quarta-feira, 16 de outubro de 2013


16 de outubro de 2013 | N° 17585
MARTHA MEDEIROS

Com a garganta presa

Foi muito divertido o retorno que tive da crônica de domingo passado, sobre as balas da infância. Muitos leitores lembraram de suas guloseimas favoritas, lamentaram eu não ter citado as balas Mocinho, apostaram que a pastilha cujo nome esqueci era a Supra Sumo (também adorava, mas não era essa...) e contaram episódios de quase morte por engasgamento com a bala Soft.

Porém, sacudidos de cabeça para baixo, todos se salvaram. Há quem jure que essas balas foram proibidas por terem um formato perfeito para grudar na traqueia até asfixiar – não encontrei fontes oficiais sobre o assunto, mas estou tentada a acreditar que elas entraram mesmo para a lista negra do FBI, da CIA e da Scotland Yard. Era tenso: eu chupava essas balas como se estivesse participando de uma roleta-russa.

Engasgos rendem cenas hilárias, mas levo o assunto a sério, pois quem já teve o desprazer de passar por isso sabe o quanto é estressante. E se a cena se der em local público, não só é estressante como constrangedor. Difícil manter a pose quando se está prestes a morrer sufocada, com os olhos esbugalhados e o rosto ganhando o tom de beterraba.

Acontece comigo com uma frequência que não chega a ser alarmante, mas manda a prudência que eu não relaxe tendo um copo em mãos. Não engasgo com sólidos, apenas com líquidos. Já vivenciei o problema no meio da madrugada, ao tomar água, e também em restaurantes, bares, até em beira de piscina.

Sofro só de imaginar que um dia possa ocorrer durante uma palestra ou uma entrevista. Hoje me concentro demais para que a epiglote (porta de entrada do ar nos pulmões) não feche em hora indevida, mas às vezes estou empolgada com a conversa, emocionada até, e aí é que o rolo acontece. Se dá para manter a classe? Olha, nem sendo a Costanza Pascolato.

Quase sempre estou acompanhada, e quem me conhece sabe o que fazer: é a manobra de Heimlich, criada pelo médico americano Henry Heimlich, que em 1974 inventou um método simples para induzir uma tosse artificial. O salvador deve se posicionar por trás do engasgado e abraçá-lo mantendo as duas mãos bem abaixo do peito dele, e fazer uma pressão curta, porém firme em direção ao tórax, tantas vezes quantas necessárias.

Pequenos socos até que seja expelido o que estiver interrompendo aquele bate-papo que, até então, transcorria de forma tão agradável. É um procedimento mais indicado para quem tem algo sólido obstruindo a respiração, mas mesmo com líquidos funciona. Comigo, ao menos, funciona, ou não estaria aqui respirando e escrevendo.

Considere essa crônica um serviço de utilidade pública. Mesmo as balas Soft tendo sido banidas do comércio (nada sei sobre o mercado negro), ainda assim há muitas coisas que nos engasgam, entre sólidos, líquidos e emoções sortidas: quem já não quase sufocou com um beijo? Se for para faltar ar, que seja por amor, que também é doce.


Uma linda quarta-feira pra você

quarta-feira, 9 de outubro de 2013


09 de outubro de 2013 | N° 17578
MARTHA MEDEIROS

A carteira de trabalho

Estava em frente ao computador, como quase sempre estou, esperando que alguma ideia inspiradora descesse do céu para me ajudar a escrever a coluna desta quarta-feira. Enquanto a ideia brilhante não vinha, li o jornal e fiquei ainda mais estarrecida com as notícias sobre o Brasil. Desperdícios, obras inacabadas, tudo ficando para depois, para um dia, para quando Deus quiser, e pensei: não, não vou falar de novo sobre o atraso do país. Aí a palavra atraso me remeteu ao atraso de um pagamento, e fui fazer algumas contas – a tela do computador seguiu em branco.

Foi então que a zeladora bateu à porta do meu apartamento e entregou a correspondência. Entre a papelada havia um envelope sem selo, sem carimbo, só com meu nome escrito. Abri. Não havia um bilhete, um telefone para contato, um e-mail, coisa alguma – apenas a minha carteira de trabalho.

A minha carteira de trabalho! Onde ela estava, e com quem? Eu a teria perdido na rua? Mas quando é que eu portei essa carteira pela última vez, se há quase 20 anos trabalho como autônoma? Jurava que ela estava repousando no fundo de alguma gaveta, e ela me retorna pela porta da frente, assim, como quem volta de um passeio.

A primeira sensação foi a de que entrei para a categoria das destrambelhadas. Como é possível alguém perder algo sem se dar conta? E não foi uma caneta, um pente, e sim um documento. Quanto tempo ele passou fora de casa sem que eu percebesse? Por precaução, fui dar uma espiada no quarto das minhas filhas para ver se suas roupas continuavam penduradas nos armários.

Respirei fundo e abri aquela carteira de trabalho emitida em 1981, com orelhas em todas as folhas desbotadas e frágeis pelo tempo em que estiveram abandonadas, pegando chuva, sendo manuseadas por pessoas estranhas, vá saber. Na primeira página, minha foto: uma estagiária com expressão de pavor, nunca havia trabalhado antes, nada suspeitava sobre seu futuro. A assinatura, ao menos, era segura.

E então, página por página, fui investigando a mim mesma, recordando de todos os lugares onde trabalhei, por quanto tempo, se havia sido demitida, promovida, reajustada. A parte dos salários foi a mais cômica. Em um emprego, eu ganhava 90 mil. No emprego seguinte: 250 mil. E no outro, 1 milhão!! Por fim, em meu último emprego, eu ganhava a gloriosa quantia de 1 milhão e 600 mil cruzeiros mensais. Morra de inveja, Eike.

Depois dessa turnê pelo passado de um país cuja moeda mudava de nome todo ano e cuja inflação fazia nossos rendimentos atingirem essa saraivada de dígitos, fechei a carteira de trabalho e fui tratar de desvendar o mistério de seu retorno ao lar. Desvendado (não revelo porque é bom manter algum mistério nesta vida, e também porque o espaço acabou), voltei conformada para minhas contas, lamentando que não se façam mais milionários como antigamente. 


domingo, 6 de outubro de 2013


06 de outubro de 2013 | N° 17575
MARTHA MEDEIROS

Tão óbvio

Sempre tive mais tendência a simplificar do que complicar, mas agora isso se intensificou a ponto de eu começar a flertar com o budismo. Lendo alguns livros e assistindo palestras, tenho percebido como o caminho para ser feliz é óbvio eu mesma já fui acusada de escrever sobre coisas óbvias, e não tenho como me defender contra isso: escrevo obviedades, sem dúvida. Porém me pergunto, intrigada: por que as obviedades andam tão necessárias?

É que normalmente o óbvio fica soterrado sob camadas e mais camadas de auto boicotes: as pessoas se irritam por besteiras, fazem escolhas idiotas, brigam no trânsito, não se abrem sobre o que sentem, desperdiçam energia à toa, desrespeitam o coletivo e são refratárias a tudo que seja simples e fácil, já que a dor, a culpa e o ódio faz parecer que elas têm uma vida mais profunda.

Felicidade é algo que todos desejam e ao mesmo tempo renegam, já que não saberiam lidar com algo que lhes deixaria tão soltos e leves. Com péssimo ibope junto aos intelectuais, a felicidade (que nada tem a ver com bobice, mas com paz de espírito) ficou associada à superficialidade, enquanto que o sofrimento produz arte e filosofia.

Sob esse aspecto, óbvio que ser um deprimido é mais charmoso.

Pena que isso seja um estereótipo. Ora, filosofia busca a consciência, que é chave para a felicidade, e a arte faz um bem danado a mentes atormentadas, que através dela conseguem realizar catarses e se conectar com um mundo que lhes parece hostil. Ou seja, não importa quem ou de que forma, todos querem viver melhor, sem esquecer que esse “melhor” tem sentidos diversos para uns e para outros. Seja qual for o significado de “melhor” pra você, ele é a sua perseguição. Só que alguns escolhem vias cheias de obstáculos e acabam não aproveitando a viagem.

O bem-estar vem de onde? Óbvio: da convivência com amigos, de relações saudáveis, de não permitir que frustrações e ressentimentos virem a tônica da vida, de não reagir com exagero diante de insignificâncias, da valorização das miudezas grandiosas do cotidiano, de sentir-se disponível para o novo e o diferente a fim de enriquecer a própria existência, mantendo uma espiritualidade básica que envolva a generosidade, a compaixão, a tolerância (não é obrigatório ter religião pra isso).

Mais: de aceitar as mudanças, de trocar de perspectiva quando se estiver obcecado com algo, de buscar a evolução da mente.

Inventei a pólvora? Estou dizendo alguma coisa que você já não esteja careca de saber? É tudo tão evidente, tão incontestável, que dá até sono. O que você ainda está fazendo lendo essa página? Acorde e vá pra rua.

Aí você sai e cruza com centenas de outros cidadãos para quem o óbvio é uma teoria sem aplicação prática, e que continuam encrencando-se de forma absurda, a fim de voltarem para casa estressados e sentindo-se vítimas do próprio destino. Charmosos, sem dúvida. Resta saber a que custo pessoal.


sábado, 5 de outubro de 2013


05 de outubro de 2013 | N° 17574
NILSON SOUZA

O cantor da madrugada

Eu já tinha percebido, mas foi lendo uma carta de leitor num jornal paulista que confirmei a minha impressão: os sabiás estão começando a cantar cada vez mais cedo. O homem escreveu para desabafar, disse que acorda na madrugada e não consegue mais dormir por causa do pássaro namorador.

Os sabiás-laranjeira, como se sabe, cantam para atrair as fêmeas – e aquele que canta mais alto e em tom mais melodioso leva vantagem sobre os demais. O raciocínio delas é lógico: machos que cantam com mais vigor terão maior capacidade de alimentar os filhotes. A interpretação não é minha, é de ornitólogos.

Mas por que eles não deixam para abrir o bico lá pelas sete ou oito horas, como fazem todos os mortais? Também tem resposta para isso.

A culpa é das metrópoles, garantem os especialistas. As luzes da cidade levam a ave a pensar que o dia já clareou. Tem também os ruídos: para evitar a concorrência do barulho de portões eletrônicos se abrindo, carros circulando, buzinas e mães acordando filhos dorminhocos, os pássaros soltam a voz mais cedo. Assim garantem audiência total. Há quem se incomode. O missivista a que me referi queria que a prefeitura de sua cidade tomasse providências, impondo a lei do silêncio à passarada. Era só o que faltava. Nós, com nossos casulos de cimento e ferro, ocupamos o espaço que um dia foi só dos bichos e ainda queremos que eles se calem. Deixa o sabiá namorar, amigo paulista!

O sabiá-laranjeira, ave-símbolo do Brasil, tem sido cantado em prosa e verso por nossos escritores e poetas, de Gonçalves Dias a Chico Buarque. É uma espécie de trompetista da primavera. Desde que este país era habitado apenas por selvagens, os sabiás sinalizam a chegada da estação das flores. Existe até uma lenda indígena que diz que quando uma criança ouve o canto do sabiá pela madrugada recebe uma bênção de amor, felicidade e paz. E agora os civilizados querem calar o bicho.

Peço licença para discrepar, como dizia um sábio (não um sabiá) da Academia Brasileira de Letras. Tenho tanto respeito e admiração pelos alaranjados, que até ando deixando meu carro fora da garagem, para não perturbar o sossego de um casal que fez ninho exatamente num arbusto situado na entrada.


Mal distingo o macho da fêmea, mas percebo que eles estão sempre lá, vigilantes, e sei que em breve acompanharei aulas de voo no meu pátio, como já aconteceu em outras primaveras. Meu trato informal com eles é o seguinte: fiquem à vontade, mas não esqueçam de me acordar com aquela deliciosa sinfonia da madrugada.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013


02 de outubro de 2013 | N° 17571
MARTHA MEDEIROS

Nós e a cidade

Uma casa e um smartphone: você precisa de mais alguma coisa? Hoje a gente se enclausura e faz uma vida. O que fica do lado de fora da janela é apenas uma cidade com ruas que levam a outras clausuras: a do escritório, a da academia, a da igreja, a do shopping, a do estádio, a da casa de amigos e familiares. Durante o trajeto, de um ponto a outro entre as clausuras, vamos reclamando do trânsito e olhando para os lados com aflição, a fim de conferir se não há ninguém nos seguindo, à espreita.

A cidade em que vivemos deveria despertar o mesmo sentido de lar que nossa casa desperta. Também é uma referência emocional, e o natural seria que circulássemos por ela com desenvoltura, alegria, entusiasmo – valorizando os passeios e nos sentindo acolhidos. Uma cidade é um espaço de integração e dinamismo, um elemento vivo. Ela deve ser boa para nós, deve nos reservar um futuro. Uma cidade – a nossa cidade – deve nos convidar para fazer parte dela com profundidade, como um chamado amoroso. Mas para amá-la precisamos confiar nela, admirá-la e considerá-la protetora.

Que condição de cidadania pode haver em transitar apressadamente entre clausuras, em não desfrutarmos do acolhimento que uma cidade, qualquer cidade, deveria oferecer a quem nela vive?

Uma amiga teve o carro roubado às 14h de um lindo dia de sol enquanto estacionava aqui perto de casa. Minha cunhada resgatou o filho na escola enquanto acontecia um tiroteio na praça em frente. Uma conhecida foi assaltada duas vezes no mesmo mês e no mesmo quarteirão. Isso restrito à minha vizinhança, imagino que você também colecione histórias sobre a sua.

Quem já teve o privilégio de viajar para locais mais seguros não se conforma com a indignidade de caminhar pela própria cidade desconfiando de quem cruza pela calçada. Comerciantes atendem por trás de grades depois de certa hora – como se ainda houvesse um horário mais perigoso do que outro. É ridículo se sentir ameaçado pelo lugar onde se vive.

É por isso que apoio os que lutam para atualizar nosso Código Penal. Prisão perpétua para crimes hediondos, fim do regime de progressão (que o preso cumpra sua pena integralmente) e redução da maioridade penal para 16 anos quando houver prática de assassinato, estupro, sequestro, pedofilia, tráfico de drogas, de órgãos, de armas. Chega do prende e solta.

Política é a arte de se deixar seduzir pelo poder, mas que poder? Nossos engravatados discursam pomposamente, cortam fitas de inauguração, vivem em reuniões, fazem de conta que representam o povo, enquanto o povo continua negligenciado pela retórica, pela burocracia, pela lerdeza, por leis obsoletas, por interesses eleitoreiros e pelo DNA defeituoso deste país que, em vez de permitir que nos encantemos por nossas cidades, faz apenas com que tenhamos medo delas.


sábado, 28 de setembro de 2013


29 de setembro de 2013 | N° 17568
MARTHA MEDEIROS

A sala de espera do analista

Sempre que saio da minha consulta no analista, há uma senhora na sala de espera aguardando sua vez. Antes, eu cruzava por ela e fazia um aceno educado com a cabeça. Com o tempo, passei a sorrir e dizer tudo bem?. Em breve, me sentirei tão à vontade que perguntarei : E aí, qual é a sua encrenca? Dificuldade de desapegar, síndrome do pânico, bipolaridade?

E tudo terminará num bistrô, entre boas risadas.

Obviamente, meu comportamento demonstra um desajuste. Não é por acaso que preciso frequentar um profissional que aperte meus parafusos frouxos.

Já quando sou eu que estou na sala de espera aguardando, a situação se inverte. O paciente anterior sai e nem olha para os lados. Cruza por mim como se eu fosse uma cadeira vazia. Nem uma espichada de olhos, nem um esgar, nem um grunhido. Não existo. Ele passa reto. Sou uma cadeira.

Eu poderia ficar com a autoestima abalada, ele não sabe o risco que está causando. Ou talvez saiba, mas não se importa com o que sinto. Será que ele não se importa com o que sinto? Acho que estou desenvolvendo um complexo de inferioridade. Mais essa agora. Desse jeito, minha alta não virá nunca.

Sempre que entro em uma pequena sala de espera, qualquer que seja, cumprimento quem ali está. Não saio distribuindo beijinhos, mas demonstro educadamente que percebi a presença de outros no recinto. Logo, é natural que eu faça o mesmo numa sala de espera que frequento toda semana à mesma hora, e onde eventualmente vejo as mesmas pessoas saindo ou entrando. Compartilhamos uma rotina, ora.

Só que não é simples assim. Ninguém fica com vergonha de ir ao dermatologista, ao oftalmo ou ao otorrino, mas consultar um analista ainda é algo extremamente íntimo. Os pacientes sentem-se constrangidos ao serem vistos num ambiente onde costumam confessar seus traumas e fraquezas.

Talvez não acreditem na eficiência do revestimento acústico das paredes, desconfiam de que aquela criatura ali na sala de espera escutou os detalhes de suas compulsões sexuais e de suas neuroses cabeludas. Era para ter ficado tudo em segredo, era para ter sido um momento privado, inviolável, confidencial – e é! – porém, em poucos minutos, aquele estranho sentará na mesma poltrona (ou deitará no mesmo divã) e privará dos cuidados do mesmo profissional, imediatamente depois de termos estado ali, e a sensação é de promiscuidade.

Queremos acreditar que o terapeuta é só nosso.

Mas não é: o paciente sentado na sala de espera revela que somos apenas mais um, que nossos problemas não são o centro da atenção de quem nos analisa e de que é provável que as paranoias dele sejam mais interessantes do que nossos questionamentos banais. Intolerável. Melhor mesmo fazer de conta que ali fora está apenas mais uma cadeira vazia.



29 de setembro de 2013 | N° 17568
FABRÍCIO CARPINEJAR

O melhor amante de minha mulher

Não tenho medo do passado de minha mulher.

Não há receio de nenhum ex. Não ardo de ciúme por relacionamentos anteriores. Não pago pedágio por aquilo que aconteceu.

Não mexerei no celular para comparar felicidade e entrega, não analisarei a alegria que irrompeu e deixou de ser. Tudo o que ela viveu, agradeço, apressou o caminho para estar comigo.

Mas sofro com um rival. Há um opositor no tempo que preciso duelar e reverencio, sei que a luta será difícil e desigual, sei que será duro excedê-lo, ele tem larga vantagem sobre meus ombros estreitos (pois a carregou no colo com a leveza de brisas).

Estou falando do mar de Búzios. O mar de Búzios foi sua melhor companhia. Até então insuperável convivência.

Ela passou a infância e adolescência correndo pelas suas vinte e três praias, mergulhando nas claridades das manhãs e tardes, permanecendo de chinelos e bermuda luz a fio, comendo nos restaurantes onde seu pai trabalhava como garçom, arredando amizades com a simplicidade de um aceno.

Seus cabelos loiros são mais loiros pelo mar de Búzios.

Sua pele é mais macia pelo mar de Búzios.

Seus olhos são mais verdes e transparentes pela cor da maré de Búzios.

Seu rosto vem para a frente quando ri para acompanhar o mar de Búzios.

Sua audição é refinada por se demorar nas cantigas das ondas de Búzios.

Sua coragem é aventureira por desafiar as curvas do oceano de Búzios.

O mar de Búzios desposou sua alma antes de mim. O mar de Búzios chegou primeiro, com entardeceres que nunca terei condições de reproduzir.

Poderia ter um outro adversário, porém veio logo o pior: logo o mar de Búzios com um histórico amoroso de Dom Juan, logo ele que conquistou Brigitte Bardot.

Como ser um amante mais completo do que aquela água sempre morna, alternada de ventos quentes ao dia e suaves no escuro?

Como massagear seus pés e mãos e superar o delicioso conforto da areia fina?

Como oferecer joias tão cintilantes quanto às conchas que ele colocou em seu pescoço?

Como despertá-la de bom humor sem aquela luz batendo na janela? Como fazê-la dormir sem aquela noite estrelada forrando o telhado?

Como ser mais exuberante do que a península de oito quilômetros?

Eu me sinto tedioso, monótono, chuvoso perto dele. É um inimigo com muitos apelidos, todos mais estranhos do que os meus: Geribá, João Fernandes, Ferradura, Ferradurinha, Armação, Manguinhos, Tartaruga, Ossos, Tucuns, Brava e Olho-de-Boi.

Se eu for metade do que Búzios significa em sua memória, serei o melhor homem de sua vida.


Apenas metade. A metade já transbordará em velhice de mãos dadas.

domingo, 22 de setembro de 2013

 

22 de setembro de 2013 | N° 17561
MARTHA MEDEIROS

A graça da coisa

Tem quem não consiga enxergá-la de jeito nenhum, o que para mim é o mesmo que nascer sem um pé ou sem uma orelha. Quem não vê a graça da coisa, vive com um pedaço faltando. Nada que impeça o sujeito de acordar, trabalhar, viajar, mas é chato.

A graça da coisa está em quase tudo, só que é preciso ter um olhar aberto e curioso para percebê-la, pois nem sempre ela fica evidente. Às vezes, exige leitura de entrelinhas, bom manejo da ironia, benevolência com o sarcasmo. É onde está a graça da coisa.

Mas, por sorte, ela não costuma ficar escondida. É até bem exibida.

Um filme B, daqueles que é puro lixo, pode se tornar cult se for assistido sem emburramento por uma plateia a fim de diversão. Um amigo resolve colocar os pés na cozinha pela primeira vez e o resultado é a pior massa grudenta da história. Que tal um sarau lá em casa para a gente cantar as músicas de acampamento dos nossos 16 anos? Sim, ao violão, todos bem desafinados.

Ela ronda por aí, nas aparentes roubadas que se tornam inesquecíveis por motivar tantas gargalhadas.

O que impede a graça da coisa de circular mais livremente é o excesso de seriedade que tomou conta do mundo. Esse tal de politicamente correto, então, é um inimigo declarado da graça. E os que não se desapegam do próprio ego também. Eles ficam de um lado, se achando, e ela fica de outro, boquiaberta: qual o sentido de se dar tanta importância?

A graça da coisa está justamente nas desimportâncias.

Quanto menos obsessão por elogios, por cargos e por poder, mais livre ficamos para reparar nas pequenas nuances por trás das afetações. Em tudo na vida há uma centelha de inocência que corrompe nossa rigidez e permite a entrada de uma alegria descompromissada e renovadora. A graça da coisa não tem assento reservado em camarote Vip nem lugar no pódio dos campeões, ela é simplesmente a piada espontânea surgida nos bastidores.

Há que se zombar da vida maluca que levamos e procurar a graça da coisa em nossas fracassadas investidas amorosas, nos erros em que nos viciamos, nas discussões de relação que sempre se repetem, nas tentativas de aparentarmos sabedoria, nas rugas que tentamos suprimir puxando a pele com as mãos em frente ao espelho, em nossos defeitos favoritos, nas reprises das brigas familiares, no nosso saudosismo meio brega, no nosso vocabulário do tempo do onça.

Em tudo há uma graça infantil, uma consciência comovente das nossas impossibilidades. É só desempinar o nariz.

A graça da coisa é o título do meu novo livro de crônicas, que autografarei no próximo sábado, dia 28, das 17h às 19h, na livraria Saraiva do Shopping Moinhos, em Porto Alegre. Se puder, apareça.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013


18 de setembro de 2013 | N° 17557
MARTHA MEDEIROS

Comando de voz

Sei de uma moça que, aos 30 anos, trabalhava numa empresa e foi promovida a um cargo de direção. De índio passou a cacique, e todos os seus colegas a cumprimentaram, mas a partir dali começava sua despedida da profissão que escolhera: logo percebeu que não sabia mandar. Sentia-se constrangida com a liderança concedida.

Não tinha voz firme para ordenar isso ou aquilo, para lidar com subordinados. Descobriu que estar no topo de uma hierarquia não era para o bico dela. Então, juntou seus pertences e saiu pela porta, dando adeus ao emprego e encerrando uma carreira que havia sido promissora até ali.

Mudou radicalmente de vida: virou colunista de jornal, passou a trabalhar em casa e viveu feliz para sempre até semana passada, quando leu uma reportagem sobre o lançamento de um novo smartphone que funciona com comando de voz. Ela não é fanática por gadgets, não tem smartphone, só um celularzinho mequetrefe, mas sabe que a tecnologia avança rapidamente para esse novo modelo de acessibilidade: em breve não será preciso mais nem tocar nos telefones. Bastará ordenar: “Ligar para Mariana” ou “navegar para o aeroporto Salgado Filho”.

Em casa, a mesma coisa: “Acender a luz”. “Apagar a tevê.” “Água quente.” “Mais quente.” “Menos.” “Mais.” “Perfeito, obrigada.”

No carro: “Abrir a porta”. “Ligar o rádio.” “Arrancar.” “Frear, frear!”.

Está nascendo uma nova geração de líderes. Aos dois anos de idade, a criança já estará dando ordens aos objetos, falando com lâmpadas, chuveiros, geladeiras, notebooks. Aparelhos reconhecerão o nosso timbre vocal. Assim é que vai ser.

A tal moça, que já dava como superada a questão de não saber mandar, está ficando preocupada. Lá vem o problema da hierarquia outra vez. Ela é alérgica a autoridade. Tocar levemente nos objetos para que funcionem sempre lhe pareceu eficiente e educado. Até com o marido dá certo: basta um toquezinho no seu braço e ele acorda, ele para de falar alto, ele diminui a velocidade, ele presta atenção em quem entrou na sala.

Com os objetos, a mesma coisa. Interruptores, teclas, trincos, torneiras, controles remotos – um toque com os dedos, e eles fazem sua parte sem que ela precise dizer nada. A vida funcionando num silêncio respeitoso.

Porém, em breve, ela terá que falar sozinha como se fosse maluca. “Acender.” “Apagar.” “Abrir.” “Trocar de faixa.” “Fechar as cortinas.” “Programar despertador.” Ela espera que não seja tão rápido. Talvez leve, sei lá, uns 10 anos para a rotina do ser humano entrar nessa esquizofrenia, mas no fundo ela já entendeu que não há como lutar contra o progresso – ou ela adere, ou junta seus pertences e, de novo, procura a porta de saída.

Hoje, no comando de voz, o senhor Celso de Mello. Ao decidir se cabe reexaminar as acusações contra os mensaleiros, ele poderá inaugurar uma nova era no país ou manter a impunidade e a desesperança de virmos a ser, um dia, uma nação respeitada. Basta que ele diga “Não”. Cruzemos os dedos.


Uma deliciosa quarta-feira pra você..

segunda-feira, 16 de setembro de 2013


16 de setembro de 2013 | N° 17555
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

A dama do perfume

Vês estes campos em cujo horizonte já avança a cidade que outrora foi pequena? Vês estas colinas em cujo topo se erguem duas ou três chaminés e onde antes só havia a voz do vento compondo sua música ancestral? Vês aquele último trecho de mata, que em outra época foi uma grande floresta habitada por pássaros sem nome? Pois foi aqui que aconteceu.

Aconteceu nesse tempo muito anterior de que te falo, com um homem que não conheci. Tudo aqui era diverso, exceto por esta grande casa, que então se erguia solitária, num mudo desafio à paisagem. Tudo era diverso, descontando as figueiras que têm dois séculos e que já então se elevavam sobre uma vasta extensão de sombra.

O homem se havia refugiado nesta casa tão logo finda uma ida guerra e seus sonhos se povoavam ainda de batalhas e por vezes despertava em meio à treva como se as vozes dos mortos o chamassem.

Foi numa dessas insônias que sentiu o perfume que vinha de nenhuma parte e, com um castiçal, foi percorrendo cada lance da grande casa, o salão deserto, os quartos vazios, a escadaria em que se viam as marcas de um fogo desde sempre contido, a peça ao alto, sobranceira a tudo, onde numa parte esquecida de sua existência havia composto seu único poema. E então o perfume desapareceu.

Aquilo se reprisou por outras noites e outras insônias e novas guerras e batalhas povoadas das vozes dos mortos e o homem já não dormia, inquieto, perguntando se não era ela que então lhe voltava, mas não ousava crer que, há tanto tão perdida em seu passado, lhe pudesse retornar, já que não havia mais esperança habitando seu mundo e sua alma.

– Como será ela agora? – pensava, e tornava a andar pela casa deserta como um náufrago em fero mar, perdido o lenho, e buscava lenimento em reinventá-la, nua e sua, no quarto da cama com dossel de idas idades.

Teria olhos azuis, ou garços, ou mel, a senhora de todos os seus desejos, a que agora lhe roubava as noites com seu perfume e o sono com suas lembranças? E o homem não encontrava respostas para esse claro enigma e a chama do castiçal se desvanecia em suas mãos com a alba.

E, uma noite, mais forte lhe veio o perfume e ele abriu a porta do quarto da cama com dossel e lá estava ela, enovelada em sua pele alva e em seus cabelos dourados, e um ao outro se deram, e assim os acharam, muitos anos depois, extintos, abraçados em desejos antes interditos, em infinitos jogos de entrega e posse, que foi quando esta lenda verdadeira principiou.


sábado, 14 de setembro de 2013


15 de setembro de 2013 | N° 17554
FABRÍCIO CARPINEJAR

Amigas são mais que amigas

As mulheres são incríveis. Elas têm amizades para todas as tarefas e assuntos. Não dispensam uma segunda opinião. Sempre coletivas em suas decisões.

Perguntam até o que já sabem, para não sacrificar o costume, para ter certeza de que fizeram a melhor escolha.

Enquanto o homem é genérico, elas são específicas, altamente especializadas. Não querem correr o risco de se enganar, de cometer uma injustiça e unem suas curiosidades e somam seus talentos. Odeiam serem passadas para trás, adquirir algo pelo dobro do preço e sofrer os juros da pressa.

Minha namorada Katy, por exemplo, quando vai comprar roupa conta com a escolta de duas amigas. Suas amigas superam a condição de amigas, ganham a dimensão de consultoras. Ela parte para o shopping com uma ou com outra, jamais convida as duas juntas. Por quê? Cada uma atende um propósito diferente.

A Letícia é chamada quando é o caso de garimpar peças e promoções. Há uma cota X para gastar e não tem como extrapolar. É a companhia da grana curta, da economia, com o faro do particular e do acessível em grandes lojas. Opera milagre com pouco. Transfigura água com gás em vinho. Ajuda a Katy a cumprir a meta. Não foram poucas as vezes em que ela voltou com sete peças festejando o orçamento de R$ 350.

Já Júlia é convocada no momento de uma superfesta, na hora de esnobar as etiquetas. É para procurar O Sapato, O Vestido, A Blusa, o artigo definido do figurino. As duas tumultuam as lojas mais chiques. Sequer mexem nos cabides, despem logo os manequins da vitrine. Saída fadada à falência e para se arrepender do exagero cometido com as demais amigas.

Depois que regressa da expedição nababesca, Katy não realiza propaganda nenhuma, permanece calada, nunca confessa quanto gastou, e suspira mais seguido diante do espelho. Ela adquiriu uma saia na última semana e nem por chantagem abrirá os dígitos do investimento.

A Letícia é a inteligência da simplicidade, colega com traquejo para caçar nas araras um modelo incomum, revirar pilhas, bagunçar os provadores e aproveitar o que quase saiu de moda, mas ainda mantém o toque eterno do estilo.

Júlia é o equivalente a um sequestro. Compõe o momento faraônico, de puro e insano arrebatamento. É uma boa orientadora do que entrará em estação, da cor dominante, dos acessórios de tendência. Cúmplice da bebedeira consumista, com direito a ressaca e esquecimento financeiro nos próximos meses.

Ao partilhar suas dúvidas, a mulher encontra testemunhas de sua felicidade. O que é uma obrigação se transforma em intimidade, o que é um passeio se converte em autoconhecimento.


Comprar roupas é vestir amizades.

15 de setembro de 2013 | N° 17554
MARTHA MEDEIROS

Estacionados na arrogância

Um dos problemas das grandes cidades, e até das pequenas, é encontrar lugar para estacionar. Uma vaga livre, hoje, é um bilhete premiado. Imagino que você, que dirige, concorde com isso. E deve ficar, como eu, indignado com motoristas que não dão a mínima para as linhas amarelas que delimitam o espaço para os automóveis nos estacionamentos de shoppings e demais áreas comerciais.

Sei que o assunto não é relevante, mas você entenderia se fosse colunista de jornal há quase 20 anos e tivesse a impressão de já ter escrito sobre tudo. Aliás, creio que até já mencionei o desrespeito às linhas sinalizadoras amarelas, mas voltarei ao assunto: escrever é se repetir.

Então lá vem o piloto, com pressa. O estacionamento está quase vazio, há várias vagas ainda disponíveis. Ele nem titubeia: imbica o carro de qualquer jeito, sem reparar que avançou em cima da faixa amarela, impossibilitando que outro motorista estacione a seu lado. Ele está ocupando duas vagas e não se importa, pois não enxerga além do próprio umbigo e não é da sua conta se daqui a pouco aquele estacionamento estará lotado de pessoas procurando vaga – ele não foi programado para pensar nos outros.

O que ele deveria fazer, sem gastar mais do que 10 segundos do seu precioso tempo, era manobrar (para frente e para trás, isso) até deixar o carro reto entre as duas faixas, com espaço suficiente para ter vizinhos que, além de estacionarem, conseguirão abrir as portas de seus veículos. Eu costumo manobrar até deixar o carro retinho e, juro, não perco os braços, o consumo de combustível não se altera e a gentileza dura mesmo 10 segundos, ou até menos, se você for um às do volante.

Aí você me diz: “Pois é, penso como você, mas às vezes encontro uma vaga em que o cara do lado estacionou mal, invadindo o espaço alheio, e aí não me resta alternativa a não ser fazer o mesmo. Depois o engraçadinho sai com o carro e fica o meu ali atravessado, parecendo que eu é que estacionei errado desde o início”.

Conheço a situação. Não é fácil. Mas aí a sociedade conta com sua beatitude: não estacione errado só porque seu irmão o fez. Procure outra vaga. Dê voltas. Esmurre a direção, pragueje contra o infeliz, mas não repita o que ele fez, pois se o fizer criará uma corrente em que todos, durante todo o dia, estacionarão em cima das faixas amarelas e o resultado será menos vagas disponíveis.

Eu poderia estar roubando, matando, mas estou apenas esmolando sua compreensão. Se você estacionar seu carro direitinho no espaço destinado a ele, sem deixar torto, sem avançar na vaga alheia, sem abandoná-lo com displicência, sua contribuição será reconhecida e há grande chance de nós, daqui a algum tempo, não termos que pagar multa por causa disso também, já que a única didática eficaz do país é mexer no nosso bolso.

Vamos tentar ser educados de graça.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013


04 de setembro de 2013 | N° 17543
MARTHA MEDEIROS

Um pacto com a verdade

Pode-se dizer que, na infância, fui uma menina fechada. Não excessivamente introvertida, mas na minha. Não falava muito sobre o que sentia e pensava. Ficava matutando com meus botões apenas, ou colocava tudo num diário que era protegido por um cadeado. Dá para acreditar, nos dias que correm, que já existiu quem trancafiasse sua intimidade a chave? Os diários eram nossos cintos de castidade mental.

Não estou exaltando os velhos tempos: ser tão ensimesmada não me rendeu grande coisa na época. O.k., desenvolveu minha introspecção, que é importante para quem escreve, mas retardou meu encontro com os outros – um encontro que só se dá plenamente quando somos menos defensivos.

O que fica secreto não chega a ser uma mentira, mas é algo que não ventila, não dialoga, não evolui, mantém-se estático na sua inutilidade, mofando, criando teias e envelhecendo sem nunca ter sido confrontado. Não acho que tenhamos que nos expor indiscriminadamente, isso é uma ansiedade quase doentia. Mas nem por isso defendo uma sociedade de caramujos.

A transparência dos nossos pensamentos e sentimentos é o único meio de estabelecermos conexões fortes e de avançarmos, tanto pessoal quanto socialmente. É muito difícil se relacionar com quem não se entrega, não assume suas fragilidades, não deixa cair a máscara. Não só difícil, como perigoso.

E chego ao voto secreto, essa aberração política que impede que conheçamos de fato nossos representantes e que permite indecências cujo maior colaborador é o silêncio. O silêncio é o principal aliado do mais grave problema do Brasil, a impunidade. Não só o silêncio que mantém os direitos políticos de um ladrão sentenciado, mas o silêncio de mulheres que mantêm a impunidade dos familiares que as violentam, o silêncio de cidadãos que testemunham crimes e não os denunciam, o silêncio que sustenta farsas, pessoas de duas caras, relações de fachada.

Transparência não é um comportamento fácil de adotar. Muitos se sentem incomodados diante da exposição de seus erros, constrangidos por falhar, humilhados por não ter acertado. Só que nada disso nos desonra, ao contrário. A transparência nos humaniza, nos refina e nos torna melhores – vale para pessoas, para cidades, para nações. Até uma árvore que cai num parque tem a ver com esse assunto, nem que seja como metáfora – a deterioração que se mantém escondida cedo ou tarde se manifesta da pior forma.

Há quem evite a transparência porque ela pode causar vergonha. Ora, é justamente de mais vergonha que precisamos. A vergonha nos civiliza e nos estimula a agir de forma correta. Sejamos francos, verdadeiros, mesmo que isso nos cause algum desconforto. É mais digno do que morrer abraçado ao lado secreto da vida, esse que costuma cair de podre.

sábado, 31 de agosto de 2013


01 de setembro de 2013 | N° 17540
MARTHA MEDEIROS

Meu coração em tuas mãos

Não é porque ele foi grosseiro comigo que eu tinha que ser grosseira com ele também, mas fiz, está feito, agora acabou, solidão pra sempre é o que me espera, assim como aquela dívida maldita que só aumenta, meus credores não têm nenhuma compaixão, vou ter que vender meu carro para pagá-la, e essa tosse insistente só pode significar que estou condenada, sem falar que minha filha ainda não voltou da festa, pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, como está quente nesse quarto, eu nunca mais vou conseguir dormir, nunca mais, vou acordar com olheiras até o queixo, sou uma miserável que... zzzzzz.

E então você acorda, abre as cortinas da janela, e recebe um telefonema do seu amor reconhecendo que andou abusando da sua paciência e que está morrendo de saudades, e entra um trabalho freelancer que ajudará a pagar a conta atrasada, e a tosse passa com Melagrião, e a filha está dormindo feito um anjo no quarto ao lado, e as suas olheiras estão aparentes mesmo, mas nada que um corretivo não disfarce. Olhe só, suas preocupações ficaram desse tamanhozinho, de quem foi a mágica?

Do primeiro raio de sol. Durante o dia, nossa cabeça pensa melhor e as soluções aparecem no decorrer das horas. A mente ajusta o foco e não dá trela a fantasmas. Já a madrugada não conhece a palavra sanidade.

A escuridão e o silêncio transformam pequenas chateações em dramas diabólicos, e a gente cai nessa cilada, achando mesmo que estamos lidando com o pior da vida. Mas que vida? Hipercansados, ansiosos, deprimidos, paranoicos, isso é vida? A insônia desperta em nós a morte, isso sim. Ficamos todos ferrados não pela falta de sono, mas pelo excesso de dilemas. Como disse Dostoievski, ser extremamente consciente é uma doença. A gente morre por pensar demais. E pensar é só o que nos resta durante uma insônia.

Mas é possível controlar esses pensamentos malditos.

Em vez de permitir que o cérebro maximize nossos problemas, o melhor seria transformar nossa miséria noturna em algo produtivo. Porém, nem todos conseguem levantar da cama – ainda mais no inverno – a fim de guerrear com seus demônios. Até porque sempre há a esperança de se conseguir dormir pelo menos por uma ou duas horas, o que não acontecerá no caso de acendermos as luzes para pintarmos quadros, escrevermos poemas, fritarmos omeletes, cortarmos o próprio cabelo – ai, não corte o cabelo às quatro da manhã, vá por mim.

Posso fazer uma sugestão? Sem precisar levantar, sem acender a luz, jogue “stop” mentalmente com você mesmo. Países: a, Alemanha; b, Bélgica; c, Canadá; d, Dinamarca... Há grande chance de, antes de chegar no p, Portugal, você já ter adormecido. Se não, siga com o jogo, fazendo seu a-b-c para títulos de livros, comidas, profissões, ruas da cidade. O truque é simples: trocar de preocupação. Ou você prefere continuar fazendo o a-b-c das doenças que poderá contrair ou das pessoas a quem já magoou?

Parece bobagem, e é, mas quase sempre funciona. Jogue “stop” noturno com você mesmo, e stop a insônia.



01 de setembro de 2013 | N° 17540
FABRÍCIO CARPINEJAR

Meu coração em tuas mãos

– Escute meu coração! – ela me pediu.

Achei bobagem. Concluí que era coisa de criança, que adultos não deviam perder tempo ouvindo o coração. Lembrava uma infantilidade, uma doçura extravagante. Apesar de minha recusa, ela colocou minha palma esquerda sobre seu peito.

Fingi interesse até que a sequência virou música. Fazia muito que não ouvia o coração com as mãos. A mão é o ouvido perfeito. A mão é uma concha natural; o oceano nos dedos.

Naquela hora, eu capturei o animal acelerado, seu silêncio enervado, seu desejo correndo para todas as veias da boca. Espantei-me com a banalidade, a redescoberta do óbvio, como se estivesse aprendendo a amarrar os cadarços depois de velho.

Eu entendia o que ela estava sentindo melhor do que se falasse. Eu via que ela era real, e que ela era possível. As palavras foram se tornando palpáveis. As frases cresciam em sentido. É como um coro que desmancha a solidão do pensamento.

Eu me apavorei com o meu desconhecimento do gesto. Por que não cumprimento as pessoas escutando seu coração? Por que abandonei o hábito de pequeno? Por que reservei a mecânica ao médico?

Por que não me permitia ser despudoradamente emocional? Ouvir o coração é como acompanhar os passos num piso de madeira. A gente identifica o familiar avançando pela casa, somos capazes de adivinhar o cômodo em que se encontra.

Ouvir o coração é como ouvir um órgão numa igreja, não um piano. Há uma diferença de fundo. Os tubos de metal e de madeira ressoam como um segundo sino, em caixas de cinco andares.

Ecoa um planger épico, inevitável. O corpo já treme ao andar. O coração é mesmo um altar, mas quem ainda escuta? Ouve-se o batimento da criança no ventre, os pais se emocionam com os primeiros sinais de vida de seus filhos, mas nos desacostumamos com o próprio ritmo. Ninguém nos inspira ou exige sua consulta.

Esquecemos de conferir o beijo, o abraço e o toque registrados lá, na linha cardíaca.


Com o coração dela em minhas mãos, compreendi qual o nosso medo. Quem escuta o coração não machuca o outro. Será responsável pela fraqueza. Sofrerá esperando o próximo suspiro do som. Estará consciente do intervalo de cada batida. Tem noção do que é ferir, e como dói ser sozinho.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013



BOA SEMANA!!

Vieram ao Mundo

" Pessoas não foram feitas pra levar escuridão.
Pessoas vieram ao mundo pra irradiar claridade
E iluminar o caminho dos demais.
Que eu possa ser luz por onde eu passe. "

Luzia Trindade




Linda quarta-feira pra você

Às vezes pensamos que a saudade foi feita
só para machucar, mas os dias passam e
percebemos que ela é a maneira mais
certa e clara de sabermos o quanto
gostamos de alguém.

By Keyla


28 de agosto de 2013 | N° 17536
MARTHA MEDEIROS

Todos os motivos do mundo

Da série “Morro e não vejo tudo”: 165 mil pessoas de mais de 120 países se inscreveram para participar do programa de assentamento em Marte, projeto elaborado pela organização holandesa Mars One. Os brasileiros estão em terceiro lugar em número de inscritos: 8.686 – perdem apenas para americanos e chineses. No próximo sábado, encerram-se as inscrições.

A empresa pretende desembarcar quatro voluntários em 2023, e depois novos cosmonautas a cada dois anos, a um custo de US$ 6 bilhões, parte financiada por um reality show sobre os primeiros anos de existência da colônia. Idade mínima: 18. Taxa de inscrição: de US$ 5 a US$ 75, dependendo da nacionalidade do cidadão, que deve enviar também um vídeo de um minuto falando sobre os motivos de querer viver em Marte para sempre.

Um minuto de motivos? Cronometre aí.

“Desatentos” que continuam jogando lixo na rua – multa para todos, não só para os cariocas. O custo de vida. Fraudes em licitações. Corrupção em todos os setores da sociedade. A demora em concluir obras. A péssima qualidade dos serviços públicos. Gente levando tiro dentro de hospital. Crianças sendo violentadas por parentes. Policiais envolvidos em crimes. Irresponsáveis dirigindo a 150 km/h. Fanáticos religiosos. Impostos que são verdadeiros assaltos.

Burocracia que impede a agilidade de novos negócios. Calçadas em péssimas condições. Estradas que ficam intransitáveis aos primeiros cinco minutos de chuva. Irregularidades em contratos. Violência urbana sem controle. Professores mal pagos. Funcionários mal treinados. Ruas sem placas de identificação. Tornozeleiras eletrônicas que não funcionam. Enchentes a cada temporal. O quê? Já passou um minuto?

Nem deu tempo de falar do que acontece fora do Brasil, como utilização de armas químicas na Síria, os índices de mortalidade na África, o fundamentalismo islâmico, a recessão europeia etc. etc.

E tem ainda as crises pessoais. O que não falta por aí são pessoas desmotivadas, devendo dinheiro, administrando fracassos, sem perspectiva de crescimento, amargando dores de cotovelo, entediados com a vida, aborrecidos crônicos, sem fé no futuro. A oportunidade de em 10 anos partirem em uma expedição inédita e eternizarem seu nome através de um projeto sem precedentes na história da humanidade daria a eles um sentido pra vida. Colonizar Marte – e com cobertura da imprensa!

A viagem durará alguns meses. A espaçonave é estreita. De alimentação, apenas produtos liofilizados e enlatados. Banho, só com toalha úmida. Desistir no meio do caminho está fora de cogitação. Pedir para descer, nem pensar. E a passagem é só de ida.

Ainda assim, 165 mil pessoas se inscreveram, o que me faz chegar a duas conclusões: que a vida na Terra, definitivamente, não está para brincadeira. E que Marte deve ter wifi grátis.


sábado, 24 de agosto de 2013


25 de agosto de 2013 | N° 17533
FABRÍCIO CARPINEJAR

Última palavra

Quando Mariela anunciou que iria pegar suas coisas, Everton rasgou em pedacinhos o cartão que contava a história do casal. Esfacelou como um pão.

O cartão descrevia como eles se conheceram, narrava os melhores momentos de seis anos juntos, apontava as expressões que somente os dois conheciam e que formavam um dialeto engraçado e comovente. Era o cartão de todos os cartões. Uma aliança de papel.

Tinha o tamanho de um cartaz. Para não ter mesmo lugar para guardar. Para repousar nas prateleiras como um porta-retratos, para ser exibido entre os vasos como um quadro, para surgir entre os objetos de estimação como uma escultura viva.

Homem de poucas frases, que nunca escrevia, Everton superou seu laconismo e resolveu o atrasado da linguagem em longo testamento.

Pediu até para uma amiga professora de Português corrigir, não querendo passar vergonha com erros de ortografia.

As rosas que acompanhavam o texto secaram em uma semana, o que ficou foi a letra dele. Pois o cartão sempre será a pétala que não murcha, mais importante do que o buquê porque é a memória do buquê.

Possuído pela fúria, Éverton sequer pensou duas vezes. Esfarinhou a homenagem em suas mãos. Chorou o que podia com os cortes violentos das margens. Os dedos, afiados em tesoura, desfiguraram o conjunto. Com o pedido de separação, buscou se vingar destruindo sua declaração de amor. Sua única declaração de amor.

Depois do vandalismo, ligou para Mariela:

– Venha pegar suas roupas, mas saiba que rasguei o cartão que lhe dei.

– O cartão era meu, não podia ter acabado com ele.

– Você acabou comigo, o que adianta o cartão?

– Não fala desse jeito. Onde ele está?

– Está no lixo.

– Vai lá e recolhe os pedaços.

– Nunca. Nunca mais me abro para nenhuma mulher.

Éverton desapareceu de casa por uma semana, a fim de deixá-la livre a separar e encaixotar seus pertences.

Ao regressar, surpreendeu-se com o cartão que havia rasgado em cima dos travesseiros.

Todo colado. Todo remontado. Um trabalho de recorte e cole tão imenso quando o dele de escrever.

O cartão lembrava o vitral de igreja que se casaram, com os retângulos formando as imagens da caligrafia.

Estava ainda mais bonito. Mais iluminado.

Ele esqueceu o boicote e telefonou para Mariela:

– Qual o sentido de recuperar o cartão? – perguntou.

– E você ainda acha que a gente não tem conserto?

Com o gesto absolutamente esperançoso, eles se prenderam um ao outro.


A última palavra nada é perto de um novo beijo.