sábado, 6 de fevereiro de 2010



Beyoncé - Ela está no comando

A atriz, cantora e compositora americana se tornou o maior fenômeno da música pop atual com uma fórmula inusitada: feminismo, sensualidade e bom comportamento
Livia Deodato com Luís Antônio Giron, Mariana Shirai e Rafael Pereira
George Holz

PARA QUEM PODE

A cantora Beyoncé Knowles desafia o machismo com altas doses de sensualidade

Beyoncé Giselle Knowles paga suas próprias contas. Pinta as unhas, arruma o cabelo, vai para festas com as amigas... e deixa o namorado em casa. Veste roupas sensuais, dança e canta de forma provocante: “Você está olhando como se estivesse gostando. Por que não levanta e vem falar comigo?”. Hipnotiza, encanta e assusta: “Eu vou te deixar ficar comigo. Só não seja impertinente”.

Para os que não entenderam o recado, ela aponta a caixa que deve ser usada para juntar os pertences e desaparecer de sua vida (“a da esquerda, da esquerda”). Também avisa a esses infelizes que quem gosta mesmo coloca um anel em seu dedo – como fez o astro rapper Jay-Z. Beyoncé está no comando. Há uma década. A texana de 28 anos, considerada a maior cantora pop do momento, cumpre o que canta.

E o que canta representa um novo poder feminino, em forma de música pop. Ela faz parte de uma linhagem de estrelas musicais que desafia o domínio masculino, de Tina Turner a Lady GaGa, passando por Madonna. No auge da carreira, Beyoncé chegou ao Brasil para mostrar do que a mulher da primeira década dos anos 2000 pode – e deve – ser capaz.

A cantora desembarcou na quinta-feira, em Florianópolis, poucos dias depois de ter lançado seu primeiro perfume – Heat (calor) – e feito a festa na 52a edição do Grammy: levou seis dos dez troféus que disputava, feito inédito para uma artista mulher. Trouxe o marido, Jay-Z, e o pai, Matthew Knowles.

Escoltada por 20 policiais em cinco carros blindados, Beyoncé baixou o vidro do carro que a levava do aeroporto ao hotel no centro da cidade e acenou. Jay-Z buzinou. Ali mesmo, os fãs anteciparam o delírio que marcaria seu primeiro show, à noite.

Os espetáculos agendados para o Brasil fazem parte da reta final da turnê I am... , em que relembra momentos essenciais da carreira e apresenta os hits de seu terceiro álbum solo, I am... Sasha Fierce, de 2008.

A cantora Ivete Sangalo foi escalada para abrir os shows em São Paulo e Salvador. Wanessa, a ex-Camargo, cumpriu a função no show de Florianópolis e repetiria a participação no Rio de Janeiro no domingo e na segunda-feira.

O evento em Florianópolis, ao ar livre, no Parque Planeta, foi um exemplo de megashow pop contemporâneo, alimentado por alta tecnologia, danças arrebatadoras e até do abrir e fechar de imensas cortinas, ao modo de um teatro.

Em duas horas de palco, Beyoncé provou ser uma diva do pop, capaz de dançar e cantar (não apenas fingir que canta) no meio do público, ao mesmo tempo que conversava e tocava os espectadores.
Saiba mais

* »Ele pôs o anel no dedo dela

No palco, ela se apoia em 22 artistas, entre bailarinos, cantores e a banda feminina Suga Mama. Beyoncé se mostra uma artista madura. Nos intervalos entre as músicas, encara o público e faz charme com o cabelo.

Quando a música volta a bombar, sai requebrando e solta seu vozeirão. Os espectadores, a maioria na faixa dos 18 aos 30 anos, vão ao êxtase. Só faltou voar. Não é que ela não seja capaz. As limitações técnicas do palco é que não permitiram sua ascensão por cabos de aço.

É um roteiro de sedução: Beyoncé troca de figurino dez vezes e varia o repertório, revezando momentos românticos, como quando canta “Ave Maria” de Franz Schubert, e dançantes.

Cantou sucessos como a balada lenta “If I were a boy”, mostrando seu registro especial de mezzosoprano. Antes de embalar “Single ladies (Put a ring on it)”, o telão apresentou uma edição divertida de vídeos caseiros de anônimos e famosos fazendo a coreografia, entre eles o presidente americano, Barack Obama (só a parte da mãozinha, é claro). Beyoncé sabe usar, como poucos artistas, os recursos multimídias.

O telão widescreen de última geração – nem nos mais recentes grandes shows de rock se viu imagem de tão perfeita qualidade – reforça e dá novos sentidos a suas letras. Beyoncé se despediu sacudindo uma bandeira brasileira entregue por um fã e cantando “Halo”, em homenagem a Michael Jackson. “Brasil, Brasil, eu posso sentir sua aura”, afirmou.

No total, Beyoncé “sentirá a aura” de 30 países. De Salvador, na quarta-feira, ela seguirá para Argentina, Chile, Peru e Trinidad, onde encerrará a turnê iniciada há 11 meses. Terá cumprido 115 dias de espetáculos por Estados Unidos, Europa, Japão e América do Sul. Diz que, depois da maratona, pretende descansar por pelo menos seis meses, adiando a produção de seu quarto álbum.

“Tenho um monte de melodias e ideias”, afirmou. “Mas preciso dizer a mim mesma: ‘Fique quieta! Fique quieta!’.” Será a primeira pausa em sua carreira. Só nos primeiros dois meses da turnê, na Europa e nos Estados Unidos, ela arrecadou US$ 36 milhões. Seus fãs não economizam para lotar ginásios e estádios de futebol, pagando ingressos que começam na faixa dos US$ 50.

Por aqui, os valores variam de R$ 60 a R$ 750. É a média de preços dos últimos shows internacionais realizados no Brasil, hoje um dos polos de atração de megaespetáculos. E consegue dar uma boa margem para contemplar a maioria dos fãs, modestos ou abonados, que baixam seus CDs de graça pela internet.

Mesmo tendo feito sucesso numa época em que a pirataria atingiu duramente o mercado fonográfico, de acordo com sua gravadora, a Sony, Beyoncé já superou a marca dos 100 milhões de álbuns vendidos, desde os tempos do grupo Destiny’s Child.

No ano passado, a revista de negócios americana Forbes a colocou no alto da lista das celebridades mais bem pagas antes dos 30 anos: só entre 2008 e 2009, Beyoncé arrecadou US$ 87 milhões.

Junto a Jay-Z, somou US$ 122 milhões no mesmo período, o que os torna o casal mais bem-sucedido de Hollywood atualmente. Deixa (bem) para trás Brad Pitt e Angelina Jolie, com “humildes” US$ 55 milhões.

Mister Shadow
EM AÇÃO


Beyoncé começa o primeiro show no Brasil, em Florianópolis, cantando “Crazy in love”. No palco, 22 artistas, entre bailarinos, cantores e a banda só de mulheres, Suga Mama


06 de fevereiro de 2010 | N° 16238
NILSON SOUZA


Agentes duplos

Dia desses vesti uma fantasia de Papai Noel para fazer uma reportagem e me senti o pior dos farsantes. Cheguei mesmo a relutar antes de aceitar a missão. Argumentei para a editora que não gostaria de enganar as crianças, fazendo-me passar por um Papai Noel de verdade. Ela derrubou o meu argumento com uma pergunta marota, mas irrefutável:

– E existe Papai Noel verdadeiro?

Ainda assim, foi com um certo constrangimento que vivi por alguns minutos o papel de outro personagem que não eu próprio. Não tenho a mínima vocação para ator. Se tivesse que representar, seria um deplorável canastrão. Por isso, acompanhei com espanto a série que Zero Hora publicou nesta semana sobre espiões infiltrados nos movimentos sociais e políticos organizados.

Como pode alguém enganar tanta gente por tanto tempo? Descontadas as bravatas tardias, pois é evidente que algumas pessoas contam vantagem para parecer mais espertas do que realmente são, os agentes duplos impressionam tanto pelo que fizeram no passado quanto pelas revelações atuais.

Vá entender o ser humano! Até o famoso Garganta Profunda do caso Watergate, que resultou na renúncia do presidente norte-americano Richard Nixon, resolveu soltar a língua depois de permanecer mais de 30 anos no anonimato. Dizem que ele levou uma grana da revista Vanity Fair, mas não duvido que tenha sucumbido à própria vaidade mesmo.

É o que parecem estar fazendo esses personagens que agora saem das sombras e contam com orgulho suas aventuras de espionagem. Confesso que me chocam um pouco. Pode ser até que tenham feito bem o seu trabalho, mas eu não compraria um carro usado de nenhum deles. O mínimo que se pode pensar de um agente duplo é que ele é 50% mentiroso.

Até gosto de gente que representa bem, mas só quando sei que se trata de uma representação. Detesto pegadinhas e coisas do gênero por isso. Não acho a menor graça quando me sinto enganado.

Mas aplaudo atores talentosos, capazes de dar tanta autenticidade aos seus personagens que eles mesmos se esquecem da identidade original.

Outro dia ouvi uma divertida entrevista do cantor e comediante Moacyr Franco na qual ele falou com saudade sobre um ex-companheiro de palco falecido, o humorista Ronald Golias. “Deus mandou o personagem e esqueceu de mandar o homem”, disse Moacyr.

Golias tinha mesmo uma cara preparada para despertar risos e sorrisos. Não precisava nem representar. Jamais poderia ser um agente duplo, pois era extremamente verdadeiro na sua farsa.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010



03 de fevereiro de 2010 | N° 16235
MARTHA MEDEIROS


Eu te amo, mas...

Não há o que não haja no vasto mundo da internet. Geralmente descubro o que está rolando nesse tal planeta Cyber através da mídia convencional. Foi o que aconteceu quando, ao ler a revista Bravo, soube de um site que reúne pequenas frases que, em comum, têm o fato de começar com “Eu te amo, mas...”.

É o www.loveyoubut.com, cuja finalidade não faço ideia qual seja, a não ser a de fornecer alguma inspiração a cronistas famintos por qualquer coisa que lhes sirva para preencher um primeiro parágrafo.

Tenho simpatia por tudo o que desmistifica o sagrado, e uma declaração de amor é de natureza sacra, faz parte das coisas aparentemente invioláveis. Sai geração, entra geração, o “eu te amo” segue no topo das paradas. De forma curta e milagrosa, faz desaparecer desavenças, raivas, dúvidas, muxoxos.

É o abre-te sésamo da paixão, a concretização do grande desafio: fazer dois seres humanos acreditarem que o amor basta para lhes fazer feliz. Ô, responsabilidade. Então, surge um site espirituoso que nos lembra que todo amor, mesmo os mais sólidos, vem acompanhado do advérbio “mas”. Ou você acreditava que o amariam assim, sem nenhuma ressalva?

Eu te amo, mas você compra todos os presentes de Natal em outubro.

Eu te amo, mas você dá apelidos para si mesmo.

Eu te amo, mas você coloca pontos de exclamação em todas as frases!!!!

Eu te amo, mas você pendurou sua foto da formatura na parede.

Eu te amo, mas você insiste em dizer que O Alquimista mudou a sua vida.

Eu te amo, mas você fala de celebridades como se fossem seus amigos íntimos.

Esses são alguns exemplos divertidos (catados no site) de como o amor da nossa vida pode ser honesto, inteligente e lindo, mas não escapa de ter um ou vários hábitos enervantes.

Inspirador? Sim, mas proponho uma inversão: em vez de criar a sua frase secreta sobre a criatura que divide os lençóis com você (“Eu te amo, mas você dorme com o ar-condicionado na potência máxima”), procure especular o que ele, o amor da sua vida, diria a SEU respeito.

De minha parte, vou exercitar minha humildade e imaginar tudo o que eu ouviria depois do “mas”. Daria uma bíblia, e iniciaria certamente com “eu te amo, mas você é maluca, dorme com a janela do quarto fechada com esse calorão”.

E mais. Engasgo com frequência, não sei me atirar de bico na piscina, costumo roer as unhas com pele e tudo, não gosto de comida japonesa, falo mal o inglês, acredito em anjo da guarda e não enxergo um palmo à frente sem óculos. Absolvida? Espero que sim.

Enquanto o “mas” fizer vir à tona apenas os meus humaníssimos defeitos, não morro solteira. O importante é que o “mas” continue sendo precedido por um sincero “eu te amo”. Aí topo ar-condicionado na potência máxima e talvez até tire as meias pra dormir.

Uma ótima quarta-feira e um gostoso inicio de semana para quem estava de feriadão como eu, ehehehehe.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010



02 de fevereiro de 2010 | N° 16234
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O terceiro capítulo

Está sendo lançado um novo romance de Sidney Sheldon (A Senhora do Jogo), mas dificilmente ele comparecerá à sessão de autógrafos, e isso por uma singela razão: morreu em 2005.

Tinha deixado o livro pronto? – perguntará o leitor distraído. Ao que eu responderei que não, que na verdade a obra foi composta por uma inglesa, Miss Tilly Bagshawe, cujo nome aparece discretamente na capa. Em contraste, o de Sidney Sheldon surge em letras berrantes, como convém a um escritor traduzido para 51 idiomas e que vendeu incríveis 300 milhões de exemplares no mundo inteiro.

É um dos mais espantosos casos de sobrevivência em toda a História. Transferido desta para melhor há cinco anos, Sheldon é um dos mais cotados nas listas de best-sellers em Europa, França e Bahia – e isso por um livro a que ele não adicionou uma vírgula.

Na verdade, segundo leio em reportagem de Jerônimo Teixeira na Veja, sua ajuda é indireta, pois o romance é uma saga familiar, o que significa que os principais personagens já existiam. Mas Miss Tilly está para lançar um outro livro com o nome de Sheldon, que não é mais a continuação de uma obra anterior, mas uma trama no estilo do autor.

É o que me leva a imaginar, por um simples exercício de fantasia, que um dos meus romances tivesse um seguimento póstumo. Como eu já não estaria mais aqui para avaliá-lo, só posso desejar que fosse um trabalho bem além de meu acanhado talento.

A mocinha seria um prodígio de beleza, os traços suaves, o corpo perfeito, as feições primorosas. Seria alta, teria os olhos e os cabelos claros, as curvas impecáveis. Seria rica, dona de uma imensa mansão e de uma cultura invejável.

Teria um affair inesquecível com um rapaz pobre porém honesto, e suas cenas de sexo seriam tórridas como a região equatorial. Seus diálogos seriam imperecíveis, plenos de sabedoria e de ternura. E seus pensamentos, um compêndio de bom senso e de partilha.

Lutariam por causas nobres e dignificantes, seus inimigos seriam todos derrotados, estenderiam a mão para os humilhados e os ofendidos. Prostariam os arrogantes, se imporiam aos tolos, venceriam os pérfidos.

E ninguém seria mais feliz do que eles.

Aqui faço ponto e vírgula e me dou conta de que personagens assim seriam infinitamente chatos, e ninguém leria sua história além do terceiro capítulo. A condição humana não suporta a perfeição, mesmo nas páginas de um romance.

Certa mesmo está Miss Tilly, que constrói sua história sem perdão, com a receita dos feios e dos maus, pois é assim que caminha a humanidade.

Uma linda terça-feira e um excelente feriado para quem está de feriado hoje. Para quem for viajar boa viagem.

sábado, 30 de janeiro de 2010



31 de janeiro de 2010 | N° 16232
MARTHA MEDEIROS


É impossível ser feliz sozinho?

Pense nos melhores momentos da sua vida: você estava sozinho ou acompanhado?

A limentar muita expectativa é o caminho mais curto para a frustração. Mais uma vez a máxima se confirmou: fui assistir a Amor sem Escalas, o badalado filme do mesmo diretor do excelente Juno, e não fiquei impactada como se prenunciava. Achei bom, apenas.

Tem alguns diálogos espertos e uma inversão de papéis inusual (no que se refere a relações entre homens e mulheres), mas, apesar do frescor que Jaison Reitman imprime a seus filmes, desta vez ele por pouco não escorregou pro sentimentalismo barato. Dentro do mesmo tema – é possível ser feliz sozinho? – prefiro Estrela Solitária, de Wim Wenders, que tratou sobre o isolamento do ser humano com muito mais poesia e beleza.

Ainda assim, uma frase me marcou. “Pense nos melhores momentos da sua vida: você estava sozinho ou acompanhado?”.

Pode não ser comum, mas há pessoas que não têm nenhuma vocação para constituir família, e nem por isso merecem a cadeira elétrica. Eles simplesmente preferem estar em movimento, não ter amarras, e essa liberdade cobra um preço que, se costuma ser alto para a maioria, para outros pode ser uma dívida fácil de quitar.

Eu bem que gosto de ficar sozinha. Já tive ótimos momentos comigo mesma dentro de um trem, em frente ao mar, lendo um livro. Mas reconheço que os momentos sublimes, aqueles eleitos como inesquecíveis, aconteceram quando eu estava “avec”. Reconhecer isso não faz eu desprezar a solidão, mas me impede de adotá-la como estilo de vida permanente.

Sozinha eu posso ser mais livre, mas não sou desafiada. Compartilhar a vida com alguém exige participação: a gente é impelido a se manifestar, a traduzir em gestos e palavras o que estamos sentindo, e isso engrandece o momento, cria vínculo, avaliza o que está sendo vivido, confere magia ao instante, credibiliza aquilo que está nos deixando emocionado.

Não precisa ser um momento repartido apenas com seu grande amor: pode ser também com os pais, com um irmão, um amigo, até mesmo com desconhecidos. Quando se olha nos olhos dos outros e se compreende o que se está passando, a sintonia se dá, mesmo silenciosa.

Lembrei de Scarlett Johansson sozinha num bar de hotel em Tóquio, percebendo o também solitário Bill Murray tomando seu uísque, em Encontros e Desencontros. A secreta comunicação do olhar entre ambos dava sentido ao que não havia sentido algum.

Pode acontecer entre dois, e também pode acontecer entre muitos. Um estádio de futebol lotado, com a massa gritando pelo mesmo time. Um show vibrante, todos cantando a mesma letra. Imagine se o espetáculo fosse exclusivo pra você: que graça teria?

Estando sozinhos, a sensação interna sobre o que está sendo vivido é quase triste, mesmo que não seja.

Juntos, até o que não parece alegre, fica.


30 de janeiro de 2010 | N° 16231
NILSON SOUZA


O objeto perfeito

O caderno Vestibular, encartado na edição da última quarta-feira deste jornal, apresentou uma desafiadora sugestão para estudantes do Ensino Médio: a leitura de um livro por mês. Educadores e especialistas selecionaram títulos por faixa etária, e o jornal apresentou um roteiro específico para jovens entre 15 e 18 anos, indicando um livro a cada 30 dias como receita, senão para uma formação literária excelente, pelo menos para uma vida prazerosa.

Li com atenção a reportagem, conferi os títulos que já fazem parte do meu currículo de leitor, mas fiquei pensando: que jovem da geração digital dispõe de tempo para devorar um livro por mês?

Os críticos mais rigorosos do admirável mundo novo em que vivemos certamente responderão que o problema não é tempo, mas vontade. Como diria aquele célebre dicionarista, discrepo. Vontade muitos têm. Mas os apelos da tecnologia são mais fortes.

Os celulares chamam, torpedeiam, vibram como pequenos terremotos da atenção. Os computadores brilham, emitem ruídos, falam e ouvem. Os tocadores de música ocupam os ouvidos e o cérebro. Os teclados chamam os dedos. Fica mesmo difícil exigir que a garotada se conforme em ocupar as mãos e os olhos com um objeto aparentemente inanimado como um livro.

E no entanto ele se move. O livro (de papel, bem entendido) é um daqueles objetos perfeitos – portátil, fácil de manusear, responde prontamente ao toque dos dedos que o folheiam, permite retrocesso nas páginas, dispensa o uso do mouse, não trava, o conteúdo não se apaga quando falta luz nem quando se toca numa tecla errada. Dependendo do operador, pode ser tão interativo como qualquer equipamento eletrônico, já que possibilita soltar a imaginação.

Acho mesmo tudo isso, mas reconheço que esta é uma visão antiga. Estudiosos do cérebro dividem os leitores em contemplativos, fragmentados e virtuais.

Os primeiros são da época ancestral em que o livro era a principal fonte de conhecimento, consumia todo o tempo do consulente. O leitor fragmentado pegou o tempo do jornal, da televisão, do ambiente urbano cheio de placas luminosas, sinais que se movem.

Passou a consumir a leitura com pressa, em movimento, sem tempo para reler e meditar. E chegamos ao leitor virtual, que interage com som, texto, imagem, vídeos, telas planas, tudo misturado, numa celeridade quase alucinógena. É quase antinatural querer que essas criaturas multimídias desacelerem cérebros e dedos para ler um livro por mês.

Mas quem já leu vários daqueles títulos sugeridos pelo velho método de folhear página por página tem motivos para pensar que a garotada está perdendo algo muito valioso.

Um lindo sábado e um gostoso fim de semana

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010



27 de janeiro de 2010 | N° 16228
MARTHA MEDEIROS


De braços abertos

Eu não costumava prestar atenção nessas coisas, mas certa vez caiu no meu colo uma dessas reportagens que falam sobre nossa linguagem corporal, e me dei conta de que eu andava mandando um recado muito malcriado para as pessoas com quem eu me relacionava: tinha mania de conversar com os braços cruzados. O problema disso? Segundo os entendidos, todos.

Quem cruza os braços demonstra uma certa resistência em se entregar, não está querendo que invadam seus domínios, assinala que não quer muita aproximação. Dependendo do caso, até que os braços cruzados servem mesmo como um bom escudo, mantém cada um no seu quadrado, mas pô, na maioria das vezes, minha alma, silenciosamente, abraçava a pessoa querida com quem eu conversava, por que nem assim eu desamarrava os braços?

Hábito. Um mau hábito. Hoje estou atenta à linguagem corporal e mantenho os braços soltos, e se me descuido sou até capaz de conversar apoiando minha mão no ombro da pessoa, feito uma comadre abusada. Não tenho mais o corpo fechado, estou desprotegida para o que der e vier.

Toda essa introdução pra dizer que, mesmo me esforçando para abraçar a vida, ainda tenho um longo caminho a percorrer até chegar à exaltação carnavalesca de Kiki Joachin, o menino de sete anos que foi resgatado dos escombros do Haiti semana passada e que foi responsável pela cena mais doce dessa tragédia infame.

Kiki, morrendo de fome, morrendo de sede, morrendo de medo, morrendo de dor – morrendo –, não esperou nem meio segundo para, fora do buraco, esticar seus braços feito um mestre-sala na avenida, feito um artilheiro que fez seu gol mil, feito o azarão de todas as apostas que conseguiu vencer o campeonato.

Driblou todos os prognósticos, viveu. E comemorou imitando o Cristo Redentor, só que com muito mais alegria – santos fazem milagres, mas jamais sorriem, não entendo por quê.

Então, em homenagem ao Kiki, que a gente nunca mais cruze os braços pra nada, a exemplo também de outro menino de sete anos, dessa vez o britânico Charlie Simpson, que se propôs pedalar sua bike por oito quilômetros em volta de um parque para conseguir doações para o Haiti.

O tiquinho de gente arrecadou 132 mil libras, cerca de R$ 390 mil.

Descruzando os braços, a gente se desarma e participa mais da sociedade. Se aproveitarem nossa vulnerabilidade para nos atingirem, a covardia será dos outros, não nossa.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010



26 de janeiro de 2010 | N° 16227
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Sobre uma foto

No outono de 1964, a noite acabara de cair sobre o Brasil. Inauguravam-se os Anos de Chumbo. Por mais de duas décadas, todas as leis se submeteriam a uma só – a do arbítrio.

Acabei de revisitar a inauguração daquela era de autoritarismo. O Jornal do Povo, de Cachoeira, mantém uma seção dominical chamada Olho Mágico, em que se publicam fotos e notícias antigas da cidade. E é nela que me deparo com um flagrante da vida real: um instantâneo do coral da Escola Normal João Neves da Fontoura no dia 22 de maio de 1964.

Em Brasília, em Porto Alegre, em centenas de lugares, brasileiros tramavam a perenidade do golpe de 31 de março. Rompia-se o Estado de Direito, rasgava-se a Constituição. Quem era contra a nova ordem submetia-se à violência, à cassação de mandatos, à perda de prerrogativas de cidadania.

Mas havia uma lógica estranhamente perversa no processo. Funcionava um simulacro de instituições democráticas. Mesmo mutilados, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados mantinham uma aparência de normalidade. Mesmo desfigurada, a Assembleia Legislativa realizava sessões com discursos e moções. Era a comédia trágica dos parlamentos amputados.

Tempos piores ainda viriam, de mais violência. Mas naquele 22 de maio de 1964, as meninas do Coral do João Neves ainda podiam sorrir para a câmera, alheias ao que se passava ao seu redor. Como a maioria das pessoas, estavam algo distantes do que sucedia em sua cidade, em seu Estado, em seu país.

Olhadas agora, são belas em seus uniformes, em seus sorrisos, em seu amor pela vida. Conheci várias delas, tão bonitas, em festas, bailes, reuniões dançantes. Acompanhei de perto muitas de suas alegrias, vários de seus romances. De algumas me perdi, de outras sou amigo até hoje.

Mas o que mais me toca é vê-las nesta foto, como se séculos não houvessem transcorrido. Estão aqui no zênite de sua lindeza, os corações cheios de esperança.

O país ia mal ou andava confuso? Não era culpa delas. Elas tratavam de sobreviver. Pois sobreviver para contar também é uma forma de luta.

sábado, 23 de janeiro de 2010



24 de janeiro de 2010 | N° 16225
MARTHA MEDEIROS


Seu apartamento é feliz?

Dia desses fui acompanhar uma amiga que estava procurando um apartamento para comprar. Ela selecionou cinco imóveis para visitar, todos ainda ocupados por seus donos, e pediu que eu fosse com ela dar uma olhada.

Minha amiga, claro, estava interessada em avaliar o tamanho das peças, o estado de conservação do prédio, a orientação solar, a vizinhança. Já eu, que estava ali de graça, fiquei observando o jeito que as pessoas moram.

Li em algum lugar que há uma regra de decoração que merece ser obedecida: para onde quer que se olhe, deve haver algo que nos faça feliz. O referido é verdade e dou fé.

Não existe um único objeto na minha casa que não me faça feliz, pelas mais variadas razões: ou porque esse objeto me lembra de uma viagem, ou porque foi um presente de uma pessoa bacana, ou porque está comigo desde muitos endereços atrás, ou porque me faz reviver o momento em que o comprei, ou simplesmente porque é algo divertido e descompromissado, sem qualquer função prática a não ser agradar aos olhos.

Essa regra não tem nada a ver com elitismo. Pessoas riquíssimas podem viver em palácios totalmente impessoais, aristocráticos e maçantes com suas torneiras de ouro, quadros soturnos que valem fortunas e enfeites arrematados em leilões. São locais classudos, sem dúvida, e que devem fazer seus monarcas felizes, mas eu não conseguiria morar num lugar em que eu não me sentisse à vontade para colocar os pés em cima da mesinha de centro.

A beleza de uma sala, de um quarto ou de uma cozinha não está no valor gasto para decorá-los, e sim na intenção do proprietário em dar a esses ambientes uma cara que traduza o espírito de quem ali vive. E é isso que me espantou nas várias visitas que fizemos: a total falta de espírito festivo daqueles moradores.

Gente que se conforma em ter um sofá, duas poltronas, uma tevê e um arranjo medonho em cima da mesa, e não se fala mais nisso. Onde é que estão os objetos que os fazem felizes? Sei que a felicidade não exige isso, mas pra que ser tão franciscano?

Um estímulo visual torna o ambiente mais vivo e aconchegante, e isso pode existir em cabanas no meio do mato e em casinhas de pescadores que, aliás, transpiram mais felicidade do que muito apê cinco estrelas. Mas grande parte das pessoas não está interessada em se informar e em investir na beleza das coisas simples.

E quando tentam, erram feio, reproduzindo em suas casas aquele estilo showroom de megaloja que só vende móveis laqueados e forrados com produtos sintéticos, tudo metido a chique, o suprassumo da falta de gosto. Onde o toque da natureza? Madeira, plantas, flores, tecidos crus e, principalmente, onde o bom humor? Como ser feliz numa casa que se leva a sério?

Não me recrimine, estou apenas passando adiante o que li: pra onde quer que se olhe, é preciso alguma coisa que nos deixe feliz. Se você está na sua casa agora, consegue ter seu prazer despertado pelo que lhe cerca? Ou sua casa é um cativeiro com o conforto necessário e fim?

Minha amiga ainda não encontrou seu novo lar, mas segue procurando, só que agora está visitando, de preferência, imóveis já desabitados, vazios, onde ela possa avaliar não só o tamanho das peças, a orientação solar, o estado geral de conservação, mas também o potencial de alegria que os ex-moradores não souberam explorar.

Um lindo domingo pra vc


Beyoncé, a poderosa

Provocativa, mas nunca vulgar, a cantora americana – que se apresenta no Brasil em fevereiro – conquista os adolescentes sem ofender os pais. Ela é hoje o maior nome da música pop mundial

Sérgio Martins
Mr Photo/Corbis Outine/Latinstock


AS MEDIDAS DA ESTRELA
Altura: 1,70 m
Peso: 59 quilos Busto: 89 cm
Cintura: 64 cm Quadris: 102 cm
Discos vendidos no mundo: 25 milhões
Rendimentos anuais: 87 milhões de dólares
A MULHER DO SÉCULO

Beyoncé Knowles: hino feminista sobre um tabu do feminismo – a aliança de casamento

A revista Billboard, especializada em música pop, elegeu Beyoncé Knowles, de 28 anos, a mulher de 2009. Com mais de 25 milhões de discos vendidos em seis anos como artista-solo – aos quais se somam os 50 milhões de cópias do Destiny’s Child, grupo em que começou a carreira –, a americana é de fato um colosso do showbiz.

Na lista das 100 celebridades mais poderosas do mundo (seja lá o que isso for), publicada no ano passado pela revista Forbes, ela aparece em quarto lugar, atrás da atriz Angelina Jolie, da apresentadora Oprah Winfrey – e de outra cantora, Madonna, que, aos 51 anos, ainda bate na conta bancária a concorrente bem mais jovem.

De acordo com a revista, Beyoncé tem ganhos anuais de 87 milhões de dólares, contra 110 milhões de Madonna. Na música pop, porém, o momento conta mais do que a história – e este é o momento de Beyoncé. Seu último disco, I Am...

Sasha Fierce, vendeu 2,7 milhões de cópias nos Estados Unidos, enquanto Hard Candy, o mais recente de Madonna, ficou em 1 milhão. Beyoncé – que desembarca no Brasil no início de fevereiro para shows em Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador – é a voz mais ouvida nos iPods da moçada (e também está no aparelho do presidente Barack Obama, segundo declarou o próprio).

Sua balada Halo foi a música mais executada nas rádios brasileiras em 2009. Ela embolsa 20 milhões de dólares anuais emprestando o rosto e todo o resto a marcas como L’Oreal e Diamonds, perfume da grife Giorgio Armani. Mais do que a cantora do ano, Beyoncé é, até agora, a mulher do século no mundo pop.

Os shows do I Am... Tour, que os fãs brasileiros poderão ver em breve, trazem aquele gigantismo característico das grandes estrelas da música americana: duas horas e meia de duração, com muita coreografia, telões e efeitos especiais – em certo momento, a cantora voa sobre a plateia, suspensa por cabos. O repertório alterna baladas chorosas como Halo com canções dançantes que misturam as batidas do hip-hop à soul music das décadas de 60 e 70.

Beyoncé equilibra esses elementos com mais energia e carisma do que concorrentes como Rihanna ou Alicia Keys. Seus singles são o padrão-ouro do pop: fazem download instantâneo na cabeça de quem os ouve.

Mesmo quando tratam de ciúme e desilusão amorosa, as canções de Beyoncé dão voz a personagens femininas poderosas, como a tal Sasha Fierce (o sobrenome, em inglês, quer dizer feroz, bravia) que dá título a seu mais recente disco. Mas ela divide as feministas.

As mais radicais consideraram seu hit Single Ladies um retrocesso para a causa. Trata-se, afinal de contas, de uma mulher declarando que deseja uma aliança de casamento. Beyoncé, a propósito, é casada com o rapper Jay-Z. O maridão tem seu passado barra-pesada (já esfaqueou um desafeto), mas parece ter se aprumado.

Ao contrário de divas barraqueiras como Britney Spears e Mariah Carey, Beyoncé é boa moça até prova em contrário. Mantém uma fundação, a Survivor, que presta assistência a pobres e a vítimas de catástrofes como a destruição de Nova Orleans pelo furacão Katrina, em 2005. Seu cachê no filme Cadillac Records, no qual interpretou a cantora Etta James, foi revertido para associações que cuidam de viciados em drogas.

Na eleição presidencial de 2008, esteve engajada na campanha de Obama – até cancelou shows na Europa para fazer corpo a corpo (no caso, corpão a corpo) com eleitores na Virgínia e na Flórida. Valeu a pena: Obama convidou-a para fazer o show de seu baile inaugural na Presidência.

O histórico de correção política da cantora foi arranhado no réveillon, quando fez um show particular, em uma ilha do Caribe, para Mutasim-Billah, filho do ditador líbio Muamar Kadafi. E o cachê até que foi baixo: 2 milhões de dólares.

Provocativa, mas nunca vulgar, a música de Beyoncé alcança o público adolescente sem ofender os pais. Com seu ritmo fácil e repetitivo, Single Ladies até virou hit entre os bebês.

O vídeo de um menino de fralda dançando em frente a uma TV que exibe o clipe da canção já foi visto mais de 7 milhões de vezes no YouTube. O pai do garoto até criou um site, a fim de arrecadar dinheiro para a futura educação universitária do pequeno dançarino.

Esse apelo infantil, porém, é acidental: Beyoncé, com suas formas exuberantes (há especulações sobre implantes nos seios), é a estrela mais sexy da música atual.

Com tendência a engordar, ela às vezes recorre a esquisitas dietas líquidas para vencer a balança. Também tem uma discretíssima celulite. Homens de verdade não fazem a mínima ideia do que seja celulite. Mas sabem que Beyoncé tem poder.

SUCESSO DE BERÇO
Beyoncé e suas dançarinas:
campanha para Obama e show para o filho do ditador líbio


Claudio de Moura Castro

Na Idade das Trevas

"A infindável batalha entre os formuladores de políticas de desenvolvimento tecnológico e a nossa impenetrável máquina burocrática"

Cruzando um corredor da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos, empresa pública vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia), o impetuoso diretor é alvejado por uma pergunta à queima-roupa, formulada com ironia: "Há quanto tempo você trabalha aqui?". Isso porque ele tinha proposto que os pedidos de empréstimo fossem processados em um prazo máximo de um mês.

Ousou arrostar a pachorrenta burocracia. Era mais um capítulo de uma infindável batalha entre os formuladores de políticas de desenvolvimento tecnológico e a nossa impenetrável máquina burocrática.

As políticas para criar tecnologia brasileira sugerem a existência de vida inteligente nas agências de fomento. Em contraste, as regras para implementar tais políticas permanecem na Idade das Trevas.
Ilustração Atomica Studio

Nossos formuladores revelam argúcia. Há ideias inteligentes e um mínimo de continuidade na sua implementação. Nota-se também um saudável aprendizado, ao entender os equívocos e procurar corrigi-los.

A Lei da Inovação criou engenhosas pontes entre universidades e empresas, tornando possível oferecer subsídios monetários aos empresários inovadores. Ademais, o governo agora pode virar parceiro, entrando com capital de risco. Houve um crescimento vertiginoso das publicações científicas.

Hoje o Brasil é o 13º maior produtor de ciência em periódicos respeitáveis. Se publicações no exterior podem ser vistas como exportação de conhecimento, exportamos mais ciência (2% do total mundial de publicações) do que mercadorias (pouco mais de 1% do comércio internacional).

Somos um dos três únicos países a extrair do próprio subsolo e refinar urânio. A meteorologia está pronta para enfrentar os desafios do aquecimento global. Não há nenhuma empresa de petróleo no mundo com o mesmo domínio tecnológico da Petrobras.

É respeitada a nossa aeronáutica. Somos os primeiros em alguns setores do agronegócio (por exemplo, no etanol). Quase todos os grandes produtos de exportação têm ampla dose de tecnologia tupiniquim.

Ou seja, há vida inteligente no governo, pois algumas iniciativas privadas dependem de políticas públicas. Porém, as discussões de políticas tecnológicas são engolfadas pelos ruídos de gente que nada entende. Jorram palpites desencontrados.

Mais grave é o terrorismo dos sistemas de controle. São necessários, é certo. Contudo, Advocacia-Geral da União, Ministério Público, Receita Federal e tribunais de contas fazem coro para encontrar minudências técnicas que atrasam ou impedem o fluxo de pedidos de grande interesse para a nação.

Em vez de entenderem e apoiarem quem merece, esses órgãos garimpam tecnicalidades impeditivas e presumem a desonestidade dos postulantes. Segundo advogados empresariais, usar a Lei da Inovação tornou-se um risco para todo e qualquer projeto. Melhor não usar o que promete a lei, para não se arriscar aos humores de algum fiscal iracundo.

Atolam pesquisas de importância estratégica, derrotadas na maratona surrealista de importar reagentes ou equipamentos para os laboratórios das universidades públicas.

Não há correspondência entre fúria controladora e volume de recursos, pois tendem a ser quantias irrisórias. Foram abandonadas (exceto na Saúde) as políticas de compras públicas, responsáveis pelos sucessos passados da nossa indústria bélica e aeroespacial (por exemplo, a Embraer).

Os papéis engarrancham na burocracia, independentemente do talento do cientista ou da promessa do projeto. Licitações públicas escolhem propostas baratas mas frágeis, por medo das punições dos tribunais de contas (essa foi uma das razões da debacle do Enem).

As regras do serviço público são incompatíveis com a agilidade exigida pela ciência e tecnologia. Daí a abundância de mecanismos - como as fundações - para oferecer a velocidade imprescindível.

Mas, tão logo aparecem, os órgãos de controle fazem tudo para destruir esses atalhos administrativos. Na área ambiental, um parecer equivocado dá processo criminal. Ir para a cadeia por uma licença ambiental? Quem se arriscaria? Mas é o paraíso dos burocratas do "não" e dos crentes com visões simplórias.

A vida inteligente colide com órgãos de controle que permanecem na Idade das Trevas. Ou seja, temos boas políticas e as empresas estão aprendendo as artes da inovação (muito tarde, até).

Mas, na hora de implementá-las, os entraves e os riscos se multiplicam. Bons quadros públicos se acovardam, com razão. As empresas não têm tempo, recursos nem competência para vencer as forças malignas da inércia. É até surpreendente que tenhamos conseguido alguns sucessos.

Claudio de Moura Castro é economista


Estresse pode causar câncer, diz estudo

De acordo com pesquisadores americanos, condições estressantes podem emitir sinais que favorecem o desenvolvimento da doença
REDAÇÃO ÉPOCA

Estresse pode ativar mecanismos que favorecem o aparecimento do câncer

Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, publicado no site da revista Nature, afirma que o estresse pode emitir sinais que fazem com que células desenvolvam tumores.

O grupo liderado por Tian Xu, professor e vice-presidente do conselho de genética de Yale, descreve uma nova maneira pela qual o câncer age no organismo.

De acordo com o estudo, as mutações que causam o câncer podem atuar em conjunto para promover o desenvolvimento de tumores mesmo quando localizados em diferentes células em um mesmo tecido. A tese vai de encontro à defendida pela maioria dos cientistas, que defendem que uma célula precisa de mais de uma mutação para que os tumores se desenvolvam.

Para chegar a essa conclusão, o grupo trabalhou com Drosophila melanogaster (conhecidas popularmente como moscas da fruta) para analisar as atividades de dois genes conhecidos pelo envolvimento no desenvolvimento de tumores. O primeiro é o RAS, que aparece em 30% dos cânceres. O outro é o gene scribble (“rascunho”), que contribui para o desenvolvimento de tumores quando sofre mutação.

Segundo os resultados, uma célula com apenas a mutação RAS é capaz de se desenvolver em um tumor maligno se auxiliada por uma célula próxima que contenha um gene scribble defeituoso.

Os pesquisadores também observaram que condições estressantes, como uma ferida, por exemplo, podem disparar o desenvolvimento do câncer. O mecanismo por trás desse fenômeno, segundo os pesquisadores, é um processo de sinalização conhecido como JNK, que é ativado por condições de estresse.

“Diversas condições podem disparar esse processo de sinalização, seja o estresse físico ou emocional, infecções ou inflamações”, afirma Xu.

O estudo, segundo ele, deve apontar novas formas de prevenção e tratamento do câncer.


23 de janeiro de 2010 | N° 16224
NILSON SOUZA


O rúgbi e o perdão

Ganhei de presente, no último Natal, uma simpática bola de rúgbi com as cores da Austrália, o nosso conhecido verde e amarelo. Veio de Sydney, onde estuda um sobrinho que conhece bem o meu apreço por esportes.

Mas a bola oval que atravessou o oceano para chegar às minhas mãos também tem um significado irônico: o remetente sabe que um dia tentei jogar este jogo de correrias, trombadas, agarrões, quedas, atropelamentos e até cotoveladas, já que os participantes da brincadeira mal conheciam as regras.

Era, na verdade, um exercício de coragem, iniciativa, ousadia ou maluquice mesmo, que tivemos que realizar durante um encontro de executivos. Muitos de nós saímos estropiados daquelas pirâmides humanas que se formavam na disputa da bola.

Teve reclamação, discussão, safanões, mas, no final, todos os participantes da disputa, vencidos e vencedores, feridos e milagrosamente ilesos, sentamos em círculo e nos divertimos numa conversa amigável. Estávamos, confesso, orgulhosos de termos participado daquele verdadeiro entrevero - se me permitem a licença nada poética os praticantes do esporte.

Pois o rúgbi será o esporte deste ano da Copa do Mundo de futebol da África do Sul. Estreia na semana que vem o filme Invictus, no qual Morgan Freeman interpreta Nelson Mandela na sua empreitada para apaziguar um povo dividido e ressentido pelo apartheid, o sistema de segregação racial que vigorou no seu país.

Mandela utilizou a seleção de rúgbi, vencedora do mundial de 1995, como símbolo da união nacional. Naquela época, o time era formado apenas por brancos e representava a classe dominante e excludente. Mas o esporte faz mágicas e o filme certamente vai mostrar como tudo se ajeitou quando a bola rolou – ou, no caso, voou.

Morgan Freeman fala do filme e de sua carreira nas páginas amarelas da última Veja. Lá pelas tantas, o entrevistador pergunta o que ele acha da ideia de perdão, que foi essencial no governo Mandela para a superação do ódio acumulado.

O ator responde que mais difícil do que perdoar é esquecer. E sentencia: “O perdão significa riscar uma linha separando o presente e o futuro das faltas passadas e determinar que não se voltará para trás dessa linha. Que aqueles erros não serão repetidos”.

Mais ou menos como no rúgbi. No final, os oponentes se abraçam, pedem desculpas, perdoam-se. Mas não esquecem.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010



20 de janeiro de 2010 | N° 16221
MARTHA MEDEIROS


A nova minoria

É um grupo formado por poucos integrantes. Acredito que hoje estejam até em menor número do que a comunidade indígena, que se tornou minoria por força da dizimação de suas tribos. A minoria a que me refiro também está sendo exterminada do planeta, e pouca gente tem se dado conta. Me refiro aos sensatos.

A comunidade dos sensatos nunca se organizou formalmente. Seus antepassados acasalaram-se com insensatos, e geraram filhos e netos e bisnetos mistos, o que poderia ser considerada uma bem-vinda diversidade cultural, mas não resultou em grande coisa. Os seres mistos seguiram procriando com outros insensatos, até que a insensatez passou a ser o gene dominante da raça. Restaram poucos sensatos puros.

Reconhecê-los não é difícil. Eles costumam ser objetivos em suas conversas, dizendo claramente o que pensam e baseando seus argumentos no raro e desprestigiado bom senso. Analisam as situações por mais de um ângulo antes de se posicionarem. Tomam decisões justas, mesmo que para isso tenham que ferir suscetibilidades. Não se comovem com os exageros e delírios de seus pares, preferindo manter-se do lado da razão. Serão pessoas frias? É o que dizem deles, mas ninguém imagina como sofrem intimamente por não serem compreendidos.

O sensato age de forma óbvia. Ele conhece o caminho mais curto para fazer as coisas acontecerem, mas as coisas só acontecem quando há um empenho conjunto. Sozinho ele não pode fazer nada contra a avassaladora reação dos que, diferentemente dele, dedicam suas vidas a complicar tudo. Para a maioria, a simplicidade é sempre suspeita, vá entender.

O sensato obedece a regras ancestrais, como, por exemplo, dar valor ao que é emocional e desprezar o que é mesquinho. Ele não ocupa o tempo dos outros com fofocas maldosas e de origem incerta. Ele não concorda com muita coisa que lê e ouve por aí, mas nem por isso exercita o espírito de porco agredindo pessoas que não conhece. Se é impelido a se manifestar, defende sua posição com ideias, sem precisar usar o recurso da violência.

O sensato não considera careta cumprir as leis, é a parte facilitadora do cotidiano. A loucura dele é mais sofisticada, envolve rompimento com algumas convenções, sim, mas convenções particulares, que não afetam a vida pública. O sensato está longe de ser um certinho. Ele tem personalidade, e se as coisas funcionam pra ele, é porque ele tem foco e não se desperdiça, utiliza seu potencial em busca de eficácia, em vez de gastar sua energia com teatralizações que dão em nada.

O sensato privilegia tudo o que possui conteúdo, pois está de acordo com a máxima que diz que mais grave do que ter uma vida curta é ter uma vida pequena. Sendo assim, ele faz valer o seu tempo. Reconhece que o Big Brother é um passatempo curioso, por exemplo, mas não tem estômago para aquela sequência de conversas inaproveitáveis. É o vazio da banalidade passando de geração para geração.

Ouvi de um sensato, dia desses: “Perdi minha turma. Eu convivia com pessoas criativas, que falavam a minha língua, que prezavam a liberdade, pessoas antenadas que não perdiam tempo com mediocridades. A gente se dispersou”. Ele parecia um índio.

Mesmo com poucas chances de sobrevivência, que se morra em combate. Sensatos, resistam.

Uma linda quarta-feira pra você. Que haja muito sol lá fora e aí dentro desse coraçãozinho também

terça-feira, 19 de janeiro de 2010



19 de janeiro de 2010 | N° 16220
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Um amor impossível

Devo ser uma das 14 pessoas de Porto Alegre que têm os 14 tomos das obras mais ou menos completas de Joaquim Nabuco. Ainda assim me peguei o outro dia lançando um olhar comprido para a centimetragem ocupada pela coleção, calculando quantos outros volumes poderiam preencher o espaço reservado aos livros se eu me animasse enfim a perpetrar a dieta a que ando pretendendo submeter minha biblioteca.

Citei Nabuco porque está na moda. Faz cem anos de sua morte e só a Veja da outra semana lhe dedicou 12 páginas. Mas tenho examinado ainda o território tomado pela Bíblia, pelo Tesouro da Juventude, pela Enciclopédia Larrousse e sua vizinha, a Barsa, imaginando os domínios que poderia desbravar pela simples eliminação de suas alentadas lombadas.

Pois esse é todo o meu problema. Minha biblioteca atingiu o ponto extremo de saturação e eu me encontro inteiramente desprovido de lugares para abrigar os livros, comprados ou presenteados, que não cessam de imigrar para as minhas prateleiras.

A maioria são os doados, por autores ou editoras, que cultivam uma ideia extremamente otimista de minha capacidade de leitura. O resultado é que vou acumulando, nos beirais das estantes, pilhas de obras que não tardarão a ameaçar as alturas da Burj Khalifa, a torre de 169 andares erguida pelos petrodólares de Dubai.

Está bem, exagero.

Mesmo assim, as colunas se agigantam e não dão sinal de que vão estacionar.

Ocorre que, desde que me tenho por gente, morei em casas guarnecidas por dezenas de prateleiras. Às vezes as casas encolhiam, mas não as bibliotecas.

De muito longe em longe, eram indispensáveis providências drásticas. Como, por exemplo, presentear escolas ou chamar o caminhão do Mensageiro da Caridade.

Mas essas eram medidas extremas. O normal era explorar novos espaços para os volumes órfãos de abrigo. É nesse transe que estou novamente.

Não vou me desfazer da Larrousse, nem dos 14 tomos de Joaquim Nabuco, esse grande cruzado da Abolição. Não vou, tanto quanto possível, me desfazer de livro algum.

Mas já que falei em Nabuco, não custa nada revisitá-lo. Nem que seja apenas para reviver a senhora e dama de seu amor impossível.

Uma linda terça-feira para todos nós. Ah e parabéns pelo meu aniversário.

sábado, 16 de janeiro de 2010



17 de janeiro de 2010 | N° 16218AlertaVoltar para a edição de hoje
MARTHA MEDEIROS

Infeliz celular novo

Não compreendo muito bem essa ânsia que certas pessoas têm de trocar seu celular por outro mais moderno, jogando o antigo no lixo a cada seis meses.

Mentira: compreendo, sim. São pessoas normais, que lidam com tecnologia desde que largaram as fraldas, não são da época da pedra lascada, como eu.

Só uso celular para receber e fazer ligações, e para receber e enviar torpedos (o que aprendi muito recentemente, diga-se, e até hoje me atrapalho). Não pense que estou me gabando, agora que me declarei publicamente uma hippie que perdeu o rumo da história. Sei que estou reduzindo minhas possibilidades de ser feliz.

Eu poderia tirar fotos com o celular, receber e-mails pelo celular, ouvir música pelo celular, desfrutar de passatempos variados pelo celular, mas eu embestei que não preciso de nada disso, a não ser usar o aparelho para telefonar.

O que, justiça seja feita, me coloca num patamar de subdesenvolvimento, acima daqueles que nem para telefonar querem um. Conheço um cara que nunca teve um celular, que se nega, bate o pé, rejeita a ideia, e acho que ele deveria reconsiderar, pode precisar dar um telefonema no meio da estrada com o carro quebrado, vá saber. Tento convencê-lo e não tem jeito, chega a ser irritante em sua teimosia. Mais uma prova de que o fruto nunca cai longe do pé, já que o cidadão é meu pai.

Eu não chego a tanto. O celular facilita a minha vida. Não me tem como refém: eu sou a dona dele, não ele de mim. Poucas pessoas possuem o meu número, ele quase não toca. E eu só o utilizo para recados rápidos, assuntos domésticos, pendências profissionais, nenhuma conversa bombástica que mereça ser gravada.

Eu até o esqueço em casa de vez em quando. Então para que eu precisaria de um modelo novo? Poderia ter ficado com meu antigo até o fim dos dias, mas dia desses ele respirou com dificuldade, engasgou uma, duas vezes, e morreu. Como tenho pontos acumulados até para comprar a operadora, acabei recebendo um modelo de última geração. E desde então não durmo mais.

A moça que me atendeu disse que eu me acostumaria em questão de horas. Nenhuma dúvida. Vou me acostumar daqui a umas 678.423 horas. Eu implico com a configuração atual do aparelho. Eu estranho os novos ícones. Eu não sei onde ele liga. Nem onde desliga. Eu precisarei digitar nome por nome, e número por número, para formatar minha nova agenda.

Eu não tenho mais o meu ringtone clássico, agora o barulho que ele faz ao tocar é diferente, e eu que sempre respeitei as diferenças, virei nazista, xenófoba, misógina, homofóbica e biruta. E ainda nem falei o que me enerva mais: não ter teclas.

Agora é tudo na base do toque. Just touch. Repouse o dedo suavemente nos aplicativos, deslize o indicador na tela, assim, com delicadeza, isso... Não precisa apertar, não precisa apertar!

Até a publicação dessa crônica, estarei familiarizada com ele, claro. O exagero é o último recurso dos cronistas sem assunto no verão.

Mas que já estou com saudades do que deixei pra trás em 2009, estou.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010



13 de janeiro de 2010 | N° 16214
MARTHA MEDEIROS


A lei de cada um

Wesley Ramos é um menino de 11 anos que mora nos arredores de Sorocaba, SP, e que foi homenageado semana passada pela prefeitura da sua cidade por ter devolvido uma bolsa à dona e tudo o que nela havia, documentos e dinheiro inclusive. Foram concedidas honrarias públicas para o menino honesto.

A cada vez que isso é destacado no jornal, me sinto uma extraterrestre. Viver num país onde os atos que deveriam ser corriqueiros viram manchete é um sintoma da nossa deterioração moral. No jornalismo, existe uma máxima que diz que notícia não é um cachorro morder uma pessoa, e sim uma pessoa morder um cachorro. Wesley, que devolveu o que não era seu, mordeu um cachorro.

O comum tornou-se incomum porque nos habituamos a tomar atitudes desconectadas da ordem social. Na hora de bravatear, somos todos imaculados, os reis do gogó, que salivam de prazer ao apontar as falhas dos outros, mas, na hora de seguir a lei dos homens, refutamos a coletividade e tratamos de seguir nossa própria lei. E a lei de cada um é a lei de ninguém.

A estrada, o lugar mais superpovoado do verão, oferece um demonstrativo desse “cada um por si” que leva a catástrofes. A faixa amarela contínua serve para os outros, não para o super-herói do volante que enxerga mais longe e melhor do que os engenheiros de trânsito. Quantas doses de álcool se pode beber antes de dirigir? Para a lei geral estabelecida, nenhuma. Para a lei de cada um, o limite é decisão pessoal.

Choramos pelos mortos que ficam soterrados nas encostas por causa da chuva, mas dai-nos um terreninho em cima do morro e com vista pro mar, Senhor, e daremos um jeito de conseguir um alvará irregular.

A corrupção é generalizada. Na hora de espinafrar os Arrudas que surgem na tevê, somos todos anjos, mas quando surge uma oportunidade de facilitar o nosso lado, de encurtar caminhos, mesmo agindo incorretamente, não existe lei, não existe ética, existe apenas uma oportunidade que não se pode desperdiçar, coisa pequena, que mal há?

Honestidade e ética dependem unicamente do ponto de vista do cidadão: quando ele enxerga o outro fazendo mal, condena. Quando é ele que age mal, o mal deixa de existir, é apenas uma contingência. Essa miopia se corrige como?

Ninguém está imune a erros, mas seria um alívio se nossos erros se mantivessem na esfera particular. Quando agimos como cidadãos responsáveis pelo bem público, o erro de caso pensado deveria ser um crime. Aliás, é crime.

Mas somos hipócritas demais e há muito que invertemos os princípios básicos da cidadania. Wesley foi homenageado por não ser mais um a inventar a sua própria lei, e sim por ainda acreditar na lei de todos.

Uma gostosa quarta-fera especialmente pra você.

sábado, 9 de janeiro de 2010



09 de janeiro de 2010 | N° 16210
NILSON SOUZA


Pandora

Quando a menina dos meus olhos fez a clássica pergunta dos finais dos filmes que assistimos juntos, eu estava tão atordoado que apenas sinalizei com as duas mãos espalmadas e um dos dedos encolhidos. Nem sei por que dei nota 9 em vez de 10 para Avatar, uma experiência de cinema absolutamente diferenciada de tudo o que eu já havia visto.

Talvez porque ainda estivesse me refazendo do susto e do constrangimento de ter me esquivado quando um artefato qualquer voou na minha direção, em meio a uma das batalhas em terceira dimensão entre terráqueos e habitantes da lua Pandora, cenário da fantástica aventura. Fiz como o Bush diante dos sapatos arremessados pelo jornalista iraquiano.

No mundo de efeitos especiais criados pelo diretor James Cameron, tudo é possível e verossímil, desde as poderosas máquinas de extermínio dos invasores até a fauna e a flora mágicas dos nativos. Nós, humanos, somos os invasores.

Estamos naquele lugar para roubar um minério valioso enterrado sob o paraíso onde vivem em absoluta sintonia com a natureza criaturas azuis de três metros de altura, cauda e narigão achatado.

Eles, os azuizões, são os índios do filme, as vítimas da ganância e da insensibilidade dos chamados civilizados. Qualquer semelhança com a conquista das Américas pelos europeus ou com as campanhas militares modernas nos países petrolíferos não é mera coincidência.

As mensagens simbólicas do filme são variadas, mas acho que a principal delas é de natureza ecológica. Tudo é deslumbrante em Pandora, as árvores gigantescas, as flores exóticas, as montanhas flutuantes e, especialmente, os animais selvagens, um mais estranho do que o outro.

O que mais impressiona é a relação dos nativos com o bicho que eles chamam de ikran, um lagartão voador, furioso e predador, que se torna dócil e obediente quando encontra o seu dono.

Ele representa o rito de passagem na vida de um guerreiro, que passa a ser respeitado pela tribo depois que consegue estabelecer uma conexão cerebral com a fera alada, para então montá-la e utilizá-la como transporte.

O povo azul utiliza suas tranças para se ligar, literalmente, à natureza.

Pandora arrasada pela brutalidade humana, como na fábula da mitologia, é uma visão tridimensional do mal, inclusive com um final reservado para a esperança – e para os próximos filmes da saga. Pelo menos na ficção, a sapatada da sensatez atinge os invasores. Nove com louvor.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010



06 de janeiro de 2010 | N° 16207
MARTHA MEDEIROS


A dificuldade de ser hippie

Na véspera do último dia 31, publiquei uma “Carta a 2010” na qual, entre outros desejos, pedi para termos um ano mais paz & amor. Pra não ficar só na teoria, passei o Réveillon numa praia uruguaia que ainda não frequenta a mídia, pra felicidade geral dos nativos.

Fui a Punta del Diablo, a apenas 40 quilômetros de Chuy, um local sem a infra e a badalação de Punta del Este e que ainda preserva uma rusticidade que nos remete aos anos 60/70. Fazia tempo que eu não via nada tão “pode crer”, um astral tão mochileiro, nem garotada tão bonita e despojada. Foi a legítima volta no tempo.

Imaginei Búzios sendo descoberta por Brigitte Bardot e Garopaba descoberta pelos surfistas, numa época em que ninguém estava interessado em modismos ou aparências, apenas em se divertir sem repressão.

Eu sei que o mundo mudou e Punta del Diablo está mudando também: aposto as minhas fichas em que dentro de três ou quatro anos o boom imobiliário irá transfigurar esse astral ainda genuíno da praia (e esta crônica pode estar colaborando pra isso), mas a verdade é que fazia muitos anos que eu não me sentia tão à vontade e tão bem instalada numa era que passou, mas que ainda reconheço como minha, mesmo nunca tendo sido. Há em mim uma hippie que não fui por ter nascido alguns anos atrasada.

Foram quatro dias de sol rachando, mar azul e dolce far niente, sem notícia alguma do Brasil. Ao final do breve descanso, percorri os 500 quilômetros de volta a Porto Alegre e fiquei sabendo, estarrecida, que o litoral do Rio de Janeiro esteve inundado, soterrado, incapacitado de qualquer festejo nesse final de ano, e, diante da tragédia vivenciada por tanta gente, senti um tremendo desconforto, tive que cair na real:

o mundo hippie exige uma alienação quase impossível de ser adotada hoje em dia. Quem não quiser sofrer, que vá pra Punta del Diablo em definitivo, não volte mais. Aqui, a vida exige participação.

Foi só a primeira má notícia de 2010. Ano novo não é sinônimo de ano incólume, ano utópico, ano intacto. Serão mais de 360 dias comuns e falíveis. Mas dói quando caímos das nuvens assim tão na boca do ano, tão na estreia, como já aconteceu anteriormente, a exemplo de tragédias como o naufrágio do Bateau Mouche no Réveillon carioca de 1988 e o tsunami indonésio em 2004.

Que seja. Dói, mas ainda podemos tentar manter a serenidade diante do reverso das expectativas felizes que todo início de ano impõe. Tentemos, mesmo contra a maré, mesmo informados sobre o inferno lá fora, manter uma alma hippie, um espírito mais desapegado diante de tanta parafernália, de tanto supérfluo incutido como essencial.

Adoraria que desenvolvêssemos uma humanidade mais retrô, que a simplicidade virasse tendência de comportamento e nos ajudasse a promover um astral mais puro e leve nesta nova década que se inicia – aliás, que só se iniciará mesmo em 2011, a antecipação é uma ilusão, mas as ilusões fazem parte do pacote paz & amor de que precisamos urgentemente.

Uma linda quarta-feira ainda que com chuvas. Aproveite o dia.

sábado, 2 de janeiro de 2010



03 de janeiro de 2010 | N° 16204
MARTHA MEDEIROS


Amanhã fica pra amanhã

Amigos meteorologistas, segunda-feira poderemos vivenciar um dramático temporal ou um sol rachando, mas sinto muito, me desliguei de previsões, não estou interessada no que o céu despencará sobre mim amanhã quando eu acordar. Recém é hoje.

A cotação que o dólar terá quando o mercado reabrir continuará não fazendo a menor diferença pra mim, já que não trabalho com exportação nem importação. Nada me importa além desse minuto.

Já tomei banho e tudo o que minha pele e meus cabelos assimilarem durante minha passagem por esse dia ficará como marca registrada das ruas por onde andei e das intempéries que enfrentei, só no próximo banho é que eliminarei as partículas deste domingo.

Se você quiser me dizer alguma coisa, diga já, amanhã posso estar surda, com febre, ausente, desconectada, com TPM, de férias, e você terá desperdiçado a oportunidade de ser ouvido nesse instante.

As pesquisas de opinião são muito afoitas, ligeiras, ansiosas, que me interessa a eleição de outubro se nem o amanhã me é seguro, hoje eu tenho os representantes que tenho, até que eu me corrija no próximo voto.

Esse bombom em minhas mãos, quantas calorias terá, que estrago fará em minha região abdominal, que consequências deixará visíveis na beira da praia? Nhac. Veremos.

Não tenho caderneta de poupança nem me preocupo com fundos de investimento, e gastei três dígitos num vestido que me ofereceu cor, leveza e jovialidade para daqui a algumas horas, e daqui a algumas horas eu ainda terei a aparência que tenho, não garanto depois.

Comecei a ler um livro que tem frequentado a lista dos dez mais e nas primeiras dez páginas peguei no sono. Deixei o livro de lado: perder tempo é um insulto à vida. No mesmo instante comecei outra leitura e essa, sim, me devora.

No almoço de amanhã teremos à mesa o que eu me sentir impulsionada a comprar no supermercado amanhã, hoje eu me contento com o que há na geladeira e que alimenta o meu agora.

Olimpíadas de 2016, que viagem no tempo, mal sei se atravessarei os obstáculos anotados em minha agenda neste 3 de janeiro de 2010 e se quebrarei algum recorde de alegria ou tristeza antes que o telefone toque.

Hoje ainda estou dentro da lei, ainda tenho todos os amigos por perto, ainda me reconheço no espelho, ainda não enjoei da música que estou ouvindo, ainda estou em paz, ainda acredito que o dia terminará bem.

“Amanhã fica pra amanhã” é um aforismo que li no livro de Pedro Maciel chamado Como Deixei de ser Deus. Admitir que não temos controle sobre o futuro é um bom começo. Deus é uma projeção, e hoje, aqui em casa, as projeções estão em falta, amém.

Um lindo domingo para vc. O Primeiro de 2010