quarta-feira, 5 de maio de 2010



05 de maio de 2010 | N° 16326
MARTHA MEDEIROS


Tudo pode dar certo

Uns acharam bom, outros acharam ruim, e assim é a vida, todos opinam aqui e ali, e eu serei apenas mais uma a palpitar sobre o recente filme de Woody Allen. É possível que você concorde comigo e estaremos em sintonia, ou você irá discordar, engrossando a turma dos que acham que Woody Allen não é mais o mesmo, ou você talvez sempre tenha considerado Woody Allen um chato de galochas, ou vai ver nem sabe quem é esse tal de Woody Allen, e nada disso mudará uma única fagulha no curso do universo.

O monólogo de abertura de Tudo Pode Dar Certo, com Larry David no papel do mal-humorado Boris, traz esse espírito fatalista. Segundo ele, nada tem muito sentido, a sorte é que manda no jogo, e se ao menos facilitássemos as coisas para tornar nossos dias mais suportáveis, mas fazemos justamente o contrário. “As pessoas tornam a vida pior do que é preciso”, reclama o protagonista.

Na contramão da crítica especializada, pra mim Woody Allen está cada vez melhor, se não como cineasta, ao menos como filósofo. Tem se revelado mais debochado e mais leve, como convém a um homem inteligente que está chegando aos 75 anos e que aprendeu que só o que nos cabe na vida é não fazer mal aos outros e usufruir da melhor maneira a honra de ter nascido.

Desta vez, Woody Allen foi fundo na caricatura. Mostra um personagem ranzinza que fracassa em suas duas tentativas de suicídio, uma loirinha desmiolada, uma senhora careta que reavalia seus conceitos e “se reinventa”, um príncipe encantado cujo único atrativo é ser bonitão e um pai de família temente a Deus que descobre que é um gay enrustido. “Às vezes, os clichês são a melhor forma de dizer as coisas”, alerta Boris ainda no início do filme.

Quando assisti, em 2003, a Igual a Tudo na Vida, lembro de ter comentado que Woody Allen havia se dado alta. E sigo com a mesma impressão. Em seus filmes anteriores, mais ricos e consistentes em questionamentos existenciais, o diretor parecia dizer: “Não há cura”.

Em sua resignada fase atual, ele parece dizer: “Não há doença”. O diretor está apenas confirmando que não temos nenhum domínio sobre os mistérios que nos rondam e sobre as experiências nunca testadas.

Então, não importa o que façamos, o risco de dar certo é o mesmo de dar errado, e, até quando parece que dá errado, funciona. Qualquer coisa funciona. Até um Woody Allen clichê.

Uma gostosa quarta-feira para você. Aproveite o dia.

terça-feira, 4 de maio de 2010



04 de maio de 2010 | N° 16325
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Sonhos e desejos

Leio que as portas austeras do Victoria and Albert Museum, em Londres, acabam de dar passagem para uma exposição de roupas, acessórios e fotos de Grace Kelly. Nenhum outro tema poderia ser mais belo. O visual clássico, etéreo e loiro da mais linda das princesas de Mônaco há muito reina soberano em milhões de corações do mundo inteiro.

Nunca esqueço a tarde de setembro de 1982 em que, ao atravessar a Kürfürstendam – eu estudava Jornalismo Avançado em Berlim – dei com a manchete de página inteira do Bild: Morreu Grace Kelly. Era como se a curta frase, em enormes letras negras, ao lado da grande foto, dissesse respeito a alguém muito próximo de mim.

Me explico melhor. Quando a oscarizada atriz de Hollywood casou com o príncipe Rainier em 1956, todos nós que a amávamos em segredo – aí incluído eu, que tinha 11 anos – ficamos um pouco viúvos.

O Cruzeiro e Manchete – então as principais revistas que circulavam no Brasil – reservavam dezenas de páginas para as bodas em Mônaco, torrentes de parágrafos eram dedicados à biografia da noiva, rios de tinta descreviam as cerimônias, mas cada letra e imagem parecia apenas dizer que a tínhamos perdido para sempre.

Não foi bem assim. Com extraordinária classe e porte, a Princesa Grace desempenhou o melhor papel de sua carreira.

Já não era mais a esplêndida atriz de Janela Indiscreta (Rear Window), dirigida pelo mestre Alfred Hitchcock.

Era a alteza, a esposa e a mãe. Não me surpreende que o Victoria and Albert Museum esteja revisitando agora seus vestidos. Durante décadas, Grace Kelly foi trajada por todos os maiores costureiros da Europa. Mais do que isso – pois um manequim não faz um vestido –, foi um sinônimo de elegância no agir e no viver.

Sua vida no paradisíaco principado, com cujas paisagens e atmosfera me encantei mais de uma vez, foi a senha de uma era de charme, de glamour e de encantamento.

Dizem que teve affairs, antes e depois de se transformar em soberana de Mônaco. São hipóteses maltraçadas, simples suposições, caprichosos exercícios de imaginação. Mas se os teve, isso confirma apenas que viveu segundo sua circunstância e sua época. Longe de ser uma deusa enigmática como a pintaram, era uma mulher com sonhos e desejos.

Linda terça-feira ainda que com chuva. Aproveite o dia.

sábado, 1 de maio de 2010



02 de maio de 2010 | N° 16323
MARTHA MEDEIROS


Feliz por nada

Geralmente, quando uma pessoa exclama Estou tão feliz!, é porque engatou um novo amor, conseguiu uma promoção, ganhou uma bolsa de estudos, perdeu os quilos que precisava ou algo do tipo.

Há sempre um porquê. Eu costumo torcer para que essa felicidade dure um bom tempo, mas sei que as novidades envelhecem e que não é seguro se sentir feliz apenas por atingimento de metas. Muito melhor é ser feliz por nada.

Digamos: feliz porque maio recém começou e temos longos oito meses para fazer de 2010 um ano memorável. Feliz por estar com as dívidas pagas. Feliz porque alguém o elogiou. Feliz porque existe uma perspectiva de viagem daqui a alguns meses. Feliz porque você não magoou ninguém hoje. Feliz porque daqui a pouco será hora de dormir e não há lugar no mundo mais acolhedor do que sua cama.

Esquece. Mesmo sendo motivos prosaicos, isso ainda é ser feliz por muito.

Feliz por nada, nada mesmo?

Talvez passe pela total despreocupação com essa busca. Essa tal de felicidade inferniza. “Faça isso, faça aquilo”. A troco? Quem garante que todos chegam lá pelo mesmo caminho?

Particularmente, gosto de quem tem compromisso com a alegria, que procura relativizar as chatices diárias e se concentrar no que importa pra valer, e assim alivia o seu cotidiano e não atormenta o dos outros. Mas não estando alegre, é possível ser feliz também.

Não estando “realizado”, também. Estando triste, felicíssimo igual. Porque felicidade é calma. Consciência. É ter talento para aturar o inevitável, é tirar algum proveito do imprevisto, é ficar debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é que foi acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo.

Benditos os que conseguem se deixar em paz. Os que não se cobram por não terem cumprido suas resoluções, que não se culpam por terem falhado, não se torturam por terem sido contraditórios, não se punem por não terem sido perfeitos. Apenas fazem o melhor que podem.

Se é para ser mestre em alguma coisa, então que sejamos mestres em nos libertar da patrulha do pensamento. De querer se adequar à sociedade e ao mesmo tempo ser livre. Adequação e liberdade simultaneamente? É uma senhora ambição. Demanda a energia de uma usina. Para que se consumir tanto?

A vida não é um questionário de Proust. Você não precisa ter que responder ao mundo quais são suas qualidades, sua cor preferida, seu prato favorito, que bicho seria. Que mania de se autoconhecer. Chega de se autoconhecer. Você é o que é, um imperfeito bem-intencionado e que muda de opinião sem a menor culpa.

Ser feliz por nada talvez seja isso.

Diogo Mainardi

O Lanzetta da "Laranza

"Luiz Lanzetta comanda a assessoria de imprensa de Dilma Rousseff, mas nenhum dos assessores de imprensa de Dilma Rousseff é comandado por Luiz Lanzetta. De fato,
ele só contratou quem o PT mandou contratar"

O PT contratou Luiz Lanzetta para comandar a assessoria de imprensa de Dilma Rousseff. Isso mesmo: Luiz Lanzetta. Ninguém sabe quem ele é. Ninguém sabe por que ele foi contratado. Está na hora de tentar saber.

Luiz Lanzetta comanda a assessoria de imprensa de Dilma Rousseff, mas nenhum dos assessores de imprensa de Dilma Rousseff é comandado por Luiz Lanzetta. De fato, ele só contratou quem o PT mandou contratar.

De Helena Chagas, apadrinhada por Franklin Martins, a Oswaldo Buarim, que pertence à quota da própria Dilma Rousseff. Luiz Lanzetta simplesmente assinou seus contratos de trabalho e passou a pagar seus salários. A empresa usada por ele para contratar e para pagar os assessores de imprensa do PT chama-se Lanza. No meio jornalístico brasiliense, ela já ganhou o apelido de "Laranza".

Em 2002, Marcos Valério pagou um monte de profissionais escolhidos pelo PT para cuidar da campanha presidencial de Lula. Agora, em 2010, Luiz Lanzetta paga um monte de profissionais escolhidos pelo PT para cuidar da campanha de Dilma Rousseff. De lá para cá, tudo melhorou. O tesoureiro do PT, em 2002, era Delúbio Soares. O tesoureiro do PT, em 2010, é o homem da Bancoop. Ufa.

Luiz Lanzetta tem um jornalzinho e um site na internet: brasiliaconfidencial.inf.br. Nas páginas do site, o nome de seu autor é mantido em segredo. A rigor, o site inteiro é mantido em segredo, considerando que praticamente ninguém o conhece. Mas seus artigos costumam ser reproduzidos por blogueiros pagos pelo lulismo. Uma de suas manchetes: "Pesquisa aponta disparada de Dilma". Outra manchete: "Tropa tucana agride professores". Outra manchete: "Serra comanda baixaria na internet".

A campanha de Dilma Rousseff está ruindo. Fernando Pimentel, seu coordenador, é conhecido por suas patetices. Quando era terrorista, ele tentou sequestrar um diplomata americano cinco vezes, e fracassou em todas elas. Mesmo baleado pelas costas, o diplomata americano conseguiu fugir.

Na sede da campanha, dois assessores de imprensa pagos por Luiz Lanzetta já pegaram dengue: Helena Chagas e Giles Azevedo. No Rio de Janeiro, um apaniguado da Petrobras, Wagner Tiso, tentou organizar um encontro de artistas com Dilma Rousseff. Só compareceram oito deles, e o de maior prestígio era o cartunista Aroeira.

Lula, alarmado com o desempenho de sua candidata, ordenou que Dilma Rousseff tomasse umas aulas para aprender a falar em público. Sua professora, Olga Curado, treinou também Roger Abdelmassih, aquele médico acusado de ter estuprado dezenas de pacientes. Quem contratou a professora de Dilma Rousseff foi Luiz Lanzetta. Quem pagou a conta foi o homem da Bancoop.

terça-feira, 27 de abril de 2010



7 de abril de 2010 | N° 16318
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Anos Dourados

No dia 21 de abril de 1960, repicaram os sinos de todas as igrejas de Viena. É que naquele dia nascia Brasília, a mais jovem capital do mundo. Cinquenta anos depois, uma sombra de corrupção e de escândalo paira sobre a belíssima cidade do Planalto Central, mas mesmo ela não pode apagar a aura de esplendor que a cerca.

Brasília não é um capítulo solitário de nossa História. É a culminação de uma soma de fatores sociológicos e políticos que levaram uma nação a compreender a própria grandeza. De repente, pela visão e a ousadia de um presidente da República, a civilização litorânea de tantos séculos venceu o continente das terras altas e além, para identificar sua própria magnitude.

Planalto e Amazônia deixavam de ser territórios, ou abandonados, ou interditos, para se converterem em parcelas de um país com a vocação do desenvolvimento.

Em paralelo, ocorriam extraordinárias mudanças no cotidiano da nação. Não era apenas uma metrópole que surgia no áspero Cerrado. Enquanto se erguiam palácios, templos, conjuntos funcionais, no outrora esquecido centro do Brasil, o país descobria seu destino.

Um grupo de jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro, entre eles um gênio chamado Antônio Carlos Jobim, inventava a Bossa Nova, que logo iria conquistar o mundo. O Cinema Novo iluminava as telas com um modo inaugural de contar o homem e o universo. Éramos campeões mundiais do futebol à pesca submarina.

Grandes estradas rasgavam as selvas, como artérias de um corpo gigantesco que se redescobria. Hidrelétricas domavam rios, levando luz e força ao que antes era treva. Um enorme número de fábricas lançava nas ruas os produtos da jovem indústria automobilística nacional.

Pelas avenidas, podiam-se ver Romi-Isettas, Volkswagens, DKWs, Dauphines, Gordinis, Simca-Chambords, Aero-Willys, JKs, jipes e lambretas.

Tudo isso era o efeito Brasília. Quanto mais subiam as torres do Congresso, quanto mais Juscelino Kubitschek se fixava no Palácio da Alvorada, quanto mais o Brasil alargava o seu desenvolvimento, mais a cidade se afirmava como capital de todos os brasileiros. Vivi tudo isso. Sei do que falo. Conheci de perto os Anos Dourados.

Uma linda terça-feira pra você. Aproveite o dia.

sábado, 24 de abril de 2010



25 de abril de 2010 | N° 16316
MARTHA MEDEIROS


Terapia do joelhaço

Extra, extra, só existe o seu desejo. Esse troço que você tem aí dentro da cachola só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo

Sentado em sua poltrona de couro marrom, ele me ouviu com a mão apoiada no queixo por 10 minutos, talvez 12 minutos, até que me interrompeu e disse: Tu estás enlouquecendo.

Não é exatamente isso que se sonha ouvir de um psiquiatra. Se você vem de uma família conservadora que acredita que terapia é pra gente maluca, pode acabar levando o diagnóstico a sério. Mas eu não venho de uma família conservadora, ao menos não tanto.

Comecei a gargalhar e em segundos estava chorando. “Como assim, enlouquecendo??”

Ele riu. Deixou a cabeça pender para um lado e me deu o olhar mais afetuoso do mundo, antes de dizer: “Querida, só existe duas coisas no mundo: o que a gente quer e o que a gente não quer”.

Quase levantei da minha poltrona de couro marrom (também tinha uma) para esbravejar: “Então é simples desse jeito? O que a gente quer e o que a gente não quer?

Olhe aqui, dr. Freud (um pseudônimo para preservar sua identidade), tem gente que faz análise durante 14 anos, às vezes mais ainda, 20 anos, e você me diz nos meus primeiros 15 minutos de consulta que a vida se resume ao nossos desejos e nada mais? Não vou lhe pagar um tostão!”

Ele jogou a cabeça pra trás e sorriu de um jeito ainda mais doce. Eu joguei a cabeça pra frente, escondi os olhos com as mãos e chorei um pouquinho mais. Não é fácil ouvir uma verdade à queima-roupa.

“Tem gente que precisa de muitos anos para entender isso, minha cara”. Suspirei e deduzi que era uma homenagem: ele me julgava capaz daquela verdade sem precisar frequentar seu consultório até ficar velhinha. Além disso, fiz as contas e percebi que ele estava me poupando de gastar uma grana preta.

Tá, e agora, o que eu faço com essa batata quente nas mãos, com essa revelação perturbadora?

Passo adiante, ora. Extra, extra, só existe o seu desejo. É o desejo que manda. Esse troço que você tem aí dentro da cachola, essa massa cinzenta, parecendo um quebra-cabeças, ela só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo.

O rei, o soberano, o infalível, é ele, o desejo. Você pode silenciá-lo à força, pode até matá-lo, caso não tenha forças para enfrentá-lo, mas vai sobrar o que de você? Vai restar sua carcaça, seu zumbi, seu avatar caminhando pelas ruas desertas de uma cidade qualquer. Você tem coragem de desprezar a essência do que faz você existir de fato?

É tão simples que nem seria preciso terapia. Ou nem seria preciso mais do que meia dúzia de consultas. Mas quem disse que, sendo complicados como somos, o simples nos contenta? Por essas e outras, estamos todos enlouquecendo.


Demos graças a Grace

Exposição em Londres reverencia Grace Kelly, a atriz que encerrou a carreira no auge para virar princesa e assim congelou para sempre
sua imagem de clássica perfeição

Kobal/Other Images
ACIMA DO TEMPO



Grace numa nuvem de chiffon, no antológico vestido de Janela Indiscreta, e fazendo de escudo a bolsa famosa (na foto à direita): elegância suprema

Em seu apogeu, Hollywood especializou-se em criar dois tipos de divindades femininas, arquétipos de mulheres cravados no fundo da mente coletiva da humanidade. Uma era a diva: temperamental, volátil, complicada, erótica, dionisíaca.

Em outras palavras, Marilyn Monroe. A outra era a deusa: clássica, etérea, enigmática, apolínea. Em resumo, Grace Kelly. As mulheres intuíam que os homens desejavam Marilyn, mas no fundo elas sempre quiseram ser Grace.

Ou, pelo menos, ter as roupas dela. Sinônimo de classe, porte, graciosidade e elegância supremamente acima de tendências, a deusa Grace (de pés de barro: reparem nos dedos largos e nas unhas achatadas na foto à esquerda) chegou a batizar oficialmente em 1955, no auge do sucesso, um jeito de vestir: o "visual Grace Kelly", manual de bom gosto e bom comportamento que consistia basicamente, na avaliação do jornal especializado WWD, de "vestidinhos acinturados, tailleurs bem desenhados e, à noite, longos de chiffon".

Perfeita de roupa de baile ou calça e camisa masculinas, Grace atingiu o status reservado apenas àquelas privilegiadas para quem a elegância brota como uma fonte interior e atemporal.

Na foto à direita, por exemplo, fora as luvas brancas, tudo poderia ser usado hoje: os óculos escuros, as sapatilhas, o tubinho seco, o casaco volumoso e, claro, a bolsa – ela mesma, a Kelly original, tão exibida hoje por celebridades que de Grace não têm nada, delicadamente empunhada por ela para proteger da curiosidade dos fotógrafos os sinais de gravidez de Caroline, sua primeira filha do antológico casamento com o príncipe Rainier de Mônaco.

Esse estilo clássico reina soberano na exposição de roupas, acessórios e fotos da atriz que virou princesa recém-inaugurada no Victoria and Albert Museum, de Londres. "Poucas pessoas merecem ser chamadas de ícone. Grace Kelly com certeza é uma delas", diz Jenny Lister, curadora da exposição.

Filha de milionário que se fez do nada, educada em boas escolas, Grace Kelly tinha os fundamentos básicos para se transformar na beleza clássica por excelência. Pele cremosa, maxilares bem desenhados, nariz perfeito, sobrancelhas intermináveis, olhos azuis bem separados por alguns estonteantes centímetros e uma expressão que podia significar "vem" ou "pare", ou alguma coisa entre os dois.

Incentivada pela mãe nadadora e pelo pai remador e campeão olímpico, estudou balé, aprendeu tênis, fez equitação e se aprimorou em tudo o que se esperava de uma jovem de família rica na época. Menos, evidentemente, se tornar atriz. Todas as resistências foram vencidas sem dramas nem escândalos, como tudo o que sempre fez.

De repente, como num passe de mágica, Hollywood assistiu à explosão do fenômeno Grace Kelly. A beleza gelada e o guarda-roupa quentíssimo eclodiram em 1955, quando Grace tinha 26 anos, num dos três filmes que fez com Alfred Hitchcock, o clássico Janela Indiscreta, em que surge como uma visão de esplendor no vestido de corpete de veludo negro e imensa saia esvoaçante de chiffon branco.

Obra de Edith Head, a grande figurinista da Paramount, a quem Hitchcock encomendou trajes que lembrassem as etéreas bonecas de porcelana de Dresden.

A mesma Edith desenharia o longo de cetim verde-azulado com que Grace Kelly deslumbraria em três ocasiões (sim, ela repetia roupas): numa pré-estreia, em capa da revista Life e ao ganhar o Oscar de melhor atriz. Mas foi a maior concorrente de Edith, Helen Rose, da MGM, quem no ano seguinte produziu (com 35 costureiras e bordadeiras) seu vestido de casamento com o príncipe Rainier, uma exaltação à pureza núbil que provocou piadinhas cínicas ("Sou tão velho que conheci Grace Kelly desde antes de ela ser virgem").

Numa reviravolta acompanhada no palco mundial em escala que só seria comparável, posteriormente, à despertada pela princesa Diana, em 1956 Grace saiu da cena de Hollywood e entrou numa realeza meio recauchutada, a de Mônaco, mas suficientemente pomposa para despertar todos os infinitamente repetidos clichês sobre contos de fada.

Com uma princesa de beleza deslumbrante vinda diretamente de Hollywood quase na sua porta, os grandes costureiros de Paris fizeram fila para vestir Grace – e pela primeira vez ela começou a usar alta-costura, com a classe de sempre. É desse período a maioria dos cinquenta vestidos mostrados na exibição, todos emprestados da espetacular coleção abrigada no palácio de Mônaco.

Sua Alteza Sereníssima usava Balenciaga, Givenchy e, principalmente, Dior, grife dirigida na época por Marc Bohan. "Era uma ótima forma de divulgar as coleções", diz a representante da Dior no Brasil, Rosângela Lyra, para quem, "guardadas as devidas proporções, podemos dizer que Carla Bruni é a versão moderna de Grace Kelly".

Grace Kelly, já deu para perceber, não era santa. Por falta de vergonha na cara (segundo as traídas), para conquistar a atenção masculina que nunca teve do pai ou simplesmente porque gostava de homens bonitos, o "vulcão coberto de neve", na definição de Hitchcock, vivia em erupção.

A lista, entre apócrifa e confirmada, inclui quase todos os atores com quem contracenou (William Holden, Clark Gable, Gary Cooper, Bing Crosby, Marlon Brando, Ray Milland), o presidente John Kennedy e, depois de casada, Aly Khan e o xá do Irã. Isolada num casamento de fachada, limitada pelas exigências do cargo e com os filhos crescidos, a certa altura Grace Kelly passou a beber demais e a se queixar da vida.

"Eu sei onde tenho de estar todos os dias pelo resto da minha vida", comentou, chorando, com o produtor John Foreman. Em 14 de setembro de 1982, dois meses antes de completar 53 anos, sofreu um derrame na direção de seu carro e despencou de um abismo na Riviera Francesa. Foi o tempo justo para evitar a decadência que se avizinhava e entrar no panteão dos mitos.

Fotos Philippe Halsman/Magnum/Latin Stock, Sipa Press e Camera Press/Other Images
COMO UMA DEUSA



Escultural no longo de cetim que repetiu em três ocasiões (à esq.), falsamente virginal entre as madrinhas no casamento com o príncipe de Mônaco e outonal, no palácio, vestindo Dior (à dir.): ícone de estilo


Lya Luft

Os pais do lixo

"O odor de suas madrugadas não era fantasia, nem era o mundo que cheirava mal devido à corrupção: era o chão de seus lares e seus sonhos apodrecendo havia anos debaixo de seus pés"

Ilustração Atômica Studio

Na coluna passada, de título Os Filhos do Lixo, comentei uma reportagem em que apareciam crianças nossas catando lixo com suas mães, que, por sua vez, o tinham aprendido com suas mães e avós. A coluna foi enviada para a revista horas antes de iniciar-se a tragédia dos deslizamentos no Rio de Janeiro, em Niterói, em São Gonçalo. Niterói tornou-se emblemática.

Talvez porque ali não se tratava apenas de casas e de centenas de pessoas instaladas em locais altamente perigosos – coisa sabida pelas autoridades havia anos e repetidamente informada –, mas porque ali, no chamado Morro do Bumba, o terreno era um lixão. Lixo. Nem ao menos um relativamente higiênico aterro sanitário, que, mesmo assim, só poderia ser usado como assento de moradias décadas depois. Lixo amontoado, nada mais. Podridão que o tempo foi disfarçando com terra e algumas plantas.

Hoje, falando em "pais do lixo", não me refiro aos que o produziram, mas aos que ali o deixaram, ou mandaram jogar e, em lugar de cuidar, vigiar, manter higienizado e isolado, ignoraram, permitindo que o recanto emporcalhado se cobrisse de casas, de lares. Produzir lixo é inevitável. Tratar o lixo de maneira científica, técnica e civilizada, que o torne inofensivo ao ser humano, é dever básico de qualquer autoridade.

E raramente é feito com correção e eficácia. Em Niterói, gerações de prefeitos e outros foram até enfeitando a imundície: luz ali, quem sabe um caminhozinho asfaltado aqui; enfim, facilidades para os moradores do lixo – que de nada sabiam.

Todos ignoravam que o odor de suas madrugadas e noites não era fantasia, nem era o mundo que cheirava mal devido à corrupção, impunidade, desinteresse e cinismo – era o chão de seus lares e seus sonhos apodrecendo havia muitos e muitos anos debaixo de seus pés.

A água que escorria ali não era algum romântico olhinho-d’água, era a exsudação desse apodrecimento, que tem o nome repulsivo de chorume. Pois no chorume viviam, caminhavam, brincavam, os moradores desse conjunto de casas. Ali havia igrejinha, pizzaria, bares. Gente. Humanidade florescia ali, aos vapores do lixo, e – repito ainda outra vez – sem saber disso.

Mas as autoridades sabiam. E nenhuma, que se saiba, fez nada de efetivo, talvez porque neste país gente no lixo não é novidade, centenas e milhares de casinholas se enfileiram entre colinas de imundície e detritos a céu aberto. Recebo a notícia de bairros inteiros de condomínios, edifícios de muitos andares, construídos sobre lixo, talvez aterro sanitário, mas sem os muitos anos devidos para que tudo se solidifique e quem sabe seres humanos possam então viver lá em cima.

Resultado: paredes rachadas, assoalhos afundando, o mundo afundando. Quem reclama é apontado com o dedo: esse perturba a ordem, sopra vento na calmaria, faz espalhar o mau cheiro e a má fama, está incomodando. Fora com ele. Nós queremos continuar sendo a oitava economia do mundo, ou algo parecido. Queremos ser os bacanas.

Espero que o lixão de Niterói seja convertido, de um lado, em um monumento à dor e, de outro, em um lembrete da cruel omissão dos que deveriam cuidar do seu povo. Que os que ali tudo perderam sejam verdadeiramente orientados, amparados pelo tempo necessário.

Que não se romantizem mais as favelas, onde estariam a verdadeira raça brasileira, a verdadeira música, a verdadeira comida, a verdadeira beleza: tudo isso seria bem mais saudável, feliz e bem aproveitado em condições de vida civilizadas, sem violência, sem encostas periclitantes, sem jovens e pais de família assassinados nem famílias desaparecidas. Sem tanta dor desnecessária.

Não vamos esquecer a tragédia, nós que esquecemos tão depressa. Nem vamos enfeitar a desgraça, disfarçar a omissão. Vamos ser pais de coisas positivas, mesmo produzindo lixo. Vamos nadar contra a correnteza. Vamos agir com eficiência e honradez.

Vamos honrar nossos cargos públicos, nossos nomes, nossos ofícios. Vamos colocar o bem público acima do nosso bolso, da nossa cobiça, do nosso desejo de mais poder. Vamos cuidar da nossa gente. Vamos ser gente.

Lya Luft é escritora


O derrame das mulheres jovens

Elas tiveram um AVC antes dos 30 anos, e sobreviveram. O que é preciso saber para se proteger da doença que mais mata no Brasil

CRISTIANE SEGATTO - Renato Stockler
VOLTA POR CIMA

Gislaine (de blusa preta) teve um AVC aos 29 anos. Célia, aos 23. Amanda, aos 27. Fernanda, aos 31. Jovens e ativas, elas foram imobilizadas por um derrame. E voltaram

A engenheira Fernanda Tescarollo, de 33 anos, a moça de vestido preto na foto ao lado, é um exemplo da atual geração de mulheres superpoderosas. Perfeccionista, independente, duas vezes divorciada, progrediu rápido na profissão graças à combinação de trabalho duro e ambição. Ainda hoje, tem várias ambições.

Quer voltar a lavar o rosto com as duas mãos. Quer ser capaz de imitar o Cristo Redentor, com os braços bem abertos, para corresponder a um abraço. Paulistana, mas apaixonada pelo Rio de Janeiro, quer se equilibrar sobre o salto alto e voltar a sambar na quadra da Mangueira. Exatamente como fazia até 2008, quando um acidente vascular cerebral (AVC) a obrigou a parar tudo e a rever tudo. “Se você não aprende a parar, a vida te para”, diz.

Fernanda tomava pílula anticoncepcional desde os 16 anos. Além disso, tinha crises frequentes de enxaqueca. Três vezes mais comum em mulheres, a enxaqueca aumenta o risco de derrame.

Assim como a pílula. Na véspera do AVC, estava com dor de cabeça. Fernanda é funcionária de uma multinacional que fabrica lanternas e faróis para a indústria automobilística nacional e vivia um período de forte pressão. Tomou um analgésico e foi dormir. De manhã, continuava com dor.

Enquanto se trocava para ir trabalhar, despencou no quarto. Sofreu um AVC extenso na região do lobo temporal direito. Os médicos precisaram submetê-la a uma cirurgia delicada. Uma parte da calota craniana foi retirada para que o cérebro tivesse espaço para inchar. Se isso não fosse feito, o edema cerebral aumentaria a pressão intracraniana e Fernanda morreria.

Só depois de dois meses, a calota craniana foi recolocada. “Diante da gravidade do caso, a recuperação de Fernanda foi maravilhosa”, diz o neurologista Marcelo Annes, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

Em 2008, o AVC provocou 97 mil óbitos no Brasil.

Ele mata mais que infarto, violência e acidentes
Fernanda faz parte de um grupo pouco conhecido de vítimas do AVC: o das mulheres jovens. Nos últimos cinco anos, 32 mil mulheres de 20 a 44 anos foram internadas nos hospitais do SUS por causa de AVC. Entre os homens da mesma faixa etária, houve 28 mil internações por AVC. A diferença é de 14%.

Em todos os outros grupos etários (até os 19 e depois dos 50 anos), mais homens receberam tratamento. A partir dos 80 anos a situação voltou a se inverter. Como as mulheres são mais longevas, houve mais tratamento em pacientes do sexo feminino.

Na verdade, o total de jovens vitimadas pela doença pode ser ainda maior. Não se sabe quantas foram atendidas na rede privada e quantas simplesmente não receberam tratamento.

Parte dos casos de AVC na juventude e na meia-idade é explicada pela exposição, cada vez mais precoce, a fatores de risco como hipertensão, colesterol alto, obesidade, diabetes. Isso ocorre em ambos os sexos. Mas existem situações capazes de aumentar o risco de AVC pelas quais só as mulheres passam. Eis as principais.

Uso de pílula anticoncepcional

Na maioria das mulheres, a pílula é segura. Se não fosse assim, todos nós conheceríamos alguma moça que teve um AVC depois de tomar anticoncepcional. Mas as que usam esse tipo de contracepção precisam saber que os hormônios aumentam a capacidade de coagulação do sangue.

O mesmo pode ocorrer quando a mulher faz reposição hormonal na menopausa. Quem toma pílula ou faz reposição hormonal está mais sujeita a sofrer de trombose (formação de coágulos no interior de um vaso sanguíneo). E a trombose pode levar ao AVC. Algumas condições genéticas favorecem a ocorrência desse problema.

Muitas vezes, porém, o AVC sofrido por uma mulher jovem é o primeiro da família. Foi o caso da engenheira Fernanda. “Em 99% dos casos, as moças não sabem que têm predisposição genética”, diz a neurologista Gisele Sampaio Silva, do Hospital Albert Einstein.
Fotos: Renato Stockler/Na Lata



EM CIMA DO SALTO
Fernanda (à esq.) na casa dos pais, em Itatiba, São Paulo. Ela quer voltar a sambar na quadra da Mangueira. Amanda (à dir.) numa casa noturna, em São Paulo. Ela celebra a vida dançando

Anticoncepcional e cigarro

A combinação de pílula e cigarro eleva em oito vezes o risco de AVC. O sangue dos fumantes torna-se mais propenso à formação de coágulos e a nicotina também enrijece as artérias que irrigam o cérebro. Logo, mulheres que fumam não devem tomar pílula. Quantas sabem disso?

“Muitas fumam e não contam ao ginecologista”, diz a neurofisiologista Maristela Costa, do Hospital do Coração (Hcor), em São Paulo. O inverso também é verdadeiro. Muitos médicos receitam pílula e não perguntam se a mulher fuma.

A gerente de produto Amanda De Tommaso Oliveira, de 31 anos, fumava desde os 15. Aos 27 anos, consumia um maço por dia e não tomava pílula. Para tentar reduzir um cisto no ovário, o ginecologista receitou-lhe um anticoncepcional.

Após dez dias de uso, Amanda teve um AVC. Estava em casa, assistindo à TV, quando o braço esquerdo começou a ficar pesado. O desespero aumentou quando Amanda tentou pedir ajuda à irmã Isabela. Os pensamentos fluíam, mas ela era incapaz de pronunciar qualquer palavra.

Amanda sofreu um AVC pequeno na região frontal do cérebro, no lado direito. Passou três dias no hospital. Logo nas primeiras horas, a fala e os movimentos foram voltando. Desde o derrame, nunca mais colocou um cigarro na boca. Hoje leva vida absolutamente normal. Mas a experiência deixou marcas profundas.

“O AVC não estava no meu script, mas me ensinou a valorizar cada instante”, diz Amanda. Em vez de pensar naquilo que quer ter, pensa no que já tem. “Tenho casa, família, amigos e pernas que me levam aonde eu quero. Já tenho tudo.”

Gordura abdominal

Novas evidências sugerem a existência de outro fator que torna as mulheres mais suscetíveis ao AVC: o acúmulo de gordura na região da cintura. Em fevereiro, um estudo apresentado na reunião anual da American Stroke Association chamou a atenção para esse fato. Na faixa etária dos 45 aos 54 anos, o AVC já é duas vezes mais comum em mulheres do que em homens nos Estados Unidos.

A conclusão foi baseada nos dados de mais de 2 mil participantes da pesquisa nacional sobre saúde e nutrição realizada em 2005 e 2006. “Nossa hipótese é que a gordura abdominal (mais comum nas mulheres) esteja aumentando o risco de AVC entre elas”, disse a ÉPOCA a neurologista Amytis Towfighi, da University of Southern California, em Los Angeles. A barriga eleva o risco de diabetes, hipertensão e colesterol alto. Três fatores que contribuem para a ocorrência dos derrames.

A pesquisa de Amytis revelou que 62% das mulheres nessa faixa etária tinham obesidade abdominal. Nos homens, o índice foi de 50%. A pesquisadora suspeita que a incidência de AVC tenha aumentado também nas mulheres com menos de 35 anos. “Pretendemos começar esse estudo em breve”, diz.


24 de abril de 2010 | N° 16315
NILSON SOUZA


A lição do dinossauro

Sempre é bom prestar atenção no que diz um homem de 78 anos.

Se este homem é Gay Talese, monstro sagrado do jornalismo, incensado repórter do New York Times e autor de livros obrigatórios como O Reino e o Poder, Aos Olhos da Multidão e Vida de Escritor, tudo o que sai de sua boca merece contemplação e reflexão.

Acabo de ler uma entrevista que ele concedeu ao suplemento cultural do jornal Brasil Econômico, gravada pelo correspondente Luiz Henrique Ligabue em situação de constrangimento, pois o entrevistado não poupou críticas a jornalistas que usam gravador. Mas o recurso me permite reproduzir o que li com menor risco de cometer qualquer imprecisão.

– O problema de ser jornalista – ensina Talese – é que você não pode passar tempo suficiente com as pessoas e logo precisa escrever algo, publicar no dia seguinte, para depois jogarem no lixo no outro dia.

Então, ele conta que sempre quis escrever de modo que as pessoas sentissem vontade de guardar as matérias para ler 10, 20 anos depois.

– Os escritores morrem e seus trabalhos ficam vivos. Pensei, por que o jornalismo não pode ficar vivo anos depois de ter sido escrito?

Então, Talese enveredou pelo New Journalism, estilo que usa técnicas literárias para contar histórias reais. Às vezes, parece mesmo ficção. Ele chega a descrever monólogos internos de seus personagens, reproduzindo seus pensamentos, mas sem apelar para a imaginação. Em vez disso, ouve exaustivamente o entrevistado até extrair dele o que estava pensando no momento que deseja retratar.

Ou não ouve.

Um de seus textos mais célebres, “Frank Sinatra está resfriado”, desenha um antológico perfil do cantor a partir do cancelamento de uma entrevista anteriormente marcada.

Em vez de desistir da reportagem, Talese foi em frente, observou muito, ouviu mais de cem pessoas que gravitavam em torno do artista, inclusive uma assessora que carregava suas 60 perucas numa mochila. Só por aí já se pode ter ideia da verdadeira obra de arte que ele construiu.

Os dinossauros, como sabem os paleontólogos, têm muito a nos ensinar, ainda que jamais tenhamos cruzado com eles no planeta. Talvez Talese esteja defendendo um modo ultrapassado de fazer jornalismo. Nestes tempos de comunicação em 140 caracteres, um texto mais literário vai sempre parecer ficção. Mas o mestre norte-americano não faz concessões à fantasia:

– Se você é um jornalista de verdade, deve ser sério e dizer a verdade.

quarta-feira, 21 de abril de 2010



21 de abril de 2010 | N° 16312
MARTHA MEDEIROS


50 milhões de figurantes

Todas as manhãs, dirijo pelo mesmo trajeto e fico engarrafada numa mesma esquina, onde há uma obra atrapalhando o trânsito. Mas nada se compara com a dificuldade de uma moça que diariamente atravessa a rua bem em frente ao meu carro.

Seria fácil para ela caminhar sobre a parte esburacada da obra e cruzar de uma calçada a outra enquanto o sinal não abre. Seria fácil se ela caminhasse, mas não caminha. Anda numa cadeira de rodas.

Todos os dias, eu presto atenção nela, em como maneja bem sua cadeira, em como parece estar acostumada, apesar de todo o esforço. Naturalmente, me vem à lembrança a personagem de Alline Moraes em Viver a Vida.

E me pergunto: não fosse a personagem da novela, eu prestaria tanta atenção assim? Quantas cadeirantes já cruzaram meu caminho e eu não percebi?

Assistindo a uma entrevista da vereadora e psicóloga Mara Gabrilli, também cadeirante, descobri que no Brasil há cerca de 50 milhões de pessoas que possuem alguma deficiência, seja motora, auditiva, visual, mental ou mesmo as deficiências degenerativas da idade, que comprometem o ir e vir autossuficiente.

Não é um milhão, nem são dois: são 50 milhões. Você tem cruzado por essas pessoas pelas ruas? Sim, todos os dias. Mas cruzar por elas não significa enxergá-las.

Não acho que as novelas precisem se engajar em causa alguma, estão aí para entreter, passar o tempo, porém, quando conseguem colocar na trama uma personagem peculiar, que não representa apenas a santinha ou a vilã clássicas, mas que foge do estereótipo, nossos olhos se abrem para uma condição que a gente se acostumou a não ver.

Ainda que a realidade da personagem da novela seja diferente da realidade da maioria dos cadeirantes (raros possuem enfermeira 24 horas, fisioterapeuta de plantão e motorista com carro adaptado), não se pode esquecer que vivemos num país em que a educação se dá mais pela TV do que pelos livros.

Logo, um programa de grande audiência que atinge as classes A, B, C, até Z, contribui muito para a inclusão social daqueles que, por não protagonizarem novelas, também não eram considerados protagonistas aqui fora. Formavam um elenco de apoio, 50 milhões de figurantes.

Não é nada, não é nada, Manoel Carlos deu projeção a uma linda Luciana que saiu das passarelas para a paraplegia, com o ineditismo de a personagem ter até blog e trocar ideias com os telespectadores como se o seu drama existisse de fato. Bizarro? Cafona? Pode ser.

Mas hoje vejo com mais nitidez aquela moça que todo dia atravessa a rua manejando sozinha sua cadeira de rodas às sete e meia da manhã, engolindo poeira em meio a uma obra, e penso na falta que faz um outro tipo de passarela, uma rampa ou uma calçada bem pavimentada para aqueles que, diferenças à parte, também são personagens principais.

Gostoso feriado para você. Aproveite o dia

terça-feira, 20 de abril de 2010



20 de abril de 2010 | N° 16311
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Paz e serenidade

Algumas pessoas têm de companhia um canário, um poodle, desilusões de amor. Eu sou acompanhado por um par de cadeiras ancestrais.

Quando era bem jovem, na casa de Cachoeira, por vezes, tão grande era o número de hóspedes no verão, que eu era obrigado a dormir na sala de estar. Vêm daí as lembranças mais nítidas das cadeiras.

Numa antevéspera de Natal, mal-acomodado numa cama de armar e vizinhando com a espada de meu antepassado Manuel Carvalho de Aragão, simplesmente não conseguia dormir. Era como se aquela espada, que tomara parte, vitoriosa, em tantas batalhas da Guerra dos Farrapos, estivesse ali para me assombrar.

Só descansei quando me dei conta da presença tranquila das cadeiras centenárias. Sua real majestade, suas linhas fortes e ao mesmo tempo elegantes, suas caprichosas esculturas transmitiam um recado de paz e serenidade. Olhando-as, na semi-obscuridade da peça, sentia-me possuído de tranquilidade e de repente liberto do espectro da espada que despachara tantos deste para outros mundos.

A origem dessas cadeiras é incerta. Quando meu avô Achylles comprou a Granja da Penha, descobriu que o antiquíssimo galpão abrigava mais do que arreios, lamparinas, fogos-fátuos.

Havia um rol de trastes caseiros, alguns devorados pelos cupins, outros de metal, mas sem prestança, ainda terceiros devastados pelas idades.

E havia as duas cadeiras que, embora em péssimo estado, mas com a madeira intacta, podiam ser submetidas a uma restauração. Foi o que o meu avô mandou fazer, com notáveis resultados.

Um honesto artesão transformou curvas e estofos, longamente abandonados, em esplêndidas peças de decoração. Desde então ambas habitaram a sala de visitas da casa de Cachoeira, com uma cláusula pétrea. Quando meu avô se mudasse desta para melhor, as cadeiras passariam a me pertencer.

E foi o que aconteceu. Seu filho Nilson, um caro amigo meu que partiu há pouco, depositário circunstancial dos móveis, enviou-os para mim. Aqui estão eles, bem no momento em que escrevo, fitando-me com sua majestade.

É a segunda vez que uso esse substantivo feminino, e não por acaso. Ocorre que essas duas cadeiras devem ter abrigado muitas lindíssimas princesas, talvez de cabelos negros e olhos claros, e são elas que me observam desde as planuras da eternidade.

Uma linda terça-feira pra você. Aproveite o dia

domingo, 18 de abril de 2010


DANUZA LEÃO

Um final feliz, dentro do possível

Assim passaram a tarde, driblando as enfermeiras, conversando e rindo. No início da noite, ele se foi

O QUE SERÁ menos pior: ter uma morte relativamente em paz, com o auxílio de todos os procedimentos para evitar a dor, ou passar dias, semanas, talvez meses, rodeado de médicos e enfermeiras, cheio de tubos, com estranhos aparelhos em volta, lúcido, talvez -o que é bem pior-, para poder viver por mais alguns dias, semanas, talvez meses? Difícil, a resposta.

Mesmo assim, merece palmas o novo Código de Ética Médica, que dá ao paciente o direito de decidir se o médico deve ou não continuar o tratamento para prolongar sua vida.

Esse paciente, em caso de impossibilidade, pode registrar em cartório o "testamento vital", delegando poderes a alguém para decidir quais os procedimentos que autoriza (ou não), sobretudo para cessar esforços inúteis para ter mais algum tempo de vida, sabe-se lá de que maneira.

A ideia é boa, mas não imagino alguém, em boa saúde, indo ao cartório para fazer esse testamento. Se já estiver mal, a ideia de levar o tabelião ao hospital é terrível. E afinal, delegar a alguém o direito de decisão sobre nossa vida é muito sério. E essa pessoa, será que aceita tal responsabilidade?

É aí que começam os problemas, sobretudo se o doente for rico, pois deve ser alguém de total confiança, que não deixe a menor dúvida quanto à sua decisão. E, de preferência, que não seja herdeiro.

Ainda vai haver muita briga em torno desse Código de Ética.

Os médicos, para cessarem com os procedimentos, vão querer ver o tal testamento (com firma reconhecida), e se o próprio doente disser que não quer que prolonguem sua vida, já que não existem esperanças, vão querer isso por escrito, para evitar um processo futuro.

Quem ainda não botou sua colher torta no assunto foi a Igreja. É bem verdade que no momento ela está mal na foto, mas é claro que vai dar seus palpites e dizer que a vida é sagrada etc. e tal. Tão sagrada que não é permitido aos católicos o uso de nenhum contraceptivo, mesmo em caso de risco de morte.

E a igreja está perdoando tanto -sem nem precisar pedir- que perdoou os Beatles pela blasfêmia ("somos mais famosos do que Jesus") e anos de sexo, drogas e rock and roll; já já estará perdoando os padres pedófilos.

A verdade é que essa história de morte é muito malfeita, e as pessoas não deveriam morrer, apenas tomar um avião e nunca mais dar notícias.

Os amigos poderiam até reclamar, "poxa, nem um telefonema, nem um e-mail com uma foto", mas com o tempo iriam se esquecendo.

Eu tinha um amigo que ficou longo tempo no hospital sofrendo por um monte de coisas. Num determinado momento de um determinado dia, ele percebeu que estava chegando a hora -ou apenas cansou, nunca vamos saber.

Fez um sinal para a mulher, com quem já tinha combinado tudo, ela ligou o iPod com as músicas de que ele mais gostava, tirou da bolsa uma garrafa de uísque, serviu dois, um para cada um, em copos que havia trazido de casa, com gelo e soda, que vieram em um pequeno isopor.

Enquanto tomavam a primeira dose, ela, que o havia obrigado a deixar o vício de fumar há anos e que nem fumante era, abriu um maço de cigarros, tirou um, acendeu e pôs na mão dele, que sorriu como não fazia há tempos.

Assim passaram a tarde, driblando as enfermeiras, conversando e rindo. No início da noite, ele se foi; ela, quase feliz, por terem usufruído, juntos, algumas horas de bem-estar. Houve quem dissesse que eram dois loucos.

Algum tempo depois foi sua vez; passou por todos os sofrimentos de praxe dentro de um hospital, e imagino que tenha pensado em como seria bom ter alguém que lhe oferecesse uma bebida que a ajudasse a ficar levemente eufórica, só que num hospital essas coisas não existem.

Uma pena, aliás. E essa história é verdadeira.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 17 de abril de 2010



18 de abril de 2010 | N° 16309
MARTHA MEDEIROS


Condição de entrega

Acaba de ser revelado o que uma mulher quer e que Freud nunca descobriu. Ela quer uma relação amorosa equilibrada onde haja romance, surpresa, renovação, confiança, proteção e, sobretudo, condições de entrega.

É com essa frase objetiva e certeira que Ney Amaral abre seu livro Cartas a uma Mulher Carente, um texto suave que corria o risco de soar meio paternalista, como sugeria o título, mas não. É apenas suave.

Romance, surpresa etc, não chegam a ser novidade em termos de pré-requisitos para um amor ideal, supondo que amor ideal exista, mas “condição de entrega” me fez erguer o músculo que fica bem em cima da sobrancelha, aquele que faz com que a gente ganhe um ar intrigado, como se tivesse escutado pela primeira vez algo que merece mais atenção.

Mesmo havendo amor e desejo, muitas relações não se sustentam, e fica a pergunta atazanando dentro: por quê? O casal se gosta tanto, o que os impede de manter uma relação estável, divertida e sem tanta neura?

Condição de entrega: se não existir, a relação tampouco existirá pra valer. Será apenas um simulacro, uma tentativa, uma insistência.

Essa condição de entrega vai além da confiança. Você pode ter certeza de que ele é uma pessoa honesta, de que falou a verdade sobre aquele sábado em que não atendeu ao telefone, de que ele realmente chegará na hora que combinou. Mas isso não é tudo. Pra ser mais incômoda: isso não é nada.

A condição de entrega se dá quando não há competitividade, quando o casal não disputa a razão, quando as conversas não têm como fim celebrar a vitória de um sobre o outro. A condição de entrega se dá quando ambos jogam no mesmo time, apenas com estilos diferentes. Um pode ser mais rápido, outro mais lento, um mais aberto, outro mais fechado: posições opostas, mas vestem a mesma camisa.

A condição de entrega se dá quando se sabe que não haverá julgamento sumário. Diga o que disser, o outro não usará suas palavras contra você. Ele pode não concordar com suas ideias, mas jamais desconfiará da sua integridade, não debochará da sua conduta e não rirá do que não for engraçado.

É quando você não precisa fingir que não pensa o que, no fundo, pensa. Nem fingir que não sente o que, na verdade, sente.

Havendo condição de entrega, então, a relação durará para sempre? Sei lá. Pode acabar. Talvez vá. Mas acabará porque o desejo minguou, o amor virou amizade, os dois se distanciaram, algo por aí. Enquanto juntos, houve entrega. Nenhum dos dois sonegou uma parte de si.

Quando não há condição de entrega, pode-se arrastar, prolongar, tentar um amor pra sempre. Mas era você mesmo que estava nessa relação?

Condição de entrega é dar um triplo mortal intuindo que há uma rede lá embaixo, mesmo que todos saibamos que não existe rede pro amor. Mas a sensação da existência dela basta.


A multiplicação das palavras

Os vocábulos estrangeiros se incorporam ao português numa velocidade assombrosa, enriquecem a língua e levantam a discussão sobre adaptar ou não sua grafia

Nataly Costa - Thiago Prado Neri/Tv Globo - Letra por letra



Daniel (primeiro à esq. no trio ao centro da foto), no Caldeirão do Huck: traído pela palavra kirsch,
recente no português

No sábado 10, o programa de TV Caldeirão do Huck exibiu a etapa final de um de seus quadros fixos, o Soletrando. Nele, estudantes de 5ª a 8ª série devem provar seus conhecimentos da língua portuguesa ao soletrar palavras sorteadas. O vencedor leva 100 000 reais. O estudante mineiro Daniel Coutinho, de 13 anos, perdeu o prêmio por pouco. Atrapalhou-se ao soletrar a palavra kirsch, nome de um tipo de aguardente à base de frutas.

O termo é alemão, mas, por encontrar-se difundido entre os apreciadores de bebidas no Brasil, figura como verbete no Aurélio, dicionário da língua portuguesa que serve de base para a competição. O episódio ilustra uma mudança profunda ocorrida nos últimos tempos na forma de incorporação de palavras estrangeiras ao português falado no Brasil. Antes, os vocábulos estrangeiros só eram dicionarizados depois de ter seu uso consagrado entre os brasileiros por pelo menos uma década.

Hoje, a população adota uma quantidade crescente de palavras estrangeiras – e os dicionários correm para transformá-las em verbetes, sob o risco de se tornarem obsoletos. Diz Valéria Zelik, editora do Aurélio: "O idioma já teve mais tempo para adquirir novas lexias. Atualmente, a velocidade das informações vindas de diversas áreas do conhecimento é algo impressionante, e elas trazem novos vocábulos".

Para se ter uma ideia da agilidade desse processo de transformação da língua, os editores dos dicionários Aurélio, Houaiss e Larousse usam um programa de computador desenvolvido para pesquisar continuamente palavras estrangeiras que aparecem nos jornais, revistas e sites brasileiros.

Quando o uso de uma palavra se torna frequente, é sinal de que pode ser a hora de dicionarizá-la. A ideia de que é preciso aportuguesar os vocábulos estrangeiros, segundo os especialistas, está ultrapassada. O que determina o aportuguesamento ou não de palavras estrangeiras é a forma como a população se familiariza com elas.

De acordo com a lexicógrafa Thereza Possoli, da equipe do dicionário Larousse, alguns vocábulos, graças à semelhança com a morfologia e a fonética brasileiras, são adaptados para o idioma com naturalidade. É o caso de blecaute, ateliê, quiosque e surfe.

Outros termos mantêm a forma do idioma original, como marketing, design e réveillon. Há palavras aportuguesadas que figuram no dicionário, mas não vingam no dia a dia, como esqueite (skate) e leiaute (layout). "Nem sempre optamos pelo aportuguesamento, pois o uso do vocábulo em sua língua original se mostra preponderante", explica Renata Menezes, da equipe do Aurélio.

A multiplicação das palavras estrangeiras no português pode apavorar os puristas do idioma, como o deputado Aldo Rebelo, cuja luta para proibir os estrangeirismos no país já se tornou folclórica.

Para estes, o exemplo a ser seguido é o de Portugal, que tenta traduzir tudo para a língua nativa – o mouse do computador, por exemplo, é chamado de rato. Os grandes linguistas brasileiros, contudo, concordam que os termos estrangeiros servem para enriquecer o idioma, não para prejudicá-lo. "Se o estrangeirismo fosse nocivo, a própria língua trataria de expulsá-lo", pondera o gramático Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras.

A história mostra que é da natureza dos idiomas incorporar vocábulos estrangeiros e que, nesse processo, eles evoluem. Na Idade Média, a língua portuguesa contava com apenas 15 000 palavras. Hoje, são mais de 400 000, muitas delas importadas, através dos séculos, do árabe, do italiano, do francês e do inglês.

O linguista americano Noah Webster (1758-1843), considerado "o pai da educação" em seu país, costumava lembrar que o idioma vive e pulsa no dia a dia da população, e não nos gabinetes dos intelectuais. Dizia ele: "A língua não é uma construção abstrata dos sábios, ou dos dicionaristas.

Ela nasce do trabalho, das necessidades, das relações humanas, das alegrias, afeições e experiências de muitas gerações". O termo alemão kirsch, que derrubou o estudante Daniel Coutinho na TV, poderá um dia soar natural para seus filhos.

Língua viva e veloz

No passado, os dicionaristas esperavam dez anos para verificar se uma palavra estrangeira fora adotada plenamente no país. Hoje, com a rapidez com que os estrangeirismos são incorporados ao português, esse prazo é de um ou dois anos. A seguir, vocábulos que serão incluídos na próxima edição do Dicionário Aurélio*

Tecnologia
Smartphone – Celular com alguns recursos de computador
Pop-up – Janela que se abre em página da internet para propaganda
MP3 – Forma de compactação de arquivos de áudio
Antispam – Programa que previne publicidade eletrônica não solicitada
Bluetooth – Tecnologia para conectar dispositivos sem o uso de cabo

Gastronomia
Blanquette– Guisado de carne branca
Chutney – Tipo de geleia de origem indiana
Muffin – Pão fofo doce assado em pequenas fôrmas
Sashimi – Prato da culinária japonesa que consiste em fatias de peixe cru
Bock – Tipo de cerveja adocicada e de teor alcoólico forte
Pierogi – Prato da culinária polonesa que consiste em pastéis cozidos
com diversos tipos de recheio

Comportamento/Esportes
Bullying – Violência psicológica ou física praticada repetidamente
Antidoping – Tipo de exame que busca identificar substâncias de uso proibido no sangue dos atletas
Barwoman – Mulher que prepara drinques profissionalmente
Off-road – Diz-se de veículo próprio para trafegar em terrenos acidentados
Brake-light – Luz de freio dos veículos


Claudio de Moura Castro

Construtivismo e destrutivismo

"O construtivismo é uma hipótese teórica atraente e que pode ser útil na sala de aula. Mas, nos seus desdobramentos espúrios, vira uma cruzada religiosa, claramente nefasta ao ensino"

Tinha missão é árdua: quero desvencilhar o construtivismo dos seus discípulos mais exaltados, culpados de transformar uma ideia interessante em seita fundamentalista. O construtivismo busca explicar como as pessoas aprendem. Prega que o processo educativo não é uma sequência de pílulas que os alunos engolem e decoram.

É necessário que eles construam em suas mentes os arcabouços mentais que permitem entender o assunto em pauta. Essa visão leva à preocupação legítima de criar os contextos, metáforas, histórias e situações que facilitem aos alunos "construir" seu conhecimento. Infelizmente, o construtivismo borbulha com interpretações variadas, algumas espúrias e grosseiras. Vejo quatro tipos de equívoco.
Ilustração Atomica Studio

O primeiro engano é pensar que teria o monopólio da verdade - aliás, qual das versões do construtivismo? As hipóteses de Piaget e Vigotsky coexistem com o pensamento criativo de muitos outros educadores e psicólogos. Dividir o mundo entre os iluminados e os infiéis jamais é uma boa ideia.

O segundo erro é achar que todo o aprendizado requer os andaimes mentais descritos pelo construtivismo. Sem maiores elaborações intelectuais, aprendemos ortografia, tabuadas e o significado de palavras.

O terceiro é aceitar uma teoria científica como verdadeira por conta da palavra de algum guru. Em toda ciência respeitável, as teorias são apenas um ponto de partida, uma explicação possível para algum fenômeno do mundo real. Só passam a ser aceitas quando, ao cabo de observações rigorosas, encontram correspondência com os fatos. Einstein disse que a luz fazia curva.

Bela e ambiciosa hipótese! Mas só virou teoria aceita quando um eclipse em Sobral, no Ceará, permitiu observar a curvatura de um facho luminoso. O construtivismo não escapa dessa sina. Ou passa no teste empírico ou vai para o cemitério da ciência - de resto, lotado de teorias lindas.

Não obstante, muitos construtivistas acham que a teoria se basta em si. De fato, não a defendem com números. Obviamente, nem tudo se mede com números. Mas, como na educação temos boas medidas do que os alunos aprenderam, não há desculpas para poupar essa teoria da tortura do teste empírico, imposto às demais. Por isso, temos o direito de duvidar do construtivismo, quando fica só na teoria.

Mas o que é pior: outros testaram as ideias construtivistas, não encontrando uma correspondência robusta com os fatos. Por exemplo, orientações construtivistas de alfabetizar não obtiveram bons resultados em pesquisas metodologicamente à prova de bala.

O quarto erro, de graves consequências, é supor que, como cada um aprende do seu jeito, os materiais de ensino precisam se moldar infinitamente, segundo cada aluno e o seu mundinho. Portanto, o professor deve criar seus materiais, sendo rejeitados os livros e manuais padronizados e que explicam, passo a passo, o que aluno deve fazer.

Desde a Revolução Industrial, sabemos que cada tarefa deve ser distribuída a quem a pode fazer melhor. Assim é feito um automóvel e tudo o mais que sai das fábricas. Na educação, também é assim. Os materiais detalhados são amplamente superiores às improvisações de professores sem tempo e sem preparo.

De fato, centenas de pesquisas rigorosas mostram as vantagens dos materiais estruturados ou planificados no detalhe. Seus supostos males são pura invencionice de seitas locais. Quem nega essas conclusões precisa mostrar erros metodológicos nas pesquisas. Ou admitir que não acredita em ciência.

Aliás, nada há no construtivismo que se oponha a materiais detalhados. Entre os construtivistas americanos, muitos acreditam ser impossível aplicar o método sem manuais passo a passo.

Em suma, o construtivismo é uma hipótese teórica atraente e que pode ser útil na sala de aula. Mas, nos seus desdobramentos espúrios, vira uma cruzada religiosa, claramente nefasta ao ensino.

Claudio de Moura Castro é economista


Goldman Sachs é acusado de fraude

Segundo o governo dos EUA, banco se aliou a investidor para criar um fundo com ações podres. O título foi vendido no mercado enquanto o Goldman e o investidor apostavam contra ele
Redação Época

ACUSADO A sede mundial do Goldman Sachs, em Nova York

A Comissão da Bolsa de Valores dos Estados Unidos, um órgão do governo federal, entrou com uma ação civil contra o banco Goldman Sachs na qual acusa o grupo financeiro de fraude. De acordo com a denúncia, o Goldman Sachs criou um fundo de investimento em hipotecas cujo objetivo era dar errado e, para completar, apostou contra o próprio fundo, lucrando com isso.

A denúncia afirma que o fundo de investimentos, chamado Abacus 2007-AC1, foi criado no início de 2007 para investir nas chamadas subprime – as hipotecas de alto risco negociadas nos Estados Unidos.

Naquele momento, o mercado hipotecário americano começava a dar sinais de enfraquecimento – era o prenúncio da crise que atingiu seu ápice com a concordata do Lehman Brothers, outro banco de investimentos, em setembro de 2008.

De acordo com o jornal The New York Times, o fundo era composto de ações escolhidas a dedo por John A. Paulson, um administrador de fundos hedge que pagou US$ 15 milhões ao banco para estruturar o Abacus 2007-AC1. Em comum, as ações tinham a grande possibilidade de perder valor com a crise do mercado imobiliário que ocorreria nos meses seguintes.

Mesmo sabendo disso, o Goldman Sachs colocou o fundo no mercado, sem informar que ele havia sido criado por Paulson, e dezenas de bancos estrangeiros, fundos hedge, companhias de seguro e fundos de pensão investiram nele.

Ao mesmo tempo, o Goldman fez investimentos apostando que os fundos iriam perder valor, como de fato ocorreu. Segundo a comissão do governo americano, o prejuízo total dos investidores foi de US$ 1 bilhão.

Além do Goldman Sachs, é citado na ação um dos vice-presidentes do banco, Fabrice Tourre, que teria ajudado a montar o fundo. Nenhum dos dois se pronunciou sobre o caso, assim como Paulson, que não é alvo da ação proposta pelo governo americano.


17 de abril de 2010 | N° 16308
NILSON SOUZA


Herança genética

A menina dos meus olhos retorna da escola comentando uma curiosa prova a que foi submetida sua turma de adolescentes. A tarefa era comentar, por escrito, o resultado de uma enquete mais ou menos nos seguintes termos: Se você pudesse escolher as características de seu filho, daria prioridade à inteligência, à beleza, ao porte físico ou deixaria a critério da natureza?

Segundo o texto, mais de 50% dos entrevistados responderam que não fariam escolhas, um percentual alto apontou a inteligência como característica desejada e – felizmente – poucos optaram pela beleza e pelo porte físico.

Não sei o que os jovens comentaram sobre as respostas, suponho que devem ter ido no mesmo rumo dos adultos pesquisados. Mas o exercício me pareceu oportuno. Colocou a meninada diante de um dilema que há muito deixou de ser fictício. Em alguns países, clínicas de manipulação genética já oferecem aos pais a possibilidade de escolher, por exemplo, a cor dos olhos ou dos cabelos de seus futuros bebês. Num futuro bem próximo, é possível que muitos daqueles adolescentes tenham mesmo que tomar suas próprias decisões a respeito do assunto.

Gostei de constatar que a escola da minha afilhada está trabalhando temas éticos com os alunos. Se me coubesse acrescentar mais uma questão a respeito do assunto, teria aproveitado para propor à menina e a seus colegas o seguinte: Se seus pais pudessem escolher, você acha que o filho seria você? Acho que faria a garotada refletir um bocado.

Este tema da escolha prévia das características dos filhos me faz lembrar uma história protagonizada pelo escritor irlandês George Bernard Shaw, conhecido por sua genialidade e também por sua feiúra. Dizem que certa vez, durante uma festa chique, ele foi importunado por uma espevitada socialite da época, que era muito bonita mas de poucas luzes, com a seguinte sugestão:

– Já pensou se a gente casasse e tivesse um filho com a minha beleza e a sua inteligência?

Ao que o inspirado dramaturgo respondeu de pronto:

– Não acho sensato, minha senhora. Já pensou se ele nascesse com a minha beleza e a sua inteligência?

A anedota tem o seu lado sério. Mesmo com o mapeamento genético do ser humano, ninguém jamais terá total certeza de que os filhos sairão de acordo com o planejado, até mesmo porque a personalidade se forma a partir do nascimento e é influenciada por fatores como o ambiente doméstico, as oportunidades e o exemplo dos pais.

E para os bebês não há escolha.

quarta-feira, 14 de abril de 2010



14 de abril de 2010 | N° 16305
MARTHA MEDEIROS


Inocentes e culpados

Saudade da infância. A gente fazia molecagens e depois bastava confessar e rezar três ave-marias para ficar quite com Deus. Quando criança, meus pecados eram matar aula ou brigar com meu irmão, e eu imaginava que se meus pecados começassem a se tornar mais radicais, o pior que poderia me acontecer era ter a pena elevada de três para 18 ave-marias. Dava pra suportar.

E assim a Igreja ia me educando para a impunidade, bem diferente do que faziam meus pais: quando eu errava, eles me deixavam sem tevê, sem brincar na rua e sem refri. Isso, sim, era um castigo medonho, mas que visava à reabilitação.

Hoje leio que a Igreja, desastradamente, anda associando pedofilia a homossexualidade, e que um dos castigos propostos é fazer com que o clérigo pecador isole-se e passe a vida entre preces. Quantas ave-marias pra ele?

Abusar de crianças é um escândalo em qualquer circunstância, não importa o motivo do crime e quem o cometeu. Todos os perversos possuem suas razões: ou também foram abusados quando meninos, ou foram abandonados pela família, ou são cruéis por natureza, ou não receberam nenhum princípio moral ou ético, ou passaram por privações, ou são doidos de pedra. O que induz à ação criminosa não é a inclinação sexual do sujeito, mas sua ausência de civilidade.

O Vaticano tem se preocupado em explicar a quantidade incômoda de padres pedófilos denunciados, mas, antes de tentar explicar, deveria julgar e, comprovado o crime, condenar. Punir. Prender. O fato de serem representantes de Deus não pode servir como atenuante, ao contrário. Está-se diante da hipocrisia sacramentada, do “vinde a mim as criancinhas” sem levar em conta nenhum dos preceitos que regem (ou deveriam reger) a religião, qualquer religião.

Enquanto houver condescendência, não haverá paz. A redução da violência passa pela punição imediata.

Falamos muito em investir em educação e esse é o principal caminho, lógico, mas é uma solução a longo prazo.

Para corrigir o agora, tem que se dar o exemplo agora. Vale para o casal Nardoni, vale para o estuprador assassino de Luziânia, vale para o fazendeiro que matou a missionária Dorothy Stang, vale para os mandantes e executores de Eliseu Santos e vale para todos os que escapam da lei porque não há policiais suficientes, nem servidores, nem dinheiro, nem equipamentos, nem espaço nas cadeias e, principalmente, por não termos a cultura do Tolerância Zero. Tolera-se quase tudo e, o que não se tolera, esquece-se com o tempo.

Aquelas três ave-marias que me mandavam rezar por ter matado aula ou brigado com meu irmão eram inúteis. Não havia crime, não havia pecado: havia inocência.

Não sei o que os adultos hoje dizem no escuro dos confessionários, o que os padres escutam por trás das treliças, só sei que Deus, em sua infinita bondade, perdoa fácil qualquer delito, seja o de uma criança que disse um palavrão até o de um adulto que admite um estelionato, basta ajoelhar, rezar e declarar-se arrependido.

Não por acaso, Arruda saiu da prisão anteontem recepcionado por orações, abençoado seja. Mas, sinceramente, troco a redenção divina pela Justiça terrena, que está fazendo mais falta.

Uma gostosa quarta-feira pra você. Aproveite o dia

terça-feira, 13 de abril de 2010



13 de abril de 2010 | N° 16304
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Devagar e com jeito

Tem gente que acha que o universo inteiro cultiva o maior interesse por seus negócios particulares. Eu estava esses dias num restaurante e o cavalheiro da mesa ao lado atendeu o celular como se estivesse no próprio timão de seu escritório.

“Não tem erro” – dizia para todos nós. E para confirmar essa afirmativa discorria longamente sobre números e cifras, promissórias e duplicatas, repartições e varas da Fazenda.

Não pensem que tudo isso tinha aparência de segredo. Bem ao contrário, revelando um sentido apreço pelo som da própria voz, o senhor em questão rivalizava em tom com uma gravação dos Três Tenores, servindo ao vivo uma ópera de suas transações no mercado.

Corta para uma fila. Uma fila é algo abominável, um atentado à dignidade humana. Pois ocorreu que estando eu em um banco, sujeito a esse suplício, fui submetido ao diálogo de uma cliente, que estava algumas posições à frente, com uma filha, ou amiga, ou cunhada.

“A Natércia saiu de casa mesmo?” –perguntava ela. E jurava então que já desconfiava, a Natércia, com aqueles olhos gateados, era uma dissimulada, quem não se lembrava da amizade dela com o empregado do cartório?

Paro aqui. Esses são tão somente dois exemplos de conversas que sou obrigado a ouvir todos os dias, de usuários de celulares. Não são, em absoluto, a maioria. Há pessoas sensatas que ocupam o aparelho para dar um recado, dizer que estão bem, cumprimentar por um aniversário ou por uma formatura.

Mas há os outros, os que confundem o mecanismo com a trombeta do Juízo Final. Bem característicos dessa espécie são os ressonantes. Por essa palavra entenda-se os que não se contentam em falar numa calibragem de altos decibéis.

São repetitivos. Reproduzem para o distinto público o que acabaram de ouvir. “A Anelise se separou do Aldrovando? “. “0 cachorro do barbeiro mordeu o doutor Anacleto?”.

E pronto: toda a redondeza é informada, embora não se interesse a menor que uma Anelise rompeu com um Aldrovando, que o mal-humorado cão do barbeiro atacou um doutor, logo o Anacleto.

Já que temos tantas leis, deveria existir uma determinando normas para o uso do telefone celular. O primeiro mandamento seria: “Só use o aparelho devagar e com jeito, assim como quem faz uma declaração de amor.”

Garanto que a humanidade seria mais feliz e o mundo uma ópera com um final venturoso como o paraíso perdido.