os pais que ficarão sozinhos fingindo que não faz mal, que filho é assim mesmo, que a vida é assim. Não é assim.

Em meu pai Arthur, homenageio os pais que não puderam estar sempre junto de seus filhos porque, longe, precisavam garantir o seu sustento; que foram relegados quando não tinham mais dinheiro ou saúde; criticados quando quiseram buscar alguma felicidade; ou que, sem entender, foram declarados dispensáveis e desimportantes.

Não posso esquecer aqui aqueles pais que perderam um filho ou filha, na dor que não se cura com nada. Mas penso também nos pais alegres, nos pais carinhosos, nos pais protetores, parceiros, guerreiros, nos pais que têm sorte, e que nesse dia especial receberão abraços,

telefonemas, torpedos, churrascos, conversas, sorrisos ou mesmo um bilhete em letra infantil – como aqueles que tantas vezes, na minha distante infância, deixei no bolso do paletó ou no prato do café-da-manhã de meu pai Arthur.

Lya Luft é escritora

CAMILA PATI

Só para mulheres

Cansadas do assédio masculino, mexicanas têm agora ônibus exclusivos na capital do país



SOSSEGO Em ônibus onde homem não entra as mexicanas viajam sentadas e até lêem

Com 22 milhões de habitantes, ônibus e metrô lotados são comuns na Cidade do México, uma das cinco metrópoles mais populosas do mundo.

Lá, as mexicanas ainda têm de lidar com uma situação conhecida de muitas brasileiras: o assédio sexual durante as viagens. Por isso, desde o início do ano, a cidade oferece 65 ônibus reservados apenas às mulheres.

Ali homem não entra e sem eles a tranqüilidade reina, segundo as mexicanas. Apesar de representar só 5% da rede e de o tempo de espera nos pontos ser de 30 minutos, a iniciativa foi bem recebida. A idéia partiu de uma mulher que já sofreu na pele os abusos nos transportes públicos.

A mexicana Ariadna Montiel, 33 anos, que hoje é a responsável pelo controle das redes de ônibus da capital, conta que nunca vestia saias, quando sabia que ia usar ônibus ou metrô, na época em que ainda freqüentava a faculdade de arquitetura.

A proposta de ônibus exclusivos é nova, mas vagões especiais para mulheres e crianças no metrô, em horários de pico, já existem na Cidade do México há dez anos.

Outros países como Japão, Índia, Taiwan, Filipinas e Egito também oferecem o serviço. No Brasil, no Rio de Janeiro, uma lei estadual de 2006 obriga as empresas de metrô e trens a disponibilizarem vagões exclusivos para as mulheres, em dias úteis, das 6h às 9h e das 17h às 20h.

Em cada composição, há um carro identificado com um adesivo com o símbolo feminino. A SuperVia, concessionária dos trens no Rio, orienta os homens a não embarcarem nesses vagões nos momentos de pico.

“Enfrentar transportes superlotados já é um desconforto em si, e não precisa ser somado ao constrangimento e à humilhação causados por indivíduos que se aproveitam deste fato para ultrapassar os limites e abusar das mulheres”, justifica Jorge Picciani, deputado estadual pelo PMDB.

Em São Paulo, a prática do assédio sexual levou a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) a testar vagões exclusivamente femininos na década de 90.

Eles existiram no metrô e nos trens da CPTM entre outubro de 1995 e setembro de 1997 e foram implantados depois que um homem ejaculou em uma mulher dentro de um vagão.

A proposta não vingou porque a CPTM alegou que não poderia ferir o artigo 5o da Constituição, que estabelece igualdade de direitos entre os cidadãos, e alguns casais também reclamaram.

Hoje, na capital, existem apenas vagões reservados, nas estações mais cheias – nos horários de pico da manhã e noite –, para gestantes, idosos, portadores de deficiência física e pessoas com crianças de até cinco anos.



PIONEIRO O Rio oferece vagões reservados para as mulheres só em horário de pico


02 de agosto de 2008
N° 15681 - NILSON SOUZA


VIDAS ESPECIAIS

Terminei de ler Caso Perdido, um romance do jornalista e escritor Carl Hiaasen, autor de Strip-Tease, que deu origem ao filme com Demi Moore. O colega norte-americano escreve fácil, usa bem os diálogos e narra fatos de modo tão irreverente que às vezes chega a parecer meio debochado.

A gente passa voando pelas quase 400 páginas da história, uma investigação jornalístico-policial recheada de aventuras. Mas o que mais me chamou a atenção foi o ofício do personagem central - um redator de obituários.

Jack Tagger é um jornalista que foi rebaixado à condição de obituarista por ter falado mal do magnata que controla o grupo proprietário do jornal.

Ele tem algumas manias, a mais curiosa delas é questionar a idade das pessoas e compará-la com a que tinham personalidades desaparecidas. Você diz que tem 28 anos e ele lasca:

- Com essa idade morreu Jimi Hendrix!

Mas sua maior curiosidade é descobrir com quantos anos morreu seu próprio pai, que ele não chegou a conhecer, para ter certeza de que ultrapassará a barreira da herança genética. Bom, mas deixo a neurose de Jack Tagger para quem se dispuser a ler o romance de Hiaasen.

Quero aproveitar o gancho do livro para comentar essa intrigante área do jornalismo, que é a seção de obituários. Ao contrário do que ocorre no jornal da ficção, no nosso meio ninguém é rebaixado a escrever sobre este tema tão delicado. Pelo contrário, é um espaço que serve de escola para jovens repórteres.

Ao encarar o desafio de transformar em notícia interessante o passamento de pessoas comuns, eles e elas aprendem a investigar, a questionar as fontes, a produzir pequenas biografias e, o mais importante, a tratar a morte com dignidade.

- Não é difícil, as pessoas sempre têm boa vontade para passar as informações e deixar o registro de seus familiares - me garante a colega Sabrina, que tem 21 anos e escreve diariamente sobre o fim da vida.

Digo-lhe que sou seu leitor. Não por morbidez, mas porque é um dos poucos espaços do jornal onde só se encontra gente boa. Nas páginas policiais predomina o crime. Na política e na economia, não é muito diferente.

Até nas páginas esportivas a gente tem deparado com paixões exacerbadas e violência. Já a seção dos sempre-lembrados é só otimismo.

As pessoas são especiais, um deixou a imagem de melhor jogador de bocha do bairro, outra era a mais hábil doceira, aquele deixou tantos filhos e netos, que não se pode contar, o jovem que partiu subitamente tinha os pendores esportivos de um campeão. Nunca li um epitáfio desfavorável.

O obituário, na verdade, não noticia a derradeira viagem das pessoas. Informa sobre a saudade instalada no coração dos que ficam.

Um excelente sábado e um ótimo fim de semana - Agosto segue seu curso até quando setembro vier.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008



01 de agosto de 2008
N° 15680 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O POEMA DO COTIDIANO

A crônica é um espaço por onde o jornal respira. Já não sei se essa frase é minha, ou se tomei emprestada de alguém. Do que não duvido é de sua profunda verdade.

Houve um atentado? Caiu o ministério? Perpetrou-se um crime hediondo? Armou-se uma catástrofe? A Bolsa entrou em queda livre? De tudo isso nos dão exata notícia as editorias de Mundo, de Política, de Polícia, de Geral, de Economia.

Mas se um pássaro azul pousar aqui em minha sacada, as pessoas só terão conhecimento se eu contar neste canto de página.

Saberão mais: que o pássaro era de uma espécie desconhecida, que me olhou desconfiado, que a princípio recusou, arisco, a água e o alpiste que lhe servi, que depois agradeceu minha gentileza interpretando uma ária inédita, que ao fim voou para céus infinitos, por onde jamais baterá meu inquieto coração.

Sentiram a importância da crônica? Atentados eclodem, ministérios implodem, crimes ocorrem, catástrofes explodem, Bolsas depenam os investidores, mas tudo isso é parte da civilização que escolhemos.

O que é único, e belo e inimitável é a canção do pássaro azul, é o seu vôo por regiões submersas do universo.

Bem diante da minha casa há uma paineira que me dá a honra de sua companhia. Por esta época do ano, desnuda-se, já não é uma árvore, é toda ela uma escultura gris, composta por um artista anônimo.

Carros, ônibus, pessoas passam por sua vizinhança sem percebê-la e no entanto isso não a faz menos imponente nem lhe retira a majestade que o inverno acentua. É meu privilégio notá-la e contar de seu discreto charme aos que lêem este texto.

As andorinhas tinham desaparecido em junho. Temperaturas muito baixas as exilaram para climas mais amenos. Pois hoje tive a alegria de revê-las de volta aos céus destes jardins e parques que me circundam.

O tempo não anda ainda camarada, mas elas revoam sobre os telhados, como para avisar que há um trecho de primavera no horizonte, ainda encoberto pelas nuvens, mas pronto a desvendar-se quando setembro vier.

Já tive andorinhas hóspedes de minha morada. Por sucessivos setembros escolheram um pequeno depósito de quinquilharias, com saída para a rua, para aquecer e alimentar sua prole.

Ninguém deu por elas, salvo este cronista, que ainda não desaprendeu de que pode haver poesia nas coisas mais simples.

Pois a crônica é isso: um retalho do cotidiano sob a forma de um oculto poema.

Ótima sexta-feira, excelente fim de semana para todos nós e que agosto que hoje inicia seja super produtivo e possa realizar senão todos, alguns dos nossos sonhos.

quarta-feira, 30 de julho de 2008



30 de julho de 2008
N° 15678 - Martha Medeiros


O travesseiro

Eu estava na sala de embarque quando reparei naquele homem sisudo. Estava de terno escuro, gravata escura e tinha o semblante muito sério. Viajava sozinho. Não era um turista, percebia-se que iria voar a negócios. Segurava uma pasta executiva 007 numa mão. Na outra, um travesseiro.

Eu não conseguia tirar os olhos daquele travesseiro. Com fronha. Ela era branca com nuvenzinhas azuis. Um objeto íntimo nas mãos de um provável empresário que iria dormir num flat ou num quarto de hotel e que não colocaria sua cabecinha em nenhum outro travesseiro que não fosse o seu.

Comecei a entender melhor a expressão "vôo doméstico".

Tempos atrás, andar de avião era uma coisa chique. As pessoas se arrumavam bem, colocavam seu melhor casaco e não conseguiam disfarçar uma certa emoção (frisson seria a palavra apropriada). Mesmo sem querer, sentia-se no ar um quase esnobismo.

Definitivamente, não era uma galera de rodoviária. Estavam num aeroporto, um lugar onde tudo era límpido, elegante, iluminado e levemente erótico, a começar pela voz que saía dos alto-falantes anunciando a chegada e partida de outros eleitos.

Hoje uma voz anuncia, com certo tédio, que o embarque que seria efetuado no portão 6 será efetuado no portão 13 por causa do remanejamento das aeronaves, e que haverá um atraso de duas horas por falta de tripulação, e ninguém reclama, porque já tivemos dias piores (se bem que os dias piores podem voltar com a greve dos aeroviários).

Hoje vale tudo: viajar de chinelo, barriga de fora e travesseiro na mão. A questão do travesseiro é instigante, porque é sabido que tem gente que não consegue mesmo dormir longe do seu.

E há apegos ainda mais radicais. Uma vez, ouvi uma moça perguntando a outra por que ela levava uma mala tão gigantesca para passar apenas um final de semana fora. Resposta: porque ali dentro estavam seu travesseiro e seu edredom.

O edredom era de estimação também.

Eu sei que são inúmeros os afeiçoados ao próprio travesseiro. É como a menina que não viaja sem sua boneca, o menino que não sai de casa sem levar seu carrinho: são objetos que nos dão a sensação de que não estamos partindo totalmente.

Podemos estar sem pai nem mãe nesse mundão de Deus, mas trazemos algo do nosso lar. É um conforto mais espiritual que material.

Já eu acredito que viajar é sempre uma aventura e que devemos estar preparados para as surpresas que virão, incluindo o travesseiro do alheio, que pode não ser o ideal para nossa coluna torta. Mas há quem não aceite que vida é risco.

O fato é que já vi gente com as mais diversas e corriqueiras bagagens de mão: térmica, cuia, raquete, violão, Bíblia, berimbau, cachorrinho, crianças, mas chegar ao aeroporto pela manhã com o travesseiro ainda quente e com a fronha babada é, no mínimo, um ato de extrema personalidade. Bem que fazem. Dormem feito anjos.

Embora São Pedro continue de mal com a gente que tenhamos todos uma ótima quarta-feira.

segunda-feira, 28 de julho de 2008



RESUMO DAS NOVELAS

Estou desatualizado.

Não dou mais conta de todas as novelas que a televisão oferece. Outro dia, tomei uma decisão radical, corajosa e necessária: assistir, ao menos, a um pedaço de cada uma das novelas em exibição atualmente na televisão aberta brasileira. Fiquei de língua de fora.

A lista é interminável: 'A Favorita', 'Água na Boca', 'Amor e Intrigas', 'Beleza Pura', 'Cabocla', 'Caminhos do Coração', 'Chamas da Vida', 'Chiquititas', 'Ciranda de Pedra', 'Coração de Estudante', 'Lalola', 'Malhação', 'Pantanal', 'O Privilégio de Amar' e 'Os Mutantes'. Estou certo? Não?

Será que algumas já terminaram e nem percebi? O problema é tempo, pois tenho de assistir a todos os jogos do Inter e, como secador, aos do Grêmio, sem contar os de outras equipes que possam atrapalhar o caminho colorado.

Quero ser um profissional da televisão: ver todos os jogos e todas as novelas. No futebol, a grande trama é: jogar com três zagueiros e três volantes ou com três zagueiros e dois volantes ou, enfim, com dois zagueiros e dois volantes, salvo se for uma boa opção dois zagueiros e três volantes.

É complexo, mas a gente se acostuma e entra no jogo. A trama das novelas é ainda mais rebuscada: quem está comendo quem, quem deixou de comer quem e quem vai comer quem nos próximos capítulos. Confesso que todas essas possibilidades me fascinam.

Pena que não prestei atenção naquelas aulas de análise combinatória da disciplina de matemática. Outra variação forte das novelas é esta: uma vez, dois homens, por exemplo, pai e filho, disputam a mesma mulher. Na outra, duas mulheres, por exemplo, mãe e filha, disputam o mesmo homem.

Pode-se complexificar a intriga, em tempos de liberação de costumes, com três homens disputando e ficando com a mesma mulher ou três mulheres disputando e ficando com o mesmo homem. É para isso que servem sobrinhos e primos.

Futebol e novelas são iguais. Tudo depende de esquema. Tático: 3-5-2, 4-4-2 ou, no meio, onde tudo embola, novelesco, 2-2, 3-3 ou, em casos de vale tudo para ganhar, 4-4 ou 5-5.

Eu aprendo muito sobre futebol vendo novelas. Novela é cultura. Futebol também. A personagem Flora, de 'A Favorita', interpretada por Patrícia Pillar, esposa de Ciro Gomes, passou 18 anos na prisão, onde aprendeu a ler francês.

Num capítulo que pude ver, depois de ter percebido que não adiantaria secar o Grêmio contra o Figueirense, ela aparece lendo meu amigo Michel Houellebecq. É a ex-prisioneira de mais bom gosto de que já ouvi falar.

Poucos críticos literários podem competir com ela. Nada de auto-ajuda ou livros da lista de mais vendidos da moda. Literatura maldita na veia. Flora daria uma boa treinadora de futebol. Aliás, quando vai aparecer uma treinadora?

Tem bandeirinha, juíza, homem treinando mulher, mas não tem, que eu saiba, mulher treinando equipe de futebol profissional. Inadmissível. Não me venham falar de uma impossibilidade por causa do vestiário. Como é que os treinadores de vôlei fazem?

Com novela e futebol é assim. Perde-se o fio da moeda. Quer dizer, da meada. É tricô. Vira conversa de bar. Não existe melhor maneira de jogar conversa fora. Todo mundo pode ser especialista.

Em novela e futebol, tudo é questão de sexo. Resumo das novelas: quem come quem. Do futebol: quem passa por cima de quem. Qual a diferença entre um colorado e um gremista? O gremista acha que futebol é coisa séria.

juremir@correiodopovo.com.br

Ótima segunda-feira ainda que com chuva e uma excelente semana para todos nós

sábado, 26 de julho de 2008



27 de julho de 2008
N° 15675 - Martha Medeiros


O uso dos palavrões

Não sei o que a craque em elegância e estilo, a adorável Gloria Kalil, pensa a respeito do uso de palavrões. Já li muita coisa escrita por ela, sei o quanto repudia barracos e valoriza a educação, sei que defende a idéia de que ninguém é chique se não for civilizado, mas não lembro de ter lido algo a respeito desse assunto.

É lógico que o palavrão faz parte da cultura popular de qualquer país, por isso, creio que Glorinha diria que o bom senso é que determina quando ele é tolerável e quando é grosseria.

Eu passei minha infância praticamente sem ouvir palavrões dentro de casa. Do meu irmão, muito pouco. Da minha mãe, quase nunca. E do meu pai, jamais. Ele achava feio até mesmo dizer "que saco".

Até que cresci e os palavrões começaram a ser mais bem aceitos, desde que nunca como forma de ofensa e agressão, apenas como manifestações de enfado, raiva e em momentos de descontração e humor. Mas da boca do meu pai, nunca ouvi, até hoje. E é o que basta para esse tema me despertar certo fascínio.

No Brasil, já foram catalogados mais de 3 mil palavrões. Na França, 9 mil. Na Inglaterra existe até o Dicionário de Insultos em Cinco Línguas, o primeiro guia prático destinado a turistas que são obrigados a lidar com bagagens perdidas, reservas malfeitas, café frio, serviço ruim e contas exorbitantes.

Poucos são os que ainda negam a utilidade do palavrão para radiografar uma determinada sociedade, seus costumes e tendências.

Até alguns anos atrás, era de Jorge Amado o recorde de uso de palavrões por um único autor brasileiro, mas creio que esse feito já deve ter sido ultrapassado, pois é um recurso cada vez mais recorrente na nossa literatura, assim como no teatro e cinema.

Aliás, o cinema brasileiro, na década de 70, atormentou nossos ouvidos com o uso indiscriminado do palavrão. Tudo bem que, no auge da repressão, o palavrão era uma resposta ao silêncio, aliviava tensões, funcionava como catarse, mas abusaram.

Hoje ele é usado com mais pertinência e adequação, o que não significa comedimento: filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite seriam completamente absurdos se não reproduzissem fielmente a linguagem das ruas e dos morros.

Eu não ouvia palavrão em casa, mas lia muito Charles Bukowski, então me salvei. Hoje solto meus palavrõezinhos fraternos em situações rotineiras e grito impropérios em momentos de alta-tensão, o que me torna uma pessoa razoavelmente normal. Ainda assim, ainda há uma menininha dentro de mim que se sente desconfortável com exageros e vulgarizações.

Sei que Dercy Gonçalves deu enorme contribuição à cultura brasileira, que teve uma folha corrida de respeito, que era uma pessoa meiga e até moralista: seu desbocamento nada mais era que uma marca registrada para sobreviver no meio artístico.

Compreensível, mas eu não achava engraçado. O uso do palavrão com o único propósito de escandalizar sempre me pareceu mais patético do que escandaloso de fato.

De qualquer forma, é impossível viver sem ele. Então o jeito é não sermos hipócritas, respeitá-lo dentro dos princípios da liberdade de expressão e, de preferência, manter uma certa razoabilidade no seu emprego.

Quando solto algum palavrão mais pesado na frente das minhas filhas, imediatamente peço desculpas. Na presença de pessoas de mais idade, evito a qualquer custo. E diante da Gloria Kalil, nem a pau.

Diogo Mainardi

O efeito da paternidade

Minha vida e a de meus filhos são aborrecidas como um programa educacional da TV canadense. Os acontecimentos mais prosaicos acabam ganhando uma utilidade pedagógica.

Qual é mais alto: o prédio de tijolos brancos ou o prédio de tijolos vermelhos? Consegue ler em voz alta o que este blogueiro pilantra escreveu sobre o papai?

No New York Times, num artigo publicado no último domingo, o jornalista David Carr fez um relato dos tempos em que era um celerado que espancava a mulher, comercializava cocaína e consumia ininterruptamente crack, LSD, peiote, maconha, cogumelo, mescalina, anfetamina, Quaalude, Valium, ópio, haxixe e todos os tipos de bebida alcoólica. A paternidade o transformou.

Depois de perder a guarda das duas filhas, ele resolveu abandonar as drogas, arranjar um emprego, recuperar a custódia das crianças e garantir-lhes uma vida serena.

Eu sempre fui um pai dedicado. Tenho um bom emprego e garanto uma vida serena aos meus filhos.

Hoje, depois de uma semana de férias com os dois, estou prestes a empreender o caminho inverso ao de David Carr, mergulhando no crack, LSD, peiote, maconha, cogumelo, mescalina, anfetamina, Quaalude, Valium, ópio, haxixe e todos os tipos de bebida alcoólica.

A paternidade se tornou um empenho permanente. Fico dia e noite com meus filhos. Falo apenas com eles e sobre eles. O museu é o museu dos meninos. O restaurante é o restaurante dos meninos. De maneira geral, os filhos tiveram esse efeito sobre mim: eles me apequenaram e me embruteceram.

Eles ocuparam minha mente como Antônio Conselheiro ocupou Canudos, impondo suas idéias primitivas e suas práticas regressivas. Questões que pareciam definitivamente superadas voltaram a me atazanar. Antes de ter filhos, eu abria um livro e indagava sobre Santo Agostinho.

Agora abro um livro e indago onde está Seymour, o bonequinho de madeira (Seymour, o bonequinho de madeira, está escondido dentro daquele pote cheio de lápis de cor).

Até recentemente, a paternidade era vista como uma atividade trivial, a ser cumprida com naturalidade. Em certos casos, com desprezo.

Agora é o oposto: o papel dos pais foi inchado, foi superdimensionado. Virei um behaviorista com meus pequenos Albert, permanentemente engendrando mecanismos para estimular seu desenvolvimento emocional e cognitivo.

Minha vida e a de meus filhos são aborrecidas como um programa educacional da TV canadense. Os acontecimentos mais prosaicos acabam ganhando uma utilidade pedagógica.

Qual é mais alto: o prédio de tijolos brancos ou o prédio de tijolos vermelhos? Eram dezoito paradas de metrô até Coney Island: se já fizemos sete, quantas paradas ainda faltam? Consegue ler em voz alta o que este blogueiro pilantra escreveu sobre o papai?

Neste momento, meu filho de 7 anos, por algum motivo, quer reconfigurar meu computador. E meu filho de 3 anos, por algum outro motivo, quer dar uma martelada em meu dedo. Onde está a mescalina? (A mescalina deve estar com Seymour, o bonequinho de madeira.)

Claudio de Moura Castro

Meu reino por uma tomada

"Por que melhora o comércio e piora o conforto do passageiro? Há um grande desafio a ser encarado: criar regras para que as empresas públicas ou monopolistas sirvam aos seus clientes, e não a si próprias"

Viciados em cigarros são cada vez mais raros. Em compensação, explode o número de viciados em notebooks. A Infraero conduz uma batalha cívica, cortando o suprimento do vício, a eletricidade.

Salas de espera de aeroportos congregam dezenas de dependentes. No Santos Dumont e no Galeão velho, a solução foi drástica: zero tomada. Nos outros aeroportos quase não há. Como viciado, levo um benjamim na pasta, para compartilhar as poucas existentes.

Ilustração Atômica Studio

A Infraero se preocupa também com a forma física dos passageiros. Para que pratiquem seu exercício diário, ela alonga a caminhada pelos corredores.

Em Guarulhos, quem desembarca na extremidade do terminal, já divisando a sua porta, tem de ir na direção oposta e contornar todo o edifício. Em Confins, é preciso ir ao final do corredor, a fim de descer a escada e, embaixo, voltar tudo para alcançar a saída.

O sistema de check-in é burro. Para quem comparece com reserva, o computador precisaria saber apenas se há malas. Um cartão digital (como o de milhas) desencadearia todo o processo. Aliás, com a informatização dos manifestos de vôo, a maquininha que lê o código de barras do viajante só serve para criar emprego.

Alguns aeroportos mandam tirar o notebook da pasta, outros não. Segurança depende de geografia? Faz sentido retornar ao check-in por causa de um saquinho plástico para a pasta de dentes? A Polícia Federal não descobriu que turismo é uma indústria como outra qualquer.

Defeitos de fabricação espantam clientes. Um exemplo: com mais da metade das cabines vazias, os estrangeiros são obrigados a agüentar filas enormes para mostrar seu passaporte.

Funcionários da Infraero que tenham ido à Disney (passagem de cortesia?) viram no aeroporto de Miami um carregador retirando as malas das esteiras e enfileirando-as ao lado. No Brasil, enquanto os estrangeiros pagam seus pecados em horrendas filas, suas malas congestionam as esteiras.

Cronometrei na semana passada: mais de uma hora para brotarem todas as malas no carrossel. É bem mais tempo do que para voar entre Rio e São Paulo. Ainda bem que a manutenção dos aviões não é feita pela Infraero.

Parte considerável dos viajantes já entrou na idade de se preocupar com colesterol e glicemia. Por que, então, tudo o que se vende nos bares dos aeroportos ou é gorduroso ou é doce? Em Washington, as concessões são obrigadas a cobrar o mesmo que em suas lojas na cidade.

Nos aeroportos brasileiros, um picolé custa mais que nos Estados Unidos. Heathrow (em Londres) oferece chuveiro de graça. Em Confins, custa 28 reais. Se não houvesse atrasos, talvez fossem aceitáveis as cadeiras desconfortáveis e com braços, empecilho para deitar.

Os pisos de borracha com relevo fazem as malas ressoar como motocicletas. A nova área de embarque do Santos Dumont, toda de vidro, seria perfeita em Helsinque, pois funcionaria como estufa, dispensando o aquecimento.

Mas no Rio de Janeiro o calor é intolerável, mesmo com ar condicionado. Há um banheiro no Galeão com uma saboneteira quebrada há cinco anos e um toalheiro há dois.

Aeroportos são ambientes privilegiados para exposições de arte, pois há espaço e tempo para apreciá-las. Contudo, o que nos expõem os daqui jamais seria aceito em galerias respeitáveis. Aeroporto é cartão de visita, não é camelódromo.

Nos Estados Unidos, os táxis podem "fazer lotação", e há tarifas próprias para tal. No Brasil, não podem. Além disso, têm de voltar vazios, pois não são autorizados a pegar passageiros. Com isso, dobram o consumo de gasolina, as emissões de carbono e os preços.

Desabafos de um viajante rabugento? É possível, mas antes de tudo evidenciam as dificuldades de fazer uma burocracia pública colocar a satisfação do cliente como seu principal objetivo.

Aliás, o único serviço competente no aeroporto é o free shop. Por que melhora o comércio e piora o conforto do passageiro?

Há um grande desafio a ser encarado: criar regras para que as empresas públicas ou monopolistas sirvam aos seus clientes, e não a si próprias.

Claudio de moura castro é economista - Claudio&Moura&Castro@cmcastro.com.br


26 de julho de 2008
N° 15674 - Nilson Souza


Barbudos

Uso barba desde os tempos de faculdade e por causa dela já passei por pequenos constrangimentos, como no dia em que um dos meus sobrinhos, com três ou quatro anos de idade, olhou fixo para o meu rosto durante algum tempo e perguntou:

- Tio, tu tem queixo?

Essa foi fácil de responder. Bem pior foi o que aconteceu com a tia de uma amiga, avó ainda relativamente jovem, que ouviu esta pergunta fulminante de sua netinha:

- Vó, tu conheceu dinossauro? Surpreendida, ela retrucou: - Cala a boca, menina!

Mas as crianças a gente enrola. Com adulto é mais difícil. Uma vez, no tempo em que usava uma barba pré-histórica, grande e mal aparada, fui jogar futebol de salão e resolvi esperar os companheiros de time sentado na escadaria de uma igreja.

Vestia uma calça de abrigo antiga, uma camiseta de jogo também meio surrada e tênis desamarrados. Passou um sujeito e me ofereceu uma esmola. Quando disse que não queria, ele se indignou: - Orgulhoso, hein?

Culpa da barba. Além de envelhecer, os pêlos escondem a verdadeira fisionomia do seu portador. Agora mesmo, todos vimos espantados a transformação que sofreu o ex-presidente da Sérvia. Acusado de crimes de guerra, ele passou mais de 10 anos escondido atrás da própria barba.

Mudou de rosto, falsificou a identidade e sequer precisou fugir do país. Ficou tão diferente, que era visto por seus próprios patrícios como outra pessoa - um pacato e inofensivo idoso, praticante de medicina alternativa.

O episódio reforçou a minha impressão de que os barbudos sempre escondem alguma coisa mais, além do próprio rosto. Às vezes, coisas assustadoras, como o passado do governante sérvio. Outras vezes coisas inocentes, como uma timidez mal resolvida.

Mas não merecem ser vistos preconceituosamente, como fez um conhecido especialista em economia e política que andou por estas paragens no início de 2002 e sentenciou uma solene previsão sobre a terceira candidatura do petista Lula:

- Ele jamais será eleito. A população brasileira não confia em candidato de barba.

Dou mais uma dica sobre o desastrado previsor, que ainda dá os seu palpites na TV: ele não usa barba. Nós, os barbudos, temos pelo menos uma virtude: estamos sempre aptos a surpreender.

Dagomir Marquezi

Personagem da semana - Christian Bale Com mil salas multiplex, "Batman"!

Na tela, o ator vive O Cavaleiro das Trevas, o sucesso da temporada. Na vida real, foi detido por agredir a mãe

CAMPEÃO

Bale como Batman – o Cavaleiro das Trevas. O filme bateu a bilheteria do Homem-Aranha na estréia. Desde os anos 1940 somos convidados a entrar na batcaverna. E não saímos mais.

Hoje, novas (e velhas) gerações ficam acachapadas por duas horas e meia na poltrona do cinema assistindo a Batman – Cavaleiro Das Trevas. Em quatro dias de exibição, o filme (que custou US$ 150 milhões para ser produzido) já faturara US$ 244 milhões mundo afora.

Nem é preciso ser o secretário das finanças de Gotham City para imaginar que sua versão em DVD/BluRay será um dos presentes mais cobiçados do Natal.

O “dono” da batcaverna hoje é o britânico Christian Charles Philip Bale, filho de um militar com uma palhaça – o que, de certa forma, explica sua mistura de ousadia artística com tamanha disciplina. Bale pensou em ser dançarino, guitarrista e jogador de rúgbi.

Mas começou sua vida profissional onde muitos esperam terminar. Atuou aos 13 anos sob a direção de Steven Spielberg em Império do Sol. Depois se aventurou por Shakespeare, por musicais e arriscou-se com sucesso no perturbador Psicopata Americano.

Emagreceu até virar um pele e osso em O Operário. Sua escolha como o Batman do renascimento pode ter sido uma das melhores jogadas da série. Aos 34 anos, Bale dá completa credibilidade a tudo o que faz. Seu homem-morcego espanca covardemente o desarmado vilão Coringa numa cela.

Nem bem o filme é lançado, Bale foi acusado de agressão pela própria mãe e pela irmã. Na segunda-feira passada, foi detido em Londres pela polícia. Pouco depois foi libertado e deverá ser chamado para prestar mais esclarecimentos.

O potencial escândalo não arranhou 1 milímetro o prestígio de Bale nem a bilheteria de Cavaleiro das Trevas. Bale tem crédito para queimar por seus serviços como ator.

Tanto que deverá interpretar mais dois heróis míticos na seqüência: John Connors (na seqüência de O Exterminador do Futuro) e Robin Hood (em Nottingham). A gente acredita em tudo o que ele fizer. Cavaleiro das Trevas é mais que um sucesso absoluto. Virou fenômeno.

Com tanto som e tanta fúria em Dolby Digital, fica difícil acreditar que a lenda pessoal do playboy Bruce Wayne vai completar 70 anos no ano que vem.

E mais difícil ainda acreditar que a gente ainda leve a sério um sujeito que persegue malfeitores com uma roupa de mergulhador, capacete de orelhinhas e uma capa esvoaçante. Pois pagamos para ver.

Batman veio ao mundo na revista Detective Comics, edição de maio de 1939, em quadrinhos de Bob Kane. Todo mundo sabe: Bruce Wayne é um garoto rico que testemunha seus pais serem mortos por ladrões, enquanto morcegos sobrevoavam o local. Para suportar a perda, Bruce decide alternar a vida de playboy filantropo com a de justiceiro, meio drácula.

Quatro anos depois de surgir no papel, Batman já era um seriado de cinema. O ator Lewis Wilson foi o primeiro homem-morcego. Na década de 1950, a revista foi criticada por quem não gostava da intimidade entre Batman e seu protegido e parceiro adolescente, Robin. Eles dormiam na mesma cama.

‘‘A cidade de Gotham City é um patrimônio cultural da humanidade’’

Nos anos 1960, Batman virou mania mundial, como série cômica de TV. Adam West vestia o ridículo colante cinza e conseguia levar a sério seu personagem. (Em 1966, um longa-metragem foi produzido no mesmo esquema.)

A série se tornou uma referência pop. A lenda do homem-morcego sobreviveu ao próprio esculacho. Foi ressuscitado nos gibis – especialmente por Frank Miller – com uma releitura mais adulta, sombria e pesada.

O mesmo herói que nos fazia rir na tela de TV passou a beirar a loucura e enfrentar problemas existenciais. Nessa nova perspectiva, voltou ao cinema em 1989, com o improvável Michael Keaton por trás da máscara. Ele não tinha cara nem físico de super-herói. Mas vestiu a batcapa com convicção.

A ousada tacada do diretor Tim Burton foi um sucesso. O Batman do cinema chegou ao indiferente Val Kilmer, em Batman Forever, de 1995. Sucumbiu dois anos depois ao homem-morcego-com-mamilos de George Clooney (em Batman & Robin).

Com mil salas multiplex, Batman! Quando a batcaverna parecia ter sido soterrada para sempre, foi reaberta, em 2005, com Batman Begins, sob direção do enfant terrible de Hollywood Christopher Nolan.

Para as gerações mais novas, Batman tem a cara de Christian Bale. Michael Caine é seu fiel mordomo Alfred. E nada de Robin. Nada de gracinhas e insinuações gay. Você assiste a Cavaleiro das Trevas e nem parece ser um “filme de super-herói”.

Às vezes sugere um drama adulto, outras um filme de terror ou nosso noticiário de cada dia. O Coringa de Heath Ledger continua sendo um palhaço, como já foram Cesar Romero e Jack Nicholson.

Depois do gigantesco sucesso de Cavaleiro das Trevas, uma continuação é questão de mais dois ou três anos.

Batman, na pele de Christian Bale, está completamente renovado, em forma para a década de 2010. Certas coisas continuarão difíceis de engolir – como a total incompetência da população de Gotham City em descobrir a identidade secreta de Batman.

Mas Christian Bale acredita completamente no que está fazendo, como acreditou em cada um dos papéis que interpretou antes. Sua credibilidade virou uma espécie de aval para a lenda de Bruce Wayne.

Hoje, na prática, Gotham City é patrimônio cultural da humanidade. Somos todos um pouco batmans: cumprimos nosso papel social como “brucewaynes” durante o dia e somos donos da verdade na sombria noite de nossa psique.

O Coringa zomba de nossos planos, e suas gargalhadas insanas ecoam num canto escuro de nossa mente.

As acusações da mãe e da irmã contra Bale são apenas mais uma prova de que, neste nosso novo mundo de Batman, ninguém é super-herói.

quarta-feira, 23 de julho de 2008



23 de julho de 2008
N° 15671 - Martha Medeiros


A inocência dos vereadores

Algum tempo atrás, durante o programa Saia Justa, a jornalista Mônica Waldvogel fez uma divertida e enxuta definição sobre o gênero humano: mulher é chata, homem é bobo.

Tive que rir, porque a generalização, ainda que desfavorável para ambos os sexos, tem lá sua razão de ser.

Nós, mulheres, temos muitas qualidades, mas somos chatas. Dramatizamos tudo, nos apegamos a detalhes, não damos férias para nossas mágoas, temos vocação pra sargento, já nascemos adultas, e gente adulta demais é chata.

E os homens são maravilhosos, mas como são bobos. Ficam se comparando uns com os outros, têm o ego inflado, contam vantagens para disfarçar a insegurança, são eternos meninos. Você acha que não procede? Ah, procede.

Um exemplo disso foi parar no jornal ontem: cinco senhores de Carazinho, vereadores a serviço da vida pública, deram seu voto a favor para que a Câmara Municipal homenageasse as moças que trabalham numa danceteria, com a justificativa de que elas oferecem momentos de descontração a seus clientes. Podem ser mais bobos?

Uma notícia como essa, para quem tem bom humor, é um refresco entre tantas reportagens sobre tiroteios e mortes estúpidas. Eu achei engraçado.

Fiquei imaginando esses cavalheiros depois do expediente, ou mesmo em plenário, comentando sobre os ótimos serviços da boate Garotas da Gogo e tendo a idéia de fazer uma deferência pelos nove anos de aniversário da casa, sem achar que isso fosse gerar qualquer incômodo. Chego a ficar comovida com a pureza deles.

Homenagem, quem não gosta? Imagino que em Carazinho tenha um armazém comemorando cinco anos de funcionamento, uma farmácia completando 10 anos na rua principal, uma lotérica há 15 anos servindo à população, e todos esses estabelecimentos já devem, também, ter sido contemplados com uma moção comemorativa apresentada pela Câmara.

É bonito que os vereadores queiram homenagear não só esses, mas todas as classes de trabalhadores, sem exceção.

Talvez tenham pensado que uma consideração às moças contaria pontos junto à comunidade, pois demonstraria que os políticos da região não têm preconceitos. Bobos. Esqueceram que está todo mundo aí fora a fim de apontar nossos erros, de julgar nossas atitudes, de colocar o dedo no nosso nariz e gritar: culpado!

Se ofereceram para o sacrifício na maior boa-fé, achando que a sinceridade do gesto bastaria para que fossem compreendidos. Ninguém quer compreender ninguém, só se pensa em acusar. Hoje em dia, até mesmo crianças já aprenderam a trocar ingenuidade por autopreservação.

De certa forma, fiquei feliz de saber que ainda resta uma certa inocência no mundo. E que há mulheres, como as garotas da Gogo, que fogem à regra: duvido que sejam chatas.

Hoje quarta-feira é o Dia Internacional do sofá. Aproveite, namore e que tenhamos todos uma ótima quarta-feira.

domingo, 20 de julho de 2008


Diogo Mainardi

Eu sou a Britney Spears!

"O relatório da PF sobre a imprensa, apesar de grotesco, merece ser analisado por outro motivo: ele mostra claramente quem foi o inspirador do inquérito. Todos os jornalistas citados pisaram no pé de Luiz Gushiken e seu bando. Eu pisei. Um bocado"

Um relatório da PF me acusou de ser colaborador de Daniel Dantas. Quando li meu nome nas páginas policiais, pensei, tremulante e sem ar: – Amy Winehouse! Eu sou a Amy Winehouse!

Imagens assustadoras passaram por minha mente. Eu, embriagado e algemado, na porta de uma delegacia. Eu, num bar, aos tapas e pontapés. Eu, de sutiã, vagando pelas ruas da cidade.

Depois pensei, ainda mais angustiado: – Britney Spears! Eu sou a Britney Spears!

Me vi de cabeça raspada. Me vi fotografado, sem cuecas, descendo de um carro. Me vi perdendo a guarda de meus filhos.

A idéia de que sou um colaborador de Daniel Dantas é uma patetice. Basta ler os grampos da PF. Sabe o que há contra mim? Daniel Dantas e seus funcionários comentaram uma de minhas colunas e mandaram traduzir um documento que disponibilizei a todos os leitores na internet. Meu crime é ser lido.

O relatório da PF sobre a imprensa, apesar de seu caráter grotesco, merece ser analisado por outro motivo: ele mostra claramente quem foi o inspirador do inquérito, e qual era seu objetivo.

De um jeito ou de outro, todos os jornalistas citados pisaram no pé de Luiz Gushiken e seu bando. Eu pisei. Um bocado.

No comecinho de 2007, Luiz Gushiken até mandou a PF me investigar. Pisei no pé também de seus blogueiros de aluguel. E no do atual diretor da Abin, Paulo Lacerda.

E no de seu antecessor no cargo, Mauro Marcelo. E no de Luiz Roberto Demarco, denunciando a montanha de dinheiro que ele ganhou como lobista da Telecom Italia. Aliás, desconfio que o próprio Demarco tenha ajudado a fabricar o relatório sobre a imprensa.

É um acerto de contas com alguns de seus maiores desafetos, tanto profissionais quanto pessoais, como Guilherme Barros, da Folha de S.Paulo, cuja única culpa foi ter se casado com sua ex-mulher.

Por tudo isso, digo que o inquérito contra Daniel Dantas e Naji Nahas só pode ser interpretado da maneira mais elementar: foi a última cartada de Luiz Gushiken e seus palermas para tentar impedir a compra da Brasil Telecom pela Oi.

Há recados para todos os que participaram do negócio, até mesmo para Lula, por meio dos grampos em Gilberto Carvalho. A compra da Brasil Telecom pela Oi é realmente escandalosa. Espero que Luiz Gushiken consiga afundá-la.

Se dependesse apenas da PF, porém, os quadrilheiros sairiam impunes. Ainda bem que há juízes e procuradores para controlar todos os abusos. Eles podem separar direitinho o que é crime e o que não é.

Todo mundo aqui sabe que eu gosto de contar vantagem. É o que vou fazer agora. Quatro meses atrás, concluí um podcast para Veja.com da seguinte maneira:

"O plano da ala trotskista do PT, de Luiz Gushiken, era reestatizar a telefonia com dinheiro dos fundos de pensão e do BNDES.

Como sempre acontece com os trotskistas, eles bobearam e acabaram com um picador de gelo enterrado no cocuruto. A Oi está abocanhando a Brasil Telecom, mas seu comando será entregue aos grandes financiadores de Lula e de seus filhos, em sociedade com Daniel Dantas.

A ala trotskista do PT ainda pode tentar melar o jogo usando aquilo que lhe resta: um pedacinho da PF, outro pedacinho da Abin, outro pedacinho do Ministério Público.

Para quem está do lado de fora, é uma farra acompanhar a guerra entre os companheiros petistas. O Brasil está completamente rendido. Agora só o PT pode destruir o PT".

Já posso tirar o sutiã?

Ponto de vista: Lya Luft

A matança dos bebês

"Tantas famílias feridas, pais e mães arrasados, vidas desperdiçadas nesse vergonhoso lamaçal de omissão"

Herodes faria uma festa. Eu, que às vezes penso que nada mais vai me chocar, mal acredito no que se anuncia: morreram trinta e tantos bebês em certo hospital do norte do país. Já é horrível.

Logo depois, haviam morrido quase 100 e, finalmente, as autoridades admitiram bem mais de 200 mortos em alguns meses.

Bebês morriam como moscas no hospital que lhes devia propiciar a vida. Era caso de fechamento em todos os hospitais do mundo, mas uma autoridade local apenas disse, piscando os olhos como quem está um pouquinho insegura:

"Esse número de bebês mortos em hospital nessas condições é aceitável". Como tais condições perduraram mais de um dia? Eu estava ouvindo e lendo bem? Estava em meu juízo normal? Estava.

Pois então, viva Herodes. Porém, os caixõezinhos amontoados em uma pequena carreta e um pai muito jovem carregando mais um corpo, como se fosse o seu filhinho morto, não permitiam gracejo.

Ilustração Atômica Studio

Na cidade onde nasci havia duas igrejas: a católica e a luterana. Esta ficava perto de nossa casa: nela eu tinha sido batizada, como minha mãe e minha avó antes de mim.

Nela havia dois toques de sino para os mortos: o mais solene anunciava a morte de um adulto na comunidade. Quando era criança ou bebê, o sino tangia tristíssimo e delicado. O costume talvez não exista mais, porém eu não esqueci.

Minha avó murmurava: "Morreu uma criancinha. Será a de fulana, que andava tão doente? Será o bebê de sicrana, que nasceu fraco demais?".

Para os bebês agora mortos naquela UTI pediátrica de uma grande capital do norte do país não haveria nem sinos nem igrejas suficientes. Não sei a que número já chegou a mortandade, se o hospital continua funcionando, se alguém ainda diz que o número é "aceitável".

Como desculpa neste reino das desculpas, mencionaram-se vários fatores: ignorância das famílias, parcos recursos do hospital, falta de médicos, o de sempre. Seja como for, em algumas semanas morreram mais de 200 bebês. Iam-se anunciando as mortes, e parece que nada mudava, só morriam mais.

Tantas famílias feridas, pais e mães arrasados, vidas desperdiçadas nesse vergonhoso lamaçal de omissão. O mesmo que em tantos lugares deixa milhares de doentes serem atendidos em macas no corredor, sofrendo ou morrendo em salas de espera, ou no pátio do hospital – mais recente notícia.

Apesar disso o país funciona. Os carros rodam, os governos governam, os funcionários trabalham, pais e mães levantam cedo, dão café ou mamadeira aos filhos, entram em seus ônibus, vão para o trabalho, vão ao armazém – vão ao cemitério.

Os irmãos dos mortinhos chegam da escola, fazem seu dever de casa, vão dormir depois de jogar bola no pátio, que pode ser um quadradinho de barro com fezes e urina do esgoto a céu aberto.

E nós que lemos livros e jornais, que temos comida e saúde, fingimos que está tudo direito, que é assim mesmo, que somos quase um país de Primeiro Mundo, que a economia está ótima, o petróleo abunda, a Amazônia resiste, e nós estamos vivos.

Às vezes nos sentimos entediados, duvidamos de nossa eficiência, ficamos deprimidos: televisão, rádio e jornal não deviam mostrar certas coisas, tão triste tudo aquilo. Ou nos afligimos um pouco, tanta gente bandida vivendo feito rei, e tanta gente boa crucificada quando quer fazer o bem e consertar o mal.

"Ninguém controla a vida", me dizem, quando reclamo. Digo que, apesar das maravilhas da medicina, quando o hospital é limpo, o médico não está totalmente exausto, a enfermeira é bem treinada e os doentes em casa não vivem no esgoto ou no lixão, ninguém controla a morte.

A vida, ah, essa a gente devia controlar ao menos um pouco melhor.

Para que os sinos das cidades onde morrem centenas de bebês por inoperância e desinteresse não derretam de tanto bater o toque dos mortos inocentes, nossas vozes não se afoguem de dor no escuro dos quartos,

e nunca mais um adolescente derrotado tenha de levar no colo, à frente de uma carreta cheia de minúsculos caixões empilhados, o corpo de seu filhinho, que nós, todos nós, como sociedade, matamos.

Lya Luft é escritora