terça-feira, 7 de abril de 2009


Clarice Lispector

Das vantagens de ser bobo

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir, tocar no mundo.

O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo, estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas.

O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo parece nunca ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco.

Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era que o aparelho estava tão estragado que o concerto seria caríssimo: mais vale comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar,e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.

O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. Aviso: não confundir bobos com burros.

Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação, os bobos ganham a vida.

Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie.

Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca.

É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

segunda-feira, 6 de abril de 2009



06 de abril de 2009
N° 15930 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Dos prazeres proibidos

Àmedida que avanças pela idade madura – essa que te tortura dos 40 aos 60 e adjacências – percebes que todos os prazeres vão ficando proibidos. Estava eu num dos bares do circuito da Padre Chagas, sitiado por essa humanidade feliz que ainda fuma, que ainda encara um chope com ou sem colarinho, não desdenha um scotch on the rocks, quando ergui o olhar do reles café expresso, da humilhante água mineral, e vi que me fitava uma deusa.

Era alta, refinada, bem produzida, capaz de esgotar em dois minutos uma edição inteira da Vogue, com aquele corpo perfeito, aqueles traços sublimes em edição de luxo, aquela mínima corrente dourada coroando um tornozelo de gazela. Essa rainha me examinou resplendente pelo espaço de nove segundos, aproximou-se magnífica da mesa e perguntou:

– O senhor é o doutor Genésio?

Sou um cavalheiro honesto e cultivo um maldito apreço pela verdade, de jeito que confessei, com um sufoco na garganta, uma dor asfixiante na alma, que não, que não era o doutor Genésio.

– Ah – disse a visão. E me virou as costas e me oprimiu os sonhos e foi procurar o tal doutor Genésio no lado oposto do bar.

Senti na mesma hora que devia ter falado à deusa:

– Sim, eu sou o doutor Genésio e você deve ser a recepcionista mandada pela Companhia. Como é o seu nome? Mildred? Mildred, me faça um favor, divida uma taça de Clicquot comigo. Soube agora que o meu Rolls está com uma pane no isqueiro e vai se atrasar. Há um bom restaurante nesta cidade, Mildred? Que tal jantarmos juntos?

Mas não falei nada disso. Ela desapareceu no lado oposto do bar e não vi sequer mais rastro de sua corrente dourada.

Tomei o último gole de água mineral. Estava morna. Tinha sabor de Emulsão de Scott, um drinque que suponho desconhecido de quem tenha menos de 40 e imagine que 60 era aproximadamente a quilometragem de Matusalém, ao passar desta para melhor, engasgado com um café expresso.

Ótima segunda-feira e uma excelente semana santa

sábado, 4 de abril de 2009



05 de abril de 2009
N° 15929 - MARTHA MEDEIROS


Baderna cerebral

Sobre o que mesmo que eu ia escrever? Vou lembrar, só um pouquinho. Calma... Calminha... Espere um instante...

Lembrei. Quero escrever sobre uma piada que cada dia se propaga mais entre as rodas de amigos. Pessoas trocam as palavras, esquecem nomes, se perdem no meio das frases e, pra se justificar, dizem: é o “alemão” se manifestando. Alemão é o apelido do Alzheimer, e quá quá quá, todos acham a maior graça da brincadeira, mas eu já não estou achando graça nenhuma.

Outro dia assisti na tevê a uma entrevista de um neurologista que dizia, entre outras coisas, que as mulheres têm uma memória melhor do que a dos homens. Estou em apuros. Comentei com uma amiga que está na hora de eu fazer uma vasculhagem cerebral, marcar meia-dúzia de tomografias e enfrentar o diagnóstico, seja ele qual for.

Ela comentou que sente vontade de fazer o mesmo, mas que não tem coragem, porque é certo que algum curto-circuito será detectado: não é possível tanto esquecimento, tanto branco, tanto abobamento. Acontece com ela, acontece comigo, e com você aposto que também, ou você não lembra?

Alzheimer é doença séria, mas, que me conste, ainda não virou epidemia. O que vem sucedendo com todas (to-das!) as pessoas com quem converso é, provavelmente, uma reação espontânea a esse ritmo vertinginoso da vida e a esse turbilhão de informações que já não conseguimos processar. É um chute meu, óbvio.

Meu diploma é de comunicadora, não de médica. Mas creio que o motivo passa por aí: nosso cérebro está sendo massacrado por uma avalanche de nomes, números, datas, rostos, fatos, cenas, frases, fotos, e isso só pode acabar em pane.

Coisa da idade? Então me explique o fenômeno que relato a seguir. Semana passada, minha filha de 17 anos disse o seguinte: “Ontem a gente vai dormir na casa da Gabriela, mãe”. Ontem vocês irão aonde, minha filha?

Ela caiu na gargalhada. “Putz, quis dizer amanhã! Amanhã a gente vai dormir na casa da...”. 17 escassos aninhos e uma overdose de horas de navegação no mundo alucinógeno do MSN, MySpace, YouTube, Orkut e grande elenco. Só pode ser efeito colateral da informática, ou ela também já entrou pra turma das desvairadas?

Pode ser apenas mal de família. É uma hipótese, porém tenho reparado que é mal não só da minha, mas de todas as famílias do planeta Terra. O que é que está me escapando?

Afora muitas palavras difíceis e também as fáceis, muitos verbos complicados e também os de uso contínuo, muitos nomes desconhecidos e também os de parentes em primeiro grau, nomes de cidades distantes e o da cidade em que me encontro agora – Porto o que, mesmo? – o que está me escapando é uma explicação decente.

O que é que está acontecendo com a gente?

Benedito Sverberi

NOS TRILHOS DO AVANÇO

Estudo inédito revela o grau de desenvolvimento dos estados brasileiros – e mostra quais souberam tirar proveito do crescimento nos últimos anos

O crescimento econômico não traz automaticamente o avanço no bem-estar de uma sociedade. O desenvolvimento de fato só ocorre quando há melhoria também em fatores de qualidade de vida, tais como a educação, a saúde e a segurança. Indicadores econômicos isolados, portanto, não são suficientes para aferir o estágio de avanço social.

Pois foi com o intuito de avaliar de maneira mais precisa o grau de desenvolvimento dos estados brasileiros que um grupo da FGV Projetos, unidade de negócios da Fundação Getulio Vargas, acaba de elaborar o Indicador de Desenvolvimento Socioeconômico (IDSE).

Trata-se de um índice feito a partir de 36 variáveis sociais e econômicas, capaz de cotejar com apuro o nível de bem-estar nas 27 unidades da federação. O retrato exibido pelo estudo é alentador: praticamente todos os estados conseguiram progredir nos últimos anos, beneficiando-se da retomada no crescimento e do aprimoramento das políticas sociais. Mas os indicadores mostram que os avanços ainda são tímidos em algumas regiões.

O IDSE é bem mais completo e preciso que o famoso IDH (índice de desenvolvimento humano), divulgado pela Organização das Nações Unidas, que pondera apenas três fatores: renda, expectativa de vida e educação. Pela metodologia usada agora pela FGV, o estado mais avançado do país é São Paulo, que levou nota máxima (IDSE igual a 100). Quer dizer, então, que os paulistas teriam a sensação de morar na Escandinávia? Não é bem assim.

Na verdade, essa nota indica apenas que, numa escala de zero a 100, São Paulo está no topo do ranking de desenvolvimento socioeconômico brasileiro. Os números de São Paulo servem de referência para analisar os demais estados. Na lanterninha aparece o Piauí, que teve avanço modesto nos sete anos abrangidos pelo estudo – de 2001 a 2007, período para o qual existem todos os dados necessários à análise.

Leo Caldas/Titular

REDE DE PROTEÇÃO A diarista Kátia Monteiro Matos, 32 anos, e seus filhos, na periferia de Fortaleza, Ceará: a ajuda do Bolsa Família contribui para complementar a renda e elevar o poder de compra da família

Há duas maneiras de olhar para o trabalho dos pesquisadores. A primeira delas se resume a observar a fotografia – ou seja, examinando o quadro atual do ranking do desenvolvimento, que coloca São Paulo no topo, seguido pelo Distrito Federal. A segunda maneira de analisar o trabalho da FGV é "assistindo ao filme" – isto é, examinando a evolução ocorrida em sete anos. Por esse critério, fica evidente que alguns estados conseguiram obter resultados mais expressivos que os demais.

O destaque, aqui, cabe ao Tocantins. Em 2001, o estado era um dos menos desenvolvidos do país, num patamar semelhante ao de Alagoas, base do ex-presidente Fernando Collor. Agora, ainda que siga como um dos mais atrasados, o Tocantins ao menos conseguiu se distanciar um pouco dos retardatários.

O avanço tocantinense foi impulsionado, em primeiro lugar, pelo agronegócio, que tem na região uma de suas últimas fronteiras de expansão. Mas isso, apenas, não explica o progresso. O Tocantins, um estado jovem (foi criado em 1988, após a divisão de Goiás), nasceu sem passivos carregados de seu passado.

Menos endividado que os demais, o seu governo possui caixa para investir em infraestrutura e em projetos sociais, o que ajudou a reduzir o seu atraso. Por fim, o Tocantins tem atraído grandes investimentos, tanto públicos (como a Ferrovia Norte-Sul) como privados (frigoríficos e processadores de soja).

Outro estado que conseguiu bons resultados foi a Bahia. Seu interior se beneficiou do agronegócio, especialmente das culturas de soja e de algodão. Mas a economia baiana é mais diversificada, e contou com os motores de seu polo industrial de Camaçari e da indústria petrolífera.

O estado, porém, ainda está longe da visão idílica que muitas vezes cantam seus (inúmeros) poetas: só 60% do lixo é coletado, e a rede de esgoto não chega a metade das residências. Na sequência, o que mais melhorou foi o Maranhão, apesar de ser o segundo estado mais subdesenvolvido. Assim como o Ceará, ele viu sua pobreza cair por causa dos programas sociais, como o Bolsa Família.

O Maranhão, terra do ex-presidente da República José Sarney, atual presidente do Senado, obteve avanços também no saneamento básico, graças à expansão de água encanada nas cidades do interior e à construção de duas estações de tratamento de esgoto (as primeiras do estado). Entretanto, o progresso é tímido: as estações operam com apenas 10% da capacidade e tratam o esgoto de 15% da capital, São Luís – o centro histórico é o único bairro atendido por completo.

O resultado mais negativo, contudo, se encontra no Amapá, atual reduto eleitoral de Sarney. Foi o único a regredir. O estado partiu de um IDSE de 65,2 pontos em 2001 (semelhante ao de Minas Gerais) e recuou para 60,4 pontos. O Amapá deu marcha a ré em praticamente todos os indicadores.

Em um país no qual os políticos ainda resistem a fazer análises objetivas e isentas de como usar melhor o dinheiro dos contribuintes, o estudo da FGV Projetos poderá se transformar em um instrumento de acompanhamento da eficácia das políticas públicas. Para o coordenador da pesquisa, Fernando Blumenschein, isso ocorrerá porque será possível fazer uma comparação dos resultados.

"O índice poderá ser usado para selecionar os investimentos públicos em cada região. Sem um bom parâmetro de mensuração de resultados, o debate e a formulação de políticas ficam muito retóricos. Isso poderá começar a mudar", afirmou. "A pesquisa também poderá ajudar a própria população a cobrar as promessas dos governantes."

Com reportagem de Cíntia Borsato

Lya Luft

A crise que estamos esquecendo

"Todos os indivíduos, não importa a conta bancária, profissão ou cor dos olhos, podem reverter esta outra crise: a do desrespeito geral que provoca violência física
ou grosseria verbal em casa, no trabalho, no trânsito"

O tema do momento é a crise financeira global. Eu aqui falo de outra, que atinge a todos nós, mas especialmente jovens e crianças: a violência contra professores e a grosseria no convívio em casa. Duas pontas da nossa sociedade se unem para produzir isso: falta de autoridade amorosa dos pais (e professores) e péssimo exemplo de autoridades e figuras públicas.

Pais não sabem como resolver a má-criação dos pequenos e a insolência dos maiores. Crianças xingam os adultos, chutam a babá, a psicóloga, a pediatra. Adolescentes chegam de tromba junto do carro em que os aguardam pai ou mãe: entram sem olhar aquele que nem vira o rosto para eles.

Cumprimento, sorriso, beijo? Nem pensar. Como será esse convívio na intimidade? Como funciona a comunicação entre pais e filhos? Nunca será idílica, isso é normal: crescer é também contestar. Mas poderíamos mudar as regras desse jogo: junto com afeto, deveriam vir regras, punições e recompensas.

Que tal um pouco de carinho e respeito, de parte a parte? Para serem respeitados, pai e mãe devem impor alguma autoridade, fundamento da segurança dos filhos neste mundo difícil, marcando seus futuros relacionamentos pessoais e profissionais. Mal-amados, mal-ensinados, jovens abrem caminho às cotoveladas e aos pontapés.

Ilustração Atômica Studio

Mal pagos e pouco valorizados, professores se encolhem, permitindo abusos inimagináveis alguns anos atrás. Uma adolescente empurra a professora, que bate a cabeça na parede e sofre uma concussão. Um menininho chama a professora de "vadia", em aula.

Professores levam xingações de pais e alunos, além de agressões físicas, cuspidas, facadas, empurrões. Cresce o número de mestres que desistem da profissão: pudera. Em escolas e universidades, estudantes falam alto, usam o celular, entram e saem da sala enquanto alguém trabalha para o bem desses que o tratam como um funcionário subalterno.

Onde aprenderam isso, se não, em primeira instância, em casa? O que aconteceu conosco? Que trogloditas somos – e produzimos –, que maltrapilhos emocionais estamos nos tornando, como preparamos a nova geração para a vida real, que não é benevolente nem dobra sua espinha aos nossos gritos? Obviamente não é assim por toda parte, nem os pais e mestres são responsáveis por tudo isso, mas é urgente parar para pensar.

Na outra ponta, temos o espetáculo deprimente dos escândalos públicos e da impunidade reinante. Um Senado que não tem lugar para seus milhares de funcionários usarem computador ao mesmo tempo, e nem sabia quantos diretores tinha: 180 ou trinta? Autoridades que incitam ao preconceito racial e ao ódio de classes?

Governos bons são caluniados, os piores são prestigiados. Não cedemos ao adversário nem o bem que ele faz: que importa o bem, se queremos o poder? Guerra civil nas ruas, escolas e hospitais precários, instituições moralmente falidas, famílias desorientadas, moradias sub-humanas, prisões onde não criaríamos porcos.

Que profunda e triste impressão, sobretudo nos mais simples e desinformados e naqueles que ainda estão em formação. Jovens e adultos reagem a isso com agressividade ou alienação em todos os níveis de relacionamento. O tema "violência em casa e na escola" começa a ser tratado em congressos, seminários, entre psicólogos e educadores. Não vi ainda ações eficazes.

Sem moralismo (diferente de moralidade) nem discursos pomposos ou populistas, pode-se mudar uma situação que se alastra – ou vamos adoecer disso que nos enoja. Quase todos os países foram responsáveis pela gravíssima crise financeira mundial.

Todos os indivíduos, não importa a conta bancária, profissão ou cor dos olhos, podem reverter esta outra crise: a do desrespeito geral que provoca violência física ou grosseria verbal em casa, no trabalho, no trânsito.

Cada um de nós pode escolher entre ignorar e transformar. Melhor promover a sério e urgentemente uma nova moralidade, ou fingimos nada ver, e nos abancamos em definitivo na pocilga.

Lya Luft é escritora


Quer cair em tentação? Deixe de lado os arrependimentos

Uma pesquisa feita com universitários americanos mostrou que para realmente aproveitar o prazer de comer um doce ou gastar dinheiro com uma roupa, as pessoas têm que encontrar um bom motivo racional. Sem ele, pode ser que sintam apenas culpa.
Thaís Ferreira

Vai cair em tentação? Arrume um bom motivo para não se arrepender depois.Se você acha que precisa de uma boa razão para se entregar a um prazer consumista, seja uma viagem ou uma trufa de chocolate, e não se sentir culpado depois, você está enganado.

Uma pesquisa da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, publicada recentemente, sugere que não é necessário esperar um dia de trabalho exaustivo ou o fim de um namoro para se entregar a um desejo. O que você precisa ter é uma consciência tranquila.

Isso porque, segundo o resultado da pesquisa, as sensações são passageiras e não ficam registradas na memória tão bem como os pensamentos. “Depois de ter se entregado a um prazer consumista, as pessoas reconstroem suas memórias e essa reconstrução é mais dirigida pelas suas expectativas do que pela experiência real de consumo”, disse Norbert Schwarz, professor da Universidade de Michigan e autor do estudo.

Ou seja, se antes de nos deliciarmos com um chocolate muito calórico pensarmos que vamos nos sentir culpados, é essa sensação que vamos carregar em nossa consciência, ainda que tenhamos verdadeiramente nos deliciado com o doce.

O estudo analisou as expectativas e as lembranças posteriores de 176 universitários em três situações de consumo: sem nenhum motivo, como uma recompensa por um esforço e como um consolo por uma má experiência. O resultado foi que os jovens consumidores tinham expectativas mais negativas da experiência e esperavam se arrepender quando não tinham motivos para se permitir um luxo ou quando aquilo era visto como um consolo do que quando ao consumir como uma recompensa.

Ao serem questionados depois do consumo, as memórias da "tentação" eram compatíveis com os pensamentos que as pessoas haviam tido antes de ceder a um "luxo".

A pesquisa também mostrou que quando alguém quer se presentear com uma recompensa, os produtos fúteis são mais procurados porque estão ligados ao prazer imediato e individual. Por isso, elas preferem uma viagem de cruzeiro ou uma massagem a gastar dinheiro pagando uma dívida ou com um produto realmente útil, diz o estudo.

Um segundo grupo, com 184 universitários de 20 e 21 anos, dividido igualmente entre homens e mulheres, também foi acompanhado pelos pesquisadores. Depois de uma prova difícil, os homens preferiram ir tomar um drinque em um bar ou comer em um bom restaurante.

As mulheres escolheram, na maioria das vezes, se deliciar com brownies e sorvetes ou fazer uma massagem relaxante. No geral, os jovens disseram que não costumam se entregar a esse tipo de prazer sem uma boa razão devido às condições financeiras e porque eles associam esses consumos à culpa e ao arrependimento.

“Quando as pessoas se entregam a um consumo luxuoso e desnecessário elas sentem prazer, mesmo achando que vão sentir culpa depois. Mas essa expectativa negativa as desencoraja e elas podem não aproveitar de fato as atividades que iriam realmente aproveitar”, diz Schwarz. Ele explica que o sentimento de culpa pode estar associado à moral da sociedade.

“Fizemos o estudo nos Estados Unidos, onde a ética protestante prevalece e prega que o prazer deve ser merecido por meio do trabalho duro. Então, as pessoas sentem culpa quando não têm uma boa razão para consumir, mas não acham que se sentirão culpadas se tiverem um bom motivo para ceder”.

Em tempos de recessão econômica, Schwarz lembra que é preciso ter cautela na hora de se entregar às tentações. “Gastar dinheiro é muito pior quando você tem pouco dinheiro porque a sensação de culpa é ainda maior ", afirma o pesquisador. "É sempre mais sábio ficar dentro do orçamento. As pessoas devem pensar duas vezes antes de aumentar suas dívidas”.

O que ele aconselha então como uma recompensa prazerosa, no lugar do consumo? “Um passeio ou um bom papo com os amigos é tão saudável e prazeroso quanto cair em uma tentação consumista”. Mas o estudo conclui : “se você que cair em tentação, é melhor ter uma boa razão para realmente aproveitar”.


04 de abril de 2009
N° 15928 - A CENA MÉDICA | MOACYR SCLIAR


Falando da doença

Temos basicamente duas linguagens: aquela que falamos ou escrevemos e com a qual expressamos pensamentos, sentimentos, opiniões, e que serve basicamente para a comunicação entre pessoas; e a linguagem do corpo, que se traduz por sintomas e sinais: uma dor, uma febre, uma tumoração. Médicos são treinados para traduzir a linguagem da comunicação em linguagem do corpo. Assim, quando uma pessoa diz: “

Qualquer esforço me dá falta de ar, tenho de dormir com travesseiro alto”, o profissional “ouve” o coração dizendo que já não tem força para bombear o sangue, e que este, acumulando-se nos pulmões, está gerando dispneia, ou seja, falta de ar.

Significa isto que a narrativa da doença tem importância secundária? De modo algum. O paciente não é apenas o seu coração doente, ou o seu rim doente, ou o seu pâncreas doente. É uma pessoa, com uma história, com laços afetivos, com contexto cultural, e tudo isto aparece naquilo que a pessoa conta.

A Universidade de Columbia, em Nova York, tem um programa chamado Narrativa na Medicina, cujo objetivo é estudar as histórias que os pacientes contam, recorrendo para isto inclusive ao conhecimento que a literatura pode fornecer sobre a arte e a técnica da narrativa.

Ao longo do tempo multiplicaram-se as obras em que pacientes, por vezes famosos, contam a história de seus problemas. Aliás, posso dar um exemplo pessoal: minha estreia neste caderno deu-se através de um texto, Voltando à Vida, em que eu narrava a penosa experiência resultante de um grave acidente.

Agora, surge um novo e interessante relato: em Saga Lusa a cantora e compositora gaúcha Adriana Calcanhotto descreve os efeitos psicológicos de uma bad trip resultante de uma mistura de remédios contra a gripe e cortisona durante uma turnê realizada em Portugal. Adriana teve agitação, alucinações, pesadelos, crises de choro, mas narra estes eventos com um humor irônico que neutraliza o pavor que deve ter sentido.

E o fato de ter alguém a quem narrar – o leitor – certamente deve ter ajudado a artista, pessoa inteligente e culta, a elaborar o que com ela se passou. E notem, estamos falando de uma intoxicação medicamentosa eventual.

Falar sobre doença, escrever sobre doença: isto ajuda muito, do ponto de vista emocional. E está sendo facilitado pelos vários meios de divulgação agora ao alcance das pessoas. Este caderno Vida apresenta o blog que será iniciado pelo Raul Ferreira, da RBS TV, em zerohora.com.

Ele nos contará sobre sua experiência de ex-fumante e sobre sua luta contra o câncer. Importante para o Raul, importante para todos os que lerem. Partilhar narrativas é partilhar a nossa condição humana.


04 de abril de 2009
N° 15928 - CLÁUDIA LAITANO


Covers

Porto Alegre aplaudiu de pé o homem que já foi considerado o sujeito mais azarado do mundo. Pete Best, o cara que perdeu o emprego de baterista dos Beatles quando a banda estava a uma nota do sucesso planetário, fez uma participação especial no show da banda argentina The Beats no último fim de semana.

Embalada pela fama de ser a melhor banda cover dos Beatles em atividade, The Beats costuma atrair um público animado e numeroso a seus shows – não só os beatlemaníacos de primeira hora, mas filhos, netos e agregados também.

A possibilidade de ver no palco um quase-beatle de verdade atiçou ainda mais os fãs, ávidos por um fiapo da aura dos ídolos ainda impregnada no homem que perdeu a vaga, e a fama, para Ringo Starr.

Entre constrangido e bonachão, Best contou passagens de duas temporadas de shows em Hamburgo, com John, Paul e George, em 1960 e em 1961, fez piadas sem graça sobre o empresário Brian Epstein, supostamente responsável pela sua substituição, e até tocou um pouquinho de bateria também.

Shakespeare poderia ter escrito uma tragédia sobre uma vida como essa: um homem que chega até o umbral da glória, limpa os sapatos no seu tapete, coloca a mão na maçaneta, mas, um instante apenas antes do passo definitivo, é catapultado rumo ao semi-anonimato de uma nota de rodapé dos livros de história.

Lá estava ele, um herói trágico tentando fazer piada com os desvios do próprio destino, diante de uma plateia dividida entre a compaixão e a admiração por aqueles dois anos de ensaio para a fama que não veio. Pete Best não foi o que poderia ter sido – mas quem de nós não pensa isso sobre si mesmo de vez em quando.

Enquanto Pete Best é um quase-beatle de verdade sem fama nem glória, The Beats são beatles de mentira com sua parcela de fama e público assegurada. Imitando a banda mais famosa do mundo, os argentinos levam ao paroxismo a obsessão pela cópia: gravam nos mesmos estúdios, recuperam no porão de uma gravadora os instrumentos originais, emulam figurinos, cortes de cabelo, timbres de voz.

Cada acorde executado no palco soa exatamente como nos álbuns dos Beatles, e mesmo assim eles gravam seus próprios discos – por motivos que, confesso, me escapam.

Houve uma época em que imitar um grande artista era o caminho para tornar-se também um mestre.Copiar era uma forma de aperfeiçoar-se na técnica, e a originalidade (ou falta de) não definia o valor artístico de uma obra – até a Renascença, uma banda cover perfeita poderia ter um prestígio semelhante ao da banda original.

Hoje se acredita que somos nós, os espectadores, que atribuímos o valor que uma obra tem – baseados não apenas no gosto pessoal, mas no que sabemos sobre a obra (o que dizem os críticos, os especialistas, o mercado), no lugar em que estão (em um museu ou em uma estação de metrô) e no que nossa época e nosso grupo social nos levam a acreditar (a respeito, por exemplo, de valores como a originalidade).

Para a sensibilidade dos nossos dias, uma banda que imita outra sempre será uma atração menor – por mais perfeita que soe tecnicamente. O cover é uma espécie de faz-de-conta de adultos, a encenação de uma experiência musical marcante.

E quanto mais obstinadamente igual, mais confunde nossa sensibilidade: se a fidelidade ao original nos conforta, a previsibilidade quase mecânica e a ausência de espaço para a criação nos conduzem não a uma verdadeira experiência estética, mas a uma espécie de museu de cera das emoções que, um dia, o original nos despertou.

quarta-feira, 1 de abril de 2009



01 de abril de 2009
N° 15925 - MARTHA MEDEIROS


As hermafroditas

Estive recentemente no Rio participando de uma conversa na Casa do Saber, um centro cultural que promove cursos sobre temas variados, e fui inquirida pelo dono do lugar: ele queria saber como eu via o desempenho das mulheres na política, especialmente das gaúchas Dilma Rousseff e Yeda Crusius, e se eu ficaria feliz em ver uma mulher na presidência do país.

Eu respondi a ele que política não é assunto que eu domine (nem esse, nem nenhum), e que sendo homem ou mulher, pra mim, tanto fazia, assim como tanto faz se for gremista ou colorado, gay ou hétero, carnívoro ou macrobiótico, desde que trabalhe pelo bem da população e seja uma criatura honesta e com projetos realizáveis.

Creio que não era a resposta que ele queria, mas eu não estava a fim de polemizar. Na hora fiquei pensando em como as mulheres são mais cobradas do que os homens quando ocupam uma liderança política ou empresarial. Por um lado, elas não podem fraquejar de jeito nenhum, sob risco de serem consideradas delicadas demais para ocupar um cargo que sempre foi deles, os ogros.

Por outro, se forem duronas, correm o risco de sofrerem críticas justamente por serem “mais macho que muito homem”, como dizia uma música da Rita Lee. A verdade é que mulher na política ainda é considerado um fenômeno sobrenatural e exige-se dela nada menos do que hermafroditismo.

Por coincidência, dias depois estava assistindo à peça Aquela Mulher, com Marília Gabriela desempenhando um papel livremente inspirado em Hillary Clinton, no hipotético dia em que ela estaria tomando posse da presidência dos Estados Unidos.

O texto discute traições conjugais e as perdas que a passagem do tempo acarreta, mas o monólogo se inicia falando da relação da mulher com o poder, especialmente do caso de Hillary, que hoje está mais na vitrine do que o marido e pode mesmo vir a ser presidente um dia.

A peça começa com a personagem sozinha em seu quarto, comentando que dentro de poucas horas será o homem mais importante do planeta. “O homem!”, ela repete, insinuando que a mulher mais importante do planeta nunca seria tão importante assim. E diz mais: que sua ascensão política nada mais é do que uma vingança por seu marido a ter traído com “aquela gorduchinha”.

Ficção à parte, fiquei pensando até onde as mulheres estão galgando degraus por idealismo ou por revanchismo. Até onde nossa necessidade de poder é um desejo genuíno ou uma desforra. Talvez todas as mulheres se sintam um pouco traídas por terem demorado tanto a usufruir de uma vida pública, mas vencer para “dar o troco” nunca me pareceu um bom motivo.

Sempre que tentamos provar algo para os outros, corremos o risco de ficarmos histriônicas e de perder o foco. Se, ao contrário, temos vocação natural para a liderança e para a administração, aí não haverá preocupação em demonstrar se existe um jeito masculino ou feminino de governar: será de um jeito próprio, à prova de rótulos.

Continuo achando que um homem ou uma mulher no governo, tanto faz, desde que haja governo – de si mesmo, pra começar.

domingo, 29 de março de 2009


CARLOS HEITOR CONY

Amada mia

RIO DE JANEIRO - Não estou atualizado nem me preocupo com isso. Mas volta e meia leio e ouço depoimentos nostálgicos de eras anteriores ao dilúvio e aos dinossauros. Outro dia, tomei conhecimento de repertório brega que serviu de trilha musical para gerações que, como naquela canção infantil, deram adeus e foram embora.

Meto minha colher no mingau e lembro "Amada mia", cantada por Dick Haymes, mas lançada na versão "Amado mio", por Rita Hayworth, num filme que garantia nunca ter havido mulher como Gilda. "Amada mia, love me forever" e que este "forever" comece nesta noite. Era letal.

O núcleo da breguice era o repertório das churrascarias e dos inferninhos nos subsolos de Copacabana, onde, para desespero de minha mãe, que me queria padre, iniciei uma felizmente interrompida carreira de pianista da madrugada.

Nas churrascarias, o "hit" preferencial era "Babalu", o grito sensual da magia negra; nos inferninhos, não se resistia a "Perfídia", que Ingrid Bergman e Humphrey Bogart dançaram naquela cena do cabaré de Paris -recordamos "As Time Goes By" e esquecemos que, no final de tudo, depois de Casablanca, eles só teriam Paris para sempre.

Havia as estradas vicinais de efeito igualmente fulminante, Pablo Neruda com sua canção desesperada, tão curto o amor, tão largo o esquecimento, Vinicius de Moraes com seu soneto da fidelidade, chupado de Henri de Régnier (1864-1936), o amor que seja infinito enquanto dure.

Não conheço os equivalentes atuais para pintar o clima devastador que encerrava os prolegômenos e iniciava os finalmentes. Roberto Carlos parece que ainda funciona ao longo dos trilhos da Central do Brasil e da antiga Leopoldina Railway. Não ando por aquelas bandas -desconfio que esteja perdendo alguma coisa boa.

sábado, 28 de março de 2009



29 de março de 2009
N° 15922 - MARTHA MEDEIROS


Identidade contra a crise

Tem-se falado que uma das consequências da crise econômica mundial é uma certa caída de ficha entre as pessoas que têm prazer em ostentar. A tendência, dizem, é não esfregar sua riqueza na cara dos outros. Já não era sem tempo: sempre achei ostentação uma cafonice.

Eu pagaria uma fortuna para não andar de limusine, não viver numa casa com 15 quartos e não usar boa parte dos vestidos que desfilaram no tapete vermelho do Oscar. E se alguém me pedisse pra citar um exemplo de mulher jeca, é bem provável que alguma milionária me viesse à cabeça. Um disco voador me largou nesse planeta e esqueceu de me buscar.

Há que se ter uma certa cautela com essa história de crise. Sei que ela existe, mas também sei que o excesso de precaução pode alavancá-la: é tanta gente com medo do que está por vir que a retração começa antes da hora, e aí corta-se, demite-se, enxuga-se. Se a crise acachapante não vier, a desconfiança terá instalado outra crise no lugar.

Mas já que não se fala em outro assunto, vale refletir sobre o que esse momento pode ter de positivo, e a diminuição da ostentação é apenas a ponta do iceberg. Com ou sem crise, já estava mesmo na hora de uma reciclagem de atitudes e de pensamento.

Restabelecer prioridades. Sai a conta estratosférica de certos restaurantes, que costumam cobrar até 150% a mais no preço de uma garrafa de vinho, e trocar por encontros entre amigos, em casa, cada um trazendo do super a sua colaboração.

Em vez de só darmos atenção para a roupa nova que a nossa amiga está vestindo, reparar melhor no seu semblante e procurar descobrir a razão do seu olhar triste. Deixar o carro mais tempo na garagem e andar a pé ou de bicicleta, que aliás era o meio de transporte preferido de John John Kennedy, que nunca precisou economizar.

Festa de 15 anos para 600 convidados com show ao vivo e três trocas de vestido? Usar brinco, colar, gargantilha, pulseira, anel, tornozeleira, tudo ao mesmo tempo, e ainda carregar uma bolsa de 2 mil dólares com a grife saltando aos olhos? Torneiras de ouro no lavabo (em apartamentos em que a mensalidade do condomínio geralmente está atrasada?) Isso é saber viver?

Cada um escolhe o que fazer com o seu dinheiro, combinado.

Mas já que virou moda não ostentar (deveria ser regra), então que se aproveite a tendência da estação para consumir atitudes novas: ser elegante sem torrar uma nota preta, economizar água e ajudar a conter a poluição, não abrir mão de ter amigos verdadeiros, deixar de valorizar relações descartáveis, alimentar a alma e o espírito com muita arte e cultura, buscar um lazer revigorante junto à natureza, cuidar do corpo de forma saudável e não apenas cirúrgica, sorrir em vez de reclamar tanto, falar menos de dinheiro, fazer o que se gosta sem se preocupar com a repercussão, dar valor ao que tem valor, e não apenas ao que tem preço.

Não vá por mim, que eu nem sou daqui. Mas vá por você.


29 de março de 2009
N° 15922 - MOACYR SCLIAR


Clique aqui, amigo. Por favor, clique aqui

Acontece com todo mundo que tem internet: não há dia em que a gente não receba uma mensagem vinda de um remetente não habitual – não é amigo, não é familiar – mas que sempre contém uma ordem/convite: “Clique aqui”. Não clique.

É uma armadilha. É coisa de hacker. Clicar significa abrir a memória de seu computador para alguém que dela tirará proveito, obtendo informações que incluem, por exemplo, contas bancárias. Todos nós sabemos disso. Mas todos nós precisamos estar alertas, muito alertas, para não cair no engodo eletrônico.

O hacker é uma figura nova no mundo da transgressão. Não é um assaltante violento, não usa armas, não agride sua vítima, nem sequer se aproxima dela. O hacker age a distância, e seus instrumentos são, além da internet, uma boa dose de imaginação e um conhecimento, ainda que rudimentar, da psicologia humana.

Imaginação? Pois é. Sem ser um ficcionista famoso, o hacker tem, no entanto, de bolar uma historinha convincente; mais que isso, tem de criar também um personagem.

Uma personagem, na maioria das vezes, que se dirige a nós com a maior familiaridade, sempre se queixando e, portanto, sempre apelando para o nosso sentimento de culpa: “Oie (se a mensagem começa por ‘oie’, desconfiem), você ontem passou por mim e fez que não me viu, não tem importância, eu perdoo você e mando as fotos do nosso último encontro”. E ali está o anexo no qual as pessoas devem novamente clicar.

E por que clicam? Pela curiosidade, claro, à qual não falta um componente de sacanagem. O destinatário da mensagem sabe muito bem que não passou por moça alguma, que não encontrou moça alguma, que não foi para o quarto com ela; mas clica, mesmo assim.

Por que clica? O que espera ver? É a si próprio, vivendo cenas de tórrida paixão? Talvez. A capacidade que temos de enganar-nos a nós próprios é muito grande, e é com isso que o hacker (ou a hacker, não sejamos preconceituosos) conta.

Sedução é uma fórmula. A outra é autoritarismo. Em certas mensagens, o hacker fala em nome do poder. É a justiça eleitoral avisando que nosso título vai ser cassado. É um banco, ameaçando com cobrança judicial. É uma empresa mandando a conta de um eletrodoméstico adquirido via internet.

Às vezes, temos uma curiosa fórmula intermediária, que consiste em unir autoridade com sedução. Somos avisados que foi feito um depósito em nosso nome; para saber quanto, temos de clicar. Ora, depósitos são feitos por quem controla dinheiro, e quem controla dinheiro merece respeito. E aí muitos clicam.

Deve ser dito que os hackers não são propriamente gênios da vigarice. O número de erros de grafia nas mensagens é monumental, sem falar nas frases mal-construídas (seria bom que lessem mais). Por outro lado, certas propostas, ou certas ordens, não fazem o menor sentido. “Você vai ser desligado do provedor X”.

Só que não usamos o provedor X, nunca tivemos nada a ver com o provedor X. E o banco Y manda-nos uma mensagem: “Caro depositante” – mas não somos depositantes do banco Y. Isso, porém, não importa. O hacker é como o semeador da parábola bíblica: ele vai atirando as sementes da tentação por toda a parte.

A maioria delas cairá no território árido (para o hacker) de nosso ceticismo e de nossa desconfiança e nunca germinará, mas basta que uma pequena porcentagem resulte em sucesso para justificar um trabalho que, convenhamos, nada tem de exaustivo.

A indagação se impõe: por que os hackers não usam seu talento, seu esforço, em alguma atividade respeitável, reconhecida?

Boa pergunta. Para saber a resposta, clique aqui.

quarta-feira, 25 de março de 2009



25 de março de 2009
N° 15918 - MARTHA MEDEIROS


Sobrevoando Porto Alegre

Semana passada li a notícia dos meus sonhos na internet. Uma empresa americana anunciou o primeiro teste de um protótipo de carro voador, movido a gasolina. O carro pode ser transformado em avião pelo próprio piloto em apenas 30 segundos, tem autonomia de voo de mais de 700 km e pode atingir até 185km/h no ar. Já botei meu nome na lista de espera.

Não sei se você reparou, mas o trânsito de Porto Alegre está perto de entrar em colapso. Não existe mais hora do rush: as ruas estão tomadas desde manhã cedo até a noitinha. Tampouco se pode atalhar: se quisermos desviar por outra rua, essa outra rua estará igualmente lotada – todos tiveram a mesma ideia que você. Não há por onde escapar.

Sei que a prefeitura não pode duplicar avenidas da noite pro dia. Estou me queixando pro bispo, já que não há como interromper a venda de automóveis, sem falar que nossa cidade é grande, há muitas ladeiras, as ciclovias são escassas, não há metrô, enfim, o uso do carro ainda se faz necessário, infelizmente.

Ele é mal usado? Sim, poderíamos dar mais caronas, mas pra isso precisaria haver uma profunda mudança de mentalidade da população, na qual me incluo. Reformular hábitos é sempre um longo processo.

No entanto, há outras questões que envolvem o trânsito que poderiam ser feitas, como, por exemplo, sinalizar todas as esquinas com os nomes das ruas. É um vexame: nossa capital tem vários quarteirões sem identificação. Você procura uma rua, chega na esquina e ué. Nada. Nem placa no poste, nem na fachada do edifício, nem presa a uma árvore, essas alternativas pitorescas.

Ontem circulei pela cidade de norte a sul e cheguei ao final do dia querendo matar uns três. Já estava quase perdoando chacinas. Pouco antes de chegar em casa, roxa por um banho, surgiu em frente ao meu carro um outro carro a 15 km/h. Se eu pudesse passar por cima com meu bólido voador, passava. Buzinar, não buzino, minha religião não permite, a não ser em caso de atropelamento iminente.

Fiquei pensando: o carro não é do século retrasado e tampouco o motorista, por que ele está andando a 15 km/h? Debruçado sobre o volante e virando o rosto pra esquerda e pra direita, logo entendi: ele procurava uma rua. Não havia placas à vista. Como não me solidarizar? Meu banho que esperasse.

Amanhã é aniversário de Porto Alegre. Sugestão de presente para a cidade: sinalização padronizada em todas as esquinas. E, pra mim, um brevê.

Minutos antes de enviar esta crônica pro jornal, recebi um e-mail do pessoal da Bike-Entrega, serviço similar ao dos motoboys, só que feito de bicicleta. Um grupo de atletas treinados, uniformizados e equipados com celular faz entrega de documentos, passagens, convites, presentes e cheques sem sobrecarregar o trânsito e a poluição da cidade. Veio a calhar. Informe-se: www.bike-entrega.com.br ou fone (51) 3332-0404.

Ótima quarta-feira - Aproveite o dia.

terça-feira, 24 de março de 2009



A BOA MORTE

Como é bom morrer no Brasil. Talvez seja a melhor coisa que tenhamos a oferecer às nossas celebridades. Uma boa morte. Uma morte com direito a bajulação.

Basta morrer, algo que, convenhamos, não exige qualquer mérito ou competência específica, para a glória ser alcançada. O sujeito passa a vida lutando para ser amado, admirado, adulado e elogiado, numa obsessão terrível, sem êxito.

Todos o esculacham. Mal entrega a alma e já começam os elogios ditirâmbicos. Todos os sinais se invertem. O chato vira simpático. O casmurro vira bonachão. O grosso vira temperamental. O reacionário vira incompreendido. Clodovil morreu. Era um 'mala' e tudo o mais que se possa imaginar e dizer de uma pessoa viva. Já não é mais.

O escritor Ruy Castro, conhecido por vender elogios sob a forma de biografias encomendadas por editoras que mais parecem funerárias, lembrou-se com saudades de uma entrevista que fez com o costureiro, em 1980, em meio a qual o entrevistado disparou grosserias pelo telefone contra clientes insatisfeitas.

Ah, como era deliciosamente estúpido esse maroto! Que saudades dos seus maravilhosos coices! A eleição de Clodovil para a Câmara dos Deputados foi saudada na época como um desses absurdos típicos de um país submetido a uma televisão de mau gosto e péssima influência. Agora, com a morte do deputado, até isso mudou.

Carlos Heitor Cony já se penitenciou e, fustigando as próprias costas com um látego, teceu odes a um projeto do parlamentar, reduzir pela metade o número de deputados: 'Eu também ignorava este projeto do polêmico parlamentar e acredito que muita gente também não sabia que, além de criar alguns casos próprios de seu temperamento, ele tivera uma belíssima ideia, que um dia, acredito, será retomada'. Uau! Uau!

Aí está: Clodovil, depois de morto, começa a ser descoberto. Era honesto, franco e com boas intenções. Parece que não pagava o IPTU da sua mansão havia décadas, mas isso também poderá contar para dar brilho ao seu currículo.

Não é de duvidar que venha a ser condecorado com alguma medalha póstuma como deputado exemplar. A morte tem um extraordinário poder de transformação. Depois da morte, vejam só, nada mais é como antes. Há uma metamorfose completa.

A imagem do indivíduo se altera dos pés à cabeça. Cony, na sua precoce recuperação póstuma do herói, acusou a mídia de ter produzido dele uma imagem falsa: 'Clodovil pertencia à banda demonizada pelas cultas gentes. Se descobrisse a cura do câncer, o elixir da juventude, o Santo Graal, a quadratura do círculo, os ossos de Dana de Teffé, ninguém saberia'. O midiático Clodovil seria um injustiçado, um bode expiatório.

O mais recente ídolo brasileiro disparou algumas pérolas ao longo da sua incompreendida existência. Em 2004, chamou a vereadora Claudete Alves de 'macaca de tailleur metida a besta'.

À Rádio Tupi, em 2006, afirmou que os judeus manipularam o Holocausto e forjaram os atentados de 11 de setembro de 2001. De quebra, designou um negro como 'crioulo cheio de complexo'. Na sua última polêmica de alto nível, em tom sociológico, garantiu que as mulheres atualmente 'trabalham deitadas e descansam em pé'.

Ainda foi capaz de acrescentar algo, diante de um pedido de explicação feito pela agredida, a deputada petista Cida Diogo: 'Digamos que uma moça bonita se ofendesse porque ela pode se prostituir. Não é o seu caso. A senhora é uma mulher feia'. Quanta irreverência!

juremir@correiodopovo.com.br

Uma ótima terça-feira - Aproveite o dia.

domingo, 22 de março de 2009


DANUZA LEÃO

Felicidade pega

Existem pessoas que nascem de baixo-astral, sempre se queixando de tudo, só falando de problemas

FÁCIL não é, mas existem maneiras de procurar a felicidade. A primeira coisa -e a mais importante- é tentar só ter como amigos gente com a vocação da felicidade. É claro que às vezes eles passam por problemas, e devemos ser solidários nesses momentos.

Mas existem pessoas que nascem de baixo-astral, sempre se queixando de tudo, só falando de problemas e tristezas. Se você conviver muito com pessoas assim, pode saber que vai ficar mal. Aliás, gente assim só gosta de se dar com pessoas como elas; quem, nascido com o DNA lá em baixo, vai suportar ser amiga de quem é feliz, otimista, que vive rindo e achando a vida boa?

E não falo só de amigos: se o seu tintureiro se queixa o tempo todo da vida, o professor de ginástica só conta desgraças, a faxineira, as doenças dela e da família inteira, troque, mesmo com dó e piedade. Você tem que se defender, e uma das maneiras é se afastar, fugir, não chegar nem perto.

Eu tive uma empregada que era excelente, e apesar de só se queixar e me contar histórias trágicas (e antigas) -como morreu a avó há 50 anos, a sobrinha que tinha um filho que estava preso, a irmã que pesava 110 quilos e era diabética (tudo com riqueza de detalhes)-, fiquei com ela durante anos, já que era uma ótima profissional. Mas um dia não deu mais.

Fiz das tripas coração e a demiti, com todas as vantagens da lei e muitas outras, para me livrar da culpa. Mas fiquei pensando: será que ela vai encontrar outro emprego? E se não encontrasse, a culpa seria toda minha, que deveria ter sido mais paciente e tolerante, sabendo que a vida dela não era fácil etc. etc. Mas sabe aquele dia em que não dá mais?

Pois não deu; assumir minha culpa não foi fácil, mas o que era para ser feito foi feito.

Aí veio uma outra, que não deu muito pé, e antes que laços de amizade se fizessem, dispensei. E aí veio a terceira, e minha vida mudou. Em primeiro lugar, ela é uma pessoa de altíssimo astral. Bem casada, feliz com o marido, e com um sorriso -quando não uma gargalhada- o tempo todo.

Quando ela veio pela primeira vez conversar comigo, me chamou logo de Danuza, não de dona Danuza. Como desde que me entendo por gente as empregadas chamam as patroas de dona, achei um pouco estranho, mas não tive nenhuma condição de pedir que ela me chamasse de dona. Afinal, isso não tem nada a ver comigo.

E assim fomos indo: Danuza pra cá, Vanúzia (é o nome dela) pra lá, e a vida correndo não só bem, como cada vez melhor. Ela me elogia, diz que o cabelo novo ficou ótimo, e me confessou que adora Clodovil, Agnaldo Timóteo e não perde um show de Fagner, sua grande paixão. Tudo isso me faz rir, e de repente percebi que estava rindo o dia inteiro.

Ontem ela estava na área passando roupa, e de repente ouvi um som estranho. Fui ver e era ela, com o ferro na mão, cantando; cantando alto uma música que nunca ouvi, provavelmente do repertório de Alcione, e quando cheguei à área ela me abriu um grande sorriso e perguntou "quer um chazinho gelado?

Você quase não toma água, e água faz bem, vou pegar um copinho para você". Largou o ferro e me trouxe um chá bem gelado, e eu vi o quanto eu era feliz de ter uma pessoa assim perto de mim. Uma empregada que canta e que na hora de ir embora me manda um beijo; tem coisa melhor?

Vanúzia vai levar um susto quando ler esta coluna; é capaz até de mandar emoldurar, mas ela merece, pela felicidade que me dá.

E descobri que felicidade e tristeza são tão contagiantes quanto o sarampo.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 21 de março de 2009



22 de março de 2009
N° 15915 - MARTHA MEDEIROS


O amor nos tempos de hoje

Da televisão, ele sumiu, evaporou. A internet ele nunca chegou a frequentar. Nas páginas de revista, faz tempo que não dá as caras. Foi trocado pela paixão instantânea e pelo sexo ocasional. Estou falando do amor, lembra dele? Pois é, foi escorraçado da mídia.

Hoje em dia, casais se unem por desejo, oportunidade ou conveniência. Todos querem se apaixonar amanhã e somar mais um nome ao seu currículo pessoal de aventuras, que se pretende vasto. Cultivar um amor para sempre?

Nem pensar. O amor deixou de ser inspirador. Já deu os versos que tinha que dar. O amor demora muito para se estabelecer e depois dura demais. Quem tem paciência e tempo, hoje, para se dedicar a uma só pessoa? O amor faz sofrer, faz chorar, e além disso não rende matéria no Segundo Caderno, não é encontrado no YouTube.

O amor está obsoleto, não se usa mais. Segue valorizado apenas no cinema e nos romances de ficção, através de autores que não desistem de investigar esse sentimento que é tão difícil de se concretizar da maneira como o idealizamos. Todo amor parece impossível, tanto nos livros como na vida real. E talvez esteja aí a razão da sua força e mistério e do medo que ele nos provoca.

O amor é muito mais exigente do que a paixão: ele pressupõe a reconstrução de duas vidas a partir de uma troca de olhares, que é como tudo geralmente começa. Enquanto a paixão se esgota em si mesma e não está interessada no amanhã, o amor é ambicioso, se pretende eterno, e para pavimentar essa eternidade não mede esforços.

Duas pessoas que nunca se imaginaram juntas de repente atendem a um chamado interno do coração (desculpe o termo, não encontrei outro mais moderno) e investem nessa união de olhos abertos (a paixão é vivida de olhos fechados). O amor é uma loucura disfarçada de sanidade.

Não fosse uma loucura, o amor não seria o que é: lírico e profundo, rebelde e transformador. Amar é a transgressão maior. É quando rompemos com a nossa solidão para inaugurar uma vida compartilhada e inédita. Isso é ou não é uma doideira?

Mais ainda: poderíamos dizer que o amor é um processo de autodesconhecimento. Você nunca conviveu com a pessoa que começou a amar, portanto você precisa conhecê-la, e ela a você.

Diante dessa página em branco, somos obrigados a nos passar a limpo, e para isso é preciso relativizar as certezas acumuladas até então e abrir-se para a formação de uma nova identidade. Passamos a ser recicláveis. O autoconhecimento nos dá respostas seguras sobre nós mesmos, mas segurança demais pode nos paralisar. O autodesconhecimento é que nos empurra pra frente.

Todos nós já tivemos a chance de amar. Alguns, uma única vez, mas a maioria de nós teve várias oportunidades, diversos amores. Amores curtos, mas inesquecíveis. Amores que terminaram, mas que geraram filhos.

Amores que naufragaram, mas que nos amadureceram. Amores duradouros, que ainda não acabaram. Todos eles nos incentivando a continuar a tentar, porque de amar ninguém desiste.

O desprestígio do amor talvez venha da pressa de viver, da urgência dos dias, da necessidade de “aproveitarmos” cada instante: é como se o amor fosse um impedimento para o prazer. Francamente, o que se aproveita, de fato, quando não se sente coisa alguma?

A resposta é: coisa alguma. Do que se conclui que o amor nunca será cafona, pois nada é mais revolucionário e poderoso do que o que a gente sente. Nada. Nem mesmo o que a gente pensa.

Diego Mainardi

A costela do bispo

"A Igreja Universal é conhecida por seu desprendimento material. Mesmo assim, é duro imaginar que algum pastor tenha
festejado o rombo da Record News"

Deus e o Diabo em 2010. Deus: Edir Macedo. Diabo: Zeca Diabo. Edir Macedo é dono da Rede Record. Zeca Diabo é dono de Dilma Rousseff, segundo um relatório armazenado no computador do delegado Protógenes Queiroz. Quem é Zeca Diabo? Isso mesmo: José Dirceu.

O dono da Rede Record, Edir Macedo, e o dono de Dilma Rousseff, José Dirceu, aliaram-se abertamente na última semana. O colunista Daniel Castro, da Folha de S.Paulo, informou que uma das costelas da Rede Record, a Record News – ou CNN do dízimo –, é um completo fracasso. Na TV aberta, dá zero de audiência.

Na TV a pagamento, dá zero de audiência. Pior ainda: a Record News tinha uma meta de faturamento de 100 milhões de reais. No ano passado, pelas contas de Daniel Castro, o resultado foi um décimo disso. A Igreja Universal do Reino de Deus é conhecida por seu desprendimento material. Por seu desinteresse por dinheiro. Mesmo assim, é duro imaginar que algum pastor tenha festejado o rombo.

O Jornal da Record reagiu furiosamente ao artigo de Daniel Castro. Depois de atacar a Folha de S.Paulo por mais de sete minutos, acusando-a de ter perdido "qualidade editorial" e de passar por uma séria "crise de credibilidade", a emissora prometeu usar seus telejornais para constranger todos aqueles que a importunassem.

Um dos gerentes da Rede Record, Celso Teixeira, mandou uma circular aos jornalistas, reiterando a mensagem intimidadora: "A partir de agora, a empresa vai se posicionar publicamente e judicialmente contra os ataques que recebeu nos últimos tempos". Isso quer dizer o seguinte: se alguém publicar um comentário que desagrade à Record, terá de enfrentar um bombardeio na TV e uma dezena de processos no Acre.

O dono de Dilma Rousseff, José Dirceu, imediatamente apoiou o dono da Record, Edir Macedo, denunciando a tendenciosidade da Folha de S.Paulo. Em 2010, ocorrerá o oposto: a Record, que pertence a Edir Macedo, apoiará Dilma Rousseff, que pertence a José Dirceu.

Quando a Record News foi inaugurada, em 2007, Lula declamou ridiculamente: "Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós". O plano do PT era estimular o surgimento de uma imprensa plenamente domesticada, que ocupasse o lugar de quem ainda insistia em fazer jornalismo, noticiando os abusos do lulismo. Em particular: VEJA, Globo, Folha de S.Paulo.

O plano deu errado. VEJA, Globo e Folha de S.Paulo continuam aí. A Record News, por outro lado, com zero de audiência na TV aberta, com zero de audiência na TV a pagamento, está tomada por comerciais da Polishop. Em 2010, em vez de Dilma Rousseff, o eleitor acabará comprando uma grelha. Um modelador de cabelo. Um fatiador de pepino.

Lya Luft

A mentirosa liberdade

"Liberdade não vem de correr atrás de ‘deveres’ impostos de fora, mas de construir a nossa existência"

Comecei a escrever um novo livro, sobre os mitos e mentiras que nossa cultura expõe em prateleiras enfeitadas, para que a gente enfie esse material na cabeça e, pior, na alma – como se fosse algodão-doce colorido.

Com ele chegam os medos que tudo isso nos inspira: medo de não estar bem enquadrados, medo de não ser valorizados pela turma, medo de não ser suficientemente ricos, magros, musculosos, de não participar da melhor balada, do clube mais chique, de não ter feito a viagem certa nem possuir a tecnologia de ponta no celular. Medo de não ser livres.

Na verdade, estamos presos numa rede de falsas liberdades. Nunca se falou tanto em liberdade, e poucas vezes fomos tão pressionados por exigências absurdas, que constituem o que chamo a síndrome do "ter de".

Fala-se em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela propaganda como gado para o matadouro, e as opções são tantas que não conseguimos escolher com calma. Medicados como somos (a pressão, a gordura, a fadiga, a insônia, o sono, a depressão e a euforia, a solidão e o medo tratados a remédio), cedo recorremos a expedientes, porque nossa libido, quimicamente cerceada, falha, e a alegria, de tanta tensão, nos escapa.

Ilustração Atômica Studio

Preenchem-se fendas e falhas, manchas se removem, suspendem-se prazeres como sendo risco e extravagância, e nos ligamos no espelho: alguém por aí é mais eficiente, moderno, valorizado e belo que eu? Alguém mora num condomínio melhor que o meu? Em fileira ao longo das paredes temos de parecer todos iguais nessa dança de enganos.

Sobretudo, sempre jovens. Nunca se pôde viver tanto tempo e com tão boa qualidade, mas no atual endeusamento da juventude, como se só jovens merecessem amor, vitórias e sucesso, carregamos mais um ônus pesadíssimo e cruel: temos de enganar o tempo, temos de aparentar 15 anos se temos 30, 40 anos se temos 60, e 50 se temos 80 anos de idade.

A deusa juventude traz vantagens, mas eu não a quereria para sempre: talvez nela sejamos mais bonitos, quem sabe mais cheios de planos e possibilidades, mas sabemos discernir as coisas que divisamos, podemos optar com a mínima segurança, conseguimos olhar, analisar e curtir – ou nos falta o que vem depois: maturidade?

Parece que do começo ao fim passamos a vida sendo cobrados: O que você vai ser? O que vai estudar? Como? Fracassou em mais um vestibular? Já transou? Nunca transou? Treze anos e ainda não ficou? E ainda não bebeu? Nem experimentou uma maconhazinha sequer?

E um Viagra para melhorar ainda mais? Ainda aguenta os chatos dos pais? Saiba que eles o controlam sob o pretexto de que o amam. Sai dessa! Já precisa trabalhar? Que chatice! E depois: Quarenta anos ganhando tão pouco e trabalhando tanto? E não tem aquele carro? Nunca esteve naquele resort?

Talvez a gente possa escapar dessas cobranças sendo mais natural, cumprindo deveres reais, curtindo a vida sem se atordoar. Nadar contra toda essa louca correnteza. Ter opiniões próprias, amadurecer, ajuda. Combater a ânsia por coisas que nem queremos, ignorar ofertas no fundo desinteressantes, como roupas ridículas e viagens sem graça, isso ajuda.

Descobrir o que queremos e podemos é um bom aprendizado, mas leva algum tempo: não é preciso escalar o Himalaia social nem ser uma linda mulher nem um homem poderoso.

É possível estar contente e ter projetos bem depois dos 40 anos, sem um iate, físico perfeito e grande fortuna. Sem cumprir tantas obrigações fúteis e inúteis, como nos ordenam os mitos e mentiras de uma sociedade insegura, desorientada, em crise.

Liberdade não vem de correr atrás de "deveres" impostos de fora, mas de construir a nossa existência, para a qual, com todo esse esforço e desgaste, sobra tão pouco tempo.

Não temos de correr angustiados atrás de modelos que nada têm a ver conosco, máscaras, ilusões e melancolia para aguentar a vida, sem liberdade para descobrir o que a gente gostaria mesmo de ter feito.
A fé que faz bem à saúde

Novos estudos mostram que o cérebro é “programado” para acreditar em Deus – e que isso nos ajuda a viver mais e melhor
Letícia Sorg. Colaborou Marcela Buscato

A capacidade inata de procurar a explicação de um fenômeno é uma das diferenças entre o ser humano e outros animais. O homem primitivo não tinha como entender eventos mais complexos, como a erupção de um vulcão, um eclipse ou um raio.

A busca de explicações sobrenaturais pode ser considerada natural. Mas por que ela desembocou na fé e no surgimento das religiões? Cientistas de diferentes áreas se debruçaram sobre a questão nos últimos anos e chegaram a conclusões surpreendentes. Não só a fé parece estar programada em nosso cérebro, como teria benefícios para a saúde.

Com sua intuição genial, Charles Darwin, criador da teoria da evolução há 150 anos, já havia registrado ideia semelhante no livro A descendência do homem, em 1871: “Uma crença em agentes espirituais onipresentes parece ser universal”.

“Somos predispostos biologicamente a ter crenças, entre elas a religiosa”, diz Jordan Grafman, chefe do departamento de neurociência cognitiva do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e Derrame (leia a entrevista). Grafman é o autor de uma das pesquisas mais recentes sobre o tema, publicada neste mês na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences.

Em seu estudo, Grafman analisou o cérebro de 40 pessoas – religiosas e não religiosas – enquanto liam frases que confirmavam ou confrontavam a crença em Deus.

Usando imagens de ressonância magnética funcional – que mede a oxigenação do cérebro –, o neurocientista descobriu que as partes ativadas durante a leitura de frases relacionadas à fé eram quase as mesmas usadas para entender as emoções e as intenções de outras pessoas. Isso quer dizer, segundo Grafman, que a capacidade de crer em um ser ou ordem superior possivelmente surgiu ao mesmo tempo que a habilidade de prever o comportamento de outra pessoa – fundamental para a sobrevivência da espécie e a formação da sociedade.

E para estabelecer relações de causa e efeito. A interferência de um ser muito poderoso seria uma explicação eficiente para aplacar a necessidade de entender o que não se consegue explicar com o conhecimento comum.

Mas o que levaria o ser humano, dotado de razão, a acreditar que um velhinho de barba branca, em cima de uma nuvem, atira raios sobre a Terra? Ou que 72 virgens aguardam os fiéis no Paraíso? “Tendemos a atribuir características humanas às coisas, inclusive ao ser divino”, diz Andrew Newberg, neurocientista da Universidade da Pensilvânia (leia a entrevista), autor de outro importante estudo sobre o poder da meditação e da oração.

“A crença religiosa surgiu como um efeito colateral da maneira como nossa mente é organizada, da maneira como ela funciona naturalmente”, diz Justin Barrett, antropólogo e professor da Universidade de Oxford.

Para Barrett, autor do livro Why would anyone believe in God? (“Por que alguém acreditaria em Deus?”), há evidências de que os sistemas religiosos ajudam a manter comunidades unidas – a dividir, a confiar, a construir redes sociais mais fortes. Barrett afirma que a mente das crianças é um exemplo de como a fé se manifesta precocemente. Em uma das experiências, pesquisadores mostraram uma caixa de biscoitos às crianças e perguntaram a elas o que havia dentro.

Como não são bobas, as crianças responderam: “Biscoitos”. Ao abrir a caixa, o que encontravam eram pedras. Então, os cientistas perguntaram às mesmas crianças o que suas mães achariam que havia dentro da lata e o que Deus diria se visse a lata. As crianças de 3 anos disseram que as mães, assim como Deus, diriam que havia pedras. A partir dos 5 anos, elas responderam que a mãe diria “biscoitos”, mas que Deus responderia “pedras”.

Já se chegou a pensar que uma espécie de curto-circuito na parte lateral do cérebro pudesse gerar casos de religiosidade extrema. Ficou famosa uma experiência do neurocientista americano Michael Persinger, batizada “O Capacete de Deus”: um capacete que estimulava eletricamente o cérebro do usuário.

Segundo Persinger, oito em cada dez pessoas, qualquer que fosse a confissão religiosa, diziam experimentar um “sentimento religioso” ao vestir o aparato. Mas a maioria dos estudos científicos recentes – sejam eles baseados em imagens do cérebro ou no comportamento humano – afastou a hipótese de que a experiência religiosa seja o mero efeito de estímulos eletromagnéticos em uma parte específica do cérebro.

O biólogo evolucionista pop e “ateu militante” Richard Dawkins chegou a usar o capacete para um documentário da BBC britânica. Não conseguiu “encontrar Deus” – só desconforto para respirar e mexer-se. Hoje, Persinger se defende das críticas a seu estudo. “A ‘estimulação religiosa’ reduz a ansiedade e pode ser útil para melhorar a cooperação social”, disse.

Em 2004, o cientista americano Dean Hamer chegou a divulgar que havia descoberto um gene ligado à fé. Publicou o livro O gene de Deus. Batizado vmat2, seria responsável pelo transporte de mensageiros cerebrais, entre eles a serotonina, além de gerar o pensamento religioso. Polêmico na academia desde que anunciou a descoberta de um “gene gay”, supostamente responsável pela homossexualidade masculina, Hamer e seu livro foram acolhidos com ceticismo.

Para Jordan Grafman, explicações únicas são insuficientes para elucidar a origem da fé em algo divino. A imprensa batizou seu estudo de “God spot” (o “ponto de Deus”), um trocadilho com o suposto “ponto G”, responsável pelo orgasmo feminino. “O ‘ponto de Deus’ é tão mítico quanto o ponto G”, diz Grafman, irônico. Andrew Newberg também descarta explicações simplistas. Vários estudos demonstraram uma relação entre experiências religiosas e certos tipos de desordem cerebral.

“Mas essas associações não podem ser a única resposta”, diz Newberg. Apenas uma pequena porcentagem das pessoas que sofrem de epilepsia no lobo temporal tem esse tipo de experiência.

Newberg, que estuda as manifestações cerebrais da fé há pelo menos 15 anos, descobriu que as práticas religiosas acionam, entre outras regiões do cérebro, os lobos frontais, responsáveis pela capacidade de concentração, e os parietais, que nos dão a consciência de nós mesmos e do mundo.

Em seu novo livro, How God changes the brain (“Como Deus muda seu cérebro”), que será lançado nesta semana nos Estados Unidos, Newberg explora os efeitos da fé sobre o cérebro e a vida das pessoas.

Segundo o neurocientista, os estudos anteriores olhavam para os efeitos de curto prazo de práticas como a meditação e a oração. Agora, ele e seu grupo encararam a difícil tarefa de responder à questão: o que acontecerá se você adotar, com frequência, uma prática como a meditação ou a prece?


Juliana Paes - “Não me adaptaria à cultura indiana”

A atriz de "Caminho das Índias" diz aos leitores de ÉPOCA que foi criada “para trabalhar e conquistar espaço”
Revista Época

Pela primeira vez protagonista de uma novela da TV Globo, Juliana Paes afirma que o papel da indiana Maya tem sido um desafio pelo fato de a personagem não ter nenhuma ligação com sua realidade.

A atriz reconhece que não conseguiria se adequar muito bem aos costumes femininos da Índia. “Fui criada com essa ideia de trabalhar, conquistar meu espaço.

Seria difícil viver num lugar onde isso não é permitido.” Em resposta aos leitores de ÉPOCA, Juliana afirma que a imagem de símbolo sexual não é um incômodo – até a ajuda para conseguir contratos publicitários.

Ela diz que lida bem com o assédio decorrente da fama, mas admite que às vezes “gostaria de ser anônima” em momentos como sua lua de mel com o empresário Carlos Eduardo Baptista, no ano passado.

ENTREVISTA - JULIANA PAES

QUEM É
Nascida em Rio Bonito, Rio de Janeiro, tem 29 anos. Passou a infância e adolescência em São Gonçalo e Niterói, na Grande Rio. Em 1999, formou-se em publicidade pela Escola Superior de Propaganda e Marketing. É casada e não tem filhos

O QUE FEZ
Iniciou a carreira de modelo aos 12 anos. O trabalho que a levou à fama foi na novela Laços de família (2000), como a empregada Ritinha. De lá para cá, já atuou em sete novelas, duas minisséries e dois filmes, além da peça de teatro Os produtores

Você se sente incomodada por ser reconhecida como símbolo sexual?
Thanize Borges, Itaberaba, BA

Juliana Paes– Não, de jeito algum. Isso não interfere no tipo de trabalho que eu faço na televisão. Se me impedisse de alguma coisa, seria incômodo, mas isso não acontece. Não é um peso. Ao contrário, em alguns tipos de trabalho, como publicidade, ajuda.

Você já recusou algum papel em novelas por não concordar com a construção da personagem?
Martha Melo, São Luís, MA

Juliana – Nunca recusei trabalho. Só faria se não achasse estimulante. Na verdade, não consigo pensar no que me faria recusar. Acho que tenho muita sorte de ter ganho papéis bacanas em minha carreira.

Em que você se considera parecida com sua personagem de Caminho das Índias?
Isabelle Licarião, Boa Vista, RR

Juliana – Maya é muito romântica, e eu também. Também sou perseverante como ela.

"Há seis meses não ponho o pé numa academia. Tento segurar na alimentação, mas é difícil. Adoro doce, não resisto a um sorvete"
Que imagem você teve da mulher indiana?
Valeria Maria da Silva, São Paulo, SP

Juliana – Vejo a mulher indiana contida nos gestos, na maneira de ser na sociedade e tolhida nas atitudes. Mas não por isso ela é menos feliz. É uma questão de cultura. A mulher indiana leva uma vida voltada para o casamento, a família, se esforça para ser boa esposa, boa mãe. Nesse contexto, ela é uma mulher forte.

Você se adaptaria à cultura indiana?
Bárbara Barbosa, Campo Grande, MS

Juliana – Acho que não. Aqui no Ocidente, batalhamos por nossa independência. Fui criada com essa ideia de trabalhar, conquistar meu espaço. Seria difícil viver num lugar onde isso não é permitido. Lá, algumas mulheres trabalham, como a Maya, que no começo da novela era funcionária de um call center.

Mas ainda é um tabu. Por outro lado, não deixo de pensar que toda a independência que a mulher conseguiu por aqui não deixa de ser um fardo, porque acabamos sobrecarregadas com tantas funções necessárias para nos sentirmos completas.