sábado, 7 de novembro de 2009



Buffett e seu novo brinquedo

No maior negócio de sua carreira, o megainvestidor compra a principal ferrovia dos Estados Unidos – uma aposta no futuro dos trens e da economia americana

Luís Guilherme Barrucho - Ilustração Rob



Tal como seus antepassados, que recorreram às ferrovias para desbravar o Oeste dos Estados Unidos no século XIX, Warren Buffett decidiu investir seu futuro nos trens. Apostou alto. Na semana passada, o empresário de 79 anos realizou o maior negócio de sua carreira ao comprar a totalidade das ações da principal ferrovia do país, a Burlington Northern Santa Fe, por 26,3 bilhões de dólares.

Dono de um repertório de frases cáusticas, Buffett afirmou logo após o anúncio da aquisição: "Isso só está acontecendo porque meu pai não quis me comprar um trenzinho quando eu era criança".

Longe de ser motivada por uma frustração infantil, a investida de Buffett deverá render polpudos lucros a seus acionistas. Em primeiro lugar, porque a recuperação da economia americana elevará a demanda por transportes de carga. Além disso, o encarecimento do petróleo e a busca por alternativas menos poluentes tornarão o frete ferroviá-rio ainda mais vantajoso em relação ao rodoviário.

"Coloquei todas as minhas fichas no futuro da economia americana", disse Buffett ao fechar a transação. É um voto de confiança de um dos mais visionários investidores do mundo não apenas em seu país, mas também na retomada de um setor que havia perdido importância desde a popularização dos veículos e aviões.

As ferrovias perderam gradativamente espaço. Atualmente, enquanto os caminhões carregam 68% das mercadorias que circulam nos Estados Unidos, os trens restringem-se a 15%. No Brasil, que optou pelo modelo americano de estímulo à indústria automobilística na década de 50, os trilhos também foram desprezados. Desde aquele período, a extensão da malha diminuiu 30%.

Agora os Estados Unidos – e também o Brasil, onde os investimentos decuplicaram depois das privatizações feitas na década passada – voltam a se render aos trens. Contribui para essa redescoberta o fato de que as locomotivas ganharam tecnologia e velocidade, além de ser o meio mais barato de transportar grandes quantidades de mercadorias dentro do território de um país.

Segundo a Association of American Railroads, com um galão de combustível (3,8 litros) um trem movimenta 1 tonelada de carga por 740 quilômetros. Em caminhões, essa distância cai para 180 quilômetros.

"As ferrovias tornaram-se mais atrativas ao oferecer um bom retorno financeiro aliado à preocupação ambiental", afirma Rodrigo Vilaça, diretor executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários.

O investimento também cabe na estratégia de Buffett, que prefere alocar seus recursos em atividades tradicionais – ele nunca aplicou em companhias de internet, por exemplo – e que sejam bem administradas.

Diz Paulo Fernando Fleury, da UFRJ: "A Burlington Northern mudou a forma de gerenciar ferrovias nos Estados Unidos. Ela incorporou a lógica do mercado ao aprimorar a qualidade do serviço e a eficiência de custos". Isto é, o tipo de brinquedo que hoje faz a alegria de Buffett.


Drummond antes Drummond

Um original redescoberto de Carlos Drummond de Andrade, com 25 poemas escritos nos anos 1920 e comentários de seu próprio punho, apresenta um poeta convencional, quase desprovido de humor – mas com fagulhas da inovação que marca sua obra posterior

Marcelo Bortoloti - Reprodução/Strana - CANÇÕES DA INEXPERIÊNCIA

O jovem Carlos Drummond de Andrade: poema sobre um elevador e versos sem "sinceridade sexual"



Carlos Drummond de Andrade tinha 28 anos quando conseguiu publicar seu primeiro livro, Alguma Poesia, em 1930. Foi uma edição modesta, com 500 exemplares, paga pelo próprio autor. Essa obra, que tinha poemas como No Meio do Caminho, Quadrilha e Poema de Sete Faces, mudou os rumos do modernismo no país. Para Manuel Bandeira, foi o suficiente para colocá-lo de imediato entre os três ou quatro maiores poetas do Brasil.

Num texto de 1958, Bandeira se pergunta: "Como chegou ele a tamanha destreza?". Em seguida, responde: "Conheço um pouco o segredo dela pela leitura de um livro seu que nunca foi publicado – Os 25 Poemas da Triste Alegria. O estilo do livro sabe àquela sutileza própria do setor Ronald-Guilherme (os poetas Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida), no modernismo incipiente".

O original dessa obra, de 1924, estava desaparecido. Alguns estudiosos chegavam a duvidar de sua existência. Há quatro anos, o acadêmico Antonio Carlos Secchin, professor de literatura da UFRJ e especialista em poesia brasileira, conseguiu localizá-lo. Ele comprou o original de um amigo do poeta, cujo nome se comprometeu a não divulgar. Agora, com aval da família, pretende publicá-lo em versão fac-similar.

Os 25 poemas foram escritos no começo dos anos 1920. Doze são inéditos, e os demais foram publicados esparsamente em jornais da época como o Diário de Minas. Nesse período, Drummond acabara de mudar-se para Belo Horizonte. Ali, conheceu Dolores Dutra de Morais, com quem se casaria em 1925, e ingressou na faculdade de farmácia (chegou a se formar, mas nunca exerceu a profissão).

Ao mesmo tempo, cultivava laços com os círculos modernistas de outras capitais. Em 1924, começou a se corresponder com os poetas Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Foi nesse mesmo ano que Drummond pediu a Dolores, ainda sua namorada, que trabalhava como contadora numa fábrica de sapatos, para datilografar 25 poemas escolhidos.

Ele mandou encadernar um único exemplar e o deu a Rodrigo Melo Franco de Andrade, amigo quatro anos mais velho que morava no Rio de Janeiro, então capital da República, e tinha bons contatos que poderiam ajudar na publicação da obra.

Nesses poemas, Drummond já usa o verso livre (embora ainda se declarasse admirador do parnasiano Olavo Bilac) – mas sem a "destreza" de que falava Bandeira. Sua temática são as musas esvoaçantes, o anoitecer, a angústia pela passagem do tempo. "São poemas penumbristas", define Antonio Carlos Secchin, referindo-se a um movimento secundário da literatura, associado ao simbolismo, e de forte influência francesa.

Em correspondência de novembro de 1924 a Mário de Andrade, o poeta se queixa: "Nasci em Minas quando devera nascer (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado".

As imagens são dolorosamente convencionais: em Matinal, associam-se os seios brancos da amada aos lírios – que reaparecem em um verso particularmente infeliz de Canção do Grego Desencantado: "vós, que tínheis o corpo branco como um lírio".

Drummond ainda não apresentava o tratamento irônico da tradição literária que se perceberá mais tarde. Ocasionalmente, porém, fulguram esboços daqueles sintéticos flagrantes urbanos que marcariam Alguma Poesia: "Meninos atiram pedras nos lampiões / e, nos lampiões, / sorri o olho tímido do gás".

E Drummond já revela um fetiche particular: "Tuas pernas, desnudas, me fugiam", diz no poema Sensual. Em Poema de Sete Faces, de Alguma Poesia, o fetichismo multiplica-se: "O bonde passa cheio de pernas / pernas brancas pretas amarelas".


Quer gastar menos? Use notas de R$ 100

Pesquisadores dizem que pessoas que andam com notas de valores altos no bolso pensam duas vezes antes de gastar

ECONOMIZANDO SEM PERCEBER

Segundo os pesquisadores, quem anda com notas de valores maiores tendem a gastar menos

Você quer parar de gastar dinheiro? Os pesquisadores da Universidade de Maryland anunciaram um método bem simples: ande com uma nota de grande valor no bolso.

Segundo o estudo, que será publicado no Journal of Consumer Research, os consumidores são menos propensos a gastar seu dinheiro quando têm em mãos notas de valores altos. Por meio de uma série de experimentos, o estudo mostrou que as pessoas que tinham notas de maior valor no bolso conseguiam controlar melhor o impulso de comprar do que aquelas que andavam com valor equivalente, mas de notas menores.

Mas qual o motivo disso? A primeira hipótese é que as pessoas veem uma nota maior como algo "sagrado". Essas notas acabam sendo supervalorizadas pelos consumidores, que a seguram por mais tempo em seus bolsos.

Uma outra conclusão é a de que os consumidores temem que, ao começarem a gastar uma importância alta, eles não conseguirão parar de gastar o restante do valor. Ou seja, se você tiver US$ 100 e gastar US$ 20, não irá se contentar até gastar os US$ 80 restantes.

O teste foi aplicado também na China. Lá, 150 donas-de-casa receberam 100 yuans que poderiam ser economizados ou gastos em produtos de higiene ou para a casa. Metade das mulheres recebeu os 100 yuanes em uma nota única.

Outra metade recebeu em notas 50, 20 e 10 yauns. Mais de 90% das mulheres que receberam as notas menores gastou o dinheiro. Entretanto, apenas 80% das mulheres que receberam apenas uma nota gastaram o dinheiro.

Resta saber se com a crise mundial os consumidores terão o luxo de guardar em suas carteiras as notas com valores mais altos. Outra pergunta importante para ser respondida em outros estudos é se as pessoas tendem a gastar mais quando usam o "dinheiro de plástico", os cartões de crédito e de débito.


Como os cegos diferenciam as notas de dinheiro?

As cédulas de real apresentam diferenças perceptíveis no tato apenas quando estão novas. O Banco Central deve adotar modelo estrangeiro para que os cegos consigam identificar melhor os valores. O braile não é uma opção viável
Laura Lopes

Real As notas apresentam apenas marcas de relevo

Em qualquer lugar do mundo é possível reconhecer o valor das notas de dinheiro. Seja na Índia, na China ou nos Estados Unidos, e nem precisa saber a língua nativa, nem mesmo ser alfabetizado. Só há uma exceção para essa regra: os deficientes audiovisuais.

Como eles contam dinheiro? Aqui no Brasil, as moedas da segunda família (a segunda geração de moedas de real) possuem tamanhos e espessuras diferentes, algumas são serrilhadas nas bordas, justamente para serem diferenciadas por meio do tato. Já as cédulas têm marcas de relevo que se perdem com o uso.

"Essas marcas são pouco perceptíveis, principalmente para os mais idosos. E, com o tempo, as notas vão perdendo o relevo", diz Regina Fátima Caldeira de Oliveira, deficiente visual e coordenadora da Revisão dos Livros Braille da Fundação Dorina Nowill, de São Paulo.

Euro Cada valor tem um tamanho diferente, obedecendo à regra de quanto maior o valor, maior o tamanho. A nota também apresenta marcas táteis em relevo

A primeira solução que vem à cabeça é a inserção de caracteres em braile nas notas. Essa, no entanto, é uma saída pouco útil: o braile sairia com o desgaste das cédulas, assim como acontece com as marcas de relevo atuais. "Além disso, o braile é lido por muitas pessoas cegas, mas não por todas.

A gente não quer braile nas notas", afirma Regina, que participou de reuniões com o Banco Central e a Casa da Moeda com entidades representativas dos deficientes visuais do país, para encontrar uma solução viável e prática para o problema.

O BC comunga a opinião da Fundação Dorina. Segundo João Sidney, do chefe do departamento de Meio Circulante, "a tecnologia de impressão não tem sobrevida. Na terceira manipulação da nota, o braile já acaba".

Apesar da concordância, pouca gente sabe que o braile não é o melhor caminho a seguir. No dia 27 de outubro, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) encaminhou um ofício à Casa da Moeda solicitando informações sobre a viabilidade técnica para implantação desse sistema de leitura nas cédulas e moedas do país.

A proposta, feita pelo conselheiro do Amazonas Edson de Oliveira, tem a melhor das boas intenções, em defesa dos direitos dos cegos, já que os mesmos não têm acesso à leitura das notas. Mas não funciona. "Há quem faça isso para melhorar e ajudar, mas devia falar com pessoas que lidam com o problema diriamente e que podem ter a melhor proposta", diz Regina.

Austrália As notas têm tamanhos diferentes e são reconhecidas por meio de um gabarito

Entre as propostas sugeridas nas reuniões entre as entidades e o governo, a que mais agrada Regina é o modelo adotado na Austrália e nos países que fazem parte da União Europeia (e usam o euro).

Lá, as notas possuem tamanhos diferentes, crescendo à medida que o valor aumenta. O portador de deficiência visual recebe uma espécie de gabarito que indica o valor da nota, em braile. Ao colocar a nota dentro desse gabarito, sua ponta vai cair sobre o valor correspondente a ela. Serve mais para quem ainda não decorou o tamanho das notas ou não está acostumado àquela moeda.

Canadá Além das notas terem furinhos arranjados de formas diferentes para cada valor (à dir.), um aparelhinho lê a nota e emite um sinal diferente para cada valor, por meio de voz, som ou vibração

Na opinião do BC, no entanto, o modelo canadense é que deve vigorar no Brasil. Segundo o chefe do departamento de Meio Circulante do Banco Central, não é necessário mexer no design ou tamanho do dinheiro. "O Canadá insere nas notas uma tinta invisível diferente para cada valor e distribui um aparelhinho subsidado que reconhece o magnetismo da tinta e emite um sinal para cada valor", afirma João Sidney.

Trata-se de um aparelho pequeno, que pode ser levado no bolso e distribuído gratuitamente pelo Canadian National Institute for the Blind. Sobre o gabarito, adotado pelos australianos e europeus, Sidney diz que não é a melhor solução e, como o reconhecimento é feito pelo tato, pode levar a erros de interpretação.

"Eu apostaria nessa tecnologia sonora", diz. Só não se sabe quando ela entrará em vigor.


07 de novembro de 2009 | N° 16148
NILSON SOUZA


Milagres

Meu calendário de mesa tem uma frase de Albert Einstein, ou atribuída a ele, pois hoje ninguém mais pode ter certeza de autenticidade alguma. De qualquer maneira, é um jogo de palavras tão bem-feito, que deve ter sido mesmo elaborado por uma mente brilhante.

Diz: “Existem apenas duas maneiras de ver a vida. Uma é pensar que não existem milagres e a outra é que tudo é um milagre”. Gostei da citação e resolvi mostrá-la a um colega de trabalho. Ele olhou distraído para a cartolina que eu tinha nas mãos e exclamou assustado:

– Meu Deus, já é novembro!

Também me espantei. Nem tinha percebido que o ano já está quase dobrando a esquina. A gente olha os dias e não vê o mês. Pensei: pode ser mesmo que tudo seja um milagre, mas passa depressa demais. Novembro sempre me causa desconforto, pois precede aquela reta final do ano em que as pessoas ficam ensandecidas, querem ir a todas as festas, querem comprar tudo o que veem, sentem-se obrigadas a dar presentes, correm mais no trânsito, estressam-se demasiadamente.

Final de ano é tempo de bipolaridade, de euforia e depressão. Sei que tudo é relativo – como diria o autor da frase –, há quem ame a agitação, mas costumo ficar desnorteado com tanto compromisso e tanta pressão. Se eu pudesse fabricar o meu próprio milagre de fim de ano, reeditaria uma cena de um dos filmes da série Super-Homem, aquela em que o herói voador faz o planeta girar ao contrário para o tempo retroceder.

Nem precisaria voltar muito. Eu nem usaria meus superpoderes para recuperar as alegrias da infância ou as aventuras da juventude. Bastaria retornar alguns dias neste calendário de papel, talvez até o início da primavera, só para que as pessoas reduzissem o ritmo de seus passos e a marcha de seus corações.

Temos pressa de quê?

Se não existem milagres, é bom que façamos as coisas devagar e bem-feitas, já que a construção do mundo depende da nossa inteligência e da nossa capacidade de realizar. Se tudo é fruto de um prodígio acima da nossa compreensão, de um sopro no barro ou de uma explosão galáctica, mais razão ainda para curtir com gosto e prazer a parte que nos toca.

Como não posso parar o planeta, nem fazer a vida recuar, faço o que está ao alcance de minhas mãos e retrocedo duas folhas do calendário. Encontro em setembro uma frase de Santo Agostinho – ou atribuída a ele, sempre é bom frisar – que talvez seja a resposta para esta angustiada reflexão: “Não há lugar para a sabedoria onde não há paciência”.

Tudo bem. Só não me obriguem a correr também.

sábado, 31 de outubro de 2009



01 de novembro de 2009
N° 16142 - MARTHA MEDEIROS


O último a lembrar de nós

REcentemente li Rimas da Vida e da Morte, do excelente Amós Oz, que narra os delírios de um escritor que, ao participar de um sarau literário, começa a olhar para cada desconhecido na plateia e a criar silenciosamente uma história fictícia para cada um deles, numa inspirada viagem mental. Lá pelas tantas, em determinado capítulo, o autor comenta algo que sempre me fez pensar: diz ele que a gente vive até o dia em que morre a última pessoa que lembra de nós.

Pode ser um filho, um neto, um bisneto ou um admirador, mas enquanto essa pessoa viver, mesmo a gente já tendo morrido, viveremos através da lembrança dele. Só quando essa pessoa morrer, a última que ainda lembra de nós, é que morreremos em definitivo, para sempre. Estaremos tão mortos como se nunca tivéssemos existido.

Pra minha sorte, tive poucas perdas realmente dolorosas. Perdi um querido amigo há mais de 20 anos, e perdi uma avó que era como uma segunda mãe. Lembro deles constantemente, sonho com eles, busco-os na minha memória, porque é a única homenagem possível: mantê-los vivos através do que recordo deles.

Daqui a 100 anos, ninguém mais se lembrará nem de um, nem de outro, eles não terão mais amigos, netos ou bisnetos vivos, eles estarão definitivamente mortos, e pensar nisso me dói como se eles fossem morrer de novo.

Aquele que compõe músicas, faz filmes, escreve livros, bate recordes ou é um Pelé, um Picasso, um Mozart, consegue uma imortalidade estendida, mas, ainda assim, será sempre lembrado por sua imagem pública, não mais a privada, não mais a lembrança da sua voz ao acordar, da risada, do bom humor ou do mau humor, não mais daquilo que lhe personificava na intimidade.

Serão póstumos, mas não farão mais falta na vida daqueles com quem compartilharam almoços, madrugadas, discussões, já que essas testemunhas também não estarão mais aqui.

Alguém me disse: se você acreditasse em reencarnação, nada disso te ocuparia a mente. De fato, não acredito, e mesmo que eu esteja enganada, de que me serve a eternidade sem poder comprová-la? Se sou um besouro reencarnado ou se já fui uma princesa egípcia, que diferença faz? Minha consciência é que me guia, não minhas abstrações. Sou quem sou, sou aquela que pode ser lembrada. Não me conforta ser uma especulação.

É provável que ainda não tenha nascido aquele que será o último a me recordar, a rever minhas fotos, a falar bem ou mal de mim. Nem tive netos ainda. Qual será a data de minha morte definitiva? Não será a do meu último suspiro, e sim a do último suspiro daquele que ainda me carrega na sua lembrança afetiva – ou no seu ódio por mim, já que o ódio igualmente mantém nossa sobrevivência. Cafajestes e assassinos também se mantêm vivos através daqueles que lhes temeram um dia.

Nessa véspera de Finados, queria fazer uma homenagem a ele: ao último ser humano a lembrar de nós, a ter saudade de nós, a recordar nosso jeito de caminhar, de resmungar, o último a guardar os casos que ouviu sobre nós e a reter nossa história particular.

O último a pronunciar nosso nome, a nos fazer elogios ou a discordar de nossas ideias. O último a permitir que habitássemos sua recordação. Bendita seja essa criatura, que ainda nos manterá vivos para muito além da vida.

Bendita seja essa criatura, que ainda nos manterá vivos para muito além da vida


Pequeno manual da civilidade

As pequenas vantagens de virtudes grandemente subestimadas, analisadas por quem entende tudo do assunto, desde sempre

Juliana Linhares - Montagem sobre foto divulgação
NÃO LIBERTE O MONSTRO QUE EXISTE EM VOCÊ



A vida em estado natural: "Solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta"

Engana-se quem pensa que civilidade é uma matéria relacionada a senhores pomposos e mesas cobertas de talheres esquisitos. Mas é verdade que o tema foi tratado por cavalheiros com quilometragem de pelo menos alguns séculos.

Tudo o que disseram, porém, sobre a necessidade de convenções sociais para promover a boa convivência e administrar conflitos permanece de urgente contemporaneidade. Quando Schopenhauer, o gigante da filosofia alemã do século XIX, dizia que as pessoas deveriam seguir o comportamento do porco-espinho - se fica muito perto de seus pares, morre espetado; se fica muito longe, morre de frio -, não estava pensando no uso do telefone celular em público, mas bem que poderia.

Thomas Hobbes, um dos gênios do pensamento político produzidos pela Inglaterra, constatou no século XVII que em estado natural, sem as construções sociais, "a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta".

Em outras palavras, um congestionamento em São Paulo em dia de chuva. Por isso, emergem leis necessárias, entre as quais que "os homens cumpram os pactos que celebrarem" (e não parem em fila dupla, por exemplo) e "não declarem ódio ou desprezo pelo outro por atos, palavras, atitude ou gesto" (e não façam perfis falsos na internet).

Especialistas em ética, comportamento e controle dos monstros interiores fazem análises e sugestões nesse pequeno manual das virtudes da civilidade. Todo mundo pode aprender - e até lucrar com elas.

"O stress é causado em grande parte por relacionamentos humanos mal resolvidos. Se melhorarmos a capacidade de nos relacionar, teremos menos brigas, menos stress e, consequentemente, menos processos e pessoas doentes", diz o italiano Piero Massimo Forni.

Professor da Universidade Johns Hopkins e um dos maiores especialistas mundiais no estudo da civilidade, ele até calculou o custo da falta dela nos Estados Unidos: 30 bilhões de dólares por ano. Já pensaram se ele conhecesse o Congresso brasileiro?

Questão de honra

Houve um tempo em que tudo girava em torno dela: ter honra era ser um legítimo membro da tribo; não ter, preferível morrer. O conceito de honra, na sua interpretação mais tradicional, nasceu na Grécia antiga, foi remodelado em Roma e reemergiu na Idade Média.

"Na época feudal, a honra era uma qualidade atribuída aos nobres, essencialmente guerreiros, cuja função social era proteger o rei, as crianças e as mulheres", diz Roberto Romano, professor de ética e filosofia da Unicamp. Hoje, a HONRADEZ pode ser mais relacionada à fidelidade aos próprios princípios ou ao próprio eu.

Ou, no popular, ter vergonha na cara. É por isso que o tribunal da própria consciência continua a pesar mesmo quando se alega que "todo mundo faz", a começar dos "caras lá de cima", então "que mal tem" em levar a avozinha para passar na frente na fila de comprar ingresso, desrespeitar a precedência na hora de pegar uma vaga no estacionamento do shopping ou deixar uma toalha guardando lugar o dia inteirinho na espreguiçadeira da piscina disputada? O mal, evidentemente, está em desprezar a própria dignidade.

Lya Luft

Não fui eu!

"Como tantas coisas neste mundo contraditório, a internet é ao mesmo tempo covil de covardes e terra de maravilhas"

Há semanas venho recebendo, via e-mail de amigos ou conhecidos, um texto com meu nome, às vezes até com minha fotografia, mas que não é meu. Pessoas me abordam para dizer que o receberam de outras, e eu negando, tentando esclarecer: não fui eu!!! Eu não o escreveria.

É um texto cretino, dizendo entre outras bobagens que numa palestra para mulheres, que nunca dei, eu falava "coisas inteligentes" fazia mais de uma hora, e ninguém reagia. E que então decidi usar de um recurso especial: "Revelei minha idade, e toda a plateia fez um ahhhhhh de espanto".

Primeiro, eu jamais diria que falei para uma plateia pouco inteligente, e nunca precisei revelar minha idade: ela sempre foi de domínio público, tão natural quanto ter olhos azuis e me chamar Lya.

Aliás, não tem a menor importância. Idade é natural, apesar do universo de narizes diminutos, sobrancelhas no meio da testa, bocas ginecológicas e caras inexpressivas que se multiplicam na paisagem. Nem ao menos sou do tipo que, por magrinha ou serelepe, pareça ter menos do que tem.
Ilustração Atômica Studio

O que me chama atenção em tudo isso não é me atribuírem um texto alheio, mas quanto estamos desarmados, despreparados, indefesos, nessa mistura de terra de ninguém e ferramenta extraordinária que se chama internet. Uso computador há muitíssimos anos. Ando pela internet para pesquisar, viajar, me comunicar (com pouquíssimas pessoas), para me informar.

Para ler vários jornais do país e do mundo. Para comprar livros. Para visitar ou rever museus e outros lugares. Para reservar hotel quando preciso. Para ler artigos de qualquer assunto que me interessa.

Mas, nas raras vezes em que entro em algum blog, me assustam os comentários que qualquer um pode ali postar, sem dar seu nome, escrevendo as coisas mais disparatadas ou violentas, sem que o atingido possa se defender. Cansei de receber textos apócrifos, que seriam de Drummond, Pessoa, Verissimo, Clarice e, agora, meu. Basta um rápido olhar e, se estamos familiarizados com os autores, sabemos: isso não é dele, dela.

Porém, muitas vezes não há como saber. Engolimos sapos desse tipo, como recebemos mensagens com vírus, mensagens que são spam, mensagens que são bobajadas. Um bom antivírus ou anti-spam sempre ajuda.

Porém, usarem nosso nome embaixo de algum texto falso e a gente nem ter como dizer "não, pelamordedeus, não fui eu!", admito: é incômodo.

Acusar alguém injustamente de qualquer imoralidade, invadir ou distorcer a vida pessoal de alguém, escrever frases insultuosas, ameaçadoras, hostis, sob a capa repulsiva do anonimato, é um crime contra a já tão achincalhada ética. Mas como encontrar o criminoso? Que leis lhe aplicar? O jeito é dar de ombros. Nem sempre dá para dar de ombros. Às vezes machuca.

Ofende. Prejudica quem é inocente, alegra quem é perverso. No espaço cibernético podemos caluniar e destruir ou elogiar e endeusar quem quer que seja, sem revelar nossa identidade. Também podemos trabalhar, pesquisar, nos comunicar, aprender, nos deliciar, sem sair de casa. Como tantas coisas neste mundo contraditório, a internet é a um tempo covil de covardes e terra de maravilhas.

Na prerrogativa deste espaço, a quem interessar possa, estou mais uma vez avisando: o tal artigo em que eu teria assombrado uma plateia de mulheres apalermadas revelando o mistério dos meus 71 anos não é meu. Certamente vai adiantar pouco.

Em breve vou receber o texto mais uma vez, e outra: e escutar comentários, entre elogiosos e hesitantes, sobre quanto ele foi "bom". Possivelmente outros textos falsamente meus já apareceram e nem me dei conta. O melhor nesses casos é não ligar, não dar bola, achar graça.

Achei graça por algum tempo, mas, quando um número cada vez maior de amigos ou leitores me vem dizer que receberam o tal artigo, com foto, quem sabe com musiquinha atroz (já circularam por aí poemas meus ou falsos com todo tipo de musiquinha), já estou sorrindo menos.

Aviso aos navegantes: vão continuar circulando por aí textos meus, falsos e reais, bons e muito ruins. Esses, não fui eu!


Você é financeiramente saudável?

Um novo conceito de independência financeira diz que ela só existe quando se trabalha por prazer ou lazer, não por necessidade. Faça o teste para saber se suas finanças andam bem e confira como alcançar tal independência
LAURA LOPES

Domingues, no lançamento do audiolivro. Segundo ele, independência financeira é quando se trabalha por prazer, ou lazer



"Independência financeira é quando se trabalha por prazer, e não por necessidade de seu ganho. Para isso, é preciso ter um montante aplicado cujos juros paguem de duas a três vezes o seu padrão de vida mensal. Não é dinheiro de bilionário, não é ser rico. É dizer que você pode se sustentar de ganhos que não dependam do seu trabalho." Esse conceito de "independência financeira" é de autoria de Reinaldo Domingos, consultor financeiro.

Se esse tipo de indepedência só se consegue quando o sujeito não precisa mais trabalhar para se sustentar, então a sociedade está andando pelo caminho errado. O que ela precisa é poupar, e não usar e abusar dos créditos disponíveis. "As pessoas precisam ter uma reserva, a reserva da independência financeira. Por isso elas nunca param de trabalhar. E hoje vivem até os 100 anos!", afirma Domingos.
Arquivo

Ele é autor do livro Terapia Financeira, que ganhou a versão em audiolivro no começo de outubro. Na publicação, o consultor sugere que o ouvinte siga a Metodologia DiSOP de Educação Financeira, "que leva qualquer pessoa à sua independência financeira".

DiSOP significa Diagnóstico, Sonho, Orçamento e Poupança, os quatro pilares para o endividado se tornar um feliz investidor. Primeiro, é preciso relacionar todas as despesas do dia, durante três meses, no máximo. Diante do relatório de gastos, avaliar quanto se gasta em supérfluos, bobagens e evitáveis. Essa é a tarefa mais difícil, uma vez que as pessoas temem saber ou encarar seus gastos reais.

A pessoa tem medo de sua verdadeira situação financeira, de descobrir como ela chegou a tamanho grau de endividamento. "Ela diz: 'já estou devendo mesmo, nem quero ver'. Permanece em desequilíbrio financeiro e não quer encarar o problema", diz Domingos.

Depois do primeiro choque, a próxima tarefa se torna prazerosa: relacionar todos os seus sonhos de consumo. Um carro? Uma viagem? Uma casa? Uma roupa de festa? Qualquer que seja o sonho, ele custa dinheiro e a sua compra deve ser muito bem planejada. Depois, é preciso colocar tudo na ponta do lápis e montar o orçamento mensal.

Manter o equilíbrio entre quanto se ganha e quanto se gasta é importante, mas mais importante ainda é saber poupar – para os sonhos. Adequar seu padrão de vida ao que se ganha é fundamental. "Você não pode aumentar seu padrão de vida porque ganhou um pequeno aumento", afirma o consultor.
Saiba mais

O primeiro item que deve constar do orçamento é a parcela para a realização do sonho. "Eu sou sempre a favor de se pagar à vista, porque você ganha mais descontos", diz Domingos. Se a pessoa guarda uma quantidade "x" durante "y" meses, conseguirá "comprar o sonho" à vista e com desconto.

Mas as pessoas são ansiosas e sofrem pressão do marketing e do crédito fácil, que acabam por facilitar a compra impensada, o consumo imediato, que costuma quebrar o equilíbrio das finanças. Com isso, compra-se um bem que não estava planejado e com dinheiro que nem existe.

Além da quantia destinada ao sonho, também é preciso separar um tanto para o investimento que vai proporcionar a tal independência financeira. O que sobrar vai para gastos fixos e, quem sabe, até os supérfluos.

Parece fácil, mas exige muita disciplina. "Se você fizer o dignóstico por um período de 30 a 90 dias por ano, já está bom. Mas todo ano tem que atualizar, porque o padrão de vida tende a subir", afirma.

Domingos preparou um teste que indica qual é a sua condição financeira atual: endividado, equilibrado financeiramente ou investidor. Se o resultado for uma das duas primeiras opções, melhor começar a pensar mais seriamente sobre o DiSOP.
Deu certo para Domingos, que nasceu em família humilde no interior de São Paulo e conquistou sua independência finaceira aos 37 anos – a melhor propaganda para o seu método.


31 de outubro de 2009 | N° 16141
NILSON SOUZA


Sr. Redactor

No dia 25 de setembro de 1827, o Diario de Porto Alegre – primeiro jornal desta província de homens bravos, mulheres bonitas e monumentos públicos horrorosos – publicou em sua capa uma carta de leitor. O autor era um cidadão indignado com as autoridades da época. Sentia-se humilhado por ter sido preso em flagrante depois de ter agredido um “moleque”, como eram chamados os jovens escravos da época.

Ocorre que o cativo pertencia ao juiz, que acionou o alcaide, que colocou o sujeito atrás das grades por oito horas. Bem feito! – poderíamos dizer tranquilamente hoje, 182 anos depois. Mas, naqueles tempos incandescentes, o homem não se conformou e escreveu uma longa carta ao jornal, desafiando-o:

– E que tal, Sr. Redactor! Será digno o caso de se lhe dar publicidade, ou não?

Conseguiu o que queria. Sua denúncia contra o que considerou abuso de autoridade acabou sendo publicada e ganhou perpetuidade, pois está na primeira página de um dos exemplares do acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa. Mas o que me chama atenção nesse episódio nem é o fato de o homem se julgar injustiçado porque foi punido por ter dado “huma pequena bofetada num moleque captivo”.

Fico mais espantado com a existência, já naqueles tempos pretéritos, da interatividade jornalística – esta relação de mão dupla entre o público e os meios de comunicação. Ao dar guarida para seu leitor, aquela modesta publicação já cumpria, quase dois séculos atrás, uma das atribuições do jornalismo moderno.

Hoje, o público participa como nunca da produção do conteúdo dos veículos de comunicação. Com a internet, o acesso ficou tão fácil e tão rápido que as pessoas reagem imediatamente a qualquer notícia, opinam sobre ela, dão informações adicionais, contribuem com fotos e vídeos, muitas vezes elaboram integralmente a mensagem que querem ver divulgada. Evidentemente, nem todos os que participam desse processo são bem-intencionados.

Alguns aproveitam a facilidade tecnológica para defender causas nem sempre defensáveis, como o homem que esmurrou o adolescente escravo e achava que estava coberto de razão.

Como agir em casos assim? Cabe ao Sr. Redactor fazer a sua parte, olhando a vida por todos os lados, divulgando ponto e contraponto, priorizando aquilo que for efetivamente de interesse do público. Um fato – seja ele uma ocorrência policial ou a observação de uma obra de arte – pode ter muitas versões. A função do jornalismo é encontrar aquela que mais se aproxima da verdade.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009



28 de outubro de 2009 | N° 16138
MARTHA MEDEIROS


Confie em Deus, mas tranque o carro

Mike Tyson segue na mídia: andou sendo entrevistado pela Oprah e fazendo um mea-culpa por uma vida inteira de desvios de comportamento. Isso me fez lembrar de quando ele foi acusado de estupro pela ex-miss Desiree Washington, em 1991. A moça havia entrado no quarto com ele, de madrugada e, ao que consta, desistiu de levar adiante a brincadeira.

Qualquer pessoa tem o direito de desistir do ato sexual na hora H e o parceiro tem o dever de respeitar a decisão, por mais fulo da vida que fique, mas deixar Mike Tyson fulo não é algo que uma pessoa de juízo arrisque. Na época, a escritora Camille Paglia disse que Tyson errou, logicamente, mas que a moça era uma idiota.

E justificou sua opinião dando o seguinte exemplo: se você estaciona seu carro numa rua escura e deixa a chave na ignição, não significa que ele possa ser roubado. Mas, se for, você foi um panaca.

Essa história sempre me volta à cabeça quando começo a ouvir algum “ai de mim”, que é o mantra das vítimas. Fico prestando atenção na história e, quase sempre, descubro que o mártir deixou a chave na ignição.

São os casos de garotas que se deixam filmar nuas pelo namorado e depois descobrem que viraram as musas do YouTube, garotos que dirigem alcoolizados a 140 km/h e acordam no outro dia no hospital, ou artistas que vivem dando barraco em público e depois se queixam por serem perseguidos por paparazzi. Eles devem se perguntar, dramáticos: onde está Deus nessa hora, que não me ajuda?

Está ajudando a encontrar sobreviventes de um tsunami ou consolando quem tem um câncer em metástase, porque esses, sim, são vítimas genuínas: mesmo deixando seus carros bem trancados, foram surpreendidos pelo destino.

“Não há prêmio ou punição na vida, apenas consequências.” Não sei quem escreveu isso, mas está coberto de razão. Sorte e azar são responsáveis por uns 10% do nosso céu ou inferno, os 90% restantes são efeitos das nossas atitudes.

Vale para o trabalho, para o amor, para o convívio em família, para o dinheiro, para a saúde da mente e também do corpo. Reconheço que os governos não ajudam, que certas leis atrapalham, que a burocracia atravanca, que o cotidiano é cruel, e até as disfunções climáticas conspiram contra. Ainda assim, avançamos (prêmio) ou retrocedemos (punição) por mérito ou bananice nossos.

Então, tranque o carro numa rua escura e também dentro da sua garagem, não entre no quarto de um neanderthal se você não estiver bem certa do que deseja, não deixe uma vela acesa perto de uma janela aberta, pense duas vezes antes de mandar seu chefe para um lugar que você não gostaria de ir, não tenha em casa Doritos, Coca-Cola e Ouro Branco se estiver planejando perder uns quilos e lembre-se do que sua bisavó dizia: regue as plantas, regue suas relações, regue seu futuro, porque sem cuidar, nada floresce.

E, por via das dúvidas, confie em Deus também, que mal não faz.

Uma excelente quarta-feira ensolarada por aqui, para todos nós.

sábado, 24 de outubro de 2009



25 de outubro de 2009 | N° 16135
MARTHA MEDEIROS


Viver a vida infantilmente

Gosto das novelas do Manoel Carlos porque os personagens conversam como se não tivessem decorado o texto, é tudo muito naturalista, e assim está sendo em Viver a Vida, mas algo tem me chamado a atenção: esse naturalismo nunca foi tão infantil. Sei que uma novela é apenas uma caricatura da realidade, mas não posso deixar de reparar que a maioria dos personagens não parece ter mais do que 16 anos.

Irmãos marmanjos correm pela casa para bater um no outro. Um advogado persegue a prima da esposa e, para “pegá-la”, vive se escondendo atrás das portas ou no banco de trás do carro, provocando gritinhos histéricos na moça, que é jornalista especializada em economia.

Esse mesmo advogado outro dia foi corrido pela personagem da atriz Maria Luiza Mendonça, que o perseguiu pelo escritório com um taco de golfe nas mãos. Alinne Moraes não caminha: saltita.

Lilia Cabral interpreta uma mulher que não tolera cinco minutos de solidão e só pensa em dar o troco no ex-marido que a largou. Giovanna Antonelli e a filhinha parecem ter a mesma idade. Taís Araújo e José Mayer curtiram a lua de mel num carrossel em Paris. Búzios também parece um parque de diversões, onde se anda de conversível com os braços pra cima, como numa montanha-russa. Imagens lindas, mas é novela das oito mesmo?

Não é Malhação?Não faz tanto tempo assim, pais e filhos não se vestiam igual, fofocas maliciosas não faziam parte das conversas de gente grande, as relações não eram descartáveis como latinhas de refri, envelhecer não parecia tão trágico, não havia tantos brinquedinhos tecnológicos para maiores de idade, e os papéis eram mais bem definidos: crianças e adolescentes tinham o direito de brincar e se divertir, enquanto os adultos colocavam ordem no galinheiro.

Piorou? Não. Acho ótimo que possamos ser joviais e divertidos até os 100 anos, mas é bom ficarmos atentos para não cair na cilada de achar que só os imaturos sabem viver a vida.

Manoel Carlos tem fama de escrever novelas realistas e está fazendo exatamente isso. Tempera todas as cenas com muxoxos, beicinhos, chiliques, deslumbramentos, birras e flertes, escancarando uma fatia da sociedade que parece não saber mais se comprometer, nem trocar ideias sem agredir, nem aceitar o sofrimento.

Uma das exceções é a personagem da atriz Lica Oliveira, que faz a charmosa mãe da Helena e que demonstra ter abandonado faz tempo o jardim de infância, esbanjando elegância e bom senso.

É novela, criatura!!

Eu sei, eu sei. E é possível que essa infantilização seja uma estratégia para contrastar com o dramalhão que vem pela frente. Mas não custa refletirmos sobre o que parece bobo, mas não é: o desprestígio da maturidade nos tempos atuais.

Sei que, no fundo, somos todos crianças grandes, só que não dá pra perder a compostura e sair atrás de quem nos enerva com um taco de golfe nas mãos. Viva a espontaneidade juvenil, mas nosso lado adulto merece continuar com algum ibope.

Ainda que com chuva, que possamos ter um lindo domingo e um ótimo início de semana.


Quase uma bicicleta

O minicarro elétrico idealizado por Jaime Lerner foi projetado para ser alugado em terminais de transporte coletivo e percorrer pequenas distâncias

Marcelo Bortoloti
Juliana Braz


O MENOR DO MUNDO
Lerner ao lado do Dock Dock: inspirado na experiência de Paris

Em 1974, quando era prefeito de Curitiba, o arquiteto e urbanista Jaime Lerner implantou um modelo de transporte público que se tornaria referência mundial. O Ligeirinho, mais tarde batizado de BRT (Bus Rapid Transit), sistema de ônibus com pistas exclusivas e embarque similar ao das estações de trem, foi copiado em 83 cidades no mundo.

Agora, Lerner está lançando um projeto no outro extremo da cadeia do transporte urbano: um veículo movido a energia elétrica com capacidade para uma única pessoa.

O Dock Dock, cujo protótipo será apresentado no fim desta semana no Rio de Janeiro, é o menor carro elétrico já concebido: mede 60 centímetros de largura, 1,38 metro de comprimento e 1,5 metro de altura. Atinge velocidade máxima de 20 quilômetros por hora e foi pensado para circular em faixas compartilhadas com pedestres, bicicletas e locais onde o trânsito de automóveis é restrito. Sua inspiração vem do Velib, sistema de bicicletas públicas de Paris.

A ideia é que os veículos funcionem como complemento do sistema de transporte coletivo, possibilitando deslocamento mais rápido do que o permitido pela caminhada e mais confortável do que sobre uma bicicleta. Como no modelo parisiense, os carrinhos serão alugados em áreas de grande circulação, próximas aos terminais de ônibus ou metrô. Os usuá-rios poderão retirá-los e devolvê-los em qualquer estação, pagando com cartão de crédito.

Essa é a grande diferença entre o Dock Dock e outros minicarros elétricos, como o Puma, da General Motors e da Segway, com lançamento previsto para 2012, que é um veículo para ser comprado e guardado na garagem do usuário, como qualquer outro.

O projeto se escora em experiências internacionais bem-sucedidas, que demonstraram a eficiência do complemento individual ao transporte público. Depois do êxito no projeto do Velib, a prefeitura de Paris planeja, para o fim de 2010, implantar o Autolib, um carro de uso coletivo, para até quatro pessoas. Serão disponibilizados 3 000 veículos elétricos em mais de 1 000 pontos da cidade.

Outra iniciativa interessante nessa linha é o Personal Rapid Transit, um veículo elétrico para até quatro pessoas que circula sobre trilhos com estações situadas a pequena distância. Ele dispensa motorista – é o usuário quem aciona um botão correspondente à estação em que deseja saltar. Um modelo piloto está sendo construído no aeroporto internacional de Londres.

A ideia central é que o transporte de massa consegue resolver o problema de grandes deslocamentos. Mas não acaba com a necessidade de deslocamento individual dentro de um mesmo bairro ou entre bairros vizinhos. "Isso provoca alguns dos principais problemas no trânsito das metrópoles", diz José Eugênio Leal, professor de engenharia de transporte da PUC-Rio.

James Leynse/Corbis/Latin Stock

NO FILÃO DOS CARROS ELÉTRICOS
O pequeno Puma, que será lançado em 2012 pela General Motors e pela Segway

O conceito de transporte complementar pode funcionar especialmente bem nas regiões centrais de grandes cidades que adotaram a opção de banir, ou reduzir drasticamente, a circulação de automóveis.

É o caso de Nova York, que, desde maio deste ano, interditou ao tráfego parte da Broadway, na Times Square. Um trecho de cinco quarteirões transformou-se numa área ampla onde só é possível circular de bicicleta ou a pé.

O Brasil também se movimenta nessa direção. São Paulo aprovou em junho um projeto de lei que prevê a restrição gradativa dos automóveis particulares no centro. No Rio, existe a intenção da prefeitura de fechar ao tráfego uma das principais avenidas centrais, a Rio Branco. Lerner enxerga aí um filão para seu veículo.

Mas sua ambição é maior que essa.

Quer fazer dele um complemento ao transporte coletivo em qualquer local de uma grande cidade.

Ainda que seja preciso construir ciclofaixas por onde passem bicicletas e seus Dock Dock. Diz Lerner: "Pode parecer complicado, mas é mais fácil do que foi construir as faixas exclusivas de ônibus".

Claudio de Moura Castro

Academia de ginástica (mental)

"Sem o desenvolvimento do método científico, não teríamos os avanços tecnológicos que tanto beneficiam a humanidade"

As primeiras ondas encantaram os turistas. Eles ficaram então esperando as próximas. Contudo, foram salvos por uma inglesinha bem jovem, em cujo livro de ciências estava explicado o que era um tsunami e que perigos trazia. Que corressem todos, o pior estava por vir!

Em contraste, alguns pobres coitados de Goiânia receberam doses fulminantes de radiação ao desmontar o núcleo radioativo de um aparelho de raio X vendido como sucata. Os turistas foram salvos pelo conhecimento científico da jovem inglesa. Os sucateiros foram vítimas da sua ignorância científica. Não é fortuita a nacionalidade de cada um.

H. Habermeier mostrou que, dentro de níveis comparáveis de qualidade da educação, os países com melhor desempenho em ciências obtinham resultados econômicos mais expressivos. Ou seja, há argumentos poderosos sugerindo o efeito de uma boa base científica no desempenho econômico.

Estamos cercados de aparelhos com extraordinária densidade de ciência e tecnologia. Decifrar e manipular a natureza é crítico para a nossa produtividade. A liderança do país no etanol requer que um reles pé de cana incorpore melhoramentos genéticos de altíssima complexidade.

Esses argumentos vêm sendo repetidos ad nauseam. Apesar disso, é lastimável o desempenho brasileiro em ciências. Nas provas do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o Brasil está entre os últimos lugares, abaixo da média da América Latina, um continente de pífio desempenho educativo (vejam o livro recente O Ensino de Ciências no Brasil, do Instituto Sangari). Quero trazer mais dois argumentos possantes.

O primeiro tem a ver com a ideia de que aprender a pensar é uma das tarefas mais nobres e mais árduas da escola. Mas, ao contrário do que almas ingênuas poderiam imaginar, não se aprende a pensar em cursos do tipo "Como pensar". Aprende-se pensando sobre assuntos que se prestam para tais exercícios. E, entre eles, as ciências oferecem um campo excepcional. Exercitamos os músculos nas academias.

E exercitamos os músculos do intelecto lidando com as ciências e outros assuntos de lógica exigente. Que fantástica academia para exercícios mentais são as teorias científicas! O rigor das definições, a precisão das leis e as abstrações disciplinadas oferecem um terreno ideal para ginásticas simbólicas. Portanto, mesmo que os conhecimentos não servissem para melhor operar em um mundo complexo, a ginástica mental que permitem é uma das fases mais nobres do processo educativo.

Ilustração Atômica Studio

Vejamos o segundo argumento. Se pensamos na contribuição da Europa nos últimos cinco séculos, muitas ideias nos vêm à cabeça.

Mas talvez uma das mais decisivas tenha sido o desenvolvimento do método científico, salto que teve Bacon e Descartes como ícones. Por trás dos gigantescos avanços científicos está o método. Com ele, a ciência avança, seja com passinhos, seja com saltos. Não há marcha a ré, pois até o erro educa.

O método impõe a disciplina de formular as perguntas de maneira rigorosa e sem ambiguidades. Em seguida, propõe e fiscaliza um plano de ação para verificar se as hipóteses para responder às perguntas, de fato, descrevem o mundo real. Sem essa disciplina para escoimar de imprecisões e equívocos a busca científica das respostas, não poderíamos ter confiança nos resultados. A vulgarização do poder da ciência se traduz nas afirmativas publicitárias de que "a ciência demonstrou...".

Sem o desenvolvimento do método científico, não teríamos os avanços tecnológicos que tanto beneficiam a humanidade. Mas o meu argumento aqui vai em outra direção. O método tornou-se uma espécie de roteiro seguro para pensar bem sobre todos os assuntos, não apenas para fazer pesquisas.

Quem aprendeu a pensar como cientista e a usar o método científico tem um raciocínio mais enxuto e rigoroso. As perguntas são mais bem formuladas e já facilitam a busca sistemática das respostas.

Não importa o assunto (mas, obviamente, uma boa base científica apenas dá a embocadura para entrar com segurança no assunto, não substitui o conhecimento específico).

Só falta dizer que há uma enorme diferença entre aprender a pensar como um cientista e decorar fórmulas, teoremas e leis. Infelizmente, nosso ensino pende para a segunda versão. E o Pisa joga isso na nossa cara.

Claudio de Moura Castro é economista


O mito da mulher triste

Sou feliz - e não sou exceção. O mundo de hoje não é de mulheres tristes, mas de lutadoras
RUTH DE AQUINO
Revista Época - RUTH DE AQUINO


Não me convenço de que a mulher seja mais triste que o homem. Ou que a mulher seja hoje mais infeliz que no século passado. Pesquisas com 1.500 pessoas, feitas anualmente de 1972 a 2006 nos Estados Unidos, revelariam essa “crescente tristeza” da mulher e “crescente felicidade” do homem.

ÉPOCA publicou reportagem na edição passada sobre isso. Depois, a revista Time deu capa. Antes que todo mundo acredite na tristeza feminina, queria dizer: acordem. Isso não é verdade.

Lembro que minha mãe, hoje com 87 anos, me dizia: “Tenha filhos homens, porque mulher sofre muito. Homem tem mais liberdade”. O tempo dela, em que a mulher não tinha como controlar o número de filhos, precisava pedir dinheiro ao homem, era malvista caso se separasse do marido, enfrentava como dramas seus ciclos biológicos... esse tempo passou. Felizmente.

O estudo “descobriu” que as mulheres estão cada vez mais tristes por uma única medida, totalmente subjetiva. A pesquisa não se baseou em nenhum histórico de internações ou rebeldia no trabalho e em casa. Americanas entrevistadas dizem que estão menos felizes.

Imediatamente, concluiu-se que as mulheres no mundo estão mais tristes que nunca. Homens citam amigas sem namorado como provas irrefutáveis da tese. Alguns dizem que a mulher foi “enganada” pela revolução sexual – talvez a solução fosse ter um homem só a vida inteira.

Eles citam a obsessão de uma minoria em parecer mais jovem, recorrendo a cosméticos e plásticas. Especialistas entendem que, claro, foi o feminismo que entristeceu as mulheres. Só pode ter sido o trabalho fora de casa o grande vilão, pela dupla jornada que sobrecarrega a mulher.

Leio as interpretações dessa pesquisa como uma ficção. Tendenciosa. Sou feliz. E não sou exceção. Mulheres bem-sucedidas no trabalho não são necessariamente mais felizes do que donas de casa. Mas o inverso também é falso.

O mundo que eu encontro como jornalista nas ruas da minha cidade, nos países que visito, não é de mulheres tristes. Mas de lutadoras. Mulheres inquietas, não acomodadas, que discutem desde a relação amorosa até seu lugar no mundo.

Não lhes basta que seu time de futebol ganhe o campeonato para que ela se diga feliz. Sou feliz – e não sou exceção. O mundo de hoje não é de mulheres tristes, mas de lutadoras

Mulher reclama mais. Sempre reclamou – isso não mudou. Ela precisou ir à rua, ser presa e espancada para conquistar direito de voto. “É a natureza da mulher”, diz Carmita Abdo, psiquiatra e professora da USP. “Por característica biológica, o homem guarda muito mais o que sente, porque mostrar fragilidades não é viril.

A mulher se expressa mais, na alegria ou na tristeza. O fato de ela se questionar mais não pode ser confundido com infelicidade. O dia em que a mulher parar de reclamar, vai enfartar tanto quanto os homens, porque doenças cardiovasculares resultam muito de emoções reprimidas.”

Como no pós-guerra, a mulher foi convocada a trabalhar fora para complementar o orçamento familiar, quem sabe agora, na crise do capitalismo americano, convém espalhar que é melhor ficar em casa? Os índices de desemprego diminuiriam se as mulheres todas resolvessem de novo se domesticar.

Os cursos à noite – de ioga, dança de salão ou filosofia e arte – estão lotados de mulheres depois dos 50. Elas viajam sozinhas ou em grupo. Vivem sete anos a mais do que os homens porque cuidam da saúde.

“A mulher, quando se aposenta, vai pintar uma tela, tecer o tapete, aprender jardinagem. O homem se arrepia só de pensar em se aposentar e ficar em casa”, diz Carmita.

Talvez toda a humanidade esteja mais triste e sobrecarregada com a sociedade moderna. Homens e mulheres sentem falta de tempo físico e mental para os filhos e para o lazer absoluto. Há superposição de funções.
Saiba mais

Por que as mulheres são tão tristes?

Simone de Beauvoir disse, em O segundo sexo, que a questão da mulher não é a felicidade, mas a liberdade. Dos quase 200 comentários em epoca.com.br, pinço um de Camila, de São Paulo: “Será mesmo que as mulheres eram mais felizes quando tinham que ficar em casa sendo destratadas, traídas, sem liberdade para sair?

Para um homem é fácil falar. Eu quero provas”. Camila, não temos provas. Isso é um mito.
A Time e a revolução silenciosa das mulheres tristes

qui, 22/10/09
por Martha Mendonça | categoria Uncategorized
| tags felicidade, mulher, pesquisa


Em meados de setembro, fiz um post aqui no blog sobre a pesquisa americana que eu havia lido no New York Times e mostrava o crescimento da insatisfação das mulheres em relação à vida.

De acordo com os dados do estudo O Paradoxo do Declínio da Felicidade Feminina, elas estavam menos felizes do que as mulheres da década de 70, quando a série de pesquisas começou a ser feita.

O post causou debate e acabei fazendo uma matéria na ÉPOCA - Por que as mulheres são tão tristes? -, que também está rendendo muita leitura e comentários em nosso site.

Esta semana, a Time, para muitos a revista semanal mais importante do mundo, dedicou sua capa ao assunto. De onde vem esse paradoxo: se as mulheres nunca tiveram tanta liberdade, tantas opções, por que estão tão insatisfeitas?

É justamente a complexidade do mundo de hoje - quanto mais expectativas, mais chances de decepção? Ou as duplas, triplas jornadas estão pesando demais sobre nossos ombros? “Uma revolução silenciosa mudou o status da mulher americana“, diz a Time.

Em maio de 1972 - tempo em que, segundo a pesquisa, as mulheres eram mais felizes -, a revista também dedicou uma edição às mulheres, que estavam na efervescência de sua emancipação. “Onde ela está e para onde vai?”, pergunta a matéria principal.

Na capa, uma cabeça de mulher transparente mostra o que há por dentro: filhos, casamento, trabalho, feminismo, livros, consumo, troféus (e até um bob de cabelo, coisa que não se vê mais). Ou seja: muita coisa.

Mesmo achando bastante estranha essa ideia da infelicidade (e não me sentindo assim de forma alguma), tenho a sensação de que pode se tratar mesmo da semente de uma revolução silenciosa, como diz a Time.

Alguma coisa está fora da ordem. Isso não significa que tenhamos que esvaziar nossas gavetas do trabalho e passar a ficar em casa com as crianças. Mas certamente há algo a ser debatido e, talvez, modificado.

Talvez não seja algo em bloco, mas um ajuste individual, de cada uma. A ideia de que o que é melhor para cada mulher é sabido apenas por ela e deve ser seguido sem medo dos padrões, obrigações e expectativas de quem está em volta e da sociedade.

A certeza de que não há fórmulas para a vida e nem rigidez para o que vem a ser ”uma grande mulher”.

Você concorda? 


24 de outubro de 2009 | N° 16134
NILSON SOUZA


A n j o s

Outro dia, a governadora do nosso amado Rio Grande arrancou risinhos irônicos dos seus governados, inclusive deste descrente cronista, ao afirmar que alguns anjos lhe tinham dito para não viajar aos Estados Unidos porque alguém (possivelmente um anjo mau) preparava um golpe no Estado.

Não saiu a viagem, não saiu o golpe e ficou a dúvida: a tucana estaria falando sério quando atribuiu aos chamados seres de luz a autoria do aviso ou estaria nos gozando como na história do pufe verde-kiwi? Para buscar uma resposta, recorri à literatura, consultei gente que já virou anjo e anjos travestidos de gente.

A inspirada Clarice Lispector absolveria a nossa polêmica governante:

– Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam – sentenciou a autora de A Hora da Estrela.

Já o eterno Drummond (“E como ficou chato ser moderno, agora serei eterno”) garante que não foi o seu anjo torto o informante, até mesmo porque, se fosse chamado a palpitar, ele provavelmente repetiria a sua conhecida advertência:

– No meio do caminho tem uma casa, tem uma casa no meio do caminho.

Talvez tenha sido o anjo de Chico Buarque, que também parafraseou o poeta de Itabira numa de suas canções:

– Quando nasci, veio um anjo safado/ O chato dum querubim/ E decretou que eu tava predestinado/ A ser errado assim.

Deve ter sido ele. Pelo menos, a governadora anda repetindo uma de suas estrofes nas entrelinhas de suas enigmáticas declarações:

– Já de saída a minha estrada entortou/ Mas vou até o fim.

Em contraponto, outras mulheres da terra, como a presidente do Cpers e a deputada relatora do frustrado impeachment, parecem preferir o personagem da mineira Adélia Prado:

– Quando nasci, um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira.

Neste Rio Grande de tantas bandeiras antagônicas, talvez fosse bom a gente prestar atenção na mensagem de um de nossos mais ilustres vizinhos, o argentino Jorge Luis Borges:

– Fazer o bem ao teu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.

Me faz lembrar uma conterrânea sua que conheci certa vez em Mar del Plata. Quando lhe pedi desculpas por ter que voltar-lhe as costas durante uma situação de trabalho, ela retrucou com voz doce:

– Los angeles no tienen espalda.

Depois, me presenteou com um pacote de alfajores. Então, olhando para aquela argentina linda e gentil, me ocorreu um pensamento em castelhano:

– Pero que los hay, los hay.


24 de outubro de 2009 | N° 16134
PAULO SANT’ANA


Felizes dos avós!

Pelo amor de Deus, não me entendam mal, que eu já ando pisando em ovos toda vez que digo verdades polêmicas ou não muito bem visíveis. Mas é forçoso dizer que um homem ou uma mulher só podem ser felizes quando tiverem netos. Não serão felizes se só têm filhos.

Pausa.

Agora a explicação: são tantas as atribulações que os filhos dão aos pais que verdadeiramente os amarem, que não há tempo de eles os curtirem com contentamento.

Melhor explicando: os pais passam a vida inteira trabalhando para sustentar seus filhos e encaminhá-los na vida. Gastam toda a sua vigília e têm atormentado seu sono pela preocupação com a formação e o futuro de seus filhos.

Acabam não tendo tempo na vida para colher os frutos dessa semeadura toda, percorrem toda a existência num turbilhão de tarefas e façanhas dirigidas todas ao benefício de seus filhos, esquecem-se de si próprios e não raro se tornam infelizes por este fardo colossal e inarredável.

Repito: não me entendem mal, que eu amo meus filhos e sei bem o quanto é bom ter filhos.

É que o ângulo sob o qual estou abordando essa questão é outro. E agora o lado inverso: os avós, estes sim têm tudo para obter felicidade junto a seus netos. Diz o ditado que os netos são filhos com açúcar. E todo o ditado contém uma verdade.

Para começar, os avós só vão se encontrar com os netos, quase sempre, em sábados, domingos, feriados, dias de aniversário. Isto é, já os pegam arrumadinhos, perfumados, felizes, felicidade esta que é imediata e automaticamente transmitida ao avô e à avó.

Em segundo lugar, quando os avós começam a brincar com os netos, não lhes assalta nesse momento feliz o que toma conta dos pais no mesmo instante: a preocupação com o dia seguinte, quando as crianças têm de ir para a escola, as crianças estão mal em matemática ou português, têm, segunda-feira, de se submeter a um exame médico e outras mumunhas.

Nada desse universo preocupante pertence aos avós. É tudo atribuição incômoda dos pais.

Acho que nesta altura os meus melhores leitores, aqueles que mantêm comigo esta relação divina de entrarem em colóquio com o que escrevo aqui todos os dias, me entenderam e não caíram em confusão, deixando de me aprovar.

A felicidade é, portanto, muito mais propícia aos avós que aos pais. Na relação custo-benefício, o custo é dos pais, o benefício é dos avós.

Por isso é que são mais tendentes a serem felizes os avós do que os pais. E eu sou pai e avô, tenho autoridade para afirmar isso.

Mas a minha maior autoridade não deriva disso. Deriva, isto sim, do fato inesquecível de que já fui ao mesmo tempo filho e neto, ao tempo em que coexistiam meu pai e minha avó. E dei muito mais alegria, àquela época, à minha avó do que ao meu pai.

Claro que me entenderam hoje os meus leitores neste tema delicado! Não posso acreditar que houve alguém que não me entendeu e vá protestar!

Crônica publicada em 20 de maio de 2000


24 de outubro de 2009 | N° 16134
CLÁUDIA LAITANO


Comer e rezar, beber e jogar

Mulher recém-separada (ou com o casamento em crise) parte em férias para as ilhas gregas (ou para uma charmosa vila na Toscana ou para qualquer outra paisagem exótica e deslumbrante ao gosto do freguês) e lá reencontra a alegria de viver nos braços de um ardente amante latino (jamais um suíço ou um finlandês, por exemplo).

Você já leu esse livro, já viu esse filme ou assistiu a essa peça. Essa é a história, entre tantas outras, de Shirley Valentine – espetáculo que esteve em cartaz em Porto Alegre no último fim de semana.

O sucesso mais recente desse gênero, que a gente podia apelidar de “on the road romântico” , é Comer, Rezar, Amar, de Elizabeth Gilbert, best-seller com mais de 4 milhões de exemplares vendidos que está sendo filmado na Indonésia. No filme, Julia Roberts interpreta a balzaquiana em crise que busca o autoconhecimento em cenários “exóticos” – para americanos, qualquer coisa localizada a leste de Londres – e acaba se apaixonando por um amante latino (no livro, um brasileiro; no filme, o ator espanhol Javier Bardem).

Não li Comer, Rezar, Amar (nem a crise existencial mais profunda ou o amante latino mais ardente me levariam a percorrer o mundo em busca do segundo item), mas achei muito divertido quando fiquei sabendo que havia sido lançada uma debochada versão masculina do livro – e com um título que promete resumir as ambições mais profundas de seu público-alvo.

Beber, Jogar, F@#er, de Andrew Gottlieb, pega carona no best-seller nos mínimos detalhes – da capa à estrutura dos capítulos, incluindo o final romântico ideal para a adaptação para o cinema.

Descansando lado a lado na prateleira de um hipotético casal de leitores (há literalmente “vendas casadas”, com desconto, em oferta nas livrarias), o conjunto oferece uma curiosa galeria de estereótipos de ambos os sexos – além de ser um desafio para qualquer harmonia conjugal.

De um lado, a mulher que aspira à elevação espiritual e ao amor romântico. Do outro, o homem que sonha em se divertir sem regras, enchendo a cara com os amigos e fazendo sexo à vontade e sem compromisso.

Lidos em conjunto, os títulos podem ser vistos como complementares ou contraditórios – dependendo do ponto de vista. Comer e beber aparentemente fazem parte da mesma comunhão à mesa, mas enquanto o prazer feminino de desfrutar uma bela refeição remete a jantares românticos ou à família, a bebida da fantasia masculina não é o cálice de vinho degustado lentamente, mas a alegre noitada com a turma de amigos (sem mulheres atrapalhando, de preferência).

Amor e sexo podiam muito bem se complementar (e não é para discutir a relação que elas pensam no amante latino), mas o casamento não combina com a fantasia de variedade infinita deles. Dois a zero para a discórdia.

Sobram rezar e jogar. Bom, de quem reza, se diz que “tem” fé, e de quem joga que “faz” fé – mas provavelmente apenas os jogadores muito endividados conseguem fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Três a zero.

E a mulher daquele hipotético casal acaba de fazer as malas para a Itália.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009



21 de outubro de 2009 | N° 16131
MARTHA MEDEIROS


Insultos e piadas ruins

Dois episódios foram bastante comentados semana passada, ambos definidos como insultuosos. Um deles foi uma brincadeira que a apresentadora Sabrina Sato, do Pânico na TV, armou para o senador Eduardo Suplicy.

Ele foi convidado a vestir uma sunga vermelha de super-herói. Notório boa paz, Suplicy vestiu a sunga por cima do terno, o que bastou para o corregedor-geral do Senado, Romeu Tuma, abrir uma investigação para definir se houve quebra de decoro parlamentar. Anteontem, Tuma voltou atrás.

Outro assunto foi o vídeo que Maitê Proença gravou para o programa Saia Justa, em que ela aparece em Portugal tirando um sarro dos lusitanos. Conseguiu desagradar lá e aqui também, já que muitos brasileiros colocaram o vídeo na rede acompanhado de ofensas múltiplas à atriz.

Ambas as reações me pareceram superdimensionadas. Suplicy tem aquele jeito bobo e acaba pagando uns micos desnecessários, mas, até onde se sabe, é um político honesto – a Corregedoria- Geral certamente tem casos mais sérios de quebra de decoro pra investigar.

E Maitê gravou um vídeo adolescente. Não estava traçando um perfil oficial dos portugueses, e sim valendo-se da prática mundial de perder o amigo, mas não perder a piada. Foi deselegante? Até foi, mas só porque o Saia Justa não é catalogado como um programa de humor. Se o Casseta e Planeta tivesse produzido o mesmo vídeo, ninguém acharia nada de mais.

Muita gente se defende de suas grosserias dizendo: eu estava apenas brincando. E sabemos que estavam. É fácil perceber quando alguém está tentando promover diversão à custa de um comentário ou de um ato.

Isso não impede que esse alguém tenha péssimo gosto para brincadeiras, e acabe ofendendo. Nem todo mundo tem desconfiômetro. Mas não se pode colocar os maus piadistas no mesmo rol daqueles que agridem com a intenção explícita de detonar com o bem-estar do outro.

Eu me sinto insultada cada vez que pago uma exorbitância de imposto e sigo sem segurança para sair às ruas. Me sinto insultada por políticos falastrões que não se importam com seus eleitores.

Me sinto insultada por quem mente e comete injustiças para salvar a própria pele. Em contrapartida, não me sinto insultada quando falam mal de brasileiros, de mulheres, de publicitários, de colorados ou de qualquer categoria a que eu pertença, porque sei que são generalizações, não uma acusação individual. Relativizo justamente porque a intenção é fazer graça, mesmo que não tenha graça nenhuma. Só a falta de humor é que cria mártires.

Ninguém precisa aplaudir grosserias, deselegâncias e palhaçadas. O ideal seria que vivêssemos no melhor dos mundos, mas pra isso Deus teria que começar o trabalho dele do zero.

Como eu duvido que ele ponha a mão nessa maçaroca de novo, nós mesmos é que temos que aprender a brigar pelo que é sério, e não gastar nossa cólera por causa de algumas piadas ruins, sejam elas protagonizadas por um senador meio crianção ou por uma participante de um programa de amenidades.

Tem gente que se sente insultada até pela felicidade dos outros, não tem? Então cuidado. Mantenhamos nosso direito à crítica, mas controlemos a paranoia.

Uma linda quarta-feira para você.