sábado, 8 de agosto de 2009



08 de agosto de 2009
N° 16056 - NILSON SOUZA


O mensageiro alado

Em tempos de internet e de comunicação instantânea, é de uma ironia desconcertante esta notícia sobre o uso de pombos-correios por criminosos.

A ave bíblica, que teria retornado à Arca de Noé com o sinal de que as águas estavam baixando, ganha agora a incumbência de levar telefones celulares e carregadores de bateria para o interior dos presídios. O inusitado transporte aéreo de equipamento eletrônico equivale a usar o tambor dos índios para enviar um e-mail.

E não é só o paradoxo tecnológico que intriga. Também causa perplexidade o fato de um pássaro que sempre simbolizou a paz estar agora a serviço do crime.

Evidentemente, não é culpa da pobre ave, como sugeriu outro dia o nosso cartunista Iotti numa divertida charge em que o papai pombo, com seu uniforme de carteiro, passava uma carraspana no filhote desviado para o mau caminho. Os bandidos é que estão se aproveitando da mansidão e do senso de direção do bichinho.

Ao contrário do que muita gente pensa, os pombos-correios não levam mensagens para um determinado destino. Eles apenas voltam para casa. Normalmente são transportados do lugar de origem para pontos distantes e então retornam para o pombal, onde sabem que encontrarão abrigo, alimento e outros membros do bando – palavra bem adequada para a situação.

Significa que os pombos transportadores de celular devem estar sendo criados no próprio presídio ou na sua vizinhança. Mais uma ironia: é provável que o mensageiro da liberdade more na porta do cárcere. Pelo menos, a natureza lhe deu asas para excursões pelos céus de Porto Alegre.

Os pombos são, historicamente, prestativos. Nas duas guerras mundiais, essas aves eram o principal recurso de comunicação das tropas que lutavam na frente de batalha. Até pouco tempo atrás, o exército russo ainda mantinha uma divisão para pombos-correios.

Mas a tecnologia desempregou os bichinhos, como fez com tantas outras categorias de trabalhadores que não se adaptaram à era digital. Restou-lhes, portanto, essa atividade alternativa de prestar serviço ao crime.

Ou a aposentadoria, que também pode ser uma situação de risco, como se viu outro dia com aquela pomba do Parcão que foi sugada por uma tartaruga faminta.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009



05 de agosto de 2009
N° 16053 - MARTHA MEDEIROS


Poesia numa hora dessas?

Peguei emprestada a expressão que o Verissimo usa para apresentar seus poemas. É que eu quero falar justamente sobre poesia, um assunto que me parece emergencial, apesar de que tudo leve a crer que não é o momento.

Gente morrendo por causa da gripe H1N1, o Sarney e seu “daqui não saio, daqui ninguém me tira”, e ainda por cima o Fernandão indo jogar no Goiás. Francamente: poesia numa hora dessas?

Me explico. Estive no Rio no último final de semana para, entre outros compromissos, participar de um recital poético organizado pela escritora e atriz Elisa Lucinda em sua Casa Poema. A Casa Poema nada mais é do que uma utopia levada a cabo.

Elisa sustenta uma casa antiga em Botafogo onde ela ensina pessoas a ler poesia, dizer poesia (o verbo “declamar” é proibido) e gostar de poesia. Promove bate-papos com escritores, faz audições públicas da obra de inúmeros autores brasileiros, abre espaço para pequenas apresentações e para sessões de autógrafos, tudo de forma muito afetiva e sem luxo.

Só pelos serviços prestados, a Casa Poema deveria ser tombada pelo patrimônio histórico, mas vou mais longe: Elisa deveria ser tombada junto, porque o que ela faz é suprir uma carência dos nossos currículos escolares: ela educa para a sensibilidade e os sentidos.

Elisa me deu de presente o livro que transcreve o encontro que ela teve na mesma Casa Poema com o escritor Rubem Alves. Bom programa para estas férias estendidas: corra e adquira o seu, foi lançado pela editora 7 Mares.

Nesse livro, Elisa e Rubem discutem sobre o desserviço que é obrigar uma criança a ler um livro que não gosta, sobre o poder que a arte tem de transfigurar maus destinos, sobre o quanto a poesia pode ensinar tudo (geografia, história, matemática) e como não há jeito de se reter conhecimento se não houver emoção.

E eles vão mais longe: acusam aqueles professores que empurram livros goela abaixo de seus alunos sem eles mesmos estarem “tomados” pela beleza e importância do que estão recomendando, e aí não conseguem ensinar o prazer da leitura. Aliás, é bom lembrar que isso deve começar em casa. Não é à toa que as crianças que ouviram seus pais contando histórias são as que, quando adultas, mais se sentem atraídas pelo universo mágico da literatura.

Escutar um poema. Falar um poema em voz alta. Perceber seu ritmo, sua música, sua comunicabilidade. Elisa Lucinda tem o talento de transformar qualquer verso em algo fácil e acessível. Ela prova por a + b que poesia não precisa ser um troço chato.

Quando uma amiga lhe telefona contando sobre uma dor íntima, Elisa saca na hora um poema para ajudá-la a entender melhor o que está sentindo. Elisa é uma outra espécie de doutora: prescreve poesia. Um Tamiflu emocional que ela distribui generosamente.

Mas poesia logo agora que a bruxa está solta no espaço aéreo, que há censura aos veículos de comunicação na Venezuela e em jornal paulista também, que os políticos estão perdendo as estribeiras e que o Fernandão, insisto, assinou contrato com o Goiás? Pois é, me pareceu um momento oportuno.

Aproveite o Dia Internacional do sofá - Uma ótima quarta-feira para você.

terça-feira, 4 de agosto de 2009



04 de agosto de 2009
N° 16052 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Um homem plural

Foi Lauro Schirmer quem me apresentou o melhor de Milan Kundera. Foi também ele quem me aproximou da obra de Elias Canetti. Conto isso para revelar que o jornalista que nos deixou na outra semana era dono de uma inteligência plural.

Tínhamos a mesma origem: a cidade de Cachoeira e o Jornal do Povo, que como ele completou 80 anos. Quando o antigo Correio do Povo saiu momentaneamente do ar, Lauro telefonou para a minha casa e me convidou para ser editorialista de Zero Hora, mais cronista e um dos produtores do caderno Cultura.

Aceitei com um certo receio, pois em toda a minha vida eu só tinha escrito um editorial. Confessei isso mesmo ao homem que tinha transformado ZH em um dos cinco principais jornais do país. Lauro Schirmer sorriu e disse: “Tu sabes escrever editoriais. Apenas não sabes que sabes”.

De nossa convivência diária a partir dali aprendi que ele não era somente o mais capaz dos diretores de Redação que conheci – era também o mais culto, dono de um texto envolvente, como o que ficou registrado em seus artigos e livros.

Não falávamos apenas sobre jornalismo, as páginas de opinião ou sobre os fatos que ZH ia abordar, mas sobre música, cinema, teatro, filosofia e literatura. E não esquecíamos o universo circundante – Lauro tinha sempre uma palavra sobre o mundo vário da Redação e suas constelações.

Uma vez nos encontramos em Berlim – ele e Celia, sua mulher e minha cara amiga, cumpriam um roteiro operístico. Foram dias extremamente agradáveis, marcados especialmente por espetáculos inesquecíveis na Philharmonie.

E agora, de repente, em uma madrugada fria, Lauro se vai. As últimas homenagens que recebeu no Solar dos Câmara foram uma consagração – desde as altas autoridades aos colegas e amigos que o tinham como um mestre de vida.

Me lembrei, em meio àquela multidão, das noites de sábado em que recebia, no belo apartamento da Avenida Nilo Peçanha, os companheiros de ofício e de singradura.

E recordei que tinha um raro senso de hospitalidade, sabia distribuir entre os presentes às reuniões, mais do que um cálice de vinho, sua experiência inimitável dos mares da confraternização e da alegria.

Bem pelas previsões teremos um lindo dia de sol lá fora. Que ai dentro de seu coraçãozinho também exista esse clima.

sábado, 1 de agosto de 2009



02 de agosto de 2009
N° 16050 - MARTHA MEDEIROS


A melhor coisa que não me aconteceu

A ntes do ator Daniel Craig ser confirmado como o novo James Bond do cinema, havia uma onda de boatos que prenunciava Clive Owen no papel.

Lendo uma entrevista com Owen, ele disse que essa foi a melhor coisa que nunca lhe aconteceu, pois quanto mais ele negava a informação, mais se falava sobre ele.

É uma maneira de se divertir com o destino, mas a frase que ele usou é tão boa que deixemos o bonitão pra lá e vamos adiante: qual foi a melhor coisa que nunca lhe aconteceu?

Comigo, acho que foi aos 14 anos de idade. Eu iria para a Disney com a família e alguns primos. Estava ansiosa pela viagem, quase não dormia à noite. Seria minha primeira vez no Exterior, um acontecimento.

No entanto, uns 10 dias antes de embarcar, o governo estabeleceu um tal imposto compulsório que tornou a viagem proibitiva. Fim de sonho: não haveria grana para bancar a aventura. Os passaportes novinhos em folha foram para o fundo da gaveta e eu passei mais uma noite sem dormir, só que dessa vez de tristeza.

Era julho e minhas férias escolares se resumiriam a ficar em casa. Porém, haveria uma excursão do colégio para a Bahia, e muitas de minhas colegas de aula iriam. Pensei: nada mal como prêmio de consolação, trocar o Mickey pelo Pelourinho. O preço era uma merreca se comparado a uma viagem aos States.

De ônibus até Salvador, imperdível! Virei, mexi, implorei, consegui a última vaga e fui. Resultado: voltei com meia dúzia de amizades tão fortalecidas que, até hoje, somos como irmãs.

Tenho certeza de que se eu não houvesse viajado com elas, eu jamais teria entrado para o grupo que pertenço com orgulho até hoje. A Disney foi a melhor coisa que nunca me aconteceu.

Fico imaginando as histórias que podem não ter acontecido com você. Namorar uma pessoa por oito anos e romper dias antes de subir ao altar: não ter casado pode ter sido a melhor coisa que nunca lhe aconteceu, vá saber o que o destino lhe ofereceu em troca. Ou você não ter passado num concurso.

Nunca ter recebido a ligação que tanto esperava. Nunca ter recuperado um objeto perdido que o deixava preso a lembranças paralisantes.

Ter ficado com fama de ter sido o grande amor de uma modelo espetacular: na verdade, ela nunca olhou pra você, mas um mal-entendido fez com que muitos acreditassem na lenda e até hoje você recebe os dividendos: foi a melhor coisa que nunca lhe aconteceu.

É uma visão generosa da vida: imaginar que os não acontecimentos fizeram diferença, que você está onde está não só por causa das escolhas que fez, mas também pelas especulações que nunca se confirmaram.

Ao manter esse caráter desestressado, eliminamos a palavra derrota do nosso vocabulário e a alma fica mais aliviada, o que não é pouca coisa nesse mundo em que tanta gente parece pesar toneladas devido ao mau humor e ao pessimismo.

Cá entre nós, viajar de Porto Alegre até Salvador de ônibus para passar três dias e voltar, e achar isso uma beleza, é a prova de que ter o espírito aberto funciona.

Ainda que com previsão de chuva e nuvens cinzas no céu, Um lindo domingo para você.


O dever da família

As dez principais descobertas dos especialistas sobre quando e como os pais podem ajudar a despertar nos filhos a curiosidade intelectual e fazê-los alcançar um desempenho melhor nos estudos

1. Ter livros em casa

E, no caso de filhos pequenos, ler para eles. O hábito, cultivado desde cedo, faz aumentar o vocabulário de forma espantosa. Segundo estudo do americano James Heckman, prêmio Nobel de economia, uma criança de 8 anos que recebeu esse tipo de estímulo a partir dos 3 domina cerca de 12 000 palavras – o triplo de um aluno sem o mesmo empurrão.

A diferença se faz sentir na assimilação de conhecimento em todas as áreas. Ao analisar o fato de a Finlândia aparecer sempre na primeira posição nos rankings de educação, um estudo da OCDE confirma: o incentivo precoce à leitura em casa tem um papel decisivo.



2. Reservar um lugar tranquilo para os estudos

A ideia é cuidar para que o ambiente ofereça o mínimo necessário: mesa, cadeira, boa iluminação e distância da televisão. Já na pré-escola, os pais podem definir o local e incentivar seu uso diário. Os benefícios, já quantificados, são os esperados: concentrado, o aluno aprende mais e erra menos.









3. Zelar pelo cumprimento da lição

Ainda que a criança seja pequena e a tarefa, bem fácil, é importante mostrar a relevância dela com gestos simples, como pedir para olhar o dever pronto ao chegar em casa. Até cerca de 10 anos, monitorar diariamente a execução da lição não é excessivo. Ao contrário. Esse é o momento de começar a sedimentar uma rotina de estudos, com horário e local, mesmo que seja mais uma brincadeira. Um relatório da OCDE não deixa dúvidas quanto às vantagens. Os melhores alunos no mundo todo levam a sério o dever de casa.






4. Orientar, mas jamais dar a resposta certa

Solucionar o problema é uma tentação frequente dos pais quando são acionados a ajudar na tarefa de casa. Não funciona. O que dá certo, isso sim, é recomendar uma leitura mais atenta do enunciado, tentar provocar uma nova reflexão sobre o assunto e, no caso de filhos mais velhos, sugerir uma boa fonte de pesquisas. Se o erro persistir, deixe-o lá. Já se sabe que a correção do professor é decisiva para a fixação da resposta certa.

5. Preservar o tempo livre

Muitos pais, ávidos por proporcionar o maior número de oportunidades aos filhos, lotam sua agenda de atividades fora da escola. O resultado é que sobra pouco tempo para brincar, esse também um momento sabidamente precioso para o aprendizado. Na escola, por sua vez, crianças com rotinas atribuladas demais costumam demonstrar cansaço, o que frequentemente compromete o próprio rendimento.

6. Comparecer à reunião de pais

Mesmo que seja muitas vezes enfadonha, ela proporciona no mínimo uma chance de sentir o ambiente na escola, saber da experiência dos demais alunos e tomar contato com a visão de outros pais. A ida a esses encontros tem ainda um efeito colateral menos visível, mas já bastante estudado: a presença dos pais é uma demonstração de interesse que contribui para o envolvimento dos filhos com a escola.








7. Conversar sobre a escola

A manifestação de interesse, por si só, é um indicativo do valor dado à educação pela família. Os efeitos são ainda maiores quando o estudo é tratado como algo agradável e aplicável à vida prática, e não um fardo. Uma recente compilação de estudos, consolidada por um centro de pesquisas do governo americano, mostra que um pai que consegue produzir esse tipo de ambiente em casa aumenta em até 40% as chances de o filho se tornar um bom aluno.







8. Monitorar o boletim

No caso de um resultado ruim, o melhor a fazer é definir um plano para melhorar o desempenho – mas não sem antes consultar a escola e avisar o filho de que está fazendo isso. O objetivo aí é estabelecer, junto com o colégio, uma estratégia para reverter a situação e saber qual será, exatamente, sua participação.

Está mais do que provado que castigo, nesse caso, não funciona. Só diminui o grau de autoconfiança, já baixa, e agrava o desinteresse pelos estudos.

9. Procurar o colégio no começo do ano

É a ocasião em que cabe perguntar, pelo menos em linhas gerais, o que a escola pretende ensinar em cada matéria. Trata-se do mínimo para poder acompanhar tais metas e, se preciso, cobrar sua execução.

10. Não fazer pressão na hora do vestibular

O excesso de pressão por parte da família só atrapalha no momento mais tenso na vida de um estudante. À mesa do jantar, os pais darão uma boa contribuição ao evitar falar apenas disso. Mas podem ajudar mais, principalmente zelando para que o ambiente de casa na hora do estudo não fique barulhento demais e para que o filho não se comprometa com muitas atividades.

O lazer, no entanto, não deve ser suprimido. É o que dizem os especialistas e os próprios campeões no vestibular: em 2008, os mais bem colocados em dez áreas mantiveram uma pesada rotina de estudos, mas, pelo menos no fim de semana, preservaram algum tempo livre.


O próximo passo

"Conseguir uma educação de qualidade é possível, como demonstraram os muitos países que deram esse salto"

Ilustração Atômica Studio

É preciso entender que em educação, como em outros setores, há etapas a ser vencidas. Enquanto faltam escolas, construí-las tem um impacto fulgurante nas estatísticas. Mas essas escolas são apenas caricaturas se lhes faltam livros, equipamentos e professores. Suprir essas lacunas resulta também num grande salto na matrícula e na qualidade.

O passo seguinte é ter professores minimamente preparados, uma administração central operante, currículos claros e não estar em greve todos os meses (seja de quem for a culpa). Esses aperfeiçoamentos trazem ainda bons frutos na qualidade e na deserção.

Mas, daí para a frente, os erros e deficiências vão se tornando menos óbvios, as correções mais sutis e o seu impacto resvaladiço. As mudanças fáceis já foram feitas, restam aquelas politicamente mais conflitantes. Ou seja, mais se avança, mais difíceis se tornam os avanços subsequentes.

Faz algumas décadas, estávamos vergonhosamente distantes de países como Chile, Argentina e Uruguai – os menos ruins da América Latina. Na verdade, as matrículas eram inferiores às da Bolívia e do Paraguai. A um ritmo espantosamente rápido, conseguimos nos aproximar do nível de matrícula do Chile, da Argentina e do Uruguai.

Nenhum outro país latino-americano avançou tão depressa nas últimas décadas. Não é pouca coisa. De fato, a partir da década de 90, acelera-se a expansão do nosso ensino, com a clara liderança dos estados mais prósperos. Crescem Minas, Rio Grande do Sul e Paraná, mais do que os outros. Norte e Nordeste permanecem travados.

Mais para o fim da década, começam a avançar os retardatários. Ao fim do milênio, a universalização da matrícula é obtida. O desafio maior passa a ser a qualidade. Não obstante, tanto na matrícula quanto na qualidade, começamos a patinar, avançamos pouco ou estagnamos. Depois que fizemos o fácil, os próximos passos são mais árduos e de impacto mais diáfano.

A última rodada do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) mostra que começamos a encontrar problemas para avançar. Estacionaram estados tradicionalmente com melhores resultados, como Minas, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Em contraste, só avançam os estados do Norte, os mais atrasados. Ou seja, progridem apenas aqueles em que o mais simples ainda estava por fazer. Travam aqueles cujas falhas não estão mais em erros grosseiros, mas em desvios menos óbvios. Conhecemos os problemas. Precisamos lidar com muitos professores que apenas parecem ensinar, porque aprenderam em arremedos de faculdade.

De fato, os professores não aprendem a dar aulas. Nos primeiros anos, seus alunos são cobaias. Não há prêmios para quem faz certo ou puxões de orelha para os incompetentes e negligentes. A administração é perfeita no papel, mas capenga na implementação. O currículo é para gênios ou é ambíguo – ou ambos.

Em muitas redes educativas, a politicagem ainda não foi expulsa da escola. O tempo de classe é insuficiente na regra formal e ainda menor depois que se descontam feriados, festas, greves, atrasos e perdas de tempo de todos os tipos. E por aí afora. Para resolver esses problemas, não teremos sucesso sem pisar nos calos dos que resistem às mudanças.

Em resumo, é relativamente fácil chegar a uma educação medíocre para todos ou quase todos (embora isso nos tenha consumido cinco séculos). O grande problema é que hoje os números mostram estagnação da matrícula, evasão elevada – sobretudo no ensino médio – e qualidade sem avanços substanciais.

O desafio é conseguir uma educação de qualidade. Que é possível demonstraram os muitos países que deram esse salto. Alguns são até mais pobres do que o Brasil, e quase todos os ricos eram mais pobres quando deram esse salto.

O grande trunfo do país é a existência de uma avaliação escola por escola. Prova Brasil, Ideb e Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) mostram exatamente onde estamos e quanto avançamos – que se calem os palpiteiros. Esperamos que essa avaliação indique os progressos a ser obtidos em um futuro próximo.

Porque nunca houve tanta atenção e mobilização social em prol da nossa educação. Não podemos contar com reformas voluntaristas, frutos do idealismo e destemor de um ou outro. Somente uma exigência irrecusável da nossa sociedade será capaz de empurrar o sistema educativo para a frente e para enfrentar as mudanças politicamente penosas.

Claudio de Moura Castro é economista


Suze Orman, a celebridade das finanças

Ela xinga, dá bronca e intimida. Mas, ao traduzir o mundo das finanças, a consultora Suze Orman se tornou uma das figuras mais populares dos EUA
José Fucs

SEM MISTÉRIO

Orman, de 57 anos, publicou nove livros, que venderam um total de 11 milhões de exemplares. A simplicidade de sua mensagem fez dela um fenômeno de massaEla não é uma rainha da música pop nem atriz de Hollywood. Também não ganha a vida na arena esportiva nem apareceu nua em capas de revistas masculinas.

Sua matéria-prima são os números e as questões financeiras do dia a dia. Mas, apesar de tratar de um assunto árido para a maioria das pessoas, a consultora Suze Orman tornou-se uma celebridade. Ela é hoje uma das figuras mais populares dos Estados Unidos.

É a Suze Orman que centenas de milhares de americanos – especialmente mulheres – recorrem quando querem opiniões sobre o que fazer com seu dinheiro. Até o governo recorreu a ela no ano passado, no auge da atual crise econômica, quando produziu um anúncio para divulgar o aumento da cobertura do seguro de depósitos bancários e explicar o significado prático da medida.

Cada palestra sua – ela dá duas ou três por mês – custa US$ 80 mil. Para efeito de comparação, o ex-vice-presidente Al Gore, hoje um porta-voz do movimento contra o aquecimento global, cobra US$ 100 mil por palestra. O diretor de cinema Spike Lee e o jornalista Bob Woodward, que desvendou o caso Watergate nos anos 70, ganham de US$ 25 mil a US$ 40 mil.

Loira, de olhos azuis, quase sempre bronzeada e com um sorriso tão perfeito que parece produzido em laboratório, Orman, de 57 anos, transformou-se num fenômeno de mídia. Em junho, foi tema de uma reportagem de capa da revista de domingo do New York Times. “Com a crise econômica, a guru das finanças pessoais ganhou a atenção da América”, diz a reportagem. “Ela se tornou uma espécie de consultor nacional confiável.”

Seu programa semanal de meia hora na TV, The Suze Orman show, está no ar há apenas um ano, mas já é um dos líderes de audiência da TV por assinatura CBNC, especializada em economia e negócios. Ela também é uma das campeãs de vendas do canal de compras QVC, com o programa Suze Orman financial freedom (A liberdade financeira de Suze Orman) .

Num único dia, chegou a faturar US$ 1 milhão com a venda de seus livros e kits de planejamento financeiro, que custam US$ 48 cada um. Seu talento para falar sobre temas financeiros para o grande público já lhe rendeu dois Emmys, o maior prêmio da TV americana.

Orman participa com frequência do programa da apresentadora-estrela Oprah Winfrey, voltado para o público feminino. Há cerca de dez anos, ela assina também uma seção fixa – Ask Suze (Pergunte a Suze) – na revista de Oprah, O.

Seus nove livros de autoajuda financeira (nenhum publicado no Brasil) já venderam um total de 11 milhões de cópias (leia o quadro na próxima pág.). O mais recente, lançado em janeiro – Suze Orman’s 2009 action plan (O plano de ação de Suze Orman para 2009) –, traz orientações para os leitores administrarem com eficiência suas finanças em meio à crise global. Já vendeu 950 mil cópias e teve 2 milhões de donwloads oferecidos por Oprah em seu programa de TV durante uma semana.

O sucesso de Orman se deve, em boa medida, ao apoio que teve de Oprah desde que lançou seu primeiro livro, há 15 anos. Mas ela dificilmente teria se mantido em evidência por tanto tempo se não tivesse brilho próprio. Mesmo num país em que há um consultor financeiro pessoal em cada esquina, Orman conquistou uma legião de fãs graças a sua capacidade de traduzir o complexo mundo das finanças para a linguagem do cidadão comum.

Ao contrário de muitos financistas, ela não ficou famosa por uma grande tacada na Bolsa ou por falar mal das políticas econômicas do governo. É a simplicidade de sua mensagem que a faz tão popular. Controle seus gastos. Fuja das dívidas. Cuide de seu carro. Fique de olho na aposentadoria. Um de seus bordões mais conhecidos é: “Você está brincando comigo?”.

Em seus comentários sobre finanças pessoais, Orman também carrega na emoção. Muitas vezes, sua linguagem é dura e deixa seus interlocutores constrangidos. Oprah costuma referir-se a seus problemas como “surras”(smackdowns, em inglês).

“Sinto pena de vocês”, disse Orman recentemente no programa de Oprah ao dar orientações para um casal em dificuldades financeiras. A dupla estava desempregada, não tinha seguro-saúde, carregava uma hipoteca com saldo maior que o valor de mercado do imóvel e só conseguia pagar as contas com o auxílio de seus 29 cartões de crédito.

“Gostaria de dizer que sinto empatia por vocês, porque perderam o emprego, estão vivendo um grande estresse e não têm seguro-saúde para seus filhos. Mas vocês são duas pessoas orgulhosas, que vivem num mundo de mentiras, gastando dinheiro com esse imóvel que vocês dizem que podem comprar.”

Com o sucesso que alcançou em seus quase 30 anos de trabalho na área financeira, Orman diz ter amealhado um patrimônio financeiro estimado hoje – com a queda dos preços das ações e de outros ativos – em cerca de US$ 20 milhões.

Muita gente acredita que ela tenha bem mais que isso. Possui também imóveis que valem alguns milhões, como um apartamento de 400 metros quadrados no Plaza, um condomínio luxuoso em Nova York, e uma casa em Fort Lauderdale, na Flórida.

No início de 2007, Orman decidiu “sair do armário”. Revelou ao The New York Times que é lésbica. Disse que estava casada desde 2000 com sua parceira Kathy Travis, ex-executiva da Ogilvy & Mather, uma das maiores agências de publicidade do mundo, hoje sua empresária.

Na entrevista, quando a jornalista Deborah Solomone lhe perguntou se ela era casada, Orman respondeu: “Estou numa relação com vida”. A jornalista perguntou o que isso significava, e Orman disse: “K.T. é a minha parceira de vida. K.T. são as iniciais de Kathy Travis. Estou com ela há sete anos. Nunca tive um relacionamento com um homem em toda a minha vida. Aos 55 anos, ainda sou virgem”.

Orman disse que gostaria de poder casar legalmente com a parceira e reclamou do impacto financeiro que essa restrição poderá ter em suas vidas. “Nós duas temos milhões de dólares em nossos nomes”, diz. “E me dá raiva saber que, quando eu morrer, K.T. vai perder 50% de tudo o que eu tenho para a Receita Federal. Ou vice-versa.”


01 de agosto de 2009
N° 16049 - NILSON SOUZA


O injuriado

Estamos novamente em agosto, que rima com... Por favor, não completem. Venho ouvindo isto desde que me conheço por gente e sempre fico indignado. Tá bem, nasci em agosto, é uma indignação em causa própria.

Sei que a história registra algumas desgraças neste mês que os romanos dedicaram ao imperador Augusto, incluindo-se aí as duas bombas atômicas, mas todos os meses do ano têm as suas tragédias.

É frio por aqui nesta época, isso também é verdade. E julho? Quem não congelou nesta semana que está terminando? Nem por isso ouvi algum detrator dizendo que julho rima com, digamos, entulho, barulho, engulho, embrulho ou qualquer outra palavra depreciativa.

Mas agosto não escapa. Começou com os descobridores desta pátria amada. As mulheres portuguesas não se casavam em agosto, porque era o mês escolhido pelos marinheiros para zarpar à procura de novas terras. Aquelas que se arriscavam a subir ao altar neste oitavo mês do ano arriscavam-se também a ficar sozinhas, sem lua-de-mel e até mesmo sem o maridão, caso a caravela naufragasse.

A superstição de não se casar em agosto estendeu-se aos negócios, à mudança de casa e a qualquer coisa muito significativa. Ou se antecipava, ou se adiava. Para completar, um engraçadinho fez a rima e nós, os agostinos, nos danamos.

Já tentei reabilitar agosto algumas vezes, lembrando que neste mês também ocorrem coisas boas, as pessoas se aconchegam, nasce gente charmosa, temos um dia todinho para os pais, há flores que podem ser plantadas nestes dias em que o inverno começa a preparar sua bagagem para sair de cena.

Em agosto, por exemplo, planta-se a açucena, que inspirou Thiago de Mello a escrever estes versos lindos: “Quando acariciei o teu dorso,/ campo de trigo dourado,/ minha mão ficou pequena/ como uma flor de açucena/ que delicada desmaia/ sob o peso do orvalho./ Mas meu coração cresceu/ e cantou como um menino/ deslumbrado pelo brilho/ estrelado dos teus olhos”. Os poetas, felizmente, não silenciam em agosto.

O injuriado agosto é, na verdade, um mês de dias luminosos, de azul profundo no céu, de transição serena para a primavera em nosso hemisfério. Este mês que começa hoje pode ser bom ou mau, dependerá do que faremos para preencher os seus 31 dias.

Como advogado de defesa, abro com este habeas corpus preventivo na esperança de que os difamadores se contenham, esqueçam as rimas e as superstições. E façam como os navegadores portugueses: procurem descobrir novos mundos em agosto.


01 de agosto de 2009
N° 16049 - CLÁUDIA LAITANO


Otimismo vigilante

Em todos os relatos sobre famílias judias que abandonaram a Europa ainda no início dos anos 30, pouco antes de a situação realmente se agravar, sempre me surpreendeu a capacidade dessas pessoas não apenas para pressentir o perigo que se aproximava, mas também para abrir mão do conforto e da aparente segurança em nome de algo que, naquele momento, não passava de uma “intuição” histórica – a ascensão do nazismo e suas possíveis consequências.

Independentemente do curso que a história tomou, é curioso imaginar que exista uma variável mais decisiva do que a informação ou a disposição para deixar tudo para trás para explicar por que duas pessoas, diante do exato mesmo quadro, podem tomar atitudes tão extremas quanto abandonar o próprio país ou simplesmente não fazer nada e esperar.

Pessimismo ou otimismo inatos, uma inclinação de temperamento que nos leva para um ou outro lado em diferentes situações sem que a gente saiba exatamente por que, talvez influenciem nossa visão de mundo e nossas atitudes muito mais do que a gente imagina.
O exemplo de uma guerra pode parecer extremo, mas em um país como o Brasil infelizmente não são tão raras assim as situações em que somos obrigados a lidar com o peso de uma ameaça permanente sobre nossas famílias. Pergunte a qualquer criança com pouco mais de cinco anos do que ela tem medo e é provável que ela responda que não é do bicho-papão, mas de assaltante.

As notícias estão nos jornais todos os dias, e a maioria das famílias tem um caso relativamente próximo de violência, mas são poucos os que optam por medidas extremas como abandonar o país ou proibir os adolescentes de sair de casa à noite.

Talvez porque esse seja um tipo de medo que, para o bem e para o mal, todos aprendemos a incorporar ao nosso dia a dia – tanto os que veem perigo em tudo quanto os que insistem em superar os próprios temores. Ignorar o perigo é impossível, mas tornar-se prisioneiro dele é pior ainda.

A violência é uma ameaça difusa, da qual não podemos ter a ilusão de nos proteger lavando várias vezes as mãos ou cobrindo o rosto com uma máscara. Já a epidemia da gripe A nos oferece um inimigo com profilaxia conhecida – invisível, mas remediável. Para algumas pessoas, é reconfortante traçar estratégias para combater a gripe – nem todos os nossos problemas estão condicionados a um ciclo de vida de apenas sete dias.

Evidentemente, informação, canja de galinha e cuidados básicos para evitar a contaminação são necessários. Mas, de novo, talvez não seja uma escolha exclusivamente racional decidir-se entre o pânico e a serenidade. As pessoas simplesmente reagem de formas diferentes às ameaças: algumas com cautela, outras com alarme.

Como membro do time menos alarmista – por orientação inata para o otimismo (ainda que vigilante) e baseada no que a maioria dos especialistas têm dito até agora – lamento que as crianças não estejam voltando às escolas na próxima segunda-feira.

Perde-se a oportunidade de tratar a doença (e a saúde) em sala de aula, tumultua-se a rotina das famílias e o calendário escolar sem que isso traga, na minha opinião leiga, nenhuma garantia de que as crianças estão mais protegidas indo ao cinema, passeando no shopping ou brincando na casa do amiguinho. Ignorar o perigo é impossível, mas tornar-se prisioneiro dele pode ser pior ainda.

quarta-feira, 29 de julho de 2009



29 de julho de 2009
N° 16046 - MARTHA MEDEIROS


A turma do dããã

Tenho observado esse pessoal faz um tempo. Eles me provocam reações diversas: sinto repulsa, sinto medo, sinto desânimo, mas acho que a sensação que prevalece é mesmo a compaixão.

Porque eles são tão recalcados, que não conseguem se manifestar no mundo de outra forma. A única coisa que possuem para exibir é isso: seu espírito de porco.

Não é um defeito novo, mas ganhou um espaço de divulgação inimaginável na internet. Se antes eles exerciam seu espírito de porco em pequenos grupos, em comentários ferinos para meia dúzia de ouvidos, agora eles abusam da sua tolice em rede internacional para um público tão amplo, que os deixa embriagados com o alcance atingido. Eles são os neorretardados, os pusilâmines de grande escala.

Se você é uma pessoa de discernimento, que seleciona a informação que obtém, talvez ainda não tenha se deparado com eles. Sorte sua.

Mas se tiver curiosidade de saber como a coisa funciona, entre em qualquer site de notícias de um provedor, como a página do Terra, por exemplo, e dê uma olhada nos comentários deixados. É de perder a esperança num mundo mais elegante.

Pra exemplificar, nas últimas semanas o site colocou no ar duas notícias de segunda linha, que não chegaram a repercutir mais do que poucas horas. Uma delas era sobre uma garota de 18 anos que se jogou da Torre Eiffel, em Paris.

Chegaram a dizer que seria uma brasileira, mas era uma africana. Em poucos minutos, essa notícia gerou 1.581 comentários de gente lesada das ideias, cujo único prazer é fazer piadinha sobre a dor alheia, sem conseguir articular um raciocínio lógico.

Pessoas que têm na agressividade sua única forma de expressão. Foram 1.581 comentários que deixam clara a quantidade de infelizes espalhados por todos os cantos. Porque o espírito de porco nada mais é do que uma exposição despudorada de infelicidade. Como o cara não se suporta, detona com tudo o que vê pela frente.

No mesmo dia desse suicídio, foi noticiada também a estreia da primeira gondoleira de Veneza. Depois de séculos de hegemonia masculina, agora há uma mulher conduzindo turistas nas gôndolas da mais deslumbrante cidade italiana.

Fato que não mobiliza o mundo como a morte de Michael Jackson, mas é uma informação curiosa e simpática, que poderia gerar saudações a mais este espaço conquistado pelas mulheres, ou ser simplesmente ignorada, o que também é legítimo.

Mas não. Os espíritos de porco, sem ter nada mais produtivo pra fazer, deixaram registradas suas manifestações de preconceito, numa exibição constrangedora de estreiteza mental. Porque o espírito de porco não é apenas uma pessoa com o humor mal-lapidado. Ele é um ignorante com empáfia.

Se fossem poucos, nada a temer. Mas a tacanhice é uma epidemia bem mais assustadora do que qualquer gripe. Porque não é temporária e tampouco tem cura.

É o retrato do isolamento e da deseducação de uma geração recém saída das fraldas que, ao ter um teclado à disposição e o anonimato garantido, expõe toda sua miséria intelectual e afetiva. É a turma do “dããã” ganhando voz e propagando a mediocridade universal.

Aproveitem o dia. Uma excelente quarta-feira para você.

terça-feira, 28 de julho de 2009



28 de julho de 2009
N° 16045 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A menina do bonde

Era um domingo luminoso do inverno de 1958. Eu viajava num bonde Floresta rumo ao Abrigo da Praça XV, onde me transplantaria para o bom e velho Duque, rumo ao almoço em casa.

Acabava de assistir a um filme matinal no Cine Colombo, esplendidamente estrelado por Jacqueline François, e era com sua doce imagem vestida numa saia translúcida que eu sonhava quando um flagrante da vida real me despertou.

Bem na minha frente, no banco longitudinal oposto, o que um juiz severo chamaria de crime estava para ser perpetrado. Com infinita dissimulação, uma menina de seus 12 anos, magra e pobremente vestida, tentava roubar a carteira do belo tipo faceiro que sentava ao seu lado.

O sujeito era distraído pela própria natureza. Pagara a passagem ao cobrador abrindo de par em par a nutrida carteira para catar os trocados e depois a deixara descansar, convidativa, no bolso direito do sobretudo elegante. Era praticamente uma oferenda à menina que, todo mundo via, passava frio e fome.

Ela trajava um vestido curto e gasto, uma blusinha exígua de algodão e toda a imagem da miséria da humanidade. Com uma mirada rápida, localizou a carteira, estendeu os dedos ágeis e finos e ia pescá-la quando me viu.

Percebeu no exato instante que eu seguia seus gestos. Não fugiu o olhar de mim. Ela via um garoto de 13 anos, usando óculos, uma japona e uma dose apropriada de receio. Ela compreendeu, embora um pouco incerta, minha timidez. Ela mandou me dizer, em pensamento, que por favor a desculpasse, mas não tinha um centavo, não pusera nada na boca aquele dia e talvez sua mãe estivesse num hospital.

Foi pelo menos isso que eu entendi. De modo que me fixei nos cartazes do bonde, numa garota linda que não me dava bola, na paisagem transeunte da Avenida Cristóvão. Não me fixei mais na menina de 12 anos, em seus dedos ágeis, em sua dissimulação.

No Abrigo da Praça XV desci do bonde Floresta, tomei o Duque, em casa me esperava um almoço com salada de maionese, massa e galinha assada.

Jamais soube se a menina pobre de 12 anos obteve ou não o que desejava. Mas como não sou um juiz severo, bem dentro de mim mesmo torço até hoje para que tenha conseguido vencer seu desamparo.

sábado, 25 de julho de 2009



26 de julho de 2009
N° 16043 - MARTHA MEDEIROS


Eu não preciso de almofada

Quando participo de bate-papos públicos, geralmente em escolas, costumo ser perguntada sobre de onde vêm os assuntos para escrever uma crônica, e aqui está um bom exemplo do quão inusitado pode ser o caminho da inspiração: conversando outro dia sobre decoração de ambientes, um defensor da linha franciscana de morar me disse a frase que acabei de utilizar no título acima: “Eu não preciso de almofada”.

Ao escutá-lo, olhei para os lados, disfarçadamente. Estávamos cercados por mais ou menos 25 almofadas de todas as cores, tamanhos e origens. Na minha sala e escritório tenho quatro sofás (e mais dois na sacada) e todos eles são cobertos de almofadas indianas, nordestinas, uruguaias: minha casa é o albergue internacional das almofadas.

É só colocar o pé para fora de Porto Alegre e está feito: na bagagem, dobradinha, vem mais uma capa de almofada que trago do Rio, de Buenos Aires, de Gramado, de Fortaleza. É o que dispara meu lado consumista. Mas, claro, eu também não preciso de almofada.

Tampouco preciso de flores, mesmo que na minha casa nunca deixarão de ser encontrados ao menos três vasos com astromelias de cores variadas: amarelas, laranjas, fúcsias. E, no mínimo, duas orquídeas. Também gerânios que parecem pequenas margaridas. Alguns ficus, bromélias. E, quando o saldo da conta corrente permite, lírios brancos. Mas eu preciso de flores? Era só o que me faltava.

Também não preciso de tapetes. O fato de minha casa parecer uma loja turca é só para evitar desconforto aos que andam descalços. Não preciso de cortinas também, mas um dia encasquetei que a casa pareceria mais aquecida e acolhedora com elas, e aí gastei dinheiro bobamente com uns tecidos de linho cru e palha da índia. Frescura.

Também não preciso de música. Nem tenho lugar para guardar tanto CD. Coisa mais antiga, CD. Também não preciso de portarretrato, sei de memória o rosto das minhas filhas, mesmo o de quando elas eram crianças. Não preciso de castiçais, já que tenho energia elétrica.

Não preciso de estantes abarrotadas de livros, coisa mais inútil, e eles ainda acumulam pó. Não preciso de quadro: ninguém presta atenção mesmo e furar paredes é um troço que às vezes dá errado. Não preciso de esculturas.

Não preciso de abajur. Não preciso de espelhos. Não preciso de guardanapos de pano. Não preciso de toalhas estampadas. Não preciso de caixinhas compradas em feiras e briques. Não preciso de lembranças de viagem. Não preciso de lembranças. Não preciso de viagens.

E poderia prosseguir dizendo que não preciso de cor, não preciso de beleza, não preciso de sonho, não preciso de arte, não preciso de criatividade, não preciso de diversão, não preciso de prazer, não preciso de senso estético, não preciso de humor e também não preciso traduzir minha alma e minha história de vida em tudo o que me cerca. Mas isso equivaleria a dizer que eu não preciso de mim.

É isso, garotada. Até mesmo uma simples almofada pode gerar uma reflexão.

Ainda que com frio um domingo super colorido para você.


VERGONHA, ELE? NEM PENSAR

Gravações de conversas íntimas com prostituta e fotos de orgias na Sardenha mal atingem Berlusconi, que faz blague: "Nunca fui santo"

Duda Teixeira - Luca Bruno/AP



VERMELHO, MAS DE BRONZEADOR
O primeiro-ministro italiano é acusado de usar voos oficiais para transportar acompanhantes e de "frequentar menores"


Tudo o que você queria saber, e provavelmente muita coisa que preferiria continuar ignorando, já foi revelado sobre os hábitos íntimos de Silvio Berlusconi, o primeiro-ministro italiano.

Um resumo rápido: ele promove festas orgiásticas, gosta de múltiplas acompanhantes na cama, excede-se no bronzeador artificial, tem um agregado encarregado de encontrar garotas bonitas, anda com uma caixa de joias para premiar as favoritas e passa horas de vídeos com os próprios discursos antes de ir aos finalmentes. Usa maquiagem, mas não camisinha.

Ah, sim, ele também paga pela companhia e pelo sexo, certamente uma surpresa para quem acreditava que todas aquelas mulheres deslumbrantes à sua volta estavam interessadas nos cabelos naturalmente acaju e na pele cor de cenoura.

Acossado por nova onda de revelações na semana passada, ele jogou com a fama de malandro, que faz a alegria de seus simpatizantes, além de uma popularidade afetada em meros 4 pontos, e provoca repugnância entre seus opositores – todas as gamas da esquerda, até chegar a uma fatia da direita elegante, horrorizada com a ideia de que os nobres valores do pensamento liberal sejam defendidos por um sujeito como esse. "Não sou santo", provocou. "Acho que vocês já perceberam isso."

Ninguém jamais imaginou o contrário. Aos 72 anos e 6,5 bilhões de dólares, o Cavaliere é capaz de pedir para apalpar uma voluntária em meio às ruínas de um terremoto ou promover uma dançarina a ministra da Igualdade de Oportunidades, isso para não entrar nas histórias de cama.

Destas, uma das mais engraçadas é literal. Numa das conversas expostas por Patrizia D’Addario, loiraça de 42 anos que abriu o bocão, frustrada pela indiferença do primeiro-ministro ao projeto de construção de um condomínio (onde mais se veria a combinação de prostituta e empreendedora imobiliária?),

Berlusconi lhe pede que o espere na "camona", enquanto toma um banho. "A de Putin?", pergunta Patrizia. Ele confirma que a noite vai ser mesmo na cama presenteada, certamente com ulteriores intenções, pelo atual primeiro-ministro da Rússia.

A onda atual teve início quando Berlusconi foi à festa de 18 aninhos de uma de suas protegidas. A mulher, Veronica Lario, de quem vivia separado, estrilou, acusou-o de "frequentar menores" e pediu o divórcio. Concomitantemente, começaram a circular as imagens feitas durante dois anos pelo fotógrafo Antonello Zappadu, revelando cenas tórridas de Villa Certosa, a casa de Berlusconi na ilha da Sardenha.

O primeiro-ministro conseguiu impedir a circulação, invocando o direito à privacidade, mas como empresário de mídia deveria saber: tudo o que se tenta sufocar ressurge com mais força ainda.

As fotos apareceram em jornais estrangeiros, e mostram garotas com pouca roupa, algumas simulando atos sáficos, e homens com muito entusiasmo – entre os quais o então primeiro-ministro checo Mirek Topolanek, de cheque em riste. No clima de conta tudo, participantes das festas da Sardenha e dos jantares no Palazzo Grazioli, a residência oficial em Roma, começaram a revelar detalhes sórdidos.

Que Berlusconi não tem a menor preocupação com a liturgia do cargo é evidente, mas teria cometido crimes? Atualmente, está sob investigação o empresário Giampaolo Tarantini, que garimpava os talentos nacionais para frequentar as festinhas berlusconianas. Ele negociava valores e fazia o pagamento com envelopes. Pode ser indiciado por proxenetismo.

Berlusconi também pode se complicar pelo uso dos aviões oficiais para transportar as borboletinhas e até por crime contra o patrimônio – numa conversa gravada por Patrizia D’Addario, ele se jacta de ter encontrado em Villa Certosa tumbas fenícias datadas de 300 anos antes de Cristo. Outra prova de que num lugar que já viu tudo, como a milenar Itália, Berlusconi ainda consegue surpreender.

As borboletas do Papi

Todas o chamam de Papi, ganham joias com borboletas – o símbolo do partido de Berlusconi – e visitam a casa de praia na Sardenha ou o palácio oficial, em Roma. Muitas falam

AFP
Noemi Letizia

Tudo começou por causa dela. Berlusconi foi à sua festa de 18 anos, a mulher dele, Veronica, com quem vivia em separação consensual, soltou os cachorros e as revelações constrangedoras não pararam mais.

Berlusconi já deu cinco versões sobre o tipo de relacionamento que tem com a napolitana.


Os fatos: Noemi mandou um book de fotos para um amigo do primeiro-ministro e foi convidada a visitar a notória Villa Certosa. Com mais quarenta meninas












Barbara Montereale

Amiga de Patrizia e autodefinida como hostess, afirmou ter recebido o equivalente a 26 000 reais, em dois envelopes, por ter comparecido a uma festa de Berlusconi em Villa Certosa, além de colares, pulseiras e anéis em formato de borboleta.








Patrizia D’Addario

Profissional do sexo, 42 anos e um celular muito ativo, é responsável pelos detalhes mais íntimos.

Em conversas gravadas que entregou a um promotor público, comenta que um homem mais jovem já teria atingido o objetivo do encontro com mais antecedência e que não fazia sexo assim havia muitos meses.

Educadamente, Berlusconi sugere:

"Se me permite, acho que você deveria fazer mais sexo consigo mesma"

Entregou a promotores fotos dela e de amigas tiradas no banheiro da residência oficial do primeiro-ministro, em Roma Reprodução

Cristiane Segatto

O valor dos pequenos prazeres

A felicidade está nos 'micromomentos', sugere estudo de universidade americana

Na primeira volta, fiz uma descoberta deliciosa: o point dos namorados no Parque Villa-Lobos não é o viveiro de mudas, não é a sombra das árvores, não é um cantinho qualquer. É uma ribanceira com vista para a Marginal Pinheiros. É ali que os casais – abonados, pobres ou remediados – estendem toalhas no chão e fazem o tempo parar.

Como se estivessem no mais belo dos mirantes, contemplam o rio imundo e a passagem frenética dos carros. Precisei dar mais uma volta completa no parque até conseguir entender que prazer eles conseguiam enxergar.

Alinhei o meu olhar com o deles e respeitei o silêncio. O que se ouve é um "vrummmmm" contínuo e distante. Ele serve de fundo sonoro para uma experiência incomum: a de sair do palco da cidade para ser espectador. Quem passa a semana praguejando no trânsito da Marginal ganha, no sábado, a chance de olhar aquelas tantas pistas por uma outra ótica. De cima, como se não fizesse parte daquela engrenagem.

Os carros, o trem, o rio – nada daquilo parece real quando deitamos na grama e os observamos de longe. Concordo com os casais. Aquele lugar "dá um barato". E é romântico.

É admirável a capacidade dos moradores de São Paulo de encontrar a felicidade numa cidade tão dura. A explicação, para mim, só pode ser uma: esses heróis da resistência sabem enxergar o valor dos pequenos prazeres. Inventam oportunidades para que o prazer exista nos lugares mais improváveis.

Um carioca, numa rápida visita a São Paulo, não entenderia a felicidade dos casais que contemplam a Marginal Pinheiros como se estivessem nas Paineiras. Estranharia também a alegria da mulher apaixonada que ganha flores compradas no Cemitério do Araçá.

Sempre precisei de muito pouco para ser feliz. Coisas como namorar a noite inteira e, entre um cochilo e outro, reconhecer Neil Young tocando no aparelho três em um. Acordar ao meio-dia com uma fome de um mês. Caminhar pela rua plana até a feira de domingo. Comer dois pastéis com caldo de cana. A lembrança dessa felicidade vira-lata, que me inspira há tantos anos, vai durar para sempre.

Qual é o efeito terapêutico dos momentos felizes que acumulamos na vida? O senso comum nos diz que eles só podem fazer bem. Há quem se dedique a responder isso cientificamente. A professora de psicologia Barbara Fredrickson, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, tentou medir o valor dos pequenos prazeres.

Durante um mês, 86 voluntários relataram diariamente as emoções que sentiram, em vez de responder a questões genéricas, do tipo "Nos últimos meses, quanta alegria você sentiu?". O resultado foi publicado no mês passado na revista científica Emotion, publicada pela Associação Americana de Psicologia.

Quanto mais emoções positivas uma pessoa sentia a cada dia, mais acentuada era sua capacidade de se recuperar de situações difíceis ou estressantes, concluiu Barbara. "Pequenos momentos de prazer fazem florescer as emoções positivas. Elas nos tornam mais abertos", diz Bárbara. "E essa abertura para o mundo nos ajuda a construir recursos que favorecem a recuperação diante da adversidade, nos mantém longe da depressão e nos permite continuar a crescer."

Segundo o estudo, ninguém precisa adotar uma postura de Polyana e negar as decepções que a vida nos reserva. Nem achar que a felicidade seja decorrente apenas dos momentos grandiosos. As emoções positivas que produziram mais benefícios durante a pesquisa não eram derivadas de eventos extraordinários. "É preciso valorizar os 'micromomentos' que podem produzir uma emoção positiva aqui ou ali", diz Barbara.

Cada vez mais busco esses "micromomentos". Quando minha filha me mostrou no sábado que já era grande o suficiente para deslizar sobre patins in-line, vivi um desses "micromegamomentos". Ontem mesmo eu estava grávida. Hoje ela já é essa menina apaixonante que, equilibrada sobre as rodinhas, alcança meu ombro.

Quanto vale olhar aqueles longos cabelos ao vento, aquela franjinha que encobre as sobrancelhas grossas e retribuir o sorriso mais sincero que já vi? Como diz aquela propaganda de cartão de crédito, isso não tem preço.

Nas próximas três semanas estarei em férias. Espero desfrutar muitos "micromegamomentos" na serra, na praia e nas ruas de São Paulo. Adoro ter a chance de olhar minha cidade com olhos de turista.

Essa coluna volta em 21 de agosto. Agradeço aos meus queridos leitores pela bela parceria que construímos nesse primeiro semestre. Aprendi muito com os comentários, as críticas, as ideias e os elogios de vocês.

Espero voltar com o corpo descansado e os sentidos mais atentos. Volto para fazer jornalismo, uma das grandes razões da minha felicidade.

Lya Luft

Crime e Castigo

"Estamos levando na brincadeira a questão do erro e do castigo, ou do crime e da punição. Sem limites em casa e sem punição de crimes fora dela, nada vai melhorar"

Tomo emprestado o título do romance do russo Dostoiévski, para comentar a multiplicação dos crimes nesta cultura torta, desde os pequenos "crimes" cotidianos – falta de respeito entre pais e filhos, maus-tratos a empregados, comportamento impensável de políticos e líderes, descuido com nossa saúde, segurança, educação – até os verdadeiros crimes: roubos, assaltos, assassinatos, tão incrivelmente banalizados nesta sociedade enferma.

A crise de autoridade começa em casa, quando temos medo de dar ordens e limites ou mesmo castigos aos filhos, iludidos por uma série de psicologismos falsos que pululam como receitas de revista ou programa matinal de televisão e que também invadiram parte das escolas.

Crianças e adolescentes saudáveis são tratados a mamadeira e cachorro-quente por pais desorientados e receosos de exercer qualquer comando. Jovens infratores são tratados como imbecis, embora espertos, e como inocentes, mesmo que perversos estupradores, frios assassinos, traficantes e ladrões comuns. São encaminhados para os chamados centros de ressocialização, onde nada aprendem de bom, mas muito de ruim, e logo voltam às ruas para continuar seus crimes.

Ilustração Atômica Studio

Estamos levando na brincadeira a questão do erro e do castigo, ou do crime e da punição. A banalização da má-educação em casa e na escola, e do crime fora delas, é espantosa e tem consequências dramáticas que hoje não conseguimos mais avaliar. Sem limites em casa e sem punição de crimes fora dela, nada vai melhorar. Antes de mais nada, é dever mudar as leis – e não é possível que não se possa mudar uma lei, duas leis, muitas leis. Hoje, logo, agora!

O ensino nas últimas décadas foi piorando, em parte pelo desinteresse dos governos e pelo péssimo incentivo aos professores, que ganham menos do que uma empregada doméstica, em parte como resultado de "diretrizes de ensino" que tornaram tudo confuso, experimental, com alunos servindo de cobaias, professores lotados de teorias (que também não funcionam).

Além disso, aqui e ali grupos de ditos mestres passaram a se interessar mais por politicagem e ideologia do que pelo bem dos alunos e da própria classe. Não admira que em alguns lugares o respeito tenha sumido, os alunos considerem com desdém ou indignação a figura do antigo mestre e ainda por cima vivam, em muitas famílias, a dor da falta de pais: em lugar deles, como disse um jovem psicólogo, eles têm em casa um gatão e uma gatinha. Dispensam-se comentários.

Autoridade, onde existe, é considerada atrasada, antiquada e chata. Se nas famílias e escolas isso é um problema, na sociedade, com nossas leis falhas, sem rigor nem coerência, isso se torna uma tragédia. Não me falem em policiais corruptos, pois a maioria imensa deles é honrada, ganha vergonhosamente pouco, arrisca e perde a vida, e pouco ligamos para isso.

Eu penso em leis ruins e em prisões lotadas de gente em condições animalescas. Nesta nossa cultura do absurdo, crimes pequenos levam seus autores a passar anos num desses lixões de gente chamados cadeias (muitas vezes sem sequer ter havido ainda julgamento e condenação), enquanto bandidos perigosos entram por uma porta de cadeia e saem pela outra, para voltar a cometer seus crimes, ou gozam na cadeia de um conforto que nem avaliamos.

Precisamos de punições justas, autoridade vigilante, uma reforma geral das leis para impedir perversidade ou leniência, jovens criminosos julgados como criminosos, não como crianças malcriadas.

Ensino, educação e justiça tornaram-se tão ruins, tudo isso agravado pelo delírio das drogas fomentado por traficantes ou por irresponsáveis que as usam como diversão ou alívio momentâneo, que passamos a aceitar tudo como normal: "É assim mesmo".

Muito crime, pouco castigo, castigo excessivo ou brando demais, leis antiquadas ou insuficientes, e chegamos aonde chegamos: os cidadãos reféns dentro de casa ou ratos assustados nas ruas, a bandidagem no controle; pais com medo dos filhos, professores insultados pela meninada sem educação. Seria de rir, se não fosse de chorar.

Lya Luft é escritora


25 de julho de 2009
N° 16042 - NILSON SOUZA


Pergunta infalível

A segunda coisa de que mais gosto em minha amiga é a sua paciência. Ela ouve com abnegada atenção os relatos de meus problemas, não concorda nem discorda, e não transige nem mesmo quando percebe que estou implorando por solidariedade. Apenas pergunta:

– E o que a gente aprende com isto?

É a primeira coisa de que mais gosto nela. Sua indagação é ao mesmo tempo afetiva e profissional. Quando fala “a gente”, está dizendo sutilmente que está ao meu lado. Ao colocar o ponto de interrogação, porém, está me estimulando a pensar, a reagir, a buscar dentro de mim a solução para dúvidas e impasses, está sugerindo com convincente habilidade que sou capaz de dar a volta por cima de qualquer coisa. Sempre saio revigorado desses diálogos.

Se pudesse, transferiria esta técnica terapêutica para o país.

Tenho observado muita gente desanimada com o que lê e com o que ouve de seus representantes políticos. É tal o desencanto que as pessoas passam a colocar todos no mesmo saco, concluem que não tem jeito mesmo, que os poderosos continuarão usando o poder para se beneficiar, para empregar parentes, para gastar o dinheiro do contribuinte em mordomias.

Todo dia tem um escândalo novo nas manchetes e seus protagonistas não apenas permanecem impunes como voltam a ser eleitos, em alguns casos chegando mesmo a aparecer na capa dos jornais abraçados a antigos desafetos. Já ninguém mais consegue distinguir quem é quem. Dá mesmo vontade de desistir desta tal democracia. Pois, ainda assim, cabe a pergunta infalível:

– E o que a gente aprende com isto?

A resposta, como ensina minha querida amiga, está dentro de nós. Cada um de nós tem que descobrir o que pode fazer para o país aprimorar seus padrões de decência. Talvez tenhamos que começar por casa, pela educação das nossas crianças, pela construção de novos padrões morais.

Talvez tenhamos que expurgar de nossas vidas o tal jeitinho brasileiro, que justifica a informalidade mas também estimula a esperteza. Talvez tenhamos que sair às ruas para protestar coletivamente.

Talvez tenhamos que reaprender a utilizar o voto como forma efetiva de seleção dos nossos representantes políticos. Talvez seja hora de buscar caminhos ainda não trilhados.

Só não podemos desistir do direito de fazer nossas próprias escolhas. Se renunciarmos a isso, alguém vai escolher por nós.

quarta-feira, 22 de julho de 2009



22 de julho de 2009
N° 16038 - MARTHA MEDEIROS


Castidade fashion week

Há 15 anos, publiquei minha primeira crônica em Zero Hora. Nem imaginava a possibilidade de ser uma colunista fixa. O convite foi para escrever uma vez e fim, mas não foi o fim, e sim o começo de uma carreira que se mantém até hoje. Lembro bem do texto.

Foi inspirado numa reportagem de revista em que algumas atrizes diziam que pretendiam se casar virgens. Manchete da capa: “A virgindade na moda de novo”. Aquela matéria me pareceu um desserviço às mulheres: como assim, a virgindade na moda de novo? Castidade fashion week? E os rapazes iriam adotar essa moda também?

Mesmo sendo uma alienígena para os leitores, sem jamais ter escrito uma única linha para jornal, estreei atirando: condenei a papagaiada.

Disse que se uma mulher quisesse se manter virgem até o casamento, era uma escolha pessoal, íntima e legítima, mas a imprensa alardear o fato como tendência de comportamento era menosprezar as conquistas de toda uma geração que lutou muito pelo nosso direito à independência e ao prazer. Como ficar quieta ao ver o sexo ameaçado de voltar a ser um dote nupcial?

Pois passados esses 15 anos, retomo o assunto, agora inspirada na pastora Carol, que vem a ser Caroline Celico, esposa do jogador Kaká, que anunciou que irá abrir uma igreja Renascer em Cristo em Madri, pelo visto atendendo a um desejo do Senhor, segundo recente depoimento.

“Como pode no meio da crise alguém ter dinheiro? O dinheiro do mundo tem que estar em algum lugar. E Deus colocou esse dinheiro na mão de quem? Do Real Madrid, para contratar o Kaká. Foi uma grande bênção”.

Pois essa inocência em pessoa também vem pregando a valorização da virgindade, fazendo inclusive revelações sobre os detalhes do dia em que declarou a Kaká que pretendia se casar virgem. Segundo ela, Kaká a ouviu e, depois de um prolongado silêncio, disse que esse era o sinal divino que esperava para ter certeza de que ela era a mulher da sua vida.

É a história particular de um casal e ninguém tem nada a ver com isso, mas assistir a essa linda moça quase em transe, ao lado da bispa e chave-de-cadeia Sonia Hernandes, perpetuando preconceitos já vencidos (o vídeo está circulando pela internet para quem quiser conferir), me faz bater nas mesmas teclas de outrora: devagar, pastora Carol.

Você é esposa de um ídolo de massa, incluindo nessa massa muitas mulheres e homens mal informados. Assim como a gandaia em que vivem alguns jogadores não deve servir de exemplo para ninguém, a carolice (desculpe o trocadilho) também não.

O período do namoro serve justamente para se conhecer melhor a pessoa com quem, a priori, desejamos passar o resto dos nossos dias. E a compatibilidade sexual é um dos fatores decisivos para o sucesso de uma união.

Deixar para testá-la depois de consumado o casamento pode ser romântico, mas é um risco. Sexo não é pecado, e sim um impulso natural, e dos bons. Quando reprimido, gera radicalismo, tara, violência e histeria.

Depois de as mulheres terem vivido tanto tempo oprimidas na sua sexualidade, hoje elas finalmente administram seus desejos de uma forma adulta, responsável e livre. Retroceder, a essa altura, é que não tem perdão.

Aproveite o dia - Uma ótima quarta-feira para você.

terça-feira, 21 de julho de 2009



21 de julho de 2009
N° 16037 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Pane no computador

Meu computador mergulhou de novo em nocaute. Um fio, uma tomada, um circuito – não sei qual deles – entrou em queda livre e interrompeu o diálogo dos delicados mecanismos da máquina. Convoquei experts de minha agenda de pronto socorro, mas nenhum deles mostrou-se capaz de penetrar no mistério da pane. Fato que me levou a algumas reflexões baldias.

Em 1964, eu estava no segundo ano do Curso de Direito. De repente, o que até a véspera eram solidíssimas verdades ruiu por terra. O que eu aprendi sobre a Constituição, as leis, a democracia, as liberdades individuais e coletivas, a soberania do povo exercida pelo voto, ou virou pó, ou transformou-se num arremedo de instituições. Os novos donos da República cassavam, prendiam, exilavam, proibiam, calavam, sem que poder algum fosse capaz de contrastar a sua força.

Essa ditadura, que fez de minha geração um sanduíche, se repete hoje, guardadas as proporções, na opressão da tecnocracia. Tudo começou com um pacote pedagógico encomendado do Primeiro Mundo, onde já estava abandonado por se ter provado inservível.

O predomínio da educação humanística – em cuja receita entravam a Filosofia e o Latim – cedeu lugar ao ensino especializado. Isso quer dizer que um estudante que lidasse com Física, Química ou Matemática estava absolvido de se preocupar com matérias como a Sociologia ou o Francês.

As escolas começaram a fornecer diplomas a especialistas em minúcias, e todo um imenso legado de humanismo foi para o brejo. Um projeto de médico radiologista ou de engenheiro eletrônico já não precisava saber quem fosse Sócrates, Platão ou Aristóteles.

Ao mesmo tempo, prefeitos e governadores não necessitavam perder o sono por causa de votos, e quando o Parlamento não era submisso o bastante havia uma solução simples: fechá-lo.

O que isso tem a ver com os piripaques não consertados de meu computador? Muito. Quando a formação ensina como ver as árvores, mas não a floresta, qualquer desafio à inteligência e à criatividade esbarra no obstáculo das receitas não decoradas.

Um parafuso fora do lugar transforma-se no desafio da Esfinge: decifra-me ou devoro-te. Raciocinar torna-se um luxo. Uma pane que fuja às normas conhecidas converte-se num enigma insondável. Em outras palavras, as pessoas andam esquecidas de pensar.

Uma ótima terça-feira para você especialmente minha amiga

quarta-feira, 15 de julho de 2009



15 de julho de 2009
N° 16031 - MARTHA MEDEIROS


O resgate da normalidade

A foto dá a entender que Obama está olhando o bumbum da menina de 17 anos que posou com os integrantes do G-8 na Itália, mas um vídeo da cena mostra que na verdade ele estava se virando para ajudar uma outra moça a descer as escadas, ou seja, um cavalheiro, e não um malandro. Mas lamentei o tira-teima. Queria que Obama estivesse, sim, olhando pro derrière da moça. Por quê? Porque seria mais um capítulo da minissérie Obama, o resgate da normalidade.

Obama é presidente dos Estados Unidos, cargo que automaticamente o coloca num pedestal, mas ele não faz o tipo que se empina. E o fato de ser o primeiro presidente negro do país lhe confere um status de pioneiro, mas ele tampouco fatura em cima desse pioneirismo. Age como qualquer preto comum ou qualquer branco comum: sendo comum. E é isso que o torna moderno.

Obama tem uma mulher que poderia ser a vizinha da porta ao lado e tem filhas que sempre sonharam em ter um cachorrinho, em vez de, sei lá, um tigre branco siberiano. Obama mata moscas, senta em escadas, tem dificuldade em parar de fumar e olha para traseiros femininos, e se não olhou naquele dia, olhará certamente em outros, discretamente, sem nenhum desprestígio à senhora sua esposa. Homens comuns fazem isso.

Pressinto no ar uma valorização da trivialidade descomprometida, aquela que existia antes da praga do politicamente correto, antes da avalanche de revistas de fofocas e antes dessa era em que tudo parece um grande teatro. Não me excomungue, mas vou ser mais uma a seguir falando do Michael Jackson.

Domingo passado eu esperei o Fantástico terminar só para ver as cenas dos vídeos caseiros onde o cantor aparecia caindo na piscina de roupa e tudo, fazendo guerrinha de bexiga d’água com os amigos, abrindo presentes de Natal e planejando comer um frango com farofa (a farofa é invenção minha, para tornar a cena ainda mais prosaica), ou seja, vivendo sua infância retardatária, mas, ainda assim, vivendo, e não representando.

Sujava-se, molhava o cabelo e gritava “eu vou te matar!” às gargalhadas, em meio a brincadeiras. Num tempo em que celebridades saem direto do palco para o museu de cera, eram imagens desfocadas de alguém normal se divertindo. Extra, extra!

A revista Quem possui uma seção que se chama algo como “Eles são como nós”, onde mostra fotos de famosos comprando aspirina na farmácia, fazendo sinal para um táxi num dia de chuva ou limpando a lente dos óculos na barra da camiseta, como se os desmascarasse: veja, eles não passam o dia todo dentro de um ofurô! Legal.

Assim fica mais fácil virar notícia. É só trocar o champanhe pela água do bebedouro, ser flagrado abocanhando um hambúrguer triplo com a maionese escorrendo entre os dedos, usar a balança do supermercado para se pesar, catar moedinha na hora de pagar o pedágio e comer frango com farofa. Aquela farofa que sempre faz falta quando o mundo fica besta demais.

terça-feira, 14 de julho de 2009



14 de julho de 2009
N° 16030 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Perder e achar

Tem coisas que só são achadas para serem perdidas.

Encontrei em uma casa de câmbio de Ciudad Vieja, em Montevidéu, uma libra esterlina do ano de 1918. Era perfeita, com o retrato do Rei, com aquela solidez do Império Britânico, com aquela perfeição de traços e linhas que nunca mais surpreendi em nenhuma moeda de país algum do mundo.

O dono da loja pedia uma pequena fortuna por ela. Mas eu havia ganho na véspera outra pequena fortuna no cassino do Parque Hotel, de modo que nem regateei. Paguei por aquela preciosidade cada dólar que me pediam – e mais gastaria se mais me houvessem cobrado.

Pois bem; esses dias resolvi revê-la e não a localizei. Aconteceram nos últimos anos algumas mudanças – e não é impossível que entre um apartamento e o seguinte ela se tenha extraviado.

Não me queixo. Já perdi outras coisas, aí incluído um exemplar de Os Lusíadas que comprei num sebo. Era para ter arrematado uma coleção de romances portugueses, começando, é claro, por Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco. Só que veio junto, de contrabando, uma estropiada cópia da obra de Camões.

Creio que foi a primeira vez que li com gosto a narrativa inteira, me demorando no episódio de Inês de Castro. E então veio outra mudança e sumiram Os Lusíadas, sumiu a linda Inês posta em sossego.

Desde que dei noção de mim mesmo, ouvia meu avô dizendo: “Este relógio será de meu neto mais velho”. Meu avô era um senhor cumpridor da palavra, de modo que ganhei a joia ao completar oito anos.

Minha mãe entendeu que eu não tinha ainda a idade para portar semelhante raridade, de modo que a guardou numa gaveta de sua cômoda. Sucedeu que morávamos no térreo de um edifício – e não demorou fomos visitados por amigos do alheio. Resultado: me levaram o relógio, de que nunca mais tive remota notícia.

A vida é assim. Como falei no início, tem coisas que só são achadas para serem perdidas. É como o amor: você jura que durará uma eternidade, momentaneamente esquecido de que ela é construída de mínimos segundos.

Uma excelente terça-feira pra você. Quem te conhece sabe...