sábado, 6 de junho de 2009


Claudio de Moura Castro

Educar é contar histórias

"Bons professores eletrizam seus alunos com narrativas interessantes ou curiosas, carregando nas costas as lições que querem ensinar"

De que servem todos os conhecimentos do mundo, se não somos capazes de transmiti-los aos nossos alunos? A ciência e a arte de ensinar são ingredientes críticos no ensino, constituindo-se em processos chamados de pedagogia ou didática. Mas esses nomes ficaram poluídos por ideologias e ruídos semânticos.

Perguntemos quem foram os grandes educadores da história. A maioria dos nomes decantados pelos nossos gurus faz apenas "pedagogia de astronauta". Do espaço sideral, apontam seus telescópios para a sala de aula. Pouco enxergam, pouco ensinam que sirva aqui na terra.

Tenho meus candidatos. Chamam-se Jesus Cristo e Walt Disney. Eles pareciam saber que educar é contar histórias. Esse é o verdadeiro ensino contextualizado, que galvaniza o imaginário dos discípulos fazendo-os viver o enredo e prestar atenção às palavras da narrativa.

Dentro da história, suavemente, enleiam-se as mensagens. Jesus e seus discípulos mudaram as crenças de meio mundo. Narraram parábolas que culminavam com uma mensagem moral ou de fé. Walt Disney foi o maior contador de histórias do século XX.

Inovou em todos os azimutes. Inventou o desenho animado, deu vida às histórias em quadrinhos, fez filmes de aventura e criou os parques temáticos, com seus autômatos e simulações digitais. Em tudo enfiava uma mensagem. Não precisamos concordar com elas (e, aliás, tendemos a não concordar). Mas precisamos aprender as suas técnicas de narrativa.

Há alguns anos, professores americanos de inglês se reuniram para carpir as suas mágoas: apesar dos esplêndidos livros disponíveis, os alunos se recusavam a ler. Poucas semanas depois, foi lançado um dos volumes de Harry Potter, vendendo 9 milhões de exemplares, 24 horas após o lançamento!

Se os alunos leem J.K. Rowling e não gostam de outros, é porque estes são chatos. Em um gesto de realismo, muitos professores passaram a usar Harry Potter para ensinar até física.

De fato, educar é contar histórias. Bons professores estão sempre eletrizando seus alunos com narrativas interessantes ou curiosas, carregando nas costas as lições que querem ensinar. É preciso ignorar as teorias intergalácticas dos "pedagogos astronautas" e aprender com Jesus, Esopo, Disney, Monteiro Lobato e J.K. Row-ling. Eles é que sabem.

Poucos estudantes absorvem as abstrações, quando apresentadas a sangue-frio: "Seja X a largura de um retângulo...". De fato, não se aprende matemática sem contextualização em exemplos concretos. Mas o professor pode entrar na sala de aula e propor a seus alunos: "Vamos construir um novo quadro-negro. De quantos metros quadrados de compensado precisaremos?

E de quantos metros lineares de moldura?". Aí está a narrativa para ensinar áreas e perímetros. Abundante pesquisa mostra que a maioria dos alunos só aprende quando o assunto é contextualizado. Quando falamos em analogias e metáforas, estamos explorando o mesmo filão. Histórias e casos reais ou imaginários podem ser usados na aula.

Para quem vê uma equação pela primeira vez, compará-la a uma gangorra pode ser a melhor porta de entrada. Encontrando pela primeira vez a eletricidade, podemos falar de um cano com água. A pressão da coluna de água é a voltagem. O diâmetro do cano ilustra a amperagem, pois em um cano "grosso" flui mais água. Aprendidos esses conceitos básicos, tais analogias podem ser abandonadas.

É preciso garimpar as boas narrativas que permitam empacotar habilmente a mensagem. Um dos maiores absurdos da doutrina pedagógica vigente é mandar o professor "construir sua própria aula", em vez de selecionar as ideias que deram certo alhures.

É irrealista e injusto querer que o professor seja um autor como Monteiro Lobato ou J.K. Rowling. É preciso oferecer a ele as melhores ferramentas – até que apareçam outras mais eficazes. Melhor ainda é fornecer isso tudo já articulado e sequenciado. Plágio? Lembremo-nos do que disse Picasso: "O bom artista copia, o grande artista rouba ideias".

Se um dos maiores pintores do século XX achava isso, por que os professores não podem copiar? Preparar aulas é buscar as boas narrativas, exemplos e exercícios interessantes, reinterpretando e ajustando (é aí que entra a criatividade).

Se "colando" dos melhores materiais disponíveis ele conseguir fazer brilhar os olhinhos de seus alunos, já merecerá todos os aplausos.

Claudio de Moura Castro é economista

Fábio Portela



Ele existe, é bom que exista, mas a maior parte ainda está no papel

A análise dos números do Programa de Aceleração do Crescimento mostra uma realidade bem diferente da anunciada pelo governo

É muito provável que o cidadão que corre os olhos pelas páginas dos jornais tenha mais dúvidas do que certezas a respeito do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal. Afinal de contas, a algaravia em torno do assunto embaralha até mesmo quem se dispõe a ler com atenção redobrada o noticiário sobre ele.

Os políticos de oposição dizem que o maior projeto do PAC é lançar a candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, coordenadora do programa, à Presidência da República.

De acordo com esses críticos, o PAC não passa de uma sigla publicitária a englobar obras que, em sua esmagadora maioria, já vinham sendo executadas por empresas estatais ou tocadas pela iniciativa privada. O Planalto estaria, assim, se apropriando de esforço alheio.

Já os defensores do PAC afirmam que seu grande mérito é justamente organizar os investimentos em infraestrutura e permitir que sejam acompanhados com lupa. Eles acrescentam que, graças a tal monitoramento, as obras apresentam um altíssimo nível de realização, ecoando dados que aparecem nos balanços periódicos do governo.

VEJA foi a campo para ver de perto os canteiros espalhados pelo país. Além disso, analisou os números oficiais, para esclarecer de onde vem o dinheiro que sustenta o programa e quanto de seu planejamento foi cumprido até agora. Passados três meses de investigação jornalística, conseguiu-se obter um retrato bastante nítido.

A primeira conclusão é que a parcela do PAC efetivamente paga pelo governo é minúscula. O programa, lançado em 2007, contempla investimentos de 646 bilhões de reais, que deveriam ser realizados até o fim do ano que vem.

Em dois anos e meio, o governo desembolsou, por meio do Orçamento da União, apenas 22,5 bilhões de reais, ou 3,5% do total. Esse número pode surpreender, mas o governo nunca pretendeu entrar com a maior fatia do bolo.

Números obtidos junto à Casa Civil mostram que, do total de dinheiro anunciado para o programa, apenas 14% saem diretamente do Tesouro. Quem ficou responsável pela maioria das ações, de fato, foram as empresas estatais – em especial, a Petrobras –, os governos estaduais e municipais, que tomam financiamentos no BNDES e na Caixa Econômica Federal, e a iniciativa privada.

Pablo Valadares/AE


BANDEIRA POLÍTICA

A ministra Dilma aposta no PAC para fortalecer sua campanha à Presidência em 2010

O tamanho do PAC

VALOR TOTAL ANUNCIADO - PARA O PLANO, ATÉ 2010
646 bilhões de reais

QUANTO FOI PAGO ATÉ AGORA PELO GOVERNO FEDERAL, POR MEIO DO ORÇAMENTO
22,5 bilhões de reais, ou
3,5% do total

A segunda constatação é que as ações do PAC seguem em velocidade mais lenta que a propagandeada. Na semana passada, a ministra Dilma apresentou o sétimo balanço do programa. Afirmou que 77% das ações estão em "ritmo adequado".

A classificação é otimista demais e inclui projetos que nem sequer foram licitados. Um levantamento feito por VEJA, com 41 dos maiores projetos do PAC (veja quadros), exibe um quadro menos animador. Apenas 30% deles estão dentro do prazo.

Os demais se arrastam. Se não começarem a receber mais investimentos logo, extrapolarão em muitos anos seus prazos de conclusão. A impressão de que o governo edulcora números foi confirmada por visitas de nossos repórteres aos locais onde as obras estão sendo realizadas (veja reportagem).

Para facilitar seu monitoramento, o PAC foi dividido em três eixos: o de Energia, o Social e Urbano e o de Logística. Este último, que concentra as ações sob responsabilidade direta do governo, é o que mais custa a sair do papel. Estão lá as ferrovias, estradas, portos e aeroportos.

Quem lê os relatórios pode ficar animado. No capítulo de ferrovias, por exemplo, há projetos maravilhosos, como o do trem-bala que ligará São Paulo ao Rio de Janeiro; o da Nova Transnordestina, que cortará a Região Nordeste; e até o de um "corredor ferroviário bioceânico", que ligaria Santos, no litoral paulista, a Antofagasta, no Chile, cruzando a Cordilheira dos Andes.

Mas a realidade é menos pujante: o trem-bala ainda não foi licitado, a Transnordestina não tem um metro de trilho colocado e o trem bioceâ-nico ainda tem a consistência de um sonho. A única obra que anda nos trilhos é a Ferrovia Norte-Sul, que começou a ser construída em 1987 pelo ex-presidente José Sarney e está prestes a chegar à metade de seu trajeto.

No eixo Social e Urbano, a joia é a transposição do Rio São Francisco, que levará água de forma perene ao sertão nordestino. Apesar de todo o barulho, a obra vem recebendo menos dinheiro do que deveria. Como apenas 12% dos recursos chegaram ao canteiro, a multiplicação das águas deve ficar para bem depois de 2010. A permanecer o ritmo atual, serão necessários quinze anos para finalizar o trabalho.

As obras de habitação e saneamento também patinam: segundo o Ministério das Cidades, o volume de aplicação de recursos está ao redor de 15% do total previsto. O dinheiro, manejado pelos governos estaduais, é usado em quase 5 000 obras esparramadas por regiões pobres.

Pelo fato de serem muito estratégicas para o governo, porque poderão render vistosas inaugurações em ano eleitoral, estima-se que elas receberão boa parte dos recursos que faltam nos próximos meses.

Perto de atingir a meta está o programa Luz para Todos. Em pouco tempo, 2 milhões de ligações elétricas em domicílios pobres terão sido completadas. A ressalva é que ele é tocado desde 2004, três anos antes de o PAC vir à luz.

Por fim, o segmento que progride mais solidamente é o eixo de Energia. Não por coincidência, esse grupo de ações não tem um centavo investido diretamente pelo governo.

O grosso do dinheiro vem da Petrobras, que desde 2007 já colocou na construção de plataformas de exploração de petróleo, refinarias e gasodutos algo em torno de 86 bilhões de reais.

A estatal, que responde sozinha por 28,5% do programa, é a verdadeira mãe do PAC. É saudável que a maior empresa do país invista fortemente em infraestrutura, mas é preciso destacar que esses projetos seriam completados mesmo que o PAC não existisse.

Apesar de a execução do PAC deixar a desejar, seu espírito, o de coordenar investimentos em infraestrutura, deveria constar dos programas de todas as administrações federais, não importa o partido político que as origine.

A situação brasileira nessa área é alarmante. A parcela da população com acesso a rede de esgoto é de somente 51%. Nossa malha rodoviária é uma das mais rarefeitas do planeta, e apenas 10% das estradas têm asfalto. Os trens se locomovem na velocidade de marias-fumaça, porque as (poucas) linhas estão sucateadas.

Tapar os buracos da infraestrutura aumentaria a qualidade de vida da população, além de ser determinante para incrementar a produção econômica. É pena que haja mais empenho em defender o PAC como bandeira eleitoral do que em fazer com que suas obras avancem de forma consistente.


Matheus Leitão

O capixaba que amava o mar

Leonardo Dardengo, 31 anos, estava no voo 447, rumo à França, por causa de seu doutorado em oceonografia

O oceanógrafo Leonardo Dardengo ao lado do sobrinho. No voo 447, voltava para França, onde fazia seu doutoradoMuitos motivos trouxeram ao Rio o doutorando Leonardo Veloso Dardengo, 31 anos. Um motivo o levava de volta à França: o oceano. Leonardo era oceanógrafo e para concluir seu doutorado, iniciado na UFRJ, fora morar em Toulouse, interior da França.

Desde dezembro de 2008, com mais da metade do curso realizado, desenvolvia uma pesquisa em um "doutorado sanduíche", por ser dividido em dois paises diferentes. Chegou ao Brasil há 20 dias com várias missões.

Participar de um congresso internacional em Paraty, fazer uma prova no Rio, conhecer o sobrinho recém nascido no Espírito Santo e oficializar o noivado com a publicitária Mariane Maciel em São Paulo.

A vida de Leonardo estava num daqueles momentos decisivos. No ano que vem, iria defender a tese de doutorado, mas estava tranquilo. Dois dias antes de viajar, sua proposta de tese havia sido muito elogiada pelos professores. Ele pesquisava a pluma do Rio Amazonas – quantidade de água do rio que é jogada no mar, suas implicações, qualidade primária dos nutrientes e impacto da pesca sobre a região.

A atual etapa do trabalho era basicamente feita por imagens de satélite. "Ele era muito querido aqui na UFRJ e em Toulouse. Um aluno animado, positivo, sempre com ideias. Um verdadeiro entusiasta sobre o Oceano. Estava muito bem profissionalmente e emocionalmente", afirma a co-orientadora da tese, Susana Vinzon.

Ironicamente, o curso, que amava, fazia dele o passageiro que mais entendia de mar, local onde o avião caiu com 228 pessoas a bordo. Leonardo estava radiante com um convite que havia recebido para dar uma palestra no Instituto Jacques Cousteau. Capixaba, nascido em Vitória, ele foi criado no bairro de Bento Ferreira. "Ele era uma pessoa linda, extremamente inteligente.

Não posso acreditar", disse Christina Dardengo, tia dele, sem segurar o choro. Sua página no orkut tinha quase mil mensagens de apoio até o final da semana. Suas fotos, com amigos, parentes e com a prancha de surfe, esporte que adorava, tinham sido vistas por muitas pessoas.


06 de junho de 2009
N° 15992 - NILSON SOUZA


Biblioteca falada

Tem muita desgraça neste mundo, mas também tem gente fazendo coisas maravilhosas que nem sempre ganham o destaque que merecem. Tomei conhecimento esta semana de um projeto comovente, que está em andamento no interior de São Paulo, na cidade de Bauru.

Logo que li a respeito, fiquei com coceira nos dedos – e no cérebro – para escrever sobre ele, na esperança de contribuir de alguma maneira para multiplicá-lo.

Chama-se Biblioteca Falada e consiste na gravação de audiolivros destinados à Escola para Cegos do Lar Santa Luzia, uma instituição que abriga deficientes visuais no interior paulista. Traduzindo: estudantes gravam textos de livros, revistas e jornais para serem ouvidos por pessoas que não podem ler.

A ideia é de um professor da Universidade Estadual Paulista. Ele – João Chamadoria é o seu nome – coordena os alunos do curso de Jornalismo que trabalham como voluntários na gravação de CDs, revezando-se na leitura das obras. Ao mesmo tempo em que treinam locução, os jovens emprestam suas vozes para o relato que possibilitará aos deficientes uma inesquecível aventura literária.

Graças a esse trabalho, as deliciosas crônicas do gaúcho Luis Fernando Verissimo são conhecidas pelos ceguinhos de Bauru, assim como o humor popular e as expressões nordestinas do escritor Gustavo Arruda, de Pernambuco.

Os livros falados são escolhidos principalmente pelo seu potencial de despertar interesse nos ouvintes, mas também pela linguagem de fácil compreensão, uma vez que a maioria dos deficientes possui pouca bagagem cultural.

O interessante desta experiência é que ela pode ser replicada até mesmo por alunos do Ensino Médio. Com a facilidade que os jovens têm hoje para acessar equipamentos eletrônicos e para manuseá-los, a produção de um CD é quase uma brincadeira.

Um pouco mais difícil, talvez, seja convencê-los a ler um livro. Mas, por uma causa dessas, tenho certeza de que se mobilizariam. Alguns, inclusive, já fazem trabalhos voluntários em entidades carentes, lendo histórias para idosos.

A leitura em voz alta é sempre um aprendizado de duplo sentido, que enriquece quem ouve e quem lê. Quando este trabalho é feito em grupo, com o acompanhamento de um professor, transforma-se numa atividade ainda mais produtiva.

Daí a transformá-lo num livro falado é apenas um passo – um pequeno passo para quem tem todos os sentidos perfeitos e um grande salto para quem recebe a oportunidade de sair da escuridão para a luz da literatura.

quarta-feira, 3 de junho de 2009



03 de junho de 2009
N° 15989 - MARTHA MEDEIROS


O avião

Desde 1906, quando Santos Dumont pilotou o primeiro avião, o 14-Bis, fazendo-o levantar voo com total autonomia, sem a ajuda de uma catapulta (como fizeram três anos antes os irmãos Wright), o mundo se curvou diante dessa invenção.

O avião tem mais de cem anos e segue mantendo uma aura de mistério e classe. Voar sempre foi o maior desejo do homem, e mesmo que hoje cruzem pelo céu milhares de aeronaves que partem e chegam dos mais diversos pontos, ainda assim é um meio de transporte que não se trivializou, e creio que manterá para sempre sua imponência.

Diariamente, vidas se perdem em acidentes de ônibus, de carro, de moto, de barco, e tudo é sempre muito comovedor, pois é o destino interrompendo a vida de alguém. Uma vez escutei que a morte de uma única pessoa é sempre uma tragédia, enquanto que a morte de centenas é apenas uma estatística.

Uma visão fatalista da realidade, mas que não se aplica aos acidentes aéreos. Recentemente, uma família inteira faleceu durante a explosão de uma aeronave que aterrissava em Trancoso, na Bahia, e ficamos compungidos. Agora são 228 homens e mulheres desaparecidos, e ficamos muito mais.

Nenhum desses corpos faz parte de uma estatística, e sim de um mito: a morte coletiva no veículo que é considerado o mais seguro do mundo e, ao mesmo tempo, a morte individual do sonho de cada um dos passageiros e tripulantes. Porque um avião está sempre carregado de sonhos.

A garota que finalmente conseguiu uma bolsa para estudar na Europa. O casal que contava os minutos para sua lua de mel. O grupo de amigos que economizou anos para fazer uma longa viagem depois da formatura. O empresário que se preparou para fechar um acordo internacional.

O artista que iria lançar seu trabalho em solo estrangeiro. O jogador de futebol se transferindo de time. A mãe que visitaria a filha pela primeira vez do outro lado do oceano. Um avião transporta todas essas histórias que, para a grande maioria da população, são contos de fada.

Mesmo nos voos domésticos, muitos deles precedidos de atrasos e bagunças em aeroportos, a fleuma se mantém. Ninguém esquece a primeira vez em que apertou o cinto e prestou a maior atenção nas informações que a comissária transmitia, com seus braços parecendo asas sinalizando as saídas de emergência. Nervosismo e êxtase: o risco levado a sério.

Então aquele bicho enorme e pesado ganha velocidade e começa a subir. A cidade vai ficando minúscula lá embaixo, as nuvens vão passando ao lado da sua janela, e o dia nublado e chuvoso deixado pra trás transformase num céu límpido, descortinado. Poucas horas depois, Rio de Janeiro, Salvador. Outras horas adiante, Londres, Nova York. Isso nunca vai ser considerado banal, por mais milhas que um viajante acumule.

Todas as pessoas têm sonhos, não importa de que tamanho. Todas merecem ser pranteadas, não importa de que modo falecem. Mas há coisas na vida que pertencem a um deslumbramento que não obedece à lógica.

Um avião que cumpre a sua trajetória do início ao fim está realizando um passe de mágica com o qual ainda não nos acostumamos, prova disso é o número de gente que, em terra firme, assiste a decolagens e aterrissagens como se fosse um espetáculo – e é.

Quando a mágica não funciona, voltamos todos a um estado de descrença e dor: a ilusão não se cumpriu.

Uma ótima quarta-feira - Aproveite o dia.

sábado, 30 de maio de 2009



31 de maio de 2009
N° 15986 - MARTHA MEDEIROS


Nem pensar

Em Divã, ainda em cartaz nos cinemas, há uma cena que não existe no livro em que o filme foi inspirado. É uma cena em que a personagem de Lilia Cabral, desbundada com o caso amoroso que está tendo com um homem mais novo, experimenta um baseado pela primeira e única vez.

O cinema vem abaixo: o público se mata de tanto rir. A cena é realmente engraçada e quase infantil. Naquele momento, a maioria dos espectadores deve lembrar de ter passado por algo parecido: um ato de transgressão que não levou a nada, foi só uma brincadeira, um “ver qual é”.

Hoje sabe-se que o “ver qual é” tem consequências trágicas quando a droga em questão é o crack. Segundo especialistas, basta consumir uma ou duas vezes para que você deixe de ser dono da sua vontade. Você perde para o vício no primeiro minuto de jogo, e sua vida termina bem antes do tempo regulamentar. Num estalar de dedos, você já era.

Isso que estou escrevendo vai ser repetido exaustivamente daqui pra frente: está começando uma guerra contra o crack aqui no sul. Uma guerra necessária, diferente das outras: uma guerra para evitar mortos. Cerca de 10 anos atrás, nosso Estado não tinha um único caso de vício em crack. Hoje, já são 50 mil. A projeção é de que nos próximos dois anos haja 300 mil viciados. Sem recuperação. O crack não dá uma segunda chance. Não se trata de uma viagenzinha alucinatória – ele arrebenta com a sua cabeça.

As palavras soam dramáticas, alarmistas, mas o que se quer é que esse número atual de 50 mil reféns do crack não aumente como está previsto, e a única maneira de evitar um tsunami social é apelar para a prevenção, e prevenção significa não chegar perto. Nem de brincadeira, nem uma vez só. Podemos nos autoafirmar através de maneiras mais saudáveis.

Uma crônica não salva a vida de ninguém, uma campanha publicitária não muda sozinha a sociedade, uma empresa de comunicação não pode impedir que um criminoso ofereça uma droga barata a você ou aos seus filhos e tranforme a todos em zumbis que vão querer mais, mais e mais. Só quem pode frear essa epidemia é o usuário em potencial – basta que não seja usuário nunca.

Vesti essa camiseta porque, mesmo que o mundo jamais venha a ser um lugar idílico, alguma esperança temos que ter.

Nosso Estado, tão orgulhoso do seu nível cultural, tão orgulhoso da sua natureza, tão orgulhoso do seu Inter e Grêmio, tão orgulhoso do Erico e Luis Fernando Verissimo, da Lya Luft, do Vitor Ramil, do Nei Lisboa, da Eva Sopher, do Mario Quintana, dos Fagundes, do Xico Stockinger, do Iberê Camargo, tão orgulhoso dos nossos talentos e cabeças pensantes, precisa se orgulhar também dos gaúchos anônimos que possuem o brio de dizer: crack, nem pensar.

Que o seu domingo ainda que com chuva tenha muita luz e seja super lindo minha amiga.

Cristiane Segatto, Ivan Martins, Andres Vera, Marcela Buscato e Mariana Sanches

"Dói internar um filho. Às vezes não há outro jeito"

O poeta Ferreira Gullar, pai de dois esquizofrênicos, levanta uma das maiores controvérsias da psiquiatria: o que fazer com doentes mentais em estado grave?

Quando o escritor Ferreira Gullar publicou em 1999 o poema “Internação” (leia ao lado), já era um veterano na convivência com doentes mentais. Quem fez a observação sobre o vento foi Paulo, seu filho mais velho, que hoje tem 50 anos.

Ele sofre de esquizofrenia, doença caracterizada, entre outras coisas, por dificuldade em distinguir o real do imaginado. Desde os anos 70, Gullar tenta administrar a moléstia. Fazia o mesmo com Marcos, o filho dois anos mais jovem, que também tinha esquizofrenia e morreu de cirrose hepática em 1992.

Remédios modernos permitem que pessoas como Paulo passem longos períodos em estado praticamente normal. Sem alucinações, sem agitação, sem agressividade. Mas o tratamento só funciona se o doente tomar os medicamentos antipsicóticos todos os dias e na dose certa. Isso nem sempre acontece. O resultado são os surtos, quando o paciente se torna quase incontrolável.

Pode cometer suicídio ou agredir quem está por perto. Nesses momentos, esses doentes costumam precisar de internação. “Dói ter de internar um filho”, diz Gullar, hoje com 78 anos. “Às vezes, não há outro jeito.”

No Brasil, estima-se que haja 17 milhões de pessoas com algum transtorno mental grave – como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo. Em algum momento, eles podem precisar de um hospital psiquiátrico. Encontrar uma vaga, porém, tornou-se uma tarefa difícil.

Nos últimos 20 anos, quase 70% dos leitos psiquiátricos do país foram fechados. Sem conseguir quem os ajude a cuidar dos doentes, pais e irmãos afirmam ter várias dimensões de sua vida pessoal comprometidas, dos compromissos de trabalho às amizades.

É o que revela uma pesquisa feita em 2006 em Minas Gerais com 150 famílias com pessoas atendidas nos Centros de Referência em Saúde Mental. Em muitos casos, os doentes em surto fogem sem deixar rastro.

Podem acabar embaixo dos viadutos. O aumento da população de rua nas grandes cidades não é fruto exclusivo da desigualdade social. Uma pesquisa feita em 1999 com moradores de rua em Juiz de Fora conclui que 10% deles eram psicóticos sem assistência.

“As famílias, principalmente as que não têm recursos, não têm mais onde pôr seus filhos”, diz Gullar. “Eles viram mendigos loucos, mendigos delirantes que podem agredir alguém.

O Ministério da Saúde tem de olhar para isso.” Gullar decidiu expor publicamente um problema que não é só seu. Nas últimas semanas, escreveu três artigos sobre o assunto em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo. “Não pretendo liderar movimento algum. Sou um cidadão que tem uma tribuna e pode falar sobre o que está errado.”

Ele afirmou, no primeiro texto, que a campanha contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia. Foi o suficiente para fazer eclodir uma controvérsia latente.

Nos dias seguintes, dezenas de leitores enviaram cartas ao jornal. Representavam dois grupos. O primeiro, em apoio a Gullar, aponta as razões fisiológicas da doença mental e considera que a internação é um instrumento necessário nos momentos de surto.

O segundo, contra ele, afirma que os doentes devem ser atendidos em Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Nesses locais, o paciente recebe medicação e acompanhamento semanal. A ideia é atendê-lo sem retirá-lo do convívio da família e da comunidade. Para esse grupo, mesmo nos momentos de crise, o doente deve ser atendido nos Caps.

Ele passaria alguns dias internado na própria instituição (ou em hospitais comuns, com alas psiquiátricas) e depois voltaria para casa. “O hospital é um lugar de isolamento, funciona como uma prisão.

As pessoas vão e não voltam”, diz Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia. “Algumas famílias querem que a pessoa fique internada. É a ideia da instituição como depósito.”

Gullar se ofende com comentários como esse, que ouve desde o final dos anos 80, quando a reforma psiquiátrica que levou à situação atual começou a ser discutida no Brasil.

“Essas pessoas não sabem o que é conviver com esquizofrênicos, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Elas têm a audácia de fingir que amam mais a meus filhos do que eu.”

Lya Luft

É o fim do mundo

"Se a menininha da televisão puder voltar a ser criança, os bugios forem deixados em paz, os gordinhos não se sentirem os últimos da face da Terra, quem sabe o fim do mundo ainda demore um pouco para chegar"

Fui uma das primeiras meninas a usar calças jeans na minha pequena cidade. Uma de minhas avós, luterana fervorosa, embora fosse uma mulher culta, exclamou: "Isso é o fim do mundo!". Nem o mundo acabou nem deixaram de acontecer coisas bem mais esquisitas, a me recordar aquele episódio, que na hora achei muito engraçado.

Ilustração Atômica Studio

Lembro-me dessa expressão com certa frequência. Por exemplo, quando uma criança de 6 anos serviu de atração num programa de TV, eventualmente chorando de medo, nervosismo ou cansaço. Ninguém interveio logo.

Se levassem a um programa desses, semana após semana, um filhote de cachorro para fazer gracinhas, as sociedades protetoras dos animais já estariam reclamando. (Quem cuida dos humanos?) Finalmente, uma promotora impediu a criança de exercer esse "trabalho". Parabéns – e que não haja recurso.

Lembro-me de minha avó espantada quando assisto ao sofrimento de mulheres magras, muito magras, constantemente lutando para perder mais uns gramas, olhos ávidos da eterna dieta, sorriso forçado de automutiladoras. Para alegria de quem sempre foi fora do esquadro, leio (eu já sabia) que alguns já arriscam dizer que se pode ser saudável e feliz com algum sobrepeso.

Não precisamos nos odiar, mas ser naturais, ser quem nos fez a mãe natureza. Porém, a nova onda é a gente se torturar, por falta ou excesso: a bunda pequena, o nariz grande, a barriga balofa, os peitos caídos, os bíceps insuficientes (o ralo QI não preocupa tanto). Aí nos matamos de fome, ou ostentamos um novo nariz estranho à estrutura do rosto em que foi metido, damos uma lipinho de presente de 14 anos a nossa filha.

Nós mal conseguimos falar, com uma boca ginecológica, nada sensual. Um terço do nosso dia transcorremos suando e sofrendo muito além do recomendado em academias: não para ser saudáveis, mas para estar em forma, enquanto a alma passa uma fome danada e o tempo passa, a vida encolhe, nós nos desperdiçamos perseguindo modelos impossíveis e burros.

Minha avó acharia que o mundo está por acabar diante da confusão entre pessoa pública e propriedade do público: agora o normal é querer que o outro baixe até as calças da alma e mostre as feridas. Algumas chamadas celebridades parecem forçadas a anunciar o que fazem na cama, e com quem. Elas nem são "vistas" na rua, são "flagradas": o seu mero existir já é suspeito.

O mundo vai acabar, diria minha severa avó luterana, vendo que a política se troca por politicagem, o jogo de interesses infinitamente acima do bem do povo, a calúnia como ferramenta geral. Gente atirada como bicho (bicho, não, aí viria a defesa dos animais!) em pseudo-hospitais é fato menos comentado do que mosquitos, que podem trazer febre amarela (por isso pessoas assustadas e ignorantes matam saudáveis bugios no interior).

Meu amigo atropelou um simpático tatu e quase pegou cadeia; se matasse uma pessoa, sendo réu primário aguardaria em liberdade. Viva o tatu. Abaixo as pessoas. Também se comenta que moradores de rua e pseudocolonos vão ganhar Bolsa Família. Quem ainda vai querer pegar na enxada ou lavar o chão de uma casinha?

O mais novo anúncio do fim do mundo pode ser a recomendação de fazermos xixi no banho. É questão ambiental? Enquanto for só xixi que nos recomendam, estamos salvos.

Sou a favor de um ambientalismo sensato, que harmonize o convívio entre natureza e humanos, não dê mais atenção a baleias do que a crianças e aceite o progresso, fomente a educação e a higiene. A gente passa anos ensinando aos filhos: não façam xixi no banho nem na piscina. Xixi no chuveiro (e na banheira também?), sinto muito: aqui em casa, não.

Nesse cenário de absurdos, às vezes falta o botão para trocar de canal. Mas, se a menininha da televisão puder voltar a ser criança, os bugios da minha mata forem deixados em paz, os gordinhos não se sentirem os últimos da face da Terra, a gente não for multada por fazer xixi no vaso, quem sabe o fim do mundo ainda demore um pouco para chegar.

Lya Luft é escritora

Juliana Arini

40% do Pantanal já foi embora

Um estudo inédito mostra como a cana, o gado e a mineração estão acabando com o frágil equilíbrio que sustenta a região. Dá para salvar este paraíso?



CORES NATURAIS

Lagoas da planície do Pantanal unem beleza e diversidade biológica. Mas as jazidas minerais no subsolo criaram uma corrida à regiãoDesde a virada do século se discute qual seria a dimensão do estrago ambiental na região do Pantanal. Que há problemas, ninguém duvida.

Mas alguns produtores rurais diziam que o problema era pontual, próximo das regiões densamente povoadas. Alguns ambientalistas, ao contrário, alardeavam que 70% da região já estava comprometida. Um estudo ainda inédito, revelado com exclusividade a ÉPOCA, mostra o verdadeiro tamanho do problema: já perdemos 40% da cobertura vegetal da região.

É um índice preocupante. O que sustenta a beleza e a diversidade biológica extraordinárias do Pantanal é um equilíbrio frágil entre períodos de cheia e de seca. Esse equilíbrio está ameaçado pela expansão da pecuária e pela produção de carvão vegetal para siderúrgicas.

O mapeamento foi feito por cinco entidades ambientalistas – WWF-Brasil, SOS Mata Atlântica, Conservação Internacional, Avina e Ecoa. A conclusão: embora a planície esteja bem preservada, com 85% de sua vegetação intacta, a região das terras altas já tem 58% das matas comprometidas.

Nesses planaltos estão as cabeceiras dos rios responsáveis pelos ciclos de cheias que tornam o Pantanal a maior área alagada do mundo. Essas inundações são fundamentais para manter a biodiversidade da região – suas 263 espécies de peixes, 122 de mamíferos, 93 de répteis e 656 de aves, além de 1.132 espécies de borboletas catalogadas.

A ampliação de pastagens é uma das principais causas do desmatamento no Pantanal. Nos últimos seis anos foram abertos 12.000 quilômetros quadrados de novos pastos na região, o equivalente a dez municípios do Rio de Janeiro.

O processo deve se acelerar. “Só em Mato Grosso do Sul existem 22 milhões de cabeças de gado, que crescem a cada ano e são a base da economia local”, diz o engenheiro ambiental Michael Becker, do WWF-Brasil, um dos coordenadores do mapeamento.

Além de aumentar, o rebanho está migrando para uma área menos adequada. Antes, a pecuária se concentrava nos campos naturais da região de planície, a área alagável do Pantanal. Agora, os rebanhos estão seguindo para as partes altas, onde a vegetação natural precisa ser derrubada para a formação de pastagens. O que empurra o gado é o crescimento do cultivo de cana-de-açúcar nas planícies pantaneiras nos períodos de seca.

Esse estudo da vegetação se junta a outro, do Coppe (centro de pesquisa de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), que fez um diagnóstico de uma área crítica do Pantanal, um conjunto de morros perto de Corumbá, em Mato Grosso do Sul.

A região, conhecida como a Morraria de Urucum, tem montanhas de até 1.000 metros de altitude e guarda a terceira maior jazida de minério de ferro e manganês do país. A riqueza mineral atraiu dezenas de mineradoras e siderúrgicas nos últimos dez anos.

Se causam alarme por revelar uma devastação bem maior do que se esperava, esses dois estudos também trazem esperança. Agora que se sabe onde está a devastação, e como ela se espalha, é possível criar mecanismos e políticas públicas para combatê- -la.

Segundo o levantamento do Coppe, um dos primeiros impactos da mineração é a redução na quantidade de água. Dois rios da região de Maria Coelho, em Corumbá, já teriam praticamente secado.

“Não podemos afirmar que esse esgotamento foi todo gerado pelas empresas, pois a população também faz uso indevido da água e canalizações irregulares nos córregos”, diz Ricardo Melo, promotor do meio ambiente de Corumbá. “Mas estimamos que 70% do problema é causado pela mineração.

E agora sabemos o que as empresas podem fazer para reduzir seu impacto.” Melo afirma que as empresas vão ter de criar um ponto de captação de água diretamente no Rio Paraguai, que tem uma vazão maior, e prestar conta sobre o volume de água que consomem.

“Temos de aproveitar que, com a crise econômica, as empresas estão com suas atividades parcialmente suspensas para colocar em prática esses mecanismos de regulação”, afirma. “Assim, quando a demanda do ferro voltar a crescer, poderemos evitar o pior.”

A queima de vegetação nativa para a fabricação de carvão foi a segunda ameaça revelada pelo estudo. Esse carvão teria como destino a produção de ferro-gusa, principal matéria do aço.

Uma das surpresas foi constatar que 70% desse carvão seria vendido às empresas de Minas Gerais, e não para as siderúrgicas de Mato Grosso do Sul, como se acreditava.

“Precisamos descobrir como evitar que o Pantanal seja destruído para um fim tão pouco promissor como a produção de carvão.

Estamos literalmente queimando biodiversidade, sendo que já existem opções de combustíveis mais sustentáveis para fabricar ferro-gusa”, diz Alcides Faria, diretor da ONG Ecoa (Ecologia e Ação), de Campo Grande.


30 de maio de 2009
N° 15985 - NILSON SOUZA


Labirinto de ilusões

Vou abordar hoje um tema pesado para os padrões deste caderno de amenidades, mas, como diz a mensagem televisiva, não tire as crianças da sala, por favor.

Desde a última quinta-feira, estamos todos engajados numa árdua missão: trabalhar incansavelmente para interromper uma terrível epidemia que assola o nosso Estado e uma parte expressiva do país.

Refiro-me ao surto nacional de consumo de crack, uma droga letal que transforma seres humanos em zumbis descerebrados e a realidade de muitas famílias num verdadeiro filme de terror.

Mesmo para nós, que lidamos diariamente com as anomalias da vida no nosso ofício de informar, é estarrecedor constatar a frequência de tragédias familiares que eram raras até pouco tempo atrás. Não passa semana sem que um adolescente apareça acorrentado dentro de sua própria casa, na tentativa desesperada dos pais de mantê-lo afastado do vício.

Outro dia, uma mãe confessou ter matado o filho numa reação às agressões sucessivas que vinha sofrendo por parte do jovem. Se isso ocorre nos lares, na rua é muito pior: traficantes mutilam e executam dependentes endividados, lutam entre si pelos pontos de venda das drogas, matam e morrem por qualquer trocado.

Ninguém escapa dessa insanidade dos tempos modernos. Enfeitiçados pela pedra, crianças, jovens e adultos perambulam como mortos-vivos pelos desvãos escuros das cidades, habitam sarjetas, dormem sob pontes e marquises, reúnem-se em confrarias de desesperançados. São escravos da fumaça tóxica que lhes degrada o corpo e o cérebro.

A droga também está na origem dos achaques nas esquinas, dos assaltos e dos roubos, da violência indiscriminada que atinge a todos indiscriminadamente. Somos todos personagens deste filme de terror, tristemente real, que parece não ter fim.

Mas haverá de ter.

Neste momento, estamos todos sendo convocados para uma luta de libertação, destinada a interromper este ciclo vicioso de desgraças. O inimigo é forte, poderoso, cruel. Mas a causa é justa. E cada um de nós pode contribuir com a arma de que dispuser neste combate. Pode ser uma ideia, pode ser uma iniciativa, pode ser uma ação, pode ser apenas um grito de alerta.

Chegou a hora de dizer não ao engodo do prazer artificial, chegou a hora de exorcizar esta maldição de nossas vidas e do futuro das pessoas que amamos. Temos que encontrar a saída deste terrível labirinto de ilusões que já aprisionou tantas almas.

Uma ótimo sábado e um lindo fim de semana, especialmente para vc minha amiga.

quarta-feira, 27 de maio de 2009



27 de maio de 2009
N° 15982 - MARTHA MEDEIROS


A era do compacto

Estava num avião, voando do Rio para Porto Alegre. Ao meu lado, um casal. Ele lia Retrato em Sépia, de Isabel Allende. No finalzinho da viagem, fechou o livro e fez o seguinte comentário pra esposa: “Por mim, os livros não precisariam ter este número tão grande de páginas, um resumo da história estaria mais do que bom”.

Há quem escolha o livro pelo número de páginas. Se tiver mais que 200, não chega nem perto. Livrão: taí uma coisa que não me inibe. É bem verdade que um tijolaço não é lá muito agradável de segurar, mas nada impede que seja devorado com prazer. No entanto, é uma exceção que abro para a literatura. Para quase todo o resto, sou fã dos compactos.

Cinema, por exemplo. Não entendo por que esta mania agora de filme com três horas de duração. Dá pra imaginar o Woody Allen precisando de três horas para dar seu recado?

Era tão bom quando os filmes duravam no máximo duas horas. Sessões às 14h, 16h, 18h, 20h. Agora as sessões começam nos horários mais esdrúxulos: 14h10hmin, 17h25min, 20h50min. E o troço não acaba nunca.

Peça de teatro, nem me fale. Deveria ser lei: não durar mais do que 90 minutos – que o Zé Celso Martinez Correa não me ouça. Gosto muito de teatro, mas também gosto muito de jantar. Em tempo: tampouco gosto de me estender demais nos restaurantes. Não gosto de me estender em festas.

Não gosto de me estender demais fora da minha casa e fora da minha rotina. Não gosto de nada que extrapole o tempo regulamentar do meu humor e da minha capacidade de simpatia.

Reconheço que nada do que estou dizendo é digno de aplauso. Manda a etiqueta não se apressar, usufruir de tudo com calma, dar tempo para que as coisas se desenvolvam. Na teoria, concordo. Na prática, sou menos paciente. Não lido bem com situações que se arrastam, com falta de objetividade, com rodeios.

Fico nervosa com gente que fala muito pausadamente e leva 10 minutos pra dizer o que poderia ser dito em três. Pessoas que perdem horas ao telefone sem chegar logo ao ponto.

Música que repete à exaustão o estribilho – eu cortaria uns quatro “lá lá lá lá, hey, Jude...” no final da música homônima dos Beatles. Que heresia: sobrou até para os Beatles.

E o que dizer de um palestrante que ama a própria voz? E e-mails do tamanho de teses de mestrado? E teses de mestrado? E novelas? Alguém me explica por que ainda fazem novelas que duram oito meses?

Estou dando a impressão de que fui abduzida por esse mundo que não enaltece o prazer, que não se entrega à reflexão, que não curte as travessias. Mas a verdade é que eu ainda me regalo com prazeres, reflexões e travessias, sem achar que para isso seja necessário que elas me esgotem, que me obriguem a chegar à outra margem sem fôlego.

Para provar que não sou um caso totalmente perdido, algumas coisas ainda aprecio que sejam longas, como amizades, caminhadas, conversas em volta da mesa, nosso tempo de vida... E relações sexuais, claro.

Já sexo tântrico é outro exagero. Cinco horas pra atingir o orgasmo? Esse pessoal não tem que trabalhar no dia seguinte?

Dia Internacional do Sofá - Aproveite - Que tenhamos todos uma ótima quarta-feira e para você minha amiga que ela possa ser iluminada.

sábado, 23 de maio de 2009



24 de maio de 2009
N° 15979 - MARTHA MEDEIROS


A sedução da pilantragem

O documentário Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei pode ser avaliado sob diversos aspectos. O sentimental deixarei para o final do texto. Prefiro começar por um aspecto menos relevante, ainda que também relevante: o deslumbramento diante do sucesso.

Simonal, que tinha uma origem humilde, se comportou como outros tantos que, impressionados com a fama súbita, desfilam com o maior número de carros e loiras que possam colecionar. O deslumbramento é sempre patético.

Demonstra total despreparo psicológico e desconhecimento sobre a montanha-russa que é a vida. Simonal deixou seu ego inflar e cometeu uma brutalidade que lhe custou a imagem pública: imaginando-se roubado pelo seu contador, contratou dois capangas para dar uma surra no cara, e ainda pecou pela soberba ao alegar, na delegacia, que era “amigo dos homi”, ou seja, blefou que era de direita em plena ditadura militar. Ingênuo, acreditando que sairia ileso desse carteiraço verbal, pagou com um boicote da classe artística que nunca imaginou sofrer.

Depois da overdose de aplausos, viveu sua overdose de ostracismo. Nunca mais foi convidado a mostrar o rosto em lugar nenhum, e muito menos sua voz. Morreu no limbo.

O outro aspecto incômodo do filme é o papel da imprensa, que não titubeou em expandir o boato de que o cantor era um dedo-duro a serviço do DOPS, fabricando assim um Judas perfeito para a primeira página.

Era uma época radical em que você precisava escolher de que lado estava, e se fosse o lado de lá - o dos milicos - não tinha papo. Se o governo torturava com pau-de-arara, os veículos de comunicação, sufocados pela censura e não podendo falar a favor dos “seus”, torturavam os “deles” com o único instrumento que possuíam: o desprezo absoluto, que foi o que sobrou para o cantor. Tudo era primitivo e emocional, o que sempre resulta em um flerte com a injustiça.

Afora essas reflexões, que logicamente são importantes, o que me encantou pra valer no documentário foi a chance de fazer uma deliciosa e nostálgica viagem no tempo.

Eu era criança e cantarolava Meu Limão, Meu Limoeiro pela casa, enquanto ouvia boquiaberta meus pais contarem que haviam visto Simonal num show ao vivo, e que ficaram rendidos pelo balanço daquele que chegou a fazer duo com nada menos que Sarah Vaughan. Ele tinha lugar de honra na nossa discoteca familiar e hoje entendo melhor a razão. O homem era puro suingue e personalidade.

Aquele tipo de sujeito que a gente ama odiar: bico-doce, folgado, com um pé na cafajestice, ou seja: um sedutor. Um cara que beija sua mão, numa atitude cavalheiresca, mas que no fundo é um debochado, e como todo deboche passa por graça, deixava homens e mulheres com um sorriso bobo no rosto. Tinha feitiço.

Cantava demais, e cantava a todos.

Pena que foi uma história sem final feliz, mas que bom que Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal resgataram esse fenômeno esquecido, dirigindo um documentário que não se propõe a transformar Simonal em anjo póstumo, e sim a homenagear seu endemoniado talento.


23 de maio de 2009
N° 15978 - CLÁUDIA LAITANO


O quadro da normalidade

Quando faltava pouco menos de uma semana para ela completar um ano, o negócio aconteceu. Poderia ter sido um mês antes, ou três meses depois, que tudo continuaria “dentro do quadro da normalidade”, mas foi com uma precisão cronológica espantosa que minha filha começou a andar exatamente conforme as instruções do manual – às vésperas do primeiro aniversário.

Caminhar, mais até do que falar, é uma espécie de inauguração oficial da capacidade humana de explorar e modificar o mundo, uma conquista saudada por todos em volta como um sinal da natureza de que tudo marcha exatamente como foi programado – e a infância é a única época da vida em que os sinais de que a natureza está seguindo seu curso são sempre recebidos com alegria.

(Esta semana, comprei meu primeiro par de óculos para perto, mas ninguém veio me saudar pela presumível conquista de sabedoria e experiência...)

Podemos atribuir a esses pequenos ritos de passagem – os primeiros passos, a primeira menstruação, os primeiros óculos para perto – a carga simbólica e cultural que quisermos, mas a protagonista silenciosa é sempre a natureza, comandante generosa (ou implacável) de boa parte das transformações pelas quais passamos ao longo da vida.

Você visita uma exposição como Corpo Humano (ainda em cartaz em Porto Alegre até a semana que vem) e se surpreende imaginando as milhares de chances que tudo tem para dar errado – quantos vasinhos para entupir, quantos ossinhos para quebrar e tecidos para absorver doenças inimagináveis.

A partir de uma certa idade, convivemos com o corpo como o Japão com suas placas tectônicas: tentamos levar a vida normalmente ignorando que tudo pode virar de cabeça para baixo de uma hora para outra, sem que ninguém tenha a gentileza de nos preparar para o abalo com alguma antecedência.

Talvez seja por isso que tantas culturas celebram o lado previsível da natureza – crianças caminhando perto de um ano, meninas menstruando perto dos 12, meninos mudando a voz por volta dos 13.

Como os primeiros homens que olhavam para o céu sem entender exatamente por que o sol desaparecia e sempre voltava no dia seguinte, celebramos a alegria singela de perceber algumas constantes em meio a um universo inteiro de variáveis imprevisíveis.

O tratamento contra o câncer de Dilma Rousseff tem sido tratado majoritariamente como fato político – e talvez isso seja inevitável, dada a dimensão que a ministra tomou no cenário das eleições de 2010. Mas ninguém que convive ou conviveu com essa doença consegue acompanhar o caso com a frieza de quem abstrai o fator humano dos fatos políticos.

As sessões de quimioterapia, as dores nas pernas, a peruca, o enigmático diagnóstico “dentro do quadro da normalidade”, cada um desses detalhes divulgados sem muita solenidade nas páginas de cobertura política do jornal são pequenos grandes dramas que assumem toda uma outra dimensão para quem já viveu essa história de perto.

Acompanhando a jornada de alguém que luta contra uma doença grave, mesmo que essa pessoa seja uma figura pública, distante de nós, é inevitável nos sentirmos um pouco mais frágeis e pequenos diante da natureza. Como quem assiste pela TV à coreografia furiosa de um tufão.

quarta-feira, 20 de maio de 2009



20 de maio de 2009
N° 15975 - MARTHA MEDEIROS


Don Mario

Era 1993 e eu recém havia desembarcado em Santiago do Chile, onde iria morar. Por casualidade, cheguei na mesma semana em que se iniciava a Feira do Livro, localizada numa antiga estação de trens.

Fui para a Feira sem saber o que procurar. Zanzava sozinha pelos corredores quando de repente percebi uma movimentação: alguém importante chegara, e a multidão não se continha. Aplausos, flashes, autógrafos. Me aproximei. Era Mario Benedetti.

O que eu conhecia da obra do autor uruguaio era insuficiente para entender a razão daquele agito. Mas, como eu não procurava por nada específico, aproveitei e comprei alguns livros de poemas daquele senhor que estava sendo homenageado a poucos metros de mim. Pensei: vai ser bom para eu aprender espanhol.

Foi bom para aprender tudo.

Aprender o quanto um único verso pode provocar uma emoção intensa, o quanto a poesia engajada pode falar em nome de todo um povo, o quanto a poesia de amor comove até aqueles que não amam, o quanto a calidez e a simplicidade comunicam, o quanto não é preciso ser rebuscado para ser respeitado, o quanto Drummond estava certo quando disse que é mais importante ser eterno do que moderno.

Daquele ano em diante, devorei tudo dele que me caiu em mãos, e sei que, apesar de eu possuir algumas antologias de sua obra, esse tudo ainda é pouco – foram 88 anos de vasta produção.

De sua ficção, destaco Gracias por el Fuego (a edição brasileira mantém o título em espanhol) e A Trégua, um relato escrito em forma de diário por um senhor de quase 50 anos em vias de se aposentar – na época em que foi escrito, era o retrato de um matusalém.

Hoje, aos 50 anos, os homens ainda surfam. Mas certas coisas não mudam, como o fato de o personagem, um funcionário público de rotina medíocre, solitário, sem maiores planos a não ser o de aguardar o repouso definitivo, se apaixonar quando menos esperava. Não é um tema novo, mas os autores verdadeiramente talentosos não precisam de temas novos.

Mario Benedetti faleceu anteontem, provavelmente aceitando o destino que lhe coube no tempo razoável de quase nove décadas de vida (a morte nunca é razoável, mas vá lá). Apesar de ter passado por alguns momentos difíceis, como o exílio na época da ditadura militar, e de viver num mundo sem mais lugar para utopias, nunca deixou de ser um homem comprometido com as causas sociais e com o amor por sua esposa, com quem foi casado por mais de 60 anos.

Duvido que algum dia tenha perdido tempo lamentando não ter seguido outro rumo, a julgar pelas palavras do personagem Miguel, do seu livro Quem de Nós, com as quais encerro essa minha homenagem.

“Mas existe verdadeiramente outro rumo? Na verdade, só existe a direção que tomamos. O que poderia ter sido já não conta.”

domingo, 17 de maio de 2009


DANUZA LEÃO

A vida não pode ser fácil

Quem é difícil não suporta a companhia de gente leve, e encontra sempre um tão difícil quanto ele para conviver

POR QUE será que para alguns a vida é tão fácil, tão leve, e para outros tudo é problema, complicação? Existem pessoas que estão gripadas, cheias de febre, e se levantam da cama, mesmo se sentindo péssimas, para ir ao dentista.

Qual seria o problema de desmarcar? Nenhum. Mas elas são exigentes com elas mesmas e, se deram a palavra -mesmo sendo uma simples ida ao dentista-, não podem falhar. Essas pessoas, se são duras com elas mesmas, são também duras com os outros.

Ai de você telefonar às 19 horas para desmarcar aquele jantar combinado na véspera. Jantar que não era nada, apenas um encontro de dois bons amigos que se falam quase todo dia no telefone; por mais que tenha havido um bom motivo, um complicado acha que isso não se faz.

Ele cria expectativas -para o bem e para o mal- que não podem ser frustradas, sob pena de cair em profundo sofrimento. Se um desses complicados programar uma viagem maravilhosa para as ilhas gregas, quando voltar ele vai falar apenas de como é difícil viajar nos dias de hoje, dos aeroportos cheios, da bagagem que demorou a chegar na esteira, e vai se esquecer de contar as coisas maravilhosas que viu, até porque talvez ele não tenha visto nada, apenas olhado, o que não tem nada a ver.

Mesmo boas notícias que não estavam programadas contrariam os viciados em sofrer.

O imprevisto, mesmo -e sobretudo- em se tratando de coisas boas, transtorna certas pessoas; a vida para elas é difícil, dura. Não se pode ser feliz porque o castigo vem depois. Elas adiam qualquer prazer por nada, ou talvez para não terem prazer.

Quando veem alguém com pouco ou nenhum futuro pela frente, um empreguinho de nada, sem perspectivas, tomando uma cerveja e dando não uma, mas várias gargalhadas, elas se sentem quase ofendidas.

E sempre encontram uma outra pessoa para dizer o quanto aquele cara é irresponsável, que depois não se queixe e, sobretudo, que não venha pedir nada, já que vive pensando que a vida é fácil.

O lema deles é esse: "A vida não é fácil". A visão de uma pessoa que acha que a vida pode ser fácil e leve faz mal aos difíceis. Só que a vida ser fácil ou difícil depende, e muito, de como se é. Quem é difícil não suporta a companhia de gente leve, e encontra sempre um tão difícil quanto ele para conviver.

E o que é uma pessoa fácil? É aquela que, se você passar na casa dela na hora do almoço e não tiver nada na geladeira, diz, alegremente, que não tem problema, que em cinco minutos resolve tudo, e pergunta o que você quer: se um pão fresquinho, com um presunto cortado na hora e um guaraná, ou se prefere uns ovos mexidos e uma cerveja.

Mas isso nunca vai acontecer: uma pessoa difícil nunca chega à casa do outro sem avisar, para que o outro nunca, jamais, faça isso com ele, que só de pensar nessa possibilidade já fica estressado; difícil lidar com pessoas difíceis.

Não há quem não tenha uma amigo difícil; eu tenho alguns, e você também deve ter, claro. E o mais inexplicável é que continuo gostando deles, me dando com eles, telefonando para eles, como provavelmente acontece com você. Por que será?

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 16 de maio de 2009



17 de maio de 2009
N° 15972 - MARTHA MEDEIROS


Uma alma boa

Recentemente assisti no teatro A Alma Boa de Setsuan, comédia de Bertolt Brecht com a versátil e carismática Denise Fraga no papel principal e direção do premiado Marco Antonio Braz.

Fiquei maravilhada não só com a atuação do elenco e a concepção da peça, mas também com a qualidade da cenografia, do figurino, da luz, da direção musical, enfim, não é uma encenação econômica, daquelas franciscanas em função do baixo orçamento. A Alma Boa de Setsuan não só é um espetáculo bom, como é farto, de encher os olhos.

Há uma certa fartura na duração também – poderia ter 15 minutos menos, mas esse assunto fica para outra crônica: a nossa impaciência atual para com a extensão de certas obras, incluindo também filmes longos, livros enormes, palestras intermináveis. Estamos em plena era do compacto.

Voltando à peça. A história trata sobre a dificuldade de se fazer o bem para si e para os outros ao mesmo tempo.

Eu procuro sempre fazer o bem para mim e para os meus e nunca considerei que isso significasse ser má para os outros. Se estou dentro da lei e não estou tirando nada de outra pessoa, seja algo material ou moral, então não posso me considerar uma egoísta. Ou será que devo?

Supondo que uma ala da minha família fosse composta por pessoas muito porra-loucas, que se metessem em confusões brabíssimas, eu teria duas opções: ficar na minha e manter a paz da minha rotina, ou me envolver com a insanidade alheia, correndo o risco de receber telefonemas, visitas e pedidos estapafúrdios a qualquer hora do dia e da noite, já que teria me disponibilizado para tal.

É só um exemplo. Repare que não falei em emprestar dinheiro, em consolar alguém aflito, em oferecer hospedagem, essas gentilezas que fazemos aos outros sem nenhum prejuízo a nós mesmos (se considerarmos que temos dinheiro, tempo e espaço suficiente para repartir com quem não tem).

Envolver-se é outra coisa. É o verbo que muda tudo. Pois no momento em que você se envolve numa briga, ou se envolve numa disputa judicial, ou se envolve numa campanha política, ou o que for que chame você para o meio do ringue, você estará tomando partido e adeus tranquilidade.

Na hora que nos convocam, temos que optar entre um sim e um não, e sabemos como é difícil dizer não. Não, eu não vou tumultuar a minha vida, os meus negócios, os meus estudos, a minha família, para me envolver com os seus problemas.

Tem de haver uma saída, dizem os atores da peça ao final da apresentação, intimando a plateia a pensar a respeito. Será que nesse mundo individualista é possível se comprometer com o outro sem sacrificar o comprometimento consigo próprio? Ou será que, cuidando da nossa vida sem incomodar ninguém, estamos colaborando o suficiente?

Nosso isolamento pode ser uma forma de dizer “não atrapalhando, já estou ajudando”, mas isso ainda soa como conversa pra boi dormir. Como mudar o mundo, se não abandonarmos um pouco o nosso confortável sofá?

Sempre achei que não fazendo o mal, já estava fazendo o bem. Presto reverência àqueles que vão muito além disso, fazendo o bem de forma muito mais atuante.


Mouse ao alto!

Larápios da internet invadem contas bancárias, vendem produtos que não existem e fazem do Brasil o quarto país do mundo mais contaminado por programas que furtam senhas

Laura Diniz - Montagem sobre fotos de D. Hurst e Imagina Photography/Alamy/Other Images



Aviso aos navegantes: o mar não está para incautos. No oceano em que singra o 1,6 bilhão de usuários da internet, as águas andam tormentosas: como as sereias da mitologia grega, que atraíam para armadilhas os marinheiros seduzidos por seu canto, ladrões aguardam um clique imprudente para invadir contas bancárias, larápios acenam com ofertas tentadoras de produtos que jamais serão entregues e uma infinidade de pragas contagiosas trafega livremente a bordo de e-mails instigantes e arquivos irresistíveis. O resultado disso são números assustadores.

No Brasil, o volume de notificações relacionadas a fraudes, furtos, vírus destruidores, invasões e tentativas de invasão de computador quadruplicou em cinco anos (veja o quadro). No ranking dos crimes eletrônicos que mais crescem, o que atenta contra o patrimônio ocupa o primeiro lugar: só os programas destinados a invadir contas bancárias infectam 195 computadores por hora no país.

Isso significa que a rede virtual é um campo minado e que usá-la para fazer compras ou transações bancárias se tornou um comportamento de risco? Absolutamente, não. Quer dizer apenas que o mundo virtual está mais parecido com o mundo real: em ambos, as ameaças existem. E, em ambos, é preciso se precaver contra elas.

O Brasil é o quarto país mais contaminado por vírus e programas capazes de furtar informações, alterar ou destruir dados dos computadores, segundo relatório divulgado pela Microsoft em abril. Em primeiro lugar estão Sérvia e Montenegro (computados juntos), seguidos por São Tomé e Príncipe e Rússia. Os Estados Unidos, onde o uso da internet é mais disseminado, aparecem no 54º posto. Seriam os brasileiros especialmente ingênuos e desprevenidos?

Pouco familiarizados com a rede é a melhor resposta. Segundo uma pesquisa feita no ano passado pelo Comitê Gestor da Internet, 63% dos 62 milhões de usuários brasileiros não sabem utilizar mecanismos básicos como o de busca – ainda que o nome do mais famoso deles, o Google, seja usado até como verbo ("dar um google": digitar uma palavra no site com o objetivo de encontrar informações relacionadas a ela na rede).

"O conhecimento rudimentar de grande parte dos brasileiros sobre computadores faz com que muitos não tenham a dimensão dos riscos de, por exemplo, abrir e-mails de desconhecidos ou visitar sites não confiá-veis", diz o advogado Spencer Toth Sydow, especialista em direito informático.

Além disso, como a maioria dos usuários não conta com nenhuma orientação na hora de descobrir as possibilidades da rede, o método mais utilizado é o de tentativa e erro. "Isso contribui para que o usuário vá experimentando e clicando sem pensar muito", explica a psicóloga Rosa Maria Farah, responsável pelo Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O uso disseminado de programas piratas no Brasil é outra agravante. Eles tornam os computadores mais vulneráveis a ataques, já que, ao contrário dos programas legais, não são atualizados pelos fabricantes à medida que os criminosos inventam novas formas de infiltração.

Por fim, ajuda a explicar o grande número de vítimas de golpes virtuais a alavanca que move o mais pedestre dos contos do vigário: o desejo da vítima de levar vantagem. Música gratuita, jogos idem e ofertas de produtos a preços incríveis são alguns dos cantos de sereia largamente usados pelos tapeadores.

Zoriah/Zuma Press

ATAQUE REDIRECIONADO



Depois de promoverem uma explosão de invasões de contas bancárias na década de 90, hackers americanos migraram para o ramo das vendas on-line: "Pague e não receba"

Para o bandido, o negócio do crime virtual é fantástico. "É mais fácil e menos arriscado", resume o delegado Carlos Eduardo Sobral, chefe da Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal. Segundo o policial, nas últimas cinco grandes operações da PF de combate a fraudes bancárias eletrônicas, cerca de 35% dos presos tinham antecedentes por furto ou roubo. Ou seja, os ladrões do mundo real estão migrando alegremente para o mundo virtual.

E por que não, se o envio maciço de um programa que rouba senhas bancárias pode ser suficiente para arrancar milhares de reais de diversas pessoas ao mesmo tempo? O golpe da falsa página bancária é hoje o mais disseminado no Brasil. Ele é responsável por grande parte dos 130 milhões de reais de prejuízo com fraudes pela internet registrados pelos bancos em 2008.

A preocupação dessas instituições com o crescimento dos ataques pode ser medida pelo volume de dinheiro que elas vêm investindo em segurança digital: em 2008, o gasto chegou a 1,5 bilhão de reais, segundo a Federação Brasileira de Bancos. Já é um quinto do total despendido por ano com a segurança física das agências.

No entanto, se a evolução do crime eletrônico no Brasil seguir a mesma trajetória da americana, os bancos poderão em breve respirar mais tranquilos. Segundo o professor Douglas Salane, diretor do Centro de Estudos de Crimes Cibernéticos da Faculdade John Jay de Justiça Criminal, de Nova York, esse tipo de golpe – que começa com um e-mail enganoso e termina com o furto e uso da senha bancária do usuá-rio – diminuiu muito nos Estados Unidos.

"O motivo é elementar: quanto mais as pessoas aprendem a utilizar a rede, mais difícil fica enganá-las", diz Salane.

De acordo com o Centro de Denúncia de Crime Cibernético (IC3), ligado ao FBI, a polícia federal dos Estados Unidos, golpes bancários pela internet e outros tipos de estelionato eletrônico foram responsáveis por 15% das reclamações em 2001 e apenas 3% em 2008.

Lya Luft

A sordidez humana

"Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Quem é esse em nós, que ri quando o outro cai na calçada?"

Ando refletindo sobre nossa capacidade para o mal, a sordidez, a humilhação do outro. A tendência para a morte, não para a vida. Para a destruição, não para a criação. Para a mediocridade confortável, não para a audácia e o fervor que podem ser produtivos.

Para a violência demente, não para a conciliação e a humanidade. E vi que isso daria livros e mais livros: se um santo filósofo disse que o ser humano é um anjo montado num porco, eu diria que o porco é desproporcionalmente grande para tal anjo.

Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Quem é esse em nós (eu não consigo fazer isso, mas nem por essa razão sou santa), que ri quando o outro cai na calçada? Quem é esse que aguarda a gafe alheia para se divertir? Ou se o outro é traído pela pessoa amada ainda aumenta o conto, exagera, e espalha isso aos quatro ventos – talvez correndo para consolar falsamente o atingido?

Ilustração Atômica Studio

O que é essa coisa em nós, que dá mais ouvidos ao comentário maligno do que ao elogio, que sofre com o sucesso alheio e corre para cortar a cabeça de qualquer um, sobretudo próximo, que se destacar um pouco que seja da mediocridade geral?

Quem é essa criatura em nós que não tem partido nem conhece lealdade, que ri dos honrados, debocha dos fiéis, mente e inventa para manchar a honra de alguém que está trabalhando pelo bem? Desgostamos tanto do outro que não lhe admitimos a alegria, algum tipo de sucesso ou reconhecimento?

Quantas vezes ouvimos comentários como: "Ah, sim, ele tem uma mulher carinhosa, mas eu já soube que ele continua muito galinha". Ou: "Ela conseguiu um bom emprego, deve estar saindo com o chefe ou um assessor dele". Mais ainda: "O filho deles passou de primeira no vestibular, mas parece que...". Outras pérolas: "Ela é bem bonita, mas quanto preenchimento, Botox e quanta lipo...".

Detestamos o bem do outro. O porco em nós exulta e sufoca o anjo, quando conseguimos despertar sobre alguém suspeitas e desconfianças, lançar alguma calúnia ou requentar calúnias que já estavam esquecidas: mas como pode o outro se dar bem, ver seu trabalho reconhecido, ter admiração e aplauso, quando nos refocilamos na nossa nulidade? Nada disso! Queremos provocar sangue, cheirar fezes, causar medo, queremos a fogueira.

Não todos nem sempre. Mas que em nós espreita esse monstro inimaginável e poderoso, ou simplesmente medíocre e covarde, como é a maioria de nós, ah!, espreita. Afia as unhas, palita os dentes, sacode o comprido rabo, ajeita os chifres, lustra os cascos e, quando pode, dá seu bote.

Ainda que seja um comentário aparentemente simples e inócuo, uma pequena lembrança pérfida, como dizer "Ah! sim, ele é um médico brilhante, um advogado competente, um político honrado, uma empresária capaz, uma boa mulher, mas eu soube que...", e aí se lança o malcheiroso petardo.

Isso vai bem mais longe do que calúnias e maledicências. Reside e se manifesta explicitamente no assassino que se imola para matar dezenas de inocentes num templo, incluindo entre as vítimas mulheres e crianças... e se dirá que é por idealismo, pela fé, porque seu Deus quis assim, porque terá em compensação o paraíso para si e seus descendentes.

É o que acontece tanto no ladrão de tênis quanto no violador de meninas, e no rapaz drogado (ou não) que, para roubar 20 reais ou um celular, mata uma jovem grávida ou um estudante mal saído da adolescência, liquida a pauladas um casal de velhinhos, invade casas e extermina famílias inteiras que dormem.

A sordidez e a morte cochilam em nós, e nem todos conseguem domesticar isso. Ninguém me diga que o criminoso agiu apenas movido pelas circunstâncias, de resto é uma boa pessoa. Ninguém me diga que o caluniador é um bom pai, um filho amoroso, um profissional honesto, e apenas exala seu mortal veneno porque busca a verdade.

Ninguém me diga que somos bonzinhos, e só por acaso lançamos o tiro fatal, feito de aço ou expresso em palavras. Ele nasce desse traço de perversão e sordidez que anima o porco, violento ou covarde, e faz chorar o anjo dentro de nós.

Lya Luft é escritora

Reportagem: Mariana Lucena; Edição: Luís Antônio Giron

A volta do Pequeno Príncipe

Livro inédito de Saint-Exupéry revela a paixão do escritor por uma mulher casada no último ano de sua vida e mostra que o escritor tinha muito em comum com seu personagem mais famoso

A volta

"Contos de fadas são a única verdade da vida", diz o escritor Saint-Exupéry

Enquanto o mundo lembrava em mais 80 milhões de exemplares - e em 160 línguas - o amor entre o principezinho de um planeta distante e a sua rosa, uma outra paixão que perpassava esta história ficou esquecida. Recentemente essa história foi contada em O amor do Pequeno Príncipe.

O livro é uma compilação de cartas enviadas pelo autor de O Pequeno Príncipe, Saint-Exupéry, e uma mulher por quem se apaixonou logo antes de morrer. O episódio só se tornou público em novembro de 2007, por ocasião da venda de diversos documentos do autor que faziam parte da coleção do Museu de Cartas e Manuscritos, em Paris.

As cartas que o escritor e aviador escreveu à sua amada mostram que muito havia em comum entre o autor e seu personagem. As comparações são feitas pelo próprio Exupéry, que assina suas mensagens ilustradas como O Pequeno Príncipe. A correspondência revela um homem que, assim como seu personagem, é sensível, reflexivo e um pouco deprimido quando está distante do objeto de seu amor.

Dela pouco se sabe. Tudo o que se pôde ter certeza a respeito de sua identidade é que era uma jovem de 23 anos, nascida no leste da França, casada e oficial da Cruz Vermelha. Exupéry a conheceu no trem, em março de 1943, quando ia da cidade de Oran a Argel, na Argélia, a serviço da aeronáutica francesa. Foi amor à primeira vista. Os documentos sugerem que, de então até sua morte, eles mantiveram um relacionamento. Mas indicam também que esta foi uma paixão que o fez sofrer.

Em um dos trechos do livro ele até a acusa de matar o Pequeno Príncipe. "Não há Pequeno Príncipe hoje e não haverá nunca mais. O Pequeno Príncipe morreu. Ou então tornou-se muito cético". Hoje as palavras parecem proféticas.

Poucos dias depois, em 31 de julho de 1944, o escritor desapareceu a bordo de seu avião no Mediterrâneo. Nunca pôde ver o Pequeno Príncipe publicado em seu país Natal... nem ver sua amada misteriosa novamente.

O livro saiu do acervo museu francês e foi direto para a lista de best-sellers. No Brasil, estava entre os mais vendidos já na primeira semana. O segredo desta volta de sucesso do Pequeno Príncipe (se é que algum dia ele chegou a partir) é o talento inexplicável de Saint-Exupéry, que transbordou de paixão cada linha de sua obra.

Um escritor que sabia muito bem uma lição importante que registrou neste novo livro: "Os contos de fada são assim. Uma manhã, a gente acorda e diz: 'era só um conto de fadas...' E a gente sorri de si mesmo. Mas, no fundo, não estamos sorrindo. Sabemos muito bem que os contos de fadas são a única verdade da vida."

Título: O amor do Pequeno Príncipe - Cartas a uma desconhecida
Autor: Antoine de Saint-Exupéry
Preço: R$ 24,90


16 de maio de 2009
N° 15971 - NILSON SOUZA


A mensagem

O Papa depositou no Muro das Lamentações, em Israel, uma mensagem para Deus. Em tempos de internet, o sistema de comunicação escolhido pode parecer um tanto arcaico, mas ninguém duvida de que a mensagem tenha chegado ao destinatário.

Foi, na verdade, uma carta aberta, uma espécie de prestação de contas da visita do Sumo Pontífice a Jerusalém e um pedido de paz não apenas para a Terra Santa, mas para toda a humanidade.

Tudo muito apropriado, mas o gesto, fartamente documentado pelos jornais, me despertou uma curiosidade: que língua teria utilizado o Papa para se comunicar com Deus?

Cheguei a pensar que ele tivesse escrito o seu texto em latim, que é a língua oficial do Vaticano. Também supus que ele pudesse ter redigido em alemão, seu idioma natal. Ou até em aramaico, que era a língua falada por Jesus.

Mas não: fui pesquisar e descobri que Bento XVI escreveu a sua mensagem em inglês. Isso mesmo, o texto impresso num papel com o símbolo do Vaticano começava com uma saudação respeitosa, na inconfundível língua de Shakespeare: “God of all the ages...”

Inglês? Aqui embaixo, tudo bem. Afinal, esta língua virou o esperanto moderno, quem não sabe pelo menos arranhar algumas palavras acaba ficando fora do mercado. Está em todo lugar, nas vitrines das lojas, na música, no cinema e nos manuais de instrução de qualquer equipamento eletrônico.

Mas já terá virado língua oficial no céu também? Será que a prova do Juízo Final terá, ao menos, tradução simultânea?

Tenho um amigo tão antiamericano, que é bem capaz de trocar o seu passaporte para um lugar mais quente se souber que os anjos se comunicam apenas em inglês. Em compensação, fiz o meu próprio teste com uma colega de trabalho e recebi uma resposta inspirada. Perguntei-lhe que língua utilizaria para falar com Deus.

– A língua do coração! – me respondeu de bate-pronto.

Como estou no embalo das perguntas, aqui vai outra: Qual é a profissão mais estressante? Já pensei algumas vezes que poderia ser a minha, pois jornalista funciona como uma espécie de para-choque de más notícias.

Também não é a de policial, controlador de voo ou motorista de ônibus, que enfrenta trânsito ensandecido com aquela campainha no ouvido o tempo todo.

Minha amiga psicóloga me informa que recente pesquisa da organização para a qual trabalha apresentou uma resposta surpreendente para a questão: padres e freiras sentem-se mais pressionados do que profissionais de atividades reconhecidamente angustiantes. Diante da revelação, não resisti:

– Também, com um patrão perfeccionista, que não tira o olho deles nunca.