sábado, 9 de junho de 2012



09 de junho de 2012 | N° 17095
CLÁUDIA LAITANO

Pais & filhos

Os bebês invadiram o mundo – ou pelo menos o mundo virtual. Eles são onipresentes nas redes sociais: bebês sorrindo, bebês chorando, bebês de roupa nova, bebês tomando banho. Nunca participamos tanto da primeira infância alheia ou fomos tão detalhadamente informados sobre rotinas que pouco ou nada interessam a quem não é próximo da criança. Sua majestade, o bebê, é provavelmente o ser vivo mais filmado e fotografado do planeta – seguido de perto por gatos fofinhos e a realeza britânica.

Bebês talvez sejam mesmo a face mais luminosa da existência. Onde mais, seja você o Steve Jobs ou o vendedor de maçãs da esquina, seria possível encontrar uma combinação tão magnífica de amor incondicional, possibilidades ilimitadas e futuro a perder de vista? Não é à toa que os pais exibem as fotos de seus filhos nas redes sociais como antigamente se compartilhavam cartões-postais das pirâmides ou da Torre Eiffel.

Sim, eles são lindos, sim, eles são amados, mas, mais do que isso, eles são um instantâneo de um momento de plenitude em meio à inevitável imperfeição de todo o resto. Quem tem um bebê em casa não está pensando no que ele já foi nem sabe ainda o que ele será. O bebê muito desejado é um doce e prolongado presente, nos dois sentidos. E estar “presente no presente”, dizem, é o mais perto da felicidade que a gente consegue alcançar.

No outro extremo desse presente sorridente e absoluto, encontram-se os filhos encarregados de cuidar dos pais no fim da vida. Aqui é o peso do passado, tenha ele sido feliz ou nem tanto, e a angústia em relação ao futuro que tomam conta do dia a dia. O presente torna-se precário – e, em muitos casos, fisicamente doloroso.

Perder os pais, ou a sua lucidez, nos torna órfãos não apenas da companhia deles, mas da alegre inconsequência de nunca pensar muito a sério na própria finitude. (Imaginem que experiência transcendente essa que viveu a filha do Niemeyer, que morreu esta semana, aos 82 anos, deixando o pai vivo e lúcido chorando por ela.)

Ao contrário dos bebês, pais e avós não são exatamente um hit nas redes. Talvez essas cerimônias privadas de adeus não caibam mesmo na superficialidade de um tweet ou de um retrato de celular – embora experiências de dor, por mais diferentes que sejam da nossa própria realidade, nos ensinem muito mais sobre a condição humana do que os momentos de felicidade e plenitude alheios.

Nos últimos dias, foram publicados dois belos textos sobre o assunto – dois relatos corajosos e tocantes de filhos que perderam os pais. O primeiro, na capa da revista Time desta semana, assinado pelo jornalista Joe Klein: “Como Morrer: o que aprendi dos últimos dias dos meus pais”, em que o autor narra como enfrentou a responsabilidade de ter que decidir sobre a vida e a morte dos pais.

O outro, “O Cérebro do Meu Pai”, publicado na revista Piauí de junho e assinado pelo escritor americano Jonathan Franzen – um dos grandes autores da minha geração –, é provavelmente o texto mais comovente e profundo sobre a experiência de conviver com um paciente de Alzheimer que eu já li.

Entre outras coisas, Franzen revela que a excruciante experiência de ver o pai indo-se aos poucos, paradoxalmente, o fortaleceu: “Tornei-me, no geral, um pouco menos medroso. Uma porta ruim se abriu, e descobri que era capaz de atravessá-la”.

quarta-feira, 6 de junho de 2012



06 de junho de 2012 | N° 17092
MARTHA MEDEIROS

Carisma e inocência

Nestes tempos em que originalidade é mercadoria em falta, em que quase nada nos surpreende, foi notícia fresca saber que o ator Wagner Moura iria se apresentar com Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá em dois shows promovidos pela MTV para comemorar os 30 anos da Legião Urbana, banda de rock que embalou a adolescência e juventude de uma geração inteira (a minha, inclusive) e que muitos consideram como a melhor de todos os tempos.

Não são comuns essas substituições, menos ainda quando o substituído é um sujeito idolatrado e messiânico como Renato Russo, e muito menos ainda quando não é um cantor profissional que assume o microfone. Alguém imagina o Robert Downey Jr. cantando ao lado de Krist Novoselic num tributo ao Nirvana? Eu não me incomodaria se a moda pegasse.

Wagner Moura é vocalista de uma banda amadora chamada Sua Mãe, o que já demonstra que não está muito interessado em lançar-se a sério no mercado fonográfico, mas o convite não veio daí, e sim por causa da cena em que cantou Será no filme VIPs: o personagem protagonista dava uma canja num bar, entre um golpe e outro.

Foi o que bastou para acender a lampadinha sobre a cabeça dos idealizadores da homenagem. É ele.

Correndo todos os riscos que as comparações provocam, Wagner topou, e que bom que topou. Deve ter pensado: “Quantas chances desperdicei quando o que eu mais queria era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém”.

Dançou feito um possuído, incorporou maneirismos do Renato, amou a plateia como se não houvesse amanhã e desafinou uma barbaridade sem perder o sorriso no rosto e o olhar arrebatado. Se divertiu a valer, que é pra isso que serve a vida. Estava vivenciando cada verso das músicas que cantava: “Quem me dera ao menos uma vez, como a mais bela tribo, dos mais belos índios, não ser atacado por ser inocente”.

Vibro com os inocentes, torço pelo time deles. São pessoas que saem da sua zona de conforto e testam-se em novos papéis sem queimar os neurônios. Nessa hora, somos todos atores sem texto, sem direção e sem rede de segurança, agindo por instinto e abraçando loucuras – perder tempo calculando prós e contras já é uma maneira de dizer não.

Wagner gosta de cantar, é fã do Legião, tem familiaridade com o palco e viu no convite uma chance de fazer outro tipo de teatro. Não podia dar errado, mesmo com todas as desafinações previstas. Não podia porque as coisas feitas com espontaneidade, sem almejar algo além do momento vivido, já saem em vantagem. E porque Renato Russo havia cantado essa pedra quase três décadas atrás: “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?”.

Poesia. É ela que sempre nos salva do ridículo e dá à vida uma transcendência cada vez mais necessária.



06 de junho de 2012 | N° 17092
LITERATURA

De loucura e de sombras

Tailor Diniz autografa hoje romance ambientado na região da fronteira gaúcha com o Uruguai

Quando loucura e lucidez não têm fronteiras nítidas, é perigoso seguir as sombras. Esse é o mote de fundo de A Superfície da Sombra, novo romance que o escritor Tailor Diniz autografa hoje, às 19h, na Livraria Cultura do Shopping Bourbon Country.

E m A Superfície da Sombra, o protagonista, um escritor de nome Antônio, residente em Porto Alegre, viaja a uma fictícia localidade na fronteira do Uruguai. Duas cidades-gêmeas, Poblado Oriental, no Uruguai, e Passo do Cati, no Brasil, são separadas apenas por uma avenida localizada na fronteira.

De tão próximas, ambas vivem uma existência comum à margem de trâmites diplomáticos. Como se fossem uma só localidade, os moradores cruzam de um lado para outro tranquilamente, mas uma carta enviada para o outro lado pode demorar um mês para ser entregue, porque precisará ser remetida para o centro de alguma das duas nações e voltar.

Antônio foi chamado a Poblado Oriental por uma antiga paixão, Adèle, à beira da morte. Chega tarde, à cidade, no entanto, e é recebido apenas pela filha da recém-falecida, a bela e misteriosa Blanca Lucía. Duplamente estrangeiro numa comunidade em que todos parecem conhecer os desvãos mais íntimos da vida dos outros, Antônio percorre a cidade, vai ao enterro da amiga, acompanha Blanca Lucía a alguns compromissos. A narrativa o segue de perto, ora em primeira pessoa, ora em terceira.

A cada mudança de foco, o não nomeado narrador “de fora” desvela algo que Antônio, em sua inconsciência, parece não notar ao relatar os próprios movimentos– entre outras coisas, o fato de que sua chegada aparentemente colocou em marcha forças obscuras que se organizam contra ele.

Se tal recurso narrativo por vezes soa repetitivo, ao reapresentar as mesmas cenas mais de uma vez, seu saldo final é positivo por dar ao livro um tom sólido de suspense. Diniz vem enveredando de modo consistente pela literatura policial nos últimos anos – seu romance anterior, Crime na Feira do Livro, era um folhetim detetivesco em meio ao principal evento literário de Porto Alegre. Na época de seu lançamento, o autor comentou que o romance havia se beneficiado de leituras e pesquisas sobre a estrutura da narrativa de gênero.

Esse apanhado teórico pode ter deixado suas marcas também em A Superfície de Sombra. Embora não seja um policial – o que Crime na Feira do Livro declaradamente era –, a história se constrói na pintura de uma atmosfera de suspense em que, sob cada parágrafo, espreita uma sensação de ameaça ao protagonista, conhecida pelos moradores da cidade – e, por tabela, pelo leitor – mas ignorada por ele próprio.

Assim como a narrativa se localiza num território geográfico de fronteira, também Antônio, o protagonista, se movimenta entre fronteiras metafóricas: as mais nítidas delas entre o sonho e a vigília (quando não está descobrindo a cidade, Antônio dorme longos períodos fora de hora) e entre a sanidade e a loucura – mesmo alertado de que corre perigo, ele parece navegar incerto pelas duas cidades, que em seu espelhamento refletem a dubiedade dos moradores do local.

carlos.moreira@zerohora.com.br.

A SUPERFÍCIE DA SOMBRA
De Tailor Diniz
Romance. Grua, 160 páginas, R$ 32,50. Sessão de autógrafos hoje, às 19h.
Livraria Cultura (Bourbon Shopping Country, Avenida Túlio de Rose, 80)
Onde estacionar: O shopping tem estacionamento próprio
O livro: Na tentativa de um último contato com uma antiga namorada moribunda, homem chega a duas misteriosas cidades de fronteira.


06 de junho de 2012 | N° 17092
DIANA CORSO

Uma princesa guerreira

Por 200 anos, Branca de Neve sobreviveu na imaginação das crianças, fiel ao relato dos irmãos Grimm, pouco alterado por Disney. Essa história adormecida, sem nunca ter perdido as cores, pode-se dizer que acaba de ser novamente beijada.

2012 foi o ano da ressurreição da princesa morena, dois filmes a despertaram. Mas, desta vez, ela foi chamada à ação: em Branca de Neve e o Caçador, de Rupert Sanders, ela tornou-se uma princesa guerreira.

Essa trama confirma uma antiga suspeita: que a nova Rainha, a feiticeira Ravenna, assassinara o Rei. A enteada foi mantida prisioneira até que, como na história clássica, o espelho revele sua beleza. Agora a malvada não quer apenas matá-la e comer seu coração. A feiticeira Ravenna mantém-se linda e desejável, vampirizando a juventude de jovens súditas.

Branca de Neve é especial, pois lhe conferirá a vida eterna. Ao fugir, a princesa é ajudada por um cavalo branco, sem príncipe.

Quando desperta de seu sono enfeitiçado, não é para casar, é para liderar as tropas que derrotarão sua rival e salvar o reino aterrorizado pelo domínio nefasto de Ravenna. Já o Caçador é um jovem viúvo atormentado, que se culpa pela morte da esposa. Ele protege a moça paternalmente, lhe ensina a lutar, mas se apaixona por ela. Ressurge também um amor infantil, William, que também é seu dedicado e apaixonado cavalheiro. Só que a princesa tem mais o que fazer.

Muitas princesas sobreviveram ao esquecimento, várias conseguiram a juventude eterna. Branca de Neve foi a primeira a inaugurar um novo cânone: a princesa cantora de desenho animado. Só podia ser ela, novamente, a revolucionar o nicho das princesas clássicas: o amor não é mais o final feliz.

O que permanece? O fato de que crescer é tornar-se órfão. Nos contos de fadas, a mãe amorosa morre rápido (quando, na verdade, é o filho perfeito que sucumbe, assim que começa a crescer e aparecer). É aí que madrastas e bruxas são convocadas para representar os conflitos normais do desenvolvimento.

E mais, a mulher terá que desbancar a mãe, cuja juventude fenece esperneando, superá-la em encantos. Deverá a seu modo matá-la, apropriar-se dos atributos femininos. Esse conflito alimenta a paixão das meninas por histórias de princesas e bruxas.

O que não tinha como sobreviver? A ideia de que a vida de uma mulher tem o ápice no casamento. Da revolução de costumes dos anos 60, da libertação da tristeza pelos horizontes estreitos do lar, veio a certeza de que elas querem mais. Para nós, liderados por uma presidenta guerreira, não é uma surpresa.

Correção

Por erro de edição, três travessões foram substituídos por interrogações na coluna de Luís Augusto Fischer publicada na edição de ontem do Segundo Caderno. Confira a íntegra do texto em www.zerohora.com/segundocaderno.

domingo, 3 de junho de 2012


DANUZA LEÃO

Sobre o abuso sexual

Coisas ruins acontecem, mas devem e podem ser também superadas, e o estupro é uma delas

Ninguém sabe o que se passa na cabeça das pessoas, mas existem -homens, principalmente- as que têm fantasias sexuais com meninas (ou meninos) muito jovens, sobretudo quando são meninas (ou meninos) bonitas; isso desde que o mundo é mundo, e acontece até no seio da Santa Madre Igreja. Esses, ou procuram pensar em outra coisa, ou cometem abusos, o que é crime hediondo.

Mas qual a diferença entre uma menina e uma moça? Já era assim quando as adolescentes usavam saia pregueada e meia curta. Hoje elas imitam, desde bem novinhas, o que veem na televisão: usam sapatos de saltinho, minissaia, batom e pintam as unhas.

Pedófilos sempre existiram, existem e existirão, mais do que se imagina, mais do que se sabe. São pessoas com desordem mental, e quem não ouviu falar que em regiões mais atrasadas pais tiveram relações com uma ou mais filhas, tendo até engravidado algumas, que se tornaram mães de suas próprias irmãs.

Isso acontece no Brasil profundo e também em países altamente civilizados; na Espanha, houve um bando de pedófilos que abusava sexualmente de crianças, até mesmo de bebês. A miséria humana não tem limites.

A sexualidade das pessoas é um mistério; existem muitos homens, mais do que se imagina, que se alteram quando veem uma criança bonita. Acariciam uma perna, dizem que ela é linda, mas não vão adiante por saberem que esse desejo é pecado, é crime, é contra as leis da natureza, como preferirem chamar; alguns não passam disso, pois não chegam nem mesmo a terem consciência desse desejo.

Mas as crianças percebem; não sabem o que está acontecendo, mas quando fogem do abraço de algum amigo do pai ou de um tio, é porque perceberam. Até pelo olhar elas sentem, criança não é boba. Intuem que alguma coisa está errada, mas como não compreendem o que está acontecendo, não falam.

Só se fala do que se entende, e acusar uma pessoa próxima da família de algo que elas mesmas não sabem o que é está fora de questão. Têm pudor e sabem que podem ser castigadas, por terem a cabeça "suja".

Cabe às mães e aos pais ficarem atentos, não deixarem suas filhas/filhos em situações de risco, olhar atentamente o que se passa, e desconfiar sempre, sem medo de estar pensando em "maldades", sabendo que essas coisas acontecem nas melhores famílias. Não vivemos em um mundo ideal.

O abuso sexual causa efeito devastador nos que o sofrem, e precisam de apoio profissional, apoio esse que deve ser forte e positivo; só o amor de mãe e pai não é suficiente.

Elas devem aprender a levantar a cabeça e olhar a vida de frente, deixando esse triste momento para trás, no lugar de sofrer por toda a existência; passaram por um péssimo momento, como poderiam ter sido atropeladas ou levado uma facada de um assaltante.

Houve gente que perdeu a família inteira na guerra, ou durante o tsunami, ou nas torres gêmeas de Nova York, ou no terremoto de Tóquio, mas conseguiu superar. Coisas ruins acontecem, mas devem e podem ser também superadas, e o estupro é uma delas.

A condição humana é uma miséria.

danuza.leao@uol.com.br

FERREIRA GULLAR

É um circo ou não é?

Parece que a corrupção tomou conta do Estado brasileiro, que não há mais em quem confiar

Ultimamente, faço um esforço enorme para não perder a esperança em nosso país, em nossa capacidade de nos comportarmos com um mínimo de respeito pelo interesse público, pelos valores éticos, enfim, por construirmos uma nação digna deste nome.

É que, a cada dia, como você, fico sabendo de coisas que me desanimam. Parece que a corrupção tomou conta do Estado brasileiro, que não há mais em quem confiar. O que desanima não são apenas as falcatruas praticadas por parlamentares, ministros, governadores, prefeitos, juízes... O pior é que esses dados refletem uma espécie de norma generalizada que dita o comportamento das pessoas e o próprio funcionamento da máquina pública.

Um pequeno exemplo: o precatório. Se ganhas na Justiça uma ação que obriga o governo a te indenizar, ele está obrigado a te pagar, não? Só que ele não paga, não cumpre a decisão judicial, e fica por isso mesmo. A Justiça sabe que sua decisão não foi obedecida e nada faz.

Pior, às vezes esse dinheiro é apropriado por altos funcionários da própria Justiça. Enquanto isso, as pessoas que deveriam ser indenizadas esperam 20, 30 anos, sem nada receber. É como um assalto em via pública. Este é um fato corriqueiro num país dominado por uma casta corrupta.

E eu, burro velho, embora sabendo disso tudo, não paro de me surpreender. Acontece de tudo, até CPI criada pelo governo. Nunca se viu isto, já que CPI é um recurso da oposição; quer dizer, era, porque a de Cachoeira foi invenção do Lula e seu partido, e conta com o apoio da presidente Dilma. Isso porque, no primeiro momento, os implicados pareciam ser apenas adversários deles, a turma do mensalão.

Eis, porém, que novas revelações envolveram gente do PT e aliados do governo, sem falar numa empresa corrupta que é responsável por grande parte das obras do PAC, o Plano de Aceleração do Crescimento do governo federal.

Mas o que fazer, agora, se a CPI já estava criada? Voltar atrás seria impossível, e nem era preciso, uma vez que, dos 30 membros da CPI, apenas sete são da oposição, quer dizer, não decidirão nada.

Mas essas revelações punham em risco um dos principais objetivos de Lula, que era usar a CPI para desqualificar o processo do mensalão, prestes a ser julgado pelo STF. Essa intenção foi favorecida por um fato que envolve o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, a quem caberá fazer a denúncia da quadrilha chefiada por José Dirceu.

O PT tentou desqualificá-lo, apresentando-o como ligado a Demóstenes Torres e, portanto, a Cachoeira. A jogada não deu certo e, além do mais, está aí a maldita imprensa, que insiste em criar problemas, por levar à opinião pública informações inconvenientes.

De qualquer modo, a CPI teria que ouvir Carlinhos Cachoeira, e só Deus sabe o que ele poderia revelar. Deus e nós também: nada, como se viu.

É que ele se valeu do direito, que a Constituição lhe concede, de permanecer calado para não produzir provas contra si mesmo. Quem quer que tenha inventado isso -sempre em defesa dos inocentes, claro- com frequência favorece aos culpados, uma vez que o inocente, por nada temer, faz questão de contar toda a verdade. Calar, portanto, é confissão de culpa.

De qualquer modo, Carlos Cachoeira, a conselho de seu advogado, não respondeu a nenhuma das perguntas que lhe foram feitas, deixando os parlamentares, que inutilmente o interrogavam, em situação constrangedora. Aquela sessão da CPI, em Brasília, só pode ser comparada a um espetáculo circense.

E quem é o advogado de Cachoeira? Nada menos que o ex-ministro da Justiça de Lula, Márcio Thomaz Bastos, que, sentado a seu lado, como um segurança jurídico, ouvia os deputados e senadores se referirem a seu constituinte como "bandido, chefe de uma quadrilha de ladrões". Estava ali por vontade própria ou por imposição do cliente? Não se sabe, mantinha-se indiferente, como se nada ouvisse.

Foi por saber Cachoeira culpado de todas aquelas falcatruas que o aconselhou a nada responder. Resta à CPI recorrer às provas documentais. Por isso mesmo, Thomaz Bastos já pediu a anulação delas. Cachoeira pode não ter razão, mas dinheiro não lhe falta. E o espetáculo continua...

sábado, 2 de junho de 2012



03 de junho de 2012 | N° 17089
MARTHA MEDEIROS

Noite em claro

A maioria das pessoas admite ter alguma dificuldade para dormir. Ou elas custam a pegar no sono, ou então dormem assim que desligam o abajur, porém acordam no meio da madrugada, por nada. Fazemos parte de uma confraria que preza suas cinco a sete horas de descanso (oito é para afortunados), mas que não apaga profundamente como deveria, a não ser com a ajudinha de um Rivotril ou similar.

Se é ansiedade, excesso de preocupação ou herança genética, problema para os especialistas ajudarem a resolver. Eu não posso me queixar, durmo cedo e rápido. Mas como se viram os insones clássicos? Abraham Lincoln realizava caminhadas noturnas, Groucho Marx ligava para estranhos e os insultava, Cary Grant recorria à hipnose, Charles Dickens tinha que posicionar a cabeça para o norte e Marilyn Monroe se entupia de comprimidos – exagerou, como se sabe.

Já os reles mortais leem enquanto o sono não vem.

No entanto, sei de uma mulher que, em vez de ler, resolveu escrever um livro durante uma noite chuvosa. Nunca havia escrito nada antes.

Fez um pacto consigo mesma: enquanto a chuva não parasse, ela não pararia de escrever – e como choveu a madrugada inteira, a cântaros, ela passou a noite em claro, com tempo mais que suficiente para fazer um inventário de sua vida amorosa e sexual, que não tinha nada de vitoriana, como a obra de Dickens, nem de engraçada, como a de Groucho Marx.

Era a história de alguém que raramente conseguiu conciliar amor e sexo numa mesma relação, e resolveu por bem escolher entre um e outro. Escolheu o sexo.

O nome dela? Não sei. Não tem. É uma personagem que inventei. Escrevi essa história em 2003 ou 2004. Uma ficção curtíssima que nunca foi publicada, nem teria onde, sendo tão enxuta. Pois bem: depois de eu fazer essa personagem povoar uma madrugada inteira com suas lembranças de amores imperfeitos (todos são), calei-a. Coloquei o ponto final na obra e deixei essa mulher descansar. Ela ficou dormindo dentro do meu computador por cerca de nove anos.

Esqueci dela. Até que o Ivan Pinheiro Machado, meu editor, comentou que a L&PM estava lançando uma coleção de bolso chamada “64 Páinas”, só para textos breves. Era a chance que eu tinha de deixála sair do seu quarto escuro. Acordei-a, dei uma revisada em suas confissõs ora melancóicas, ora picantes, e agora ela vai pra rua.

“Noite em Claro” já deve estar nas livrarias, supermercados e farmácias, a um preço megapopular: cinco reais. Ideal para deixar na mesinha de cabeceira, ao lado da cama, para o caso de o sono não vir. Mas espero que a leitura seja tão dinâica que não permita que você pregue os olhos antes do fim.



02 de junho de 2012 | N° 17088
CLÁUDIA LAITANO

Hologramas

Entre as experiências sensoriais inusitadas proporcionadas por novas tecnologias – coisas insólitas como observar o interior do próprio corpo no monitor de uma TV ou conferir na internet a imagem que um satélite captou do telhado da sua casa –, assistir a um artista morto cantando e dançando em três dimensões no palco deve estar na lista das mais bizarras.

A tecnologia nem é tão nova assim – na verdade, trata-se apenas de uma superprojeção em 3D em tamanho natural –, mas o impacto da ressurreição virtual do rapper Tupac Shakur, morto em 1996, durante um show realizado em abril, nos Estados Unidos, tem feito brilhar de cobiça os olhos de empresários e herdeiros de artistas mortos.

A possibilidade de fazê-los trabalhar de graça sem a necessidade de providenciar cachês, hospedagem ou toalhas brancas no camarim – e eliminando completamente o risco de faniquitos ou excesso de consumo de substâncias químicas – anuncia-se como o melhor dos mundos (e dos outros mundos) para o showbiz. Artistas como Michael Jackson, Elvis Presley e Marilyn Monroe foram chamados a interromper seu descanso eterno para retornar aos palcos, numa lista que, até a última contagem, incluía nomes como Jimi Hendrix, Kurt Cobain e Whitney Houston.

Por enquanto, as estrelas desse baile macabro são apenas os grandes artistas – gente famosa que deixou tantos registros audiovisuais da sua passagem pela Terra, que poderia viver uma segunda encarnação inteira circulando entre os vivos apenas na forma de fantasma holográfico.

Mas como anônimos também adquiriram o hábito de fotografar-se e filmar-se o tempo todo, é possível imaginar um futuro, nem tão distante assim, em que nossos bisnetos poderão assistir TV sentados ao lado dos queridos bisavós que morreram antes mesmo de eles nascerem.

Os hologramas musicais, como qualquer bom truque de mágica, fascinam os espectadores porque usam a ilusão para dar aparência de realidade a façanhas que contrariam as leis da natureza – feitos como aparecer e desaparecer, levitar ou caminhar sobre as águas. No caso dos ídolos que voltam à vida no palco, a tecnologia vai ao encontro das duas mais antigas fantasias do homem: viver para sempre e reencontrar pessoas que já se foram.

Apenas com essas duas promessas, religiões vêm nascendo e morrendo desde que o mundo é mundo – ou melhor, desde que o homem é homem, ou seja, tem consciência da própria finitude. Também na arte, o tema tem sido explorado até onde a vista alcança: do mito grego de Orfeu, que volta ao reino dos mortos para tentar, em vão, resgatar a amada Eurídice, ao cemitério maldito de Stephen King, que traz os mortos de volta, mas nunca exatamente como eles eram antes.

O sonho de driblar a morte tem assombrado a humanidade como um fantasma desde sempre. A novidade é que agora inventaram um jeito de cobrar ingressos para vê-lo cantando num palco.

quarta-feira, 30 de maio de 2012



30 de maio de 2012 | N° 17085
MARTHA MEDEIROS

O importante é ter charme

Amanhã é o Dia Mundial sem Tabaco, data impensável nos anos 70, quando fumar ainda era uma atitude de classe. Não por acaso, uma das marcas mais vendidas chamava-se Charm, que contava com garotas-propaganda do quilate de Danuza Leão, Adalgisa Colombo e Ilka Soares, todas mulheres de personalidade, reconhecidas por sua beleza e sofisticação. Mesmo quem não fumava tinha vontade.

Em 20 anos, todo esse glamour virou fumaça. Acender um cigarro passou a ser uma atitude deselegante, que não agrega nada de positivo à imagem daquele que dá suas baforadas. Outro dia, estava dentro do meu carro, esperando o sinal abrir, quando uma senhora chique, com os cabelos brancos bem cortados, de porte monárquico, começou a atravessar pela faixa.

Minha admiração murchou quando reparei que a rainha estava dando suas últimas e aflitivas tragadas antes de entrar em um shopping. Fumar caminhando na rua já é feio, e pra completar, a madame jogou a bituca no chão. Muita gente já não joga lixo no chão (amém), mas parece que a regra não vale para o cigarro. Largam em qualquer lugar, pisam em cima e vão em frente.

A propaganda tabagista saiu do ar, e o charme também – não o cigarro, mas o atributo. Ninguém mais acha importante ter charme.

Não jogar lixo na rua é uma questão de educação, sei disso, mas ser educado também é uma atitude charmosa. Ainda mais nos dias atuais, em que a grosseria impera, as pessoas são folgadas, os gestos são espalhafatosos, o tom de voz é alto, a megalomania é indisfarçada, a falta de cerimônia é geral.

Não há mais espaço para a sutileza, para o pedido de licença, para as atitudes suaves, para a discrição. Adeus à vida em slow, a uma presença insinuada e sensual. Agora tudo acontece sob os holofotes, é escancarado, gritado, a atenção é requerida à força.

A distorção de valores chegou a tal ponto, que pessoas discretas são consideradas arrogantes, os modestos são vistos como dissimulados e os que não se rendem a modismos são tachados de esnobes. Ser autêntico – requisito número 1 para se ter charme – virou ofensa. Ou a criatura faz parte do rebanho, ou é um metido a besta.

A cena clássica da mulher fatal segurando uma piteira e a do homem viril com o toco de cigarro no canto da boca ainda povoam o imaginário dos nostálgicos, mas o importante é ter charme, hoje, sem precisar de acessórios.

O modo de mexer no cabelo, uma fala pausada, um olhar direto, um sorriso espontâneo, a segurança de não precisar se valer de estereótipos para agradar – charme. Bom gosto nas escolhas, saber a hora de sair de cena, fazer as coisas do seu jeito – charme.

Estar confortável no corpo que habita, ter as próprias opiniões, alimentar sua inteligência com livros e pessoas interessantes – charme. Não se mumificar, não ser tão inflexível, não virar uma caricatura de si mesmo – charme. Que o mantenhamos, sem precisar voltar a fumar.

segunda-feira, 28 de maio de 2012



28 de maio de 2012 | N° 17083
L. F. VERISSIMO

Um exemplo mais ou menos

A vitória do Chelsea sobre o Bayern naquele jogo fantástico que decidiu a Copa dos Campeões trouxe um alento para quem ainda acredita na União Europeia. Cada campeonato sensacional da Uefa reforça a ideia de que é possível existir uma comunidade que funcione. O futebol dá o exemplo – não de rivalidade exacerbada entre nações, mas do sucesso comercial de um empreendimento comum, fora uma ou outra guerra de torcida.

É verdade que o Chelsea não é um exemplo cem por cento aproveitável de triunfo europeu. É um clube inglês que pertence a um milionário russo e cuja estrela principal vem da Costa do Marfim. Mas quem sabe a solução para a Europa não deva vir de fora e o que falte não seja um patrocinador com muito dinheiro e uma política de imigração que facilite a vinda de muitos Drogbas?

A salvação, quem diria, pode vir da Rússia e de uma política de imigração sem restrições, oposta à proposta atualmente pelos conservadores de toda a Europa. Um investidor americano já é o dono de outro tradicional clube inglês, o Liverpool. A tendência pode crescer e nada impede que algum milionário compre não um clube grego mas a Grécia.

A Copa da Uefa pode sugerir outras maneiras da Europa resolver sua crise. A grande discussão, hoje, sobre o futuro do continente, é entre austeridade e crescimento. Por que não transformar esse confronto em futebol?

Times identificados com a austeridade – como uma seleção alemã – contra times pró-crescimento, num torneio bem organizado, com o vencedor final decidindo a política a ser seguida por todos. Como atrativo adicional de se ver o Messi e o Drogba no mesmo time.

Mesmo que não aproveitem minhas ideias perfeitamente razoáveis, o futebol dos campeões europeus permanece como um parâmetro para os políticos em busca de uma saída para a crise. Mas pode, claro, acontecer o contrário: em vez do futebol mostrar a saída para a crise, a crise alcançar também o futebol. E o espetáculo da final deste ano em Munique ser lembrado como a apoteose que precede o declínio.

Mas, bem ou mal, foi uma apoteose.

sábado, 26 de maio de 2012



27 de maio de 2012
Martha Medeiros

Falando Sozinho

E pelas ruas do Rio de Janeiro quando percebi um fenômeno que não é nenhuma nova tendência, ao contrário, é hábito antigo, mas que só agora venho prestando verdadeira atenção. Refiro-me às pessoas que falam sozinhas. Não só falam, aliás. Resmungam, xingam, discursam.

Passei a me interessar pelo fato quando, de uns anos pra cá, minhas filhas deram para me alertar: mãe, tu estás falando sozinha. Era só o que me faltava, meninas, estou aqui em frente ao computador, lendo um texto aos sussurros, só isso. E quando acontece na cozinha, mãe? E no corredor do apartamento? Ah, vocês andam ouvindo coisas.

Mas sucumbi às evidências: falo sozinha. Um pouquinho em casa, e infinitamente mais quando estou caminhando pelas avenidas e parques da cidade, onde crio diálogos inteiros na minha cabeça. Sem que eu perceba, meu pensamento sai pela boca. Não raro, gesticulo também. Tudo com a maior discrição – espero.

Quando estou dirigindo meu carro, a mesma coisa. Canto quando há música, e falo quando há silêncio. Tenho certeza de que falo apenas com meus botões, falo quieta, mas já fui flagrada em delito: “Mãe, outra vez?”.O que eu falo, no entanto, ninguém escuta direito. Não chego àquele nível de maluquice que acomete andarilhos que falam sozinhos num volume tão audível que a gente chega a se perguntar se estariam mesmo sozinhos. Estarão?

Desvendado o mistério. Estamos falando com ex-maridos, com chefes insuportáveis, com amigos que não entenderam nossas boas intenções, com personagens criados pela nossa imaginação, com  pessoas que já não estão nesse mundo, com o William Bonner, com Jesus, com fantasmas, principalmente com estes, os que nos assombram, vivos ou mortos, desconhecidos ou famosos.

Há sempre um interlocutor invisível que precisa ouvir umas poucas e boas, ou nos atender num confessionário ambulante, na calçada mesmo em meio às buzinas e veículos que passam tão ligeiros que nem nos percebem. Só os porteiros dos prédios que reparam e se divertem.

O ator Caio Blatt disse em entrevista recente que fala muito sozinho, e que considera isso uma espécie de psicodrama, dando à nossa ansiedade um nome mais refinado. Mas está certo, e psicodrama , sim, concordo em defesa de todos os tagarelas solitários.

Estamos ensaiando uma discussão uma argumentação, um desabafo, que depois pode nem acontecer, o caso já ficou resolvido ali mesmo, enquanto se cruzava a faixa de pedestres. Falar sozinho é um ato de generosidade, antes de tudo.

Vá saber o estrago que causaríamos se falássemos pra valer, olho no olho, tudo aquilo que mantemos guardado, todo o palavreado da raiva, do rancor e do desassossego que fica confinado dentro. Melhor soltar as frase ao vento.


26 de maio de 2012 | N° 17081

NILSON SOUZA

A pracinha dos vovôs

    O menininho arregalou os olhos e apressou o passo no calçadão quando viu os equipamentos coloridos em movimento. Certamente, imaginou-se na vertigem do escorregador ou no vaivém inebriante do balanço. Mas a jovem mãe segurou-o pelo braço e tentou argumentar numa linguagem compatível com a idade do garoto:

    – Não, essa pracinha é dos vovôs.

    Trata-se, na verdade, de uma dessas academias ao ar livre, plantada entre as árvores do bairro, Ipanema, com seus aparelhos de ferro verde. É frequentada diariamente por senhoras e senhores da chamada terceira idade, que balançam os músculos já não tão firmes e os cabelos grisalhos no ritmo dos simuladores.

Há o simulador de cavalgada, que trabalha o equilíbrio e fortalece membros superiores e inferiores; há o simulador de surfe, uma espécie de balanço destinado a aumentar a capacidade respiratória; há o simulador de caminhada, o simulador de esqui, uma espécie de manivela em forma de volante e também aquele balanço lateral, que trabalha pernas e quadris.

    Observando-se de longe, parece mesmo uma pracinha infantil. Mas é, na verdade, um recanto planejado para o compartilhamento de exercícios saudáveis. Faz parte do Programa Academia da Saúde, do governo federal, que espalhou aparelhos semelhantes por quase 2 mil municípios de todo o país com o propósito de prevenir as chamadas doenças crônicas não transmissíveis, relacionadas ao sedentarismo, à obesidade e ao tabagismo. Os equipamentos permitem atividades físicas de baixo impacto, oferecendo poucos riscos de lesões aos praticantes.

    Pelo que tenho visto diariamente, o programa é um sucesso. A academia do meu bairro está sempre lotada e as pessoas parecem estar se divertindo. De vez em quando, uma ou outra criança fura o bloqueio dos adultos e participa da atividade, mas a frequência maior é mesmo de atletas de cabelos brancos.

Foi-se o tempo em que os velhinhos aposentados ficavam sentados nos bancos de praça, à espera do crepúsculo da existência. Agora eles fortalecem os músculos e as articulações para acompanhar o ritmo da vida. Um estilo de vida ativo garante, inclusive, maior longevidade e reduz significativamente os riscos de acidentes incapacitantes, como quedas domésticas e lesões causadas pela fraqueza muscular.

    Foi mesmo uma ideia brilhante esta de oferecer brinquedos novos para os velhinhos. E tem razão aquela mamãe do calçadão: as crianças que procurem a sua turma.

quarta-feira, 23 de maio de 2012



23 de maio de 2012 | N° 17078

MARTHA MEDEIROS

Sem perdão

    Este mês, assisti com atraso, em DVD, ao filme Em Teu Nome, de Paulo Nascimento, cuja história gira em torno da ditadura militar, ocasião em que muitos brasileiros foram obrigados a abandonar o país feito ratos, até ficar o mais longe possível de seus ideais.

O filme mostra alguns rituais de tortura, e por mais que já tenhamos visto e revisto essas cenas dramáticas em várias outras obras, não há como não se horrorizar. Guardadas as proporções, a ditadura militar foi o nosso Holocausto e aconteceu embaixo dos narizes de nossas famílias.

    Ainda sob o efeito do filme, acompanhei a entrevista que Carlos Araújo deu à Rádio Gaúcha e que foi publicada por Zero Hora na última sexta-feira, e mais uma vez a sensação foi de embrulho no estômago. O ex-deputado deu detalhes dos procedimentos cruéis e desumanos que ele e demais presos políticos sofreram. Nenhuma novidade, mas se nos contarem mil vezes como foi, mil vezes nos escandalizaremos.

A tortura é, de longe, o crime mais abjeto que alguém pode cometer. Por isso, a relevância da criação da Comissão da Verdade, que (se não virar mais uma forma de escoar nossos impostos para o bolso de alguns) pretende deixar às claras esse período vergonhoso do Brasil.

    Sempre acreditei nos benefícios do perdão. Diz um poema da mineira Vera Americano: “Perdão/ duro rito/ de remoção do estorvo”. Não é fácil, mas remover os estorvos de dentro de nós – o rancor, por exemplo – torna a caminhada mais leve. Por que insistir no revanchismo? Assim fui aliviando minha bagagem existencial ao longo da vida, e hoje não há quem me faça trincar os dentes e desejar-lhe o mal.

    Já perdoar um torturador está fora de questão. Não há como compreender que alguém tenha tamanho sangue frio, tamanha perversidade para provocar dor física dilacerante em outra pessoa – e dor psicológica também, que por vezes dura para sempre.

É preciso ser muito bestial para dilacerar a integridade de um homem, de coisificá-lo como se ele fosse um pedaço de madeira ou um trapo de pano, que a tudo pode suportar. No ranking das maldades extremas, matar fica em segundo lugar – comparado com a tortura, é quase uma generosidade.

    Talvez ainda haja torturadores entre nós, sentados ao nosso lado nos cinemas, apertando nossas mãos em festas, anistiados com o perdão do tempo – ora, aquilo foi em outra época, vamos esquecer, quer mais uma empadinha?

    Que a Comissão da Verdade, além de descobrir o que foi feito de cada um dos desaparecidos, identifique cada um de seus carrascos. Mesmo que muitos já tenham morrido sem nenhuma punição, que conheçamos suas caras, que venham à tona suas brutalidades, que seus filhos sintam-se avexados por levar o mesmo sobrenome, que seus netos lamentem a ascendência que têm.

    Que essa caixa-preta seja aberta para não ficar por isso mesmo.




23 de maio de 2012 | N° 17078

ARTIGOS - Maria Aparecida Viera Souto*

Xuxa: uma sobrevivente

É preciso chegar antes que uma vítima (criança adolescente ou mulher) se torne:

Um boletim de ocorrência

Um processo judicial

Um dossiê médico

Um caso psicológico

Uma notícia de jornal

Ou um corpo no necrotério.

Maria Amélia Azevedo

O emocionado depoimento de Xuxa ao Fantástico fez o desejado por toda campanha de enfrentamento ao abuso sexual de crianças e adolescentes: chegar, rapidamente e ao mesmo tempo, ao maior número possível de pessoas, mostrando com clareza, a dor e o sofrimento sentidos diante do abuso sexual. Foi o que aconteceu.

Provavelmente, devido à notoriedade da apresentadora, milhões de pessoas assistiram a sua declaração. O impacto produzido é inimaginável. Sem dúvida, inúmeras pes-soas se reconheceram no relato. Algumas conseguirão quebrar o silêncio e denunciar. Outras compreenderão que, embora sabedoras de algum tipo de abuso sexual, preferiram ignorá-lo e, ao escolher o silêncio, escolheram o lado do abusador, tornando-se, portanto, cúmplices!

Há dois tipos de agressores sexuais: o abusador e o molestador, com estratégias diferentes. O abusador é mais sutil, utiliza carícias discretas, raramente é violento, fazendo com que a criança não se sinta abusada ou mesmo que outras pessoas notem. O molestador é mais invasivo, menos discreto, frequentemente usa a violência.

O abusador costuma dar atenção especial à criança, ficar íntimo e explorar sua necessidade de afeto. Insinua gradativa e, indiretamente, assuntos se- xuais, solicitando-lhe carícias genitais ou que se submeta a elas. A criança poderá se recusar e dizer que o denunciará.

O abusador, então, a ameaçará. Por não saber o que fazer, ela ficará insegura e confusa. Muitos adultos desqualificam ou negam relatos. Isto é lamentável, visto estudos indicarem ser a reação dos adultos diante da revelação o principal fator responsável pelo trauma.

Os pais precisam “aprender a ensinar” seus filhos a se protegerem de abusos sexuais. Para se proteger, a criança precisa saber fazer três coisas: 1. Identificar situações de abuso e dizer não; 2. Sair da situação o mais rápido possível e 3. Imediatamente, contar para alguém.

Quando uma criança muda seu comportamento, especialmente com familiares, algo pode estar acontecendo. Quando não quer mais abraçar, beijar, sentar no colo ou ir à casa de alguém, é importante perguntar-lhe do que ela não gosta em cada uma daquelas situações. O do que permite uma resposta mais precisa, possibilitando a identificação de abuso sexual.

Tomara que a dor e o sofrimento mostrados por Xuxa sejam suficientes para convencer os pais da tarefa que lhes cabe.

*Assistente social, especialista em educação sexual e representante do CMDCA no Comitê Municipal de Enfrentamento à Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes de Porto Alegre

sábado, 19 de maio de 2012


Martha Medeiros

Os benefícios de não ser o melhor

Meu pai sempre jogou tênis,desde que me conheço por gente. Lembro de uma vez em que ele comentou que o adversário ideal é o de mesmo nível, mas que se fosse preciso escolher entre jogar com alguém melhor ou com alguém pior do que ele, preferiria jogar com alguém melhor, porque gratificante não era vencer fácil aquele que sabe menos, e sim aprender com quem te exige algum esforço.

É um verbo em desuso que merece ser revitalizado: aprender. A verdadeira postura competitiva não é a daquele cara que almeja atingir o topo de qualquer maneira, e sim daquele que extrai de um superior o estímulo para encontrar o próprio caminho para vencer a si mesmo. Porque não são poucos nossos adversários internos: a ignorância, o comodismo, a ferrugem. É preciso treinar bastante para flexibilizar os movimentos, todos: do corpo e da mente.

E dessa forma avançar, sempre buscando mais, numa estrada hipoteticamente sem fim. Prefiro ler livros de quem escreve bem melhor do que eu. De quem tem mais a dizer do que eu. Além do prazer que isso me dá, não vejo outra maneira de aprimorar meu trabalho. Prefiro conversar com pessoas mais vividas que eu, mais inteligentes, com melhores histórias para contar.

Talvez algumas delas sintam o mesmo em relação a mim (pensem que sou eu a mais-mais), porém o que importa não é essa quantificação, que, aliás, é totalmente subjetiva. O que estimula é ter consciência do quanto a nossa vida se enriquece com a experiência do outro. Não por acaso, adoro programas de entrevistas, onde posso enxergar a emoção do entrevistado, seu humor, sua ironia, sua indignação – entrevistas por escrito nem sempre destacam essas sutilezas.

Adoro jantar com quem conhece mais gastronomia do que eu, salientando temperos que normalmente eu não perceberia. Gosto de viajar com quem já viajou bastante e desenvolveu um olhar para certos lugares que para mim é novo. Prefiro dançar com quem sabe me conduzir.

Mas com a condição de que esses iluminados transmitam sua sabedoria naturalmente, sem intenção, sem didatismo – senão vira aula, xaropice, perde a graça. Gosto de aprender sem que o outro perceba que está me ensinando. Claro que competidores profissionais devem tentar eliminar seu oponente – nhac! Menos um na escalada ao pódio. Nenhum atleta profissional treina tanto, investe tanto, pra não se importar em perder em nome do benefício do aprendizado.

Que aprendizado, o quê. Rubinho, Neymar, Cielo, não desapontem a torcida. Mas os amadores deveriam perceber que, em vez de se fingirem de campeões duelando com derrotados, mais vale tornarem-se melhores com a passagem do tempo, através de vitórias conquistadas no silêncio da observação. É um troféu oferecido por você a você mesmo – todos os dias.



19 de maio de 2012 | N° 17074
NILSON SOUZA

O marisco e a borboleta

A batalha final, como gostava de prognosticar o saudoso Scliar, será provavelmente entre os catastrofistas e os céticos do meio ambiente. Sou marisco nesta história, mas tenho lido e ouvido coisas que confundem qualquer cabeça – mesmo a de um crustáceo, ou molusco, se é que eles a têm. A última, do lado dos ambientalistas, vem da organização Fundo Mundial para a Natureza (WWF), entidade internacional reconhecida por suas preocupações com a conservação global.

Dizem os senhores da biodiversidade que, se continuarmos poluindo, desmatando e amontoando gente nas cidades, no ritmo que fazemos agora, precisaremos de três planetas em 2050. No caso de ficarmos só neste, a previsão é funesta: vão faltar comida, água, energia, e os coalas irão desaparecer.

Do outro lado, de parte dos descrentes, assisti outro dia a uma entrevista que Jô Soares fez com o climatologista Ricardo Augusto Felício, professor da Universidade de São Paulo, que em poucos minutos derrubou uma a uma todas as teses predatórias. Disse que o efeito estufa é a maior falácia científica da história, que o aquecimento global é uma invenção, que a tal camada de ozônio sequer existe e que não há prova científica de derretimento do gelo dos polos.

Já tinha ouvido um outro ambientalista, o irmão do falecido Bussunda, dizer que é muita pretensão do ser humano achar que pode prejudicar o clima do planeta. Ele disse que sequer fazemos cócega na Terra com os nossos desmatamentos e o nosso desleixo, que o tempo do universo é muito diferente do tempo da humanidade e que o máximo que podemos fazer é mal a nós mesmos – do que não pode ter dúvida quem bebe água de um rio transformado em esgoto cloacal pela população que vive às suas margens.

Jô Soares, fazendo graça, perguntou ao seu entrevistado se os puns dos carneiros da Nova Zelândia não produziriam um “apuncalipse”, provocando gargalhadas.

Também ri, evidentemente, mas o deboche me acendeu aquele medo atávico do tempo em que minha mãe cobria os espelhos nos dias de tempestade. Depois de ver aquele tsunami que alagou meio Japão, não duvido de mais nada. Como vou saber se tudo aquilo não foi provocado por uma borboleta que bateu as asas com força demais em algum cafundó do Judas, como apregoa a célebre teoria do caos?

Dos cientistas e dos ambientalistas, pela mostra acima, é que não virá uma resposta convincente, pois eles divergem em gênero, número e gracinhas. E sequer são capazes de encontrar logo os outros dois planetas que poderão nos salvar em 2050.


19 de maio de 2012 | N° 17074
CLÁUDIA LAITANO

Brasil cabeção

Se os japoneses batizassem um programa de governo de Japão Disciplinado ou os Estados Unidos criassem uma campanha chamada América pelo Consumismo, ia soar como se uma febre pleonástica tivesse acometido o Primeiro Mundo. Foi mais ou menos essa a sensação que eu tive ao ouvir o nome do novo programa de combate à miséria do governo federal: Brasil Carinhoso.

Coração é o que não nos falta, a gente sabe. Nos anos 30, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (o sogro dos sonhos de nove entre 10 brasileiras) cunhou uma expressão que até hoje é mal entendida e mal citada. Seu “homem cordial” não é o sujeito bonzinho que sempre tem uma palavra gentil na ponta da língua e ajuda velhinhas a atravessar a rua.

A cordialidade brasileira que o sociólogo descreve não é a do bom coração e da hospitalidade, mas a do domínio da emoção sobre a razão, que pode causar tanto as efusões amorosas mais comoventes quanto as reações mais violentas e intempestivas – não por acaso, esse país tão cheio de amor para dar é também campeão nas estatísticas de violência contra a mulher.

O homem cordial clássico, de catálogo, é aquele que odeia formalidades, mesmo quando elas são criadas para organizar a vida de todo mundo, e ignora regras de ética e civilidade quando elas não lhe parecem 100% convenientes. Alguém aí reconheceu um brasileiro?

Quando um país com um largo histórico de populismo usa a palavra “carinhoso” em um programa de governo, arrepiam-se os pelos das nucas mais paranoicas. Não existe palavra tão doce na língua portuguesa quanto essa que dá nome a uma das mais belas canções da música popular brasileira, mas uma política que se autodenomina “carinhosa”, ainda que coberta de méritos, sempre parece firmar-se no terreno flácido das boas intenções e do paternalismo e não na arena sólida das instituições que têm continuidade e metas objetivas para além dos governos e dos políticos. Carinho a gente dá e a gente tira. É uma concessão, não um direito ou um dever.

Se o Brasil fosse levar a sério mesmo esse negócio de slogans motivacionais deveria criar programas com nomes como “Brasil Racional”, “Brasil Cumpridor de Prazos”, “Brasil: começo, meio e fim”.

Claro que não ia adiantar nada, como em geral não servem para nada slogans motivacionais postados no Facebook ou na porta da geladeira, mas talvez fosse mais útil reconhecer o que nos falta do que celebrar o que sempre tivemos de sobra. Realmente surpreendente seria se os estudantes brasileiros fossem brindados com um programa de educação tão sério e eficiente que algum gaiato resolvesse apelidar de “Brasil cabeção” .

Carinho, elas querem é da família. O que as crianças miseráveis do Brasil precisam, do Estado, é menos amor e mais confiança.

quarta-feira, 16 de maio de 2012



16 de maio de 2012 | N° 17071
MARTHA MEDEIROS

A TV e o teatro

Na semana que passou, vivi duas experiências que nada têm a ver uma com a outra, mas mesmo assim correlacionei. Uma foi a visita que fiz ao Projac, o centro de produções da TV Globo, no Rio. Mais de 8 mil pessoas trabalham nessa indústria do entretenimento, que os funcionários chamam carinhosamente de fábrica de sonhos, mas que eu chamaria de fábrica de ilusões – parece a mesma coisa, mas há uma sutil diferença.

Fiquei bem impressionada com o realismo das cidades cenográficas, com destaque para o lixão de Avenida Brasil e a rua de Copacabana onde se passa a série Tapas e Beijos – não sei se Deus está nos detalhes, mas Roberto Marinho está. Um trabalho absolutamente preciso, caprichado. Parece mesmo que você está num lixão, que está mesmo em Copacabana, quase se perde o ceticismo. Quase.

Ao chegar perto da entrada da casa do Big Brother, senti o impacto. Nenhum livro sobre semiótica, nenhum discurso sobre as emoções pré-fabricadas vendidas pela TV me deram tanta consciência: adentrar os bastidores – qualquer bastidor – é um choque de realidade às avessas. Impressiona e é triste ao mesmo tempo.

A outra experiência: a peça Adeus à Carne, de Michel Melamed. Uma ópera contemporânea praticamente sem texto – ousadia nesses tempos em que esbanjamos palavras. O recado é dado através da sonoplastia e da expressão corporal.

O fio condutor da obra é o Carnaval, e é com alegorias totalmente nonsense que Melamed põe pra desfilar no palco a proximidade que existe entre nascimento e morte, nossas competições absurdas, nossa frágil expressividade verbal, a dor e o prazer que brotam da mesma fonte, o amor que mais afasta do que aproxima – isso se eu pesquei alguma coisa. O que mais se ouvia no final do espetáculo era: “Não entendi nada, mas adorei”.

Na peça, o momento que coloca a plateia em alvoroço: os seis integrantes do elenco surgem com as cabeças cobertas por logotipos das emissoras de TV do país, grandes escafandros que não permitem que eles enxerguem. Teletubbies adultos. É engraçadíssimo e perturbador: com a TV enfiada na cabeça, que espécie de crescimento e liberdade podemos almejar?

O Projac é o símbolo da eficiência. Reduto de artistas, e não falo apenas de atores, mas de figurinistas, cenógrafos, marceneiros, iluminadores, técnicos em efeitos especiais. Profissionalismo extremo a serviço da ilusão. É como se eles dissessem: não acredite no que você não vê, acredite apenas no que vai ao ar.

Michel Melamed, por sua vez, é um performático que pretende provocar espanto e inquietação por uma via bem mais subjetiva e onírica. É como se ele dissesse: não acredite no que você vê, acredite apenas no que fica subentendido.

TV e teatro. Aí, talvez esteja a diferença entre fábrica de ilusões e fábrica de sonhos.