sábado, 4 de agosto de 2012



05 de agosto de 2012 | N° 17152
MARTHA MEDEIROS

De onde surgem os amores

Uma amiga na casa dos 50 estava solteira há anos. Não tinha namorado e tampouco se sentia ansiosa com isso. Já havia casado duas vezes, tinha um filho bacana e podia muito bem viver sem amor, essas mentiras que a gente conta para nós mesmos.

De qualquer forma, para não perder o hábito, de vez em quando se produzia e ia pra balada, vá que. Mas voltava invariavelmente sozinha para casa. Até que um ex-paquera do tempo que ela era uma debutante fez contato ele, que morava no Exterior, voltaria para o Brasil e queria revê-la. Milagre by Facebook.

Ela disse claro, vai ser ótimo, mas não sabia quando exatamente a promessa desembarcaria no Salgado Filho. Seguiu sua vida. Foi para a piscina do clube num dia de semana e lá, estando acima do peso, suada e com um biquíni velho, escutou seu nome sendo pronunciado por uma voz aveludada. Era o dito cujo, testemunhando in loco no que a debutante havia se transformado depois de tantos anos. Ela pensou: o cara vai sair correndo.

Ele pensou: não desgrudo mais dessa mulher. E assim foi. Certa de que só estando impecável atrairia olhares, ela conquistou um guapo num dia em que se sentia pouco atraente.

Outra história. Atriz, loira, olhos verdes, leva um fora do noivo. Passa dias inchada de tanto chorar. Deprê em estágio avançado. A avó organiza um almoço do tipo italiano, aberto ao público. Ela vai e encontra um velho conhecido com quem brincava na infância. Ele, recém-separado. Ela, um trapo.

Ficam ali conversando, ela aos lamentos por sua situação, quando, em meio a soluços, a mulher se engasga. Mas engasga feio. De quase morrer. Uns 10 vieram esmurrar suas costas, e a guria vertendo lágrimas sem conseguir respirar, roxa como uma berinjela, já encomendando a alma. Ela me conta: naquele dia, eu havia saído de casa medonha, e o engasgo só piorou o quadro, eu parecia o demo convulsionando. Mas o amiguinho de infância não teve essa impressão. No dia seguinte, ligou para saber se ela passava bem, e estão casados há 15 anos.

Mais uma: depois de duas décadas de uma relação bem vivida, veio a separação amigável. Porém, mesmo amigável, nunca é fácil sair de um casamento, ainda mais de um casamento que não era um inferno, apenas havia acabado por excesso de amizade.

Ela pensou: agora é a hora do luto, um recolhimento me fará bem. Não deu uma semana e um estranho tocou o número do seu apartamento no porteiro eletrônico. Ela não reconheceu a voz, o nome, não sabia quem era, e não deu trela. Ele tentou no dia seguinte: ela tampouco abriu a porta, achou que o cara havia se enganado de prédio. No terceiro dia, ela resolveu esclarecer pessoalmente o equívoco. Desceu até a portaria para convencer o insistente de que ela não era quem ele procurava. Era.

Do que se conclui: de onde muito se espera – boates, festas, bares – é que não surge nada. O amor prefere se aproximar dos distraídos.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012



01 de agosto de 2012 | N° 17148
DIANA CORSO

Numa velha história, um projeto de vida

Há muito, esperava esse reencontro, mas nunca o fazia acontecer. Afinal, pedi o exemplar em um sebo virtual. Estava curiosa, mas foi sinistro, constrangedor até. Fazia 40 anos que não tinha notícia dessa história, mesmo considerando-a minha predileta.

Trata-se de Uma Casa na Floresta, o primeiro volume dos nove escritos por Laura Ingalls Wilder, contando a vida difícil dos pioneiros norte-americanos, a sua própria. Li a série no início da puberdade, numa biblioteca, nunca tive os livros embora os adorasse.

Quando o pacote chegou, tão pequeno, pensei ter me enganado: vai ver que pedi uma edição adaptada. Nada disso, “texto integral”, dizia na capa. Na lembrança, era maior. Além disso, nesse relato não havia nada de encantador, o livro era chato. A surpresa era outra.

Aquelas páginas eram como uma carta que houvesse enviado para mim mesma do passado. A missiva tinha data para chegar e era agora, com as filhas crescidas. Ali estavam descritos, prescritos, sonhos do passado que realizei sem clareza de que os tinha.

A menina Laura e sua irmã Mary viviam numa cabana de troncos na floresta. Há intermináveis páginas sobre o cotidiano severo, de escassez, rezas, obediência, chatices domésticas identificadas com aconchego. O pai caça para alimentar a família, o preparo da carne salgada e defumada e das conservas para atravessar o inverno.

As brincadeiras e o calor da casa quando a neve chega, a boneca de pano, um presente inesquecível. A animação fica por conta do relato das aventuras do pai, que conta da floresta onde enfrenta panteras, ursos e lobos. Dentro de casa proteção, fora o perigo.

Essa vida rudimentar meticulosamente narrada evoca a nostalgia de algo que, na verdade, nunca existiu: uma família antiga e amorosa, na qual há um pai poderoso que se ocupa das filhas mulheres, veja só. Um verdadeiro “refúgio num mundo sem coração”, como Christopher Lasch, em seu livro com esse nome, descreveu o ideal em que se inspira a família nuclear.

Sem lembrança consciente do livro, nem dos seus efeitos em mim, construí uma família com várias alusões a essa história. Dei à minha primogênita o nome da autora e protagonista da obra, minha porta sempre teve um buldogue, como o velho Jack da saga, montando guarda, e minhas duas filhas cresceram ouvindo histórias sentadas no colo do seu atencioso pai.

Errantes pelo mundo, sempre nos resta a nostalgia de um ninho imaginário. É isso que queremos para nossos filhos, eu bem que tentei. Como se vê, leituras infantis são perigosas, no bom sentido.


01 de agosto de 2012 | N° 17148
MARTHA MEDEIROS

Fora do contexto

A grande maioria de jornais e revistas traz hoje uma sessão que é das mais populares: são as frases destacadas de políticos, artistas, empresários e demais notáveis. A pessoa deu uma longa entrevista e dela é pinçada uma pequena declaração que vai para o hall das “frases da semana”. Quem não lê? Todo mundo lê e adora.

Algumas frases são fortes, outras divertidas, há as ridículas, as burras, as geniais. Mas todas, absolutamente todas correm o risco de estar descaracterizadas. Porque aquilo que é subtraído do contexto ganha projeção, para o bem ou para o mal. E isso, por si só, é uma forma sutil de manipular o leitor.

Em tudo há um contexto. No seu pedido de demissão, na sua defesa dos animais, na sua confissão para o padre, no seu desabafo para o analista, na sua briga de casal, na sua campanha política, até na escolha da roupa que você vai vestir pela manhã. Cada atitude, cada escolha, cada argumentação, cada lamúria está vinculada a uma série de outras coisas que orbitam em volta do assunto principal. Não existe “não vem ao caso”. Tudo vem ao caso.

A namorada, depois de aprontar muito, diz que você é o homem da vida dela. Essa frase, sozinha, reconstitui relações, mas e o contexto todo, onde fica? Seu chefe considera você um ingrato por desligar-se da empresa de uma hora para a outra, mas e a quantidade de sapos que você engoliu por meses, não explica?

Você é considerado um sequelado por descer pelo elevador do prédio de calça laranja, blusão pink e óculos de lentes verdes, mas alguém levará em consideração que você é um artista performático? Você diz para o analista que seu pai a ignora, e o analista precisa acreditar em você, mas jamais lhe dará alta até que descubra o contexto. O contexto é soberano, o contexto é revelador, o contexto não pode ser ignorado, assim na vida, assim na imprensa.

Como destacar uma ironia sem contextualizá-la? A ironia soará grosseira. E aquele que ao ser entrevistado para a TV estava visivelmente brincando, mas que por escrito pareceu estar falando sério? E o comentário dito no entusiasmo do momento, sem compromisso, que ganha ares de profetização? Falou, imprimiu, já era.

Explicar o contexto exige tempo, exige dedicação, exige compromisso, e está tudo em falta: tempo, dedicação, compromisso. Quer-se o bombástico de deglutição fácil. Quer-se o vexame público, o mico, a constatação constrangedora, a genialidade de pronta-entrega, quer-se o impacto imediato, sem olhar para os lados. O contexto são os lados ignorados.

Eu leio essas “frases da semana”, você também lê. Mas, na falta da contextualização, não percamos o critério. Acreditemos com um olho fechado e outro bem arregalado.

terça-feira, 31 de julho de 2012



31 de julho de 2012 | N° 17147
FABRÍCIO CARPINEJAR

Casinha de homem

O homem brinca de casinha. É quando ele vai a um motel.

Todo motel tem ladeira e uma torre. O motel é o castelo do macho. É seu sonho de príncipe encantado.

Todo motel tem letreiros luminosos de cinema. É sua vontade de ser um ator pornô famoso e ser descoberto por Hollywood.

O motel é o conto de fadas masculino. É o pontapé inicial de sua vida imobiliária, o exercício de sua independência de estilo.

Homem não aprecia olhar apartamentos antes de comprar, não tem paciência para analisar plantas residenciais e espiar condomínios: homem visita motéis.

É uma compulsão estranha e irrefreável.

Não acredita em mim? Por que, então, quarto de motel tem churrasqueira? Explica?

Trata-se de um projeto secreto de residência, um modelo perfeito de convívio familiar. Traz a ilusão de lua de mel permanente com sua amada, não tem que aguentar a indiscrição de vizinhos e nunca sofrerá ameaça de despejo do condomínio por gritos e gemidos.

Naquele momento, realiza sua especulação patrimonial, treina seu gosto para decoração, avalia sofás, cortinas, box, azulejos para, posteriormente, adotar em seu cantinho. Passa a conhecer o que é uma poltrona Luis XV. Vivência moteleira é cultura.

Não estou troçando, o homem desejaria que seu dormitório fosse igual ao do lugar. Com cama redonda, espelhos no teto, luz negra, piso elevado, várias atmosferas e frigobar. Pergunte a qualquer marmanjo.

Adoraria dispor de um painel com botões para acender o ar-condicionado, o som, trocar as luzes e vibrar o colchão. Um controle centralizador que simplificasse seus movimentos e mantivesse o ambiente sob o alcance de um simples gesto.

O motel é o ideal de consumo dos marmanjos. Se possível com piscina, banheira de hidromassagem e roupão branco sempre lavado esperando no gancho atrás da porta. Na hora de ligar a TV, que viesse direto os jogos exclusivos do Brasileirão, nada de novelas e seriados românticos.

Diante da pequena portinhola da garagem, logo na entrada do estabelecimento, o homem define o futuro da relação ao escolher o quarto. A tabela de preços é o equivalente à vitrine de uma joalheria para a mulher: cada quarto é uma aliança ou de 12 ou de 16 ou de 18 ou de 24 quilates.

Se ele solicita o apartamento simples, é apenas uma transa rápida, não passará de meia hora. Se ele sugere uma suíte, é proposta de namoro. Se ele requisita a chave de uma supersuíte, comemore o noivado. Se ele quer uma supersuíte luxo, é a consagração erótica, um convite indireto ao casamento.

Mas, se ele pedir uma supersuíte luxo presidencial, é que ele andou frequentando motel com outra e pretende obter o perdão.



31 de julho de 2012 | N° 17147
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Fora de foco

Livro arrepiante, magnífico, imperdível: Ligeiramente Fora de Foco, de Robert Capa (editora Cosac Naify, tradução de José Rubens Siqueira). O nome do autor é que me chamou primeiro, na estante da livraria de onde o resgatei: sabia que era um fotógrafo, vagamente. E era mesmo.

Ele é o autor da polêmica foto de um republicano espanhol recebendo um tiro na cabeça, numa coxilha descampada, ele com trajes civis como ocorria bastante entre os que resistiram a Franco, naquela jornada heroica. Capa começou ali sua intensa trajetória de fotógrafo de guerras.

Nascido Endre Friedmann, em Budapeste, 1913, ele migrou para a Alemanha (até a ascensão de Hitler, em 1933), dali para a França pré-II Guerra, depois para os States. Em Paris, ele e sua namorada inventaram um fotógrafo, Robert Capa, como estratégia para vender fotos do jovem Endre para agências.

Como deu certo, ele resolveu encarnar o personagem inventado, e estava criado o mito. Aos 22 anos, já estava cobrindo a Guerra Civil Espanhola; em 1938, estava na China; esteve em vários cenários da II Guerra, foco deste livro; morreu em 1954, ao pisar numa mina, no sudeste asiático. Mas teve tempo de escrever muito, além de fotografar. Era amigo de Hemingway e de Steinbeck.

Mas o livro: narrado com humor e verve, ilustrado pelas fotos do autor, é de arrepiar, quase do começo ao fim. Ele relata sua participação na II Guerra, no norte da África, depois na Itália e nada menos que no famoso Dia D, no desembarque dos Aliados na Normandia, iniciando a derrota do nazifascismo.

Mas essa história vem enquadrada num longo e mal resolvido enlace amoroso. Sim, ele também foi um emérito “lover”. Grace Kelly, por exemplo. Aliás, foi no affair dele com a loira que Hitchcock se inspirou para o clássico Janela Indiscreta.

Eu não disse nada sobre o choro que me atropelou duas vezes na leitura, mas digo agora: seu relato do famoso desembarque, ele no primeiro barco militar a chegar lá, é qualquer coisa de definitivo, uma experiência de leitura que repõe como talvez nenhuma outra a força do que foi aquele Dia D.

sábado, 28 de julho de 2012



29 de julho de 2012 | N° 17145
MARTHA MEDEIROS

Sustento feminino

Participando de um seminário sobre comportamento, foi dito que as mulheres estão de tal forma cansadas de suas múltiplas tarefas e do esforço para manter a independência que começam a ratear: andam sonhando de novo com um provedor, um homem que as sustente financeiramente.

Não acreditei. Outro dia discuti com uma amiga porque duvidei quando ela disse estar percebendo a mesma coisa, que as mulheres estão selecionando seus parceiros pelo poder aquisitivo não só as maduras e pragmáticas, mas também as adolescentes, que ainda deveriam cultivar algum romantismo.

Então é verdade? Pois me parece um retrocesso. A independência nos torna disponíveis para viver a vida da forma que sonhamos, sem ter que “negociar” nossa felicidade com ninguém, e são poucos os casos em que se pode ser independente sem ter a própria fonte de renda (que não precisa obrigatoriamente ser igual ou superior a do marido). Não é nenhum pecado o homem pagar uma viagem, dar presentes, segurar as pontas em despesas maiores, caso ele ganhe mais – é distribuição de renda.

Mas se é ela que ganha mais, a madame também pode assumir o posto de provedora sênior, até que as coisas se equalizem. Parceria é uma relação bilateral. É importante que ambos sejam autossuficientes para que não haja distorções sobre o que significa “amor” com aspas e amor sem aspas.

As mulheres precisam muito dos homens, mas por razões mais profundas. Estamos realmente com sobrecarga de funções – pressão auto-imposta, diga-se –, o que faz com que percamos nossa conexão com a feminilidade: para ser mulher não basta usar saia e pintar as unhas, essa é a parte fácil.

A questão é ancestral: temos, sim, necessidade de um olhar protetor e amoroso, de um parceiro que nos deseje por nossa delicadeza, nossa sensualidade, nosso mistério. O homem nos confirma como mulher, e nós a eles. Essa é a verdadeira troca, que está difícil de acontecer porque viramos generais da banda sem direito a vacilações, e eles, assustados com essa senhora que fala grosso, acabam por se infantilizar ainda mais.

Podemos ser independentes e ternas, independentes e fêmeas – não há contradição. Estamos mais solitárias porque queremos ter a última palavra em tudo, ser nota 10 em tudo, a superpoderosa que não delega, não ouve ninguém e que está ficando biruta sem perceber.

Garotas, não desistam da sua independência. Façam o que estiver ao seu alcance, seja através do trabalho ou do estudo, em busca de realização e amor próprio. Escolher parceiros pelo saldo bancário é triste e antigo, os tempos são outros. É plausível que se procure alguém com o mesmo nível intelectual e social, com um projeto de vida parecido e com potencial de crescimento – mas para crescerem juntos, não para garantir um tutor.

A solidão, como contingência da vida, não é trágica, podemos dar conta de nós mesmas. Mas, ainda que eu pareça obsoleta, ainda acredito que se sentir amada é que nos sustenta de fato.


28 de julho de 2012 | N° 17144
NILSON SOUZA

O quinto poder

Enquanto o parêntese de Gutenberg não se fecha totalmente, vamos escrevendo e lendo da maneira antiga – digitando num teclado de computador e folheando o velho e condenado jornal de papel. Na página 2 do caderno Cultura do sábado anterior, encontro uma interessante entrevista do jornalista americano David Carr, que participou de recente congresso em São Paulo sobre jornalismo investigativo.

Ele fala a respeito do processo de mudança dos meios de comunicação – a tal midiamorfose – e, lá pelas tantas, cita uma observação de seu conterrâneo Jay Rosen, professor da Universidade de Nova York, sobre a transformação “daquelas pessoas que anteriormente conhecíamos como audiência”.

– Eles não são mais audiência – diz David Carr. – Eles se voltaram contra nós. Você diz algo, e eles vêm de trás das colinas atirando em nós: ratatatátá!

A internet abriu definitivamente a caixa de Pandora da humanidade. Se a imprensa assumiu informalmente a condição de Quarto Poder, durante largo período da história da civilização, agora também está exposta a um poder mais avassalador, um imenso exército de franco-atiradores, sem bandeiras nem fronteiras.

O Quinto Poder, já identificado por vários teóricos da comunicação, é fragmentado, mas fulminante. Nada escapa ao bombardeio incessante desses guerrilheiros armados pela tecnologia.

Nem o Papa. Outro dia ele mandou uma mensagem de solidariedade às famílias das vítimas do atirador do filme do Batman e foi imediatamente metralhado por comentários ácidos que deixariam o próprio Coringa corado. Na era da instantaneidade, parece que sempre tem alguém à espreita de uma manifestação pública para atacar seu autor, seja ele ilustre ou anônimo. Aliás, o que mais ocorre neste ambiente predominantemente crítico é o entredevoramento entre os próprios internautas. O Quinto Poder também é autofágico.

Mas faz estragos. Você fala ou escreve a coisa mais bem-intencionada do mundo, e seu crítico de plantão procura com lupa aquela vírgula mal colocada para mandar bordoada. Tudo bem, para o jornalismo há um aspecto positivo nesse patrulhamento.

Ao nos percebermos mais vulneráveis, estamos também nos tornando menos arrogantes e mais responsáveis na nossa atividade de informar e opinar. Já não ostentamos qualquer pretensão ao rótulo de Quarto Poder. Queremos apenas fazer o nosso trabalho e sobreviver a este verdadeiro fogo cruzado de petardos digitais que precisamos atravessar todos os dias.

E há compensações: de vez em quando, surge detrás da colina um generoso integrante do Quinto Poder, com flores numa das mãos e um copo de água fresca na outra.

quarta-feira, 25 de julho de 2012



25 de julho de 2012 | N° 17141
MARTHA MEDEIROS

Os solitários

Mateus Meira, que disparou contra a plateia de um cinema de São Paulo, em 1999, era um cara sem amigos, não frequentava grupos. Wellington Moreira, que matou alunos de um colégio em Realengo, não tinha namorada e quase nunca saía de casa. Anders Breivik, o norueguês que matou 77 jovens na Ilha de Utoya, só se relacionava com alguns poucos fanáticos como ele, pela internet. James Holmes, que semana passada matou 12 pessoas durante a exibição do novo filme do Batman, nos Estados Unidos, era considerado um sujeito recluso.

Não significa que cada garoto trancado em seu quarto vá amanhã ter seu dia de psicopata, mas coincidência não é. Estudos revelam que grande parte dos que cometem essas atrocidades são depressivos e, por consequência, se isolam da sociedade. Muitos não buscam tratamento, consideram-se apenas “na deles”.

E os pais acabam por respeitar seu jeito de ser. E os colegas não os chamam para as festas. E as garotas os rejeitam e namoram meninos mais populares. Apartados de todos, eles vão se confinando num cativeiro mental e social, passando a levar mais em conta a fantasia do que a realidade. Mas sofrem com a exclusão, ou não desenvolveriam uma personalidade tão vingadora.

Não se mata para brincar. Quem atira está atirando em inimigos imaginários, oriundos da conhecida “oficina do diabo”.

São tragédias de exceção, não acontecem todo dia, mas há solitários que, em grau bem menor de maluquice, também se transferem para universos paralelos e alimentam ideias absurdas que, por não serem discutidas com amigos e parentes, acabam fermentando e levando a desastres. No máximo, buscam na internet pessoas tão isoladas quanto eles, que confirmam suas sandices.

Se discutissem com quem realmente os conhece, com quem os ama, seriam questionados e viveriam a experiência da troca de ideias e da orientação. Mas sozinhos, entre quatro paredes, correm atrás da veneração garantida de outros outsiders.

Sempre que um filho nosso está com algum problema (ou sofrendo porque uma garota não quis sentar a seu lado na aula, ou com notas baixas, ou com espinhas, sei lá), é preciso se perguntar: ele tem amigos? Ele é convidado para aniversários, viagens, churrascos, jogos esportivos? Ou ele é um esquisitão que não quer saber de ninguém e ninguém dele? Porque se ele tem amigos de fato, os problemas provavelmente são típicos da idade, e não sintomas de uma desadaptação crônica.

Ter um ídolo não é ter um amigo. Conhecidos virtuais tampouco formam uma turma de amigos. Dizer “oi, tudo bom?” é só um cumprimento. Relacionar-se é outra coisa: exige tempo, dedicação e abertura para conviver com pessoas variadas e diversas, o que ajuda a formar uma identidade saudável.

Quem não se relaciona com os outros, pensa que se basta sozinho, mas não se basta: dentro da cabeça, dá trela a seus demônios, os únicos a quem escuta.



25 de julho de 2012 | N° 17141
JOSÉ PEDRO GOULART

Culpa do Homer

Na TV Globo, Pedro Cardoso reclama da perseguição dos paparazzi aos artistas que, como ele, não deveriam ser alvo da curiosidade, “afinal são iguais aos outros, apenas com um ofício público”. Pedro elege o satã: o empresário que compra o material e depois o dispara em sites e revistas, pondo fogo no circo das notícias bizarras.

O fotógrafo, segundo ele, é somente alguém que faz o trabalho sujo. Ao lado de Pedro, no mesmo programa, um paparazzo diz que “a situação vai piorar”, pois esse é um mercado em expansão no mundo todo: o público “quer”, os “artistas”estimulam. Nem todos são discretos como Pedro Cardoso.

Há algum tempo, William Bonner disse que, quando pensa na edição do Jornal Nacional, procura fazer a cabeça do Homer (Simpson), o cara que, segundo ele, simboliza o cidadão médio. Segundo Bonner, não adianta sofisticar as matérias, o Homer não iria entender, o que terminaria em rejeição.

O sucesso de Os Simpsons – há mais de 20 anos em cartaz – não é porque o desenho se posiciona contra o sistema, ou emite uma lenga-lenga crítica contra a sociedade – embora pareça, e muito, que é isso que a série faz. A sacada mordaz dos realizadores é a de justamente mostrar como vive um sujeito comum; tirar dele qualquer pretensão ou culpa (culpa e pretensão são sinônimos) e devolvê-lo enredado por questões cotidianas as quais todos conhecemos. Homer Simpson é um simpático idiota.

O Woody Allen, neste filme que se passa em Roma, traz um personagem comum, um Homer, que subitamente é incensado à celebridade. Isso acontece do nada, como do nada a fama desaparece, sem explicação.

A gente ri, claro. Mas, assim como do Homer, rimos pela distância que acreditamos estar. Embora não seja bem assim. Poucos resistem à fama – dar opinião no que não entendem, tentar ser visto como importante, postar no Facebook frases ou citações de livros que nunca foram lidos, exibir fotos da família como se fosse um elenco, mostrar o que se come, se bebe, se consome. Somos os paparazzi da nossa própria vida, exibindo-nos compulsivamente.

Ainda sobre a entrevista do Pedro Cardoso, o paparazzo acaba revelando que o maior cliente das fotos, que bate espiando artistas contra a vontade, é o portal Globo.com, das Organizações Globo, em cuja emissora de TV o ator trabalha. A resposta causou um certo desconforto nos dois Pedros, o Cardoso, e o Bial, que conduzia a entrevista.

Vale destacar que a entrevista continuou e, mesmo não sendo ao vivo, mas gravada, foi exibida. O sistema dita as regras, produz e reproduz. E as regras são claras, vale até falar mal de si de vez em quando, desde que, no final, tudo permaneça como está. A gostosa pagando calcinha, uma declaração ordinária mas picante em destaque, o Pedro na novela. E o Homer no sofá.

quarta-feira, 18 de julho de 2012



18 de julho de 2012 | N° 17134
MARTHA MEDEIROS

Tirando os olhos do próprio umbigo

Na mesma semana em que fiquei inconsolável por ter perdido (ou terem me roubado) a carteira com todos os documentos dentro, conheci a história de uma moça que já passou por umas chateaçõezinhas também.

Foi criada numa família machista. Apesar de concluir a faculdade de Direito, o pai a proibia de trabalhar. Teve o primeiro relacionamento só aos 25 anos. Casou, porém o parceiro possuía problemas que tornavam a vida comum um inferno.

Ela engravidou e deu à luz um filho que, com um ano de idade, foi diagnosticado com uma doença rara que causava retardo motor – talvez nunca viesse a caminhar. Ela largou tudo para cuidar do filho, e tanto pesquisou que conseguiu descobrir um tratamento que reverteu as piores expectativas – hoje seu filho caminha. Em meio a isso tudo, o então ex-marido passou a viver como mendigo, dormia numa obra. Ela não teve dúvida: o resgatou e o encaminhou a um hospital.

Foi quando descobriram que ele havia contraído o vírus HIV, e que havia o risco de ela e o filho terem o vírus também. Depois de muitas noites sem dormir, veio o resultado. Não, mãe e filho não haviam sido contaminados. Mas descobriu-se que o menino, agora com cinco anos, tinha um número enorme de pólipos no intestino, o que exigia exames anuais muito desconfortáveis para uma criança. Nisso, o pai do garoto faleceu. Nada fácil dar a notícia.

Trégua: ela conheceu outro homem, finalmente o amor da sua vida, com quem teve alguns anos felizes. Até que ele morreu de uma hora para outra.

Dois meses depois, ainda em luto, ela descobriu que tinha um câncer de mama, e não estava em fase inicial: o tumor media 11 centímetros.

Debilitada emocionalmente, nem assim entregou os pontos: iniciou quimioterapia, descobriu nódulos no outro seio, perdeu cabelo, cílios e 15 quilos, fez uma mastectomia radical e hoje é uma mulher, segundo palavras dela mesma, que se considera feliz e vitoriosa, pois teve a oportunidade de se tratar com uma equipe excelente e descobriu com a doença o seu potencial para fazer diferença na vida dos outros: atualmente é voluntária do Imama e estuda legislação do Direito Médico. Conclui ela seu depoimento, fazendo graça: “Nada mais me abala, até medo de barata eu perdi”.

Ninguém tem controle sobre o próprio destino, mas podemos nos precaver, nos informar e nos fortalecer. Hoje é o Dia Nacional da Luta contra o Câncer de Mama. Das 8h30min às 18h, no Teatro do Sesc, médicos especialistas em mastologia, oncologia, radioterapia, reconstrução mamária e oncoplastia irão apresentar as últimas novidades no tratamento da doença. É aberto ao público, entrada franca. Ela deverá estar lá.

Perder algumas batalhas é natural. Perder os documentos, banal. Perder o medo diante de graves desafios e seguir lutando pela vida, crucial.

domingo, 15 de julho de 2012


FERREIRA GULLAR

Democratas de ocasião

Só um presidente já politicamente inviável é impedido com o apoio unânime do Congresso

Deixei a poeira assentar para dar meu palpite sobre a polêmica surgida com o impeachment do presidente Fernando Lugo, do Paraguai. Ao saber da notícia, logo previ a reação que teriam os presidentes de alguns países sul-americanos, inclusive o Brasil.

E não deu outra. Hugo Chávez e Cristina Kirchner, como era de se esperar, reagiram de pronto e com a irreflexão que os caracteriza. Logo em seguida, manifestou-se Rafael Correa, do Equador, que, com a arrogância de sempre, rompeu relações com o novo governo paraguaio. Chávez decidiu cortar o fornecimento de petróleo àquele país. E o Brasil? Fiquei na expectativa.

Como observou certa vez García Márquez, o Brasil é um país sensato e, acrescento eu, talvez por nossa ascendência portuguesa, pé no chão. E assim foi que Dilma primeiro mandou seu ministro das Relações Exteriores qualificar o impeachment de "rito sumário". Ou seja, não teria sido dado a Lugo tempo para se defender.

Sucede que o próprio Lugo, presente à sessão do Congresso quando se votou seu impedimento, declarou: "Aceito a decisão do Congresso e estou disposto a responder por meus atos como presidente".

Não disse que o Congresso agira fora da lei nem que tinha sido impedido de se defender. De acordo com as normas constitucionais paraguaias, recorreu à Suprema Corte e ao Tribunal Superior de Justiça, que não atenderam a seus recursos por considerarem constitucional a deposição e legítima a entrega do governo ao vice-presidente.

Só depois que os vizinhos tomaram a inusitada atitude de repelir a decisão do Congresso paraguaio foi que Lugo mudou de opinião e decidiu formar um governo paralelo, este, sim, destituído de qualquer base legal.

Fala-se em golpe, mas só um presidente já politicamente inviável é impedido com o apoio praticamente unânime do Congresso: 76 votos a 1 na Câmara de Deputados e 39 a 5 no Senado. Fora isso, nem os militares nem o povo paraguaios se opuseram. Pelo contrário, o impeachment de Lugo parece fruto de uma concordância nacional. Nessa decisão pesou, sem dúvida, o Partido Liberal, de centro-direita. Mas foi com o apoio deste que ele se elegera presidente da República.

O que houve então? Um complô de que participaram todos os partidos e quase a totalidade dos deputados e senadores? Se fosse isso, o povo paraguaio teria saído às ruas para protestar e denunciá-los. Só uns poucos o fizeram. As Forças Armadas, os intelectuais, os sindicatos protestaram? Ninguém.

O inconformismo com o impeachment de Lugo veio de fora do país: de Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Evo Morales, Dilma Rousseff, que se apresentam como defensores da democracia. Serão mesmo?

Vejamos. Hugo Chávez suspendeu o funcionamento de 60 emissoras de rádio e televisão que se opunham a seu governo, criou uma espécie de juventude nazista para atacar seus opositores e fez o Congresso mudar a Constituição para permitir que ele se reeleja indefinidamente. Cristina Kirchner apropriou-se da única empresa que fornece papel à imprensa argentina, de modo que, agora, jornal que a criticar pode parar de circular.

Já Rafael Correa processa um jornal de oposição por dia, exigindo indenizações bilionárias. Democratas como esses há poucos. Dilma mandou seu chanceler a Assunção para pressionar o Congresso paraguaio e evitar o impedimento de Lugo, como o faziam antigamente os norte-americanos conosco.

Como se vê, há um tipo de democrata que só defende a democracia quando lhe convém. Mas, mesmo que Chávez, Cristina, Morales, Correa e Dilma fossem exemplos de líderes democráticos, teriam ainda assim o direito de se sobrepor às instituições paraguaias e à opinião pública daquele país?

Como o impeachment de Lugo consumou-se de acordo com a Constituição paraguaia e pela quase unanimidade dos parlamentares, o único argumento do nosso chanceler foi o de ter sido feito em "rito sumário".

No entanto, que chance deram eles ao Paraguai para se defender das sanções que lhe foram impostas? Nenhuma. Essas sanções, além de sumárias, são também ofensivas às instituições do Estado paraguaio e a seu povo.


DANUZA LEÃO

Querer demais da vida

Ser apenas feliz, para certas mulheres, é pouco. Dizem que não têm vocação para a vida normal e vão embora

Costuma ser assim: as pessoas se conhecem, se encantam umas pelas outras, procuram conhecer os amigos, a família, os gostos pessoais, e assim descobrir se foram feitos um para o outro, para se unirem e serem felizes, até que a morte os separe. Aí namoram e casam.

Bem, para começar, é raro que duas pessoas se unam e sejam felizes até que a morte as separe, e quando chegam a se descobrir, todo aquele enorme encantamento que sentiram no primeiro encontro começa a complicar.

Ela não gosta da mulher do melhor amigo dele -e já começa a implicar-, ele não vai com a cara da irmã dela -e já começa a implicar-, um gosta de churrascaria, o outro, de um japonês, e por aí vai.

Começa então a tentativa de adaptação, cada um abrindo mão de certas coisas para que a relação dê certo. As adaptações que eram feitas nos primeiros dias de namoro com enorme prazer, um ano depois podem virar motivo de mau humor, e a verdade verdadeira é que ninguém gosta de fazer concessões, cada um só quer fazer o que quer e o que gosta.

É da natureza humana, e natural, pois se duas pessoas gostam exatamente das mesmas coisas, das mesmas pessoas, sentem fome e sono sempre na mesma hora, e por aí vai, vira uma monotonia sem fim. Então que tal por uma vez fazer tudo diferente e tentar que tudo dê certo, pelo menos por um tempo?

Seria assim: uma mulher e um homem se conhecem, se olham, e sentem um total arrebatamento um pelo outro. Nesse momento eles sairiam de onde estivessem -da praia, do bar, da festa- e passariam a viver só desse amor, só para esse amor. Nesse mesmo dia iriam morar juntos, sem saber dos defeitos um do outro, se esconderiam do mundo, dos amigos, das famílias, e abririam mão de seus desejos mais intensos para agradar ao outro. Não é assim, quando se ama?

E como é assim, não brigariam por nada, não discutiriam por nada, não implicariam com coisa alguma, e a vida seria uma total felicidade -por um tempo, é claro. Mas chegaria o momento em que eles começariam a se conhecer melhor, e a vida real invadiria um mundo que até aquele momento era só deles; com isso viriam as complicações, as de sempre.

Teriam que conhecer os amigos e as famílias, chegaria o dia inevitável em que um deles -ela- diria que tem horror a futebol, e ele daria o troco dizendo que odeia os filmes de Woody Allen que foi obrigado a ver, para lhe fazer a vontade. E chegaria o dia cruel em que falariam pela primeira vez sobre política, e que não iriam votar no mesmo candidato. A partir daí, viraram um casal feliz, desses que se vê por aí.

Só que ser apenas feliz, para certas mulheres, é pouco. Algumas dizem ao marido que não têm vocação para a chamada vida normal, que vão embora. E ficam espantadas -quase decepcionadas- quando eles dizem estar de acordo.

Porque quem viveu momentos tão delirantes não pode se conformar com menos. Querem da vida muito, tudo, tanto, que não aceitam vivê-la como ela é.

E vão, cada um para o seu lado, na procura eterna de outros encontros apaixonantes, mesmo que curtos, sabendo que para encontrá-los -talvez- vão passar longas temporadas inteiramente sós.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 14 de julho de 2012



15 de julho de 2012 | N° 17131
MARTHA MEDEIROS

O encurtamento das durações

Quanto tempo leva para superar a dor da perda? Quanto tempo para digerir uma rejeição? Absorver que um sonho terminou? Esquecer uma frustração? Uma mágoa de infância? Um trauma? Uma demissão? Os psicanalistas provavelmente responderão que é preciso respeitar o ritmo de cada um. Há quem seja rápido na retomada da vida, e há os mais lentos, que necessitam de um acompanhamento mais intensivo. Não há como decretar: dois dias, dois meses, dois anos.

Só que a maioria da população não procura psicanalistas. Não têm dinheiro pra isso, e muito menos disponibilidade. As pessoas não podem parar no meio do dia para se consultar, pois trabalham insanamente, e tampouco possuem tempo para, segundo elas, desperdiçar. Sabe-se que análises são demoradas, que buscam e rebuscam nossa intimidade, que não é num estalar de dedos que se atenuam as dores internas. E qualquer coisa que demore, hoje em dia: não, obrigada.

Que inquietação.

O passado e o futuro são dois períodos que já não interessam: cultua-se o presente como nunca antes. O que vale é este momento, agora, o instante vivido. Tudo digitalizado, virtual, instantâneo. Quem ainda espera dias por uma resposta? Meses por uma solução?

Na vida burocrática, governamental, a demora ainda é praxe e se vale da morosidade para arrecadar mais e mais dinheiro, mas no plano pessoal, encurtaram-se as durações. Vive-se tudo de forma mais compacta, o começo e o fim mais próximos do que jamais foram. E acabamos impregnados dessa urgência, dessa vontade de resolver todas as tranqueiras com a maior agilidade possível.

Porém, há tranqueiras e tranqueiras.

Você consegue resolver pendências profissionais de imediato, consegue tomar decisões práticas sem se alongar: parabéns. Salve a produtividade. Mas não foram essas as questões levantadas no início desse texto. Falávamos de tristezas, de cicatrizar feridas, de aceitar o destino que nos coube, de assimilar mudanças.

Sentimentos não são regidos por megabytes por segundo, não se vinculam a relógios, não obedecem a leis objetivas – é o curso da natureza que manda. E a natureza é surda e cega para o desatino. Exige a introspecção devida, sem a qual nada se resolve, só se mascara.

Diante da dor emocional, só há uma ordem a respeitar: paciência. De nada adianta inventar alegrias fajutas e se oferecer para a cobiça do mundo sem antes estar com a alma serenada e forte. É preciso saber esperar, do contrário a gente se atrapalha e só reforça a miséria existencial que preenche as madrugadas.

Basta de tanta gente evitando pensar, evitando chorar, evitando olhar para dentro de si mesmo, sorrindo de um jeito tão triste que só faz demorar ainda mais o reencontro com o sorriso verdadeiro – aquele aguardando a hora certa de voltar.


14 de julho de 2012 | N° 17130
CLÁUDIA LAITANO

A pomba

Jornais e telejornais do Brasil inteiro mostraram esta semana a imagem de uma pomba branca pousada sobre o caixão do cardeal dom Eugênio Salles. A ave foi levada para a cerimônia por um assessor da Cruz Vermelha do Rio, que pretendia fazer uma homenagem ao cardeal pelo seu histórico empenho pelas causas humanitárias.

Depois da execução do Hino Nacional, a pomba foi solta, mas em vez de seguir rumo ao céu pousou delicadamente sobre o caixão, ali permanecendo durante boa parte da cerimônia – tempo mais do que suficiente para que as câmeras se fartassem com a cena.

A pomba é um dos mais simbólicos membros do reino animal, acumulando as funções de ícone da paz e da fraternidade, da compreensão entre os povos, da pureza, da fidelidade e, para os cristãos, do Espírito Santo. Aparece no Velho e no Novo Testamento e ganhou uma versão gráfica definitiva graças a Pablo Picasso.

Como não é toda hora que um símbolo é flagrado em pleno exercício de suas funções simbólicas, é compreensível que as câmeras tenham se deleitado com a atuação espontânea da pombinha, que se comportou como se tivesse sido coreografada para a cena.

Exatamente porque a pomba pode significar tantas coisas, ou nada, é curioso pensar que uma imagem vista por milhões de pessoas possa ter assumido significados tão diversos: de epifania mística ao simples repouso de uma ave em um lugar confortável, passando por todas as impressões que se situam entre os dois extremos – inclusive a intuição profissional dos fotógrafos e cinegrafistas presentes, que perceberam na hora que a imagem prestava-se a múltiplas interpretações.

Somos todos, querendo ou não, definidos pelos símbolos que escolhemos cultuar – tanto quanto por aqueles que não nos dizem nada. O torcedor de futebol treme diante de um logotipo, de um hino, de uma cor. Um leitor apaixonado seria capaz de atravessar o mundo para olhar através de uma vitrina de vidro a relíquia de um manuscrito original. Guerras são travadas para defender uma imagem ou um livro associado a uma crença.

Futebol, arte, família, religião, tudo que o homem escolhe revestir de valores sagrados pode ser traduzido em objetos, símbolos gráficos, relíquias. Desastres acontecem quando, de alguma forma, o objeto sagrado de um grupo é imposto a outro como verdade universal – ou, ao contrário, proibido ou desrespeitado.

Existem vários símbolos de comunhão – religiosa, ideológica ou de nacionalidade – mas nenhum da intolerância. Mesmo quando religiões ou ideologias admitem, na prática, a violência ou o desrespeito aos direitos alheios, seus símbolos, originalmente, pretendiam espelhar valores elevados e transcendentes. É por isso que os símbolos, em si, valem menos do que aquilo que se faz em nome deles.

No caso da pombinha sobre o caixão, não houve exatamente uma imposição, mas talvez um exagero semântico. A imagem teve seu sentido tão expandido pela combinação rara de símbolo e circunstância que acabou causando algum estranhamento naqueles que não identificam qualquer transcendência possível em uma pomba – não importando sua extensa folha corrida como ícone multiuso.

Esperar que aves compartilhem o fascínio dos homens pelos símbolos talvez seja exigir um pouco demais de ambos.


14 de julho de 2012 | N° 17130
NILSON SOUZA

Fogo sagrado

Índios das três Américas montaram uma aldeia nas cercanias da Rio+20, no mês passado, e promoveram uma cerimônia repleta de simbologia, o acendimento do Fogo Ancestral. Como nos tempos pré-históricos, os pajés friccionaram madeira contra madeira até surgir uma tênue fumacinha e, logo em seguida, a faísca que saltou para a palha se transformou na chama do desenvolvimento humano.

Todo ritual foi fotografado e filmado pelos próprios índios, que, juntamente com arcos, flechas e tacapes, portavam celulares de última geração e outros equipamentos captores de imagens.

Guardei na memória aquela cena, para posterior reflexão e para este comentário, porque a considerei mais emblemática do que os organizadores pretendiam fazê-la. O fogo sagrado, aceso de forma primitiva, estava previsto no programa paralelo à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente – mas a tecnologia pegou carona no ritual e acrescentou-lhe um significado inesperado. Acredito que poucas vezes na história da humanidade foi possível ver o círculo do progresso se fechar desta maneira.

Quando vi o filme A Guerra do Fogo, nos anos 80, fiquei muito impactado pelo choque de culturas e pelas possibilidades abertas a partir do contato entre tribos de diferentes estágios de desenvolvimento. Alguns dos nossos tataravós pré-históricos achavam que o fogo era uma manifestação sobrenatural.

Reconheciam o seu poder e a sua utilidade, mas não tinham domínio sobre ele. Até que encontraram contemporâneos mais evoluídos, que já dominavam a habilidade de tirar a chama da madeira e os ensinaram não apenas esta técnica, mas também a sorrir, a se comunicar pela fala e não por grunhidos, a construir cabanas, a usar ferramentas, a pintar o corpo e até a amar de maneira mais humana.

Tudo se pode aprender. O verdadeiro fogo sagrado talvez seja a faísca da curiosidade, que carregamos em algum lugar recôndito do nosso enigmático cérebro. Aqueles índios com celulares pendurados nas tangas são a prova disso. Eles ainda sabem fazer fogo sem usar fósforos e isqueiros, mas já estão habilitados a ligar para uma telepizza caso a madeira esteja molhada.

Sei que isso pode parecer chocante para quem idealiza a natureza no seu estado mais puro. Mas é a realidade. Não para todos, é claro. Outro dia, a Funai encontrou uma tribo isolada no Acre. Alguns guerreiros chegaram a apontar suas flechas para o avião. Depois, porém, devem ter ficado pensando naquela máquina voadora que nunca tinham visto tão de perto. Curiosidade é fogo.

Não duvido que uma hora dessas telefonem para saber mais sobre o assunto.

terça-feira, 10 de julho de 2012



10 de julho de 2012 | N° 17126
CLÁUDIO MORENO

Não existe outra

Se me pedissem uma frase de inspiração, dessas que se escrevem no mármore dos monumentos, dessas que o pai deixa para o filho como herança valiosa, eu não hesitaria em escolher um dos meus provérbios árabes preferidos: “O mundo não prometeu nada a ninguém”. Juntando a ele as duas histórias abaixo, eu formaria um conjunto básico que, a meu ver, ensina tudo o que se precisa saber sobre o sentido da vida.

A primeira vem de um filme injustamente esquecido, Zulu, de 1964: entrincheirado num pequeno hospital de campo, no meio da vastidão africana, um pequeno destacamento do exército britânico (casacas vermelhas, capacetes brancos) se vê cercado por uma multidão enfurecida de mais de quatro mil guerreiros zulus, que lutam para se libertar do império colonialista da Rainha Vitória.

Habituados à rígida disciplina militar inglesa, os soldados, orientados pelos oficiais, erguem barricadas e tomam todas as providências possíveis para defender sua posição e sua vida, mas pressentem que a formidável desproporção entre as forças – quase 40 por um – aponta inexoravelmente para um trágico desfecho. Para tornar pior o que já estava muito ruim, refugia-se entre eles um missionário inglês que, aterrorizado, toma meia garrafa de uísque e começa a anunciar, em altos brados, que o fim de todos está próximo.

E aí vem a cena a que me refiro: um jovem soldado, o inexperiente praça Cole, talvez o que mais sofre com as negras previsões do missionário, quando vê os guerreiros se aproximarem, ameaçadores, em posição de ataque, não consegue conter o pavor e exclama: “Nós vamos morrer! Por que nós? Por que justamente nós?” – E, a seu lado, o duríssimo sargento Bourne (representado por Nigel Green, com suíças estupendas) olha-o paternalmente e responde: “Porque somos nós que estamos aqui, meu filho!”.

A segunda vem do Descanso dos Caminhantes, de Bioy Casares, uma historieta que, apesar de escrita bem aqui perto, na Argentina, parece ter saído daqueles tesouros com que a sabedoria oriental vive nos surpreendendo. Um pai diz ao filho: “Devemos amar a vida” – e juntos percorrem este mundo e atravessam a existência, encontrando, por onde passam, a maldade, a estupidez, a avareza, a avidez e a mesquinharia dos homens.

Por toda parte, o espetáculo é o mesmo: governos despóticos, ricos vaidosos e egoístas, pobres invejosos e cruéis. Um dia, o pai agoniza nos braços do filho, que faz, finalmente, a pergunta por tanto tempo contida: “Pai, por que devo amar esta vida?” – ao que o pai responde, com a simplicidade das horas extremas: “Porque é a única que temos”.


10 de julho de 2012 | N° 17126
FABRÍCIO CARPINEJAR

O amor é maior do que o esquecimento

Sua mulher esperava no café. Era manhãzinha, 7h30min, véspera de escola e de expediente.

O escritor José Cardoso Pires subiu para buscar o caderno de anotações na gaveta da cômoda. Seu caderninho vermelho, talismã de inspirações e personagens súbitos, essencial como os óculos de leitura.

Quando ele foi retornar, já no elevador, sofreu um derrame. Uma dor de cabeça insuportável e rápida. Sentou um pouco no chão, para acalmar os nervos.

Recomposto do choque, ao empurrar a porta da rua, ele viu que algo de estranho e sério aconteceu: não lembrava quem era e o que precisava fazer. Foi acometido de uma amnésia total.

Ele estava esvaziado de referências, jogado a uma infância adulta.

Em pânico, seguiu reto pela multidão, encarando o tamanho dos prédios. Usando os cotovelos, defendeu-se da correnteza humana com pressa.

Não tinha mais nenhuma recordação viva.

Um pequeno derrame apagou a memória, o mapa de seus desejos, a ordem dos compromissos.

Procurando se enganar e disfarçar o horror, andava resoluto, decidido, para frente. Percorreu três quarteirões, porém sentiu vontade de pensar um pouco e organizar as ideias.

Entrou no café lotado, onde sua esposa lhe aguardava no balcão para beber um ristretto, hábito do casal antes de mergulhar no trabalho.

Mas ele não lembrava que tinha esposa, família, destino profissional.

O que impressiona é que a primeira pessoa que ele procurou depois do esquecimento foi a própria mulher. Recusou outras 50 que estavam presentes no lugar.

Foi falar com a sua mulher. Sorteou seu rosto entre todos. Elegeu seus olhos castanhos diante de dezenas de candidatos do momento.

Não hesitou em atravessar o salão para cumprimentá-la, repetindo o encontro fundador do casamento de 40 anos. Assim como no baile da faculdade, superou a timidez medrosa e pediu uma dança.

Repetiu aquilo que não sabia.

Ainda que não conservasse nenhuma réstia de passado, aproximou-se da mulher e perguntou:

– Onde estou? Pode me ajudar...

Ela riu, achando que seu marido armava uma brincadeira, perdoou a piada estalando um beijo em sua boca. Ele se assustou com o gesto.

– Que isso?

– O que foi, amor?

– Amor?

Sim, amor, ele entenderia depois quando recuperasse a saúde.

Amava obsessivamente sua Marina, a ponto de se apaixonar de novo e sempre.

Talvez fosse se apaixonar cada vez que a enxergasse. Com alma ou sem alma, com memória ou sem memória.

Seu corpo era um cavalo obediente à dona.