sábado, 31 de maio de 2014

WALCYR CARRASCO
30/05/2014 21h49

A arte da pechincha

Na Holanda, uma senhora que me atendia me passou o preço de um suvenir. Respondi: “Pela dúzia?”

Adoro pechinchar. Sou capaz de discutir por centavos. Como toda arte, a pechincha exige talento e disposição. Em Israel e na Turquia, conheci templos, cidades subterrâneas, lugares que fazem parte do patrimônio cultural da humanidade. Mas uma das minhas melhores recordações são as lutas por desconto nos mercados árabes. Em Israel, ao discutir o preço de uma mala comum, ouvi o que considero o maior elogio, de um vendedor árabe.– Mister, you are so hard!

E chegou no meu preço!

Em Istambul, cheguei a ponto de devolver um kit de temperos de US$ 30. Eu só chegava a US$ 10. Fingi que ia embora, o vendedor correu atrás de mim, entregou o kit e levou os US$ 10.

Um dos segredos na pechincha é ter cara de pau. Seja onde for. Na Holanda, perguntei o preço de uma lembrança num quiosque de produtos típicos. A velha senhora que me atendia deu o valor. Respondi: “Pela dúzia?”.

Seguiu-se uma briga de duas horas por cada tamanquinho de porcelana, miniatura de moinho de vento ou camiseta com a palavra Amsterdam. Um casal de japoneses acompanhava a cena surpreso. A mulher chegou a inquirir um amigo que me acompanhava nas compras: – Como você suporta ficar perto desse sujeito?

Como acontece em todos os lugares do mundo, ela disparou o mais antigo refrão dos vendedores: – Se eu vender por esse preço, serei demitida.

Respondi que não acreditava, que ganharia aumento por vender tão caro. Durante a batalha, falamos de nossas vidas. Com cerca de 80 anos, respondeu que era viúva duas vezes e não pretendia casar mais, para não ter de fazer café e cuidar de marido.
– Já enterrou dois, enterre o terceiro – disse eu.

Rimos. Uma boa discussão sobre pechincha entra em intimidades, brincadeiras capciosas, falsas agressões. Terminamos quase nos abraçando, enquanto eu pagava as compras.

Nos mercados árabes, o vendedor só respeita quem pechincha. Fica até um pouco decepcionado quando alguém aceita o primeiro preço. O segredo é começar com um décimo do valor pedido. Ou perguntar se aquele é o preço da loja toda, não do tapete. Muitas vezes, terminei tomando chá com eles, satisfeitos, nos olhando com respeito mútuo.

Muita gente tem vergonha de pedir desconto. Bobagem. Seja nas feiras livres ou nos grandes magazines, desconto sempre é possível. Em loja de cadeia de eletrodoméstico, o vendedor diz que não, não. Depois responde:
– Vou ver o que posso fazer.

Entra no computador. Pois é. O programa já sugere várias categorias de preço. A tabela e aquele para quem guincha como um porco estripado. Em certo momento, ele diz: – Cheguei ao máximo. O computador não aceita abaixo disso.

É a hora de chamar o gerente. Aí vem uma autorização extra! Mais abaixo! Já consegui, em empresas que montam cozinhas e armários embutidos, meus 60%. Essas empresas trabalham com margens boas de lucro, estão abertas a alternativas de pagamento, diferenças à vista ou parcelado.

Em lojas elegantes, que oferecem cafezinho e taça de champanhe, com vendedoras bem trajadas, parece até feio pedir desconto. Não é. A maioria só não pede porque parece falta de fineza chorar preço. Um aviso: o dinheiro é meu, é seu. Defendê-lo é justo. Se, depois, algum vendedor me chamar de miserável pelas costas, qual o problema? Fui fazer uma compra, não estabelecer amizade. De fato, os vendedores tendem a se tornar mais amigos de quem pechincha. Na discussão, trava-se uma relação mais próxima, mais humana e divertida.

Outro dia, fui a uma loja de utensílios domésticos, num shopping sofisticado. Me interessei por uns vasos. Na guerra estabelecida, veio a gerente. Ela ligou ao supervisor, para chegarmos a 5% em três vezes. Pouco, mas melhor que nada. Mesmo grandes grifes masculinas se deixam vencer, também nos 5%. Que sensação agradável, um desconto!

Em outras, reconheço, desconto é impossível. São joalherias, onde um brinco ou relógio custa uma grana. Choro, choro e parcelo em dez vezes sem acréscimo, no cartão. Aí,  já na porta, lamento com a gerente:
– Mas nem um presente você vai me dar?

Já descolei uma carteira de couro para passaporte, uma manta lindíssima de cashmere. Se compro uma caixa de charuto, saio com cinzeiros, isqueiros, o que estiver dando sopa. Seja na feira ou no shopping, meu negócio é pechinchar. Só é preciso perder a timidez e ir em frente. No final, dá uma incrível sensação de vitória!



31 de maio de 2014 | N° 17814
CLÁUDIA LAITANO

Que bonito é

Dois argumentos a favor da paixão pelo futebol sempre comoveram este mole coração ateu. O primeiro é aquele da memória de infância, do guri levado pela primeira vez ao estádio pelo pai e que aprende a associar a paixão pelo clube àquela experiência original de afeto e inserção familiar. O segundo é o da utopia de um repertório afetivo comum a ricos e pobres, intelectuais e analfabetos, jovens e velhos. O futebol como um Google Tradutor instantâneo de afinidades esteja você na Ucrânia, na África ou no interior do Ceará, seja você operário ou patrão. Que bonito é.

É possível que o futebol como legado de pais para filhos nunca tenha sido tão importante quanto nos dias de hoje. São escassos os patrimônios simbólicos suficientemente estáveis a ponto de criarem a percepção de que podem sobreviver de uma geração para a outra. Valores morais, convicções políticas ou religiosas e tradições familiares tornaram-se fluidas e cambiantes.

O time de coração, por sua vez, ainda sugere permanência, passagem de bastão, afirmação de identidade. Não é de se espantar que os pais se apressem a pendurar a camiseta do clube na porta do quarto da maternidade. Não haveria muitos outros símbolos para exibir ali com tanta convicção.

A fantasia de que a paixão pelo futebol permanece acima da divisão de classes, por sua vez, anda cada vez mais difícil de ser sustentada no mundo real das arenas padrão Fifa. Em sua palestra no Fronteiras do Pensamento na última segunda-feira, o americano Michael Sandel, professor de ética em Harvard, lembrou o tempo em que a diferença de preços dos ingressos nos estádios de beisebol não passava de US$ 3.

O patrão e o empregado sentavam lado a lado, enfrentavam a mesma fila nos banheiros e comiam o mesmo cachorro-quente gordurento. Nos últimos 30 anos, observa Sandel, lá como aqui, os estádios passaram a reproduzir a lógica do apartheid social de escolas, shoppings, hospitais, parques. Ricos para um lado, pobres (se chegarem lá) para o outro. A falta de espaços de convivência entre pessoas de diferentes origens e perfis, sustenta o filósofo, estaria corroendo um dos fundamentos da democracia: a percepção de que, mesmo que alguns cheguem ao estádio de ônibus e outros de carro importado, todos fazem parte da mesma torcida/nação – e se reconhecem uns aos outros.

É possível que a divisão dos brasileiros em relação a esta histórica Copa do Mundo, embretados entre a paixão nacional e a indignação com tudo o que não dá certo no país, esteja refletindo não apenas a crise de um sistema que favorece a descrença na representação política, mas também, em alguma medida, a nostalgia dos tempos em que o estádio de futebol era o último espaço onde ainda era possível sonhar com um país um pouco menos desigual e cindido.


Que bonito era.

sábado, 24 de maio de 2014


25 de maio de 2014 | N° 17807 MARTHA MEDEIROS

Quanta felicidade eu aguento?

“Te desejo toda a felicidade que puder aguentar”. Foi com essa frase que uma pessoa que gosta de mim encerrou seu e-mail, e fiquei petrificada diante do computador, um pouco pela explosão de gentileza de alguém que nem conheço, e outro tanto pela contundência que me fez pensar: quanta felicidade eu aguento?

Desde que lancei um livro com a palavra “feliz” no título (a coletânea de crônicas Feliz por Nada, de 2011) que respondo até hoje a uma infinidade de entrevistas com esse mote: o que é, afinal, ser feliz?

Bom, quando estou triste, estou feliz. Não sei se isso responde.

Felicidade não tem a ver com oba-oba, riso frouxo, vida ganha. Isso é alegria, que também é ótima, mas que não tem a profundidade de uma felicidade genuína que engloba não só a alegria como a tristeza também. Felicidade é ter consciência de que estar apto para o sentimento é um privilégio, e que quando estou melancólica, nostálgica, introvertida, decepcionada, isso também é uma conexão com o mundo, isso também traz evolução, aprendizado.

Feliz de quem cresce. Mesmo aos trancos.

Infelicidade, ao contrário, é inércia. A pessoa pode passar a vida inteira sem ter sofrido nada de relevante, nenhuma dor aguda, mas atravessa os dias sem entusiasmo, anestesiada pelo lugar comum, paralisada por seu próprio olhar crítico, que julga aos outros sem nenhuma condescendência.

Para ela, todos são fracos, desajustados ou incompetentes, e não sobra afetividade nem para si mesma: se está sozinha ou acompanhada, tanto faz. Se lá fora o sol brilha ou se chove, tanto faz. Se há a expectativa de uma festa ou a iminência de uma indiada, tanto faz.

Essa indiferença em relação ao que os dias oferecem é uma morte que respira, mas ainda assim, uma morte.

Eu reajo, eu me movo, eu procuro, eu arrisco – essa perseguição a algo que nem sei se existe é a uma homenagem que presto à minha biografia. Nada me amortece, tudo me liga, tanto aquilo que dá certo como também o que dá errado. Felicidade é uma palavrinha enjoada, que remete só ao bom, mas dou a ela outro significado: é uma inclinação abrangente e corajosa para a vida, que nunca é só boa.

Já a infelicidade é uma blindagem contra o encantamento, é negar-se a extrair das miudezas o mesmo feitiço que as grandezas proporcionam.

Eu celebro o suco de laranja matinal, o telefonema de uma amiga, a saudade que eu sinto de algumas pessoas, o sol caindo no horizonte, a luz que entra pela janela do quarto ao amanhecer, a música que escuto solitária e que me remete a uma inocência que já tive – e pelo visto ainda tenho. Celebro o já vivido e o que está por vir, as risadas compartilhadas e o choro silencioso, e todas as perguntas que um dia talvez sejam respondidas.


Como esta: quanta felicidade eu aguento? Não sei. Que venha. Recusá-la é que não vou.

quarta-feira, 21 de maio de 2014


21 de maio de 2014 | N° 17803
MARTHA MEDEIROS

Os fora da lei

Que comece logo essa Copa e que termine de uma vez, para que, de volta à rotina, possamos avaliar o que está acontecendo no país de forma mais focada. A Copa não tem culpa de nada, mas sem dúvida despertou uma enorme sensação de injustiça e revolta – perdeu quem contava com o povo pacífico de sempre. Esse despertar é positivo, pois só reivindicando é que teremos as necessidades prioritárias atendidas, mas, para atendê-las, os três poderes precisam assumir suas funções com honradez. O que está ocorrendo é justamente o contrário: um desgoverno crescente. Diante disso, as pessoas passam a agir pela própria cabeça e com seus próprios meios.

A onda de linchamentos ilustra esse desgoverno. Provocada pela excitação do momento e pela sensação de impunidade que a ação em bando provoca, acaba-se cometendo crimes atrozes contra suspeitos que não tiveram julgamento nem chance de defesa. Barbárie pura.

Num grau menos violento, mas igualmente perturbador, são os saques que tomaram conta de Pernambuco nos últimos dias – e cito Pernambuco apenas como exemplo recente. Vendo as cenas de transeuntes saindo de lojas carregando o que podiam, fiquei pensando como tudo é uma questão de semântica. O que difere o saqueador de um ladrão? O fato de não ter havido ameaça antes do roubo? De não ter sido um ato planejado, e sim uma ação provocada por uma oportunidade? O direito de propriedade privada deixa de existir caso o movimento seja feito em grupo e não isolado?

Ainda no Nordeste, já aconteceu de estradas terem sido fechadas por moradores das redondezas a fim de promover um “pedágio solidário”: só liberavam o trânsito se o motorista colaborasse com dinheiro ou com produtos para a cesta básica. Caminhoneiros precisavam ceder parte da carga para poder ir em frente, e assim as comunidades eram abastecidas com leite, cereais, remédios, frutas. Carros particulares podiam dar uma quantia em espécie, a critério do gentil doador. Sem uso de arma, tudo muito educado. Uma contribuição “espontânea”.

Há saqueadores de todo tipo. Os de baixa renda reforçam a despensa na beira da estrada, os de alta renda sonegam impostos, e assim cada um vai fazendo justiça à sua maneira. Essa subversão não é consequência da gestão de um partido específico, e sim de uma cultura política que vem apodrecendo há décadas, somada a uma índole nacional que nunca foi exatamente nobre (sermos alegres, hospitaleiros, musicais e bons de bola nos torna simpáticos, mas simpatia não é um valor que, por si só, salve o caráter).


Se antes o “jeitinho” acontecia por baixo dos panos, agora colocamos a cara na janela, deixando claro que não estamos mais dispostos a obedecer nada e a ninguém. Ou o Brasil passa a ser governado com profunda seriedade, ou esse será, infelizmente, o plano mais bem-sucedido da nossa história: o plano B.

sábado, 17 de maio de 2014

Miro Saldanha - Princípios -


Miro Saldanha - Nem eu sei

18 de maio de 2014 | N° 17800
FABRÍCIO CARPINEJAR

Visite o banheiro

“Visite a cozinha” não é um convite que me atrai em restaurantes.

Visito direto o banheiro. O banheiro que revela se a cozinha é limpa. O capricho do banheiro desvenda a relação do dono com seu lugar.

O banheiro do Dometila, no Moinhos de Vento, por exemplo, é uma teteia. Na aparência, não tem nada demais: simples, bucólico, apresentando todos os artigos indispensáveis como toalhinha de renda, sabonete líquido e papel.

Só que o local não se restringe ao básico. Oferece produtos que não são obrigatórios. Inventa necessidades. Inventa ocasiões. Inventa vontades.

Lá encontrará absorvente, cremes, fio dental. Lá encontrará carregador de celular.

Lá encontrará até chinelos e pantufas. Não é um toalete, e sim um camarim.

Se você aparou mal a barba, pode corrigir no banheiro. Haverá gilete e espuma. Não duvido que mulheres despreparadas, pressentindo o calor de um encontro ao acaso, não tenham se depilado rapidamente no fundo do local.

Se procurar com calma, achará secador e chapinha.

São urgências surreais, que costumam acontecer. A realidade é também irreal.

Caso a unha lascou, localizará uma série de esmaltes à disposição no armarinho. Assim como acetona e algodão.

Quando se gasta com aquilo que não é necessário, todo cliente se enxerga como especial. Quando o negócio se transforma em casa, fazemos questão de levar nossos pratos sujos para o balcão.

Não nos sentimos explorados ou incomodados por colaborar.

Somos garçons, somos amigos, somos cúmplices. Nem reclamaremos do atraso da refeição. Torcemos pelo sucesso do cardápio como quem incentiva um filho.

O banheiro é o chacra do restaurante.

O cheiro, o cuidado, a manutenção denunciam o jeito como seremos tratados.

Entendo a avareza como irmã do Procon. Nada pior do que pisar num tapume molhado de caixas de papelão. É sempre melancólico. É sempre um último tango. É sempre uma despedida da noite.

O banheiro significa o cartão de visita de qualquer estabelecimento. Quando é organizado, transmite acolhimento de hóspede, de pousada, de família.

Influencia no sabor caseiro da comida. Influencia em nossa disposição de permanecer. Influencia em nossa memória olfativa.

Não nos enxergamos pressionados a pedir a conta, a sair, a encerrar a fome.

Parece que o tempo se alarga enquanto o mundo saborosamente se encolhe.

Dometila é o temperamento gentil de seu dono. É o Claiton. Seu carinho é imenso, é de dobrar o quarteirão, de dar a volta na Praça Maurício Cardoso.


Não estranhe se voltar para a casa nas noites de inverno como uma coberta nos ombros.

18 de maio de 2014 | N° 17800
MARTHA MEDEIROS

Fiz um bom negócio

Viva a filosofia popular, que pode ser extraída até mesmo de uma propaganda de tevê. Ainda que seja bizarro ver o Sergio Mallandro, o Supla, a Narcisa Tamborindeguy e o Compadre Washington decapitados em cima de máquinas de lavar, carrinhos de bebê e aparelhos de som, a ideia é boa. Desapega, desapega.

Você tem feito um bom negócio?

A todos os ligeiros, minha admiração e cumprimentos. Sou do time das apegadas – e, portanto, lentas. Costumo esticar a validade de tudo, sempre acreditando que ainda há um jeito, que ainda não se esgotaram as tentativas, e assim vou guardando roupas que não uso mais, ideias para textos que não chegaram a ser escritos e principalmente pessoas com quem já não tenho compatibilidade, apostando na fé celestial de que voltarão a significar o que significaram um dia. Não voltam. Desapega, desapega.

Aqueles sonhos que você tinha de que o casal envelheceria companheiro, de que vocês dois atravessariam madrugadas conversando? Desapega.

Que depois da conversa ainda sobraria algum desejo? Desapega, desapega.

Essa é pra mim: “Sabe nada, inocente”. Tão racional por um lado, tão romântica por outro. Poderia já ter mudado de vida, não fosse tão apegada àqueles com quem construí vínculos, acreditando na potência da intimidade, algo que não se cria em dois ou três meses, é preciso um investimento a longo prazo. Mas o tempo está passando, e é preciso deixar de acreditar em romantismo, o mundo está obcecadamente instantâneo, frenético, inconstante. Desapega.

Tá, desapego. Mas o que me darão em troca?

Leveza, dizem. Ok, é um bom negócio. Fechado.

Leveza é uma conquista da maturidade. Quase não a encontramos entre adolescentes e jovens de 18, 22, 26 anos, todos preocupados em ganhar dinheiro, encasquetados com questões irrespondíveis, tentando controlar aquilo que é alçada do destino apenas. Julgam-se superpoderosos, detentores de uma sabedoria particular, só deles. Levam nas costas sua mochila cheia de planos, defendem com vigor suas escolhas, enquanto que nós, que já fomos como eles um dia, hoje sabemos que não adianta, a vida é metade o que escolhemos e metade o que não escolhemos: a parte que se impôs sem chance de negociação. Tivemos que vivê-la também. Nem tudo se consegue planejar.

Cedo ou tarde eles aprenderão que pouco se pode fazer contra o surgimento das fatalidades, dos imprevistos e das urgências emocionais. Que chegará a hora de depositar as armas no chão, levantar os braços e deixar que a vida os conduza.

É quando finalmente se faz um bom negócio: a gente abre mão do nosso velho e rançoso discurso de sabe-tudo e, em troca, a vida nos devolve a graça e a delicadeza. Para que carregar tanto peso, tanta certeza, tanta ilusão? Desapega, desapega.

segunda-feira, 12 de maio de 2014


07 de maio de 2014 | N° 17789
 MARTHA MEDEIROS

O avião da Malaysia

Toneladas de aço, uma montanha de bagagens, 239 pessoas a bordo e não se encontra nem uma garrafa PET chinesa boiando no mar para indicar onde, afinal, estão os destroços do Boeing 777 da Malaysia Airlines que sumiu dos radares há dois meses – completados amanhã. Um sofrimento atroz para os parentes de todos os desaparecidos. Ninguém consegue compreender o que aconteceu, não há como adivinhar. É tudo especulação (e há várias: conspirações envolvendo talibãs, piloto abduzido pelo demônio, sequestro por extraterrestres etc).

Um acontecimento desestabilizador como este ao menos serve para baixar nosso topete e nos fazer lembrar que, mesmo num mundo com extraordinário alcance tecnológico, onde todos sabem de tudo e ninguém mais consegue se esconder, ainda há espaço para o mistério.

Mantenho uma atitude respeitosa diante dessa ausência total de pistas, desse aturdimento, desse suspense que desafia o cérebro. Quando um avião, que é um negócio gigantesco, sólido e monitorado, de repente some como num passe de mágica, somos obrigados a nos reposicionar diante da vida, a nos colocar em nossos devidos lugares. A raça humana desce do pedestal e se reencontra com sua humildade. Simplesmente, há coisas que nunca ficam esclarecidas.

Ainda bem que são poucas, ainda bem que nem sempre. Não conseguiríamos ir adiante se só colecionássemos perguntas sem respostas. Necessitamos de teorias, fórmulas, confirmações. Elas finalizam as dúvidas, encerram as questões para que a vida possa ser regenerada, recomeçada, para que novas perguntas possam ser feitas, para que superemos o já feito e planejemos outros passos. É assim o processo.

Precisamos que acabe. Tudo. Sem a consciência e o exercício da finitude, não há como valorizar o caminho percorrido. Escrevemos, projetamos, construímos, pesquisamos, e esse longo trabalho só se justifica quando alcançamos algum desfecho. Ele pode até demorar, mas, sem ele, cai-se no vazio, parece que todo o esforço foi em vão.

O avião da Malaysia desviou do seu plano de voo e não concluiu a viagem, desafiou a lógica: decolou naquele 8 de março que chamamos de “antes”, mas não chegou ao depois. Tudo indica que se manterá eternamente no durante, que é um espaço de tempo invisível, sem registro.

Quando compreendemos algo, quando destrinchamos uma situação, quando estamos a par do que aconteceu, dormimos mais tranquilos e seguros, protegidos pela racionalidade. Entender nos aterrissa. O não entender, ao contrário, é livre, rebelde e nos conduz ao infinito. Todas as possibilidades são consideradas, nenhuma possibilidade também. Não há fim. Não há morte. Não há ponto final.

Apenas a transgressora, poderosa (e enlouquecedora) reticência que fica inexplicada para sempre.

Para os leitores deste blogger, eu estava devendo estas duas crônicas da Martha - uma ótima semana

04 de maio de 2014 | N° 17786
MARTHA MEDEIROS

Os efeitos colaterais de viver

Basta nascer e o resto é sopa.

Será? Nos primeiros anos, estar vivo parece resumir-se ao ato de inspirar e expirar, mas justamente na infância é que são criados os traumas que formatarão nosso caráter. Seu pai lhe transmitiu alguns preconceitos quando você era um frangote, sua mãe era uma figura dúbia, seu avô lhe cobrou demais, sua avó fazia umas tortas azedas, seu cachorro fugiu quatro vezes, seus amigos debochavam das suas espinhas, você era o goleiro do time, e ainda por cima frangueiro. Como esquecer? Bem-vindo aos “Efeitos Colaterais de Viver”. Se virar minissérie, quero meus royalties.

Viver é ter uma relação mais ou menos bem resolvida com seus pais. Sem culpa, pois eles também tiveram uma relação mais ou menos com os pais deles, e esses com os seus bisavós: é da natureza humana ter conflitos com quem nos gerou. Amor e ódio, aceitação e repulsa, concordâncias e discordâncias, é assim mesmo. Quando ficarmos velhinhos, amaremos a todos incondicionalmente. É das poucas coisas para a qual serve a longevidade: a gente esquece as dores e perdoa tudo - dizem.

Viver é sofrer por amor. Se você nunca sofreu, volte para o útero e comece tudo de novo, desta vez torcendo para que seja um feto normal, ou seja, que irá sofrer por amor um dia. Você achou que amaria para sempre quantas vezes? Eu sei, é uma decepção quando o “para sempre” termina. Você vai sofrer quando tiver que romper com alguém, sofrer quando alguém romper com você, sofrer quando estiver casado e desejar aventuras, sofrer quando não estiver casado e desejar estabilidade emocional, sofrer quando for rejeitado, sofrer quando magoar quem não merece, sofrer quando duvidar de suas escolhas. Amar tem mil e uma contraindicações, mas resigne-se, ninguém consegue abrir mão de passar por esses deliciosos infortúnios.

Você ficará sem dinheiro em alguma época da vida. Você será rejeitado. Você pagará mico tentando convencer os outros de que é alguém especial. Você será despedido um dia. Você será competente, mas sempre haverá alguém mais competente que você. Você será ótimo, mas nunca será insubstituível.

Você terá insônia. Você terá que engolir alguns desaforos em nome da civilidade. E se não engolir e partir para a agressão, criará fama de perturbado. Você vai beber demais. Ou fumar demais. Ou não cultivará nenhum vício. O que quer que faça, não faltará quem lhe condene.

Viver é ouvir que você está muito gordo, ou muito magro, ou ter salientada qualquer outra imperfeição: ninguém dirá que você está no ponto. Viver é não conseguir acompanhar tudo o que está acontecendo no mundo, porque acontecem coisas demais. É ser alérgico a grosseria, rudeza, burrice, e não conseguir se imunizar. Viver será saudável uns 80%, se você tiver sorte.


Viver é estar a par dos efeitos colaterais. Como? Lendo a bula. Livros são bulas. Quem não lê, não reconhece os sintomas da nossa humanidade.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

PASQUALE CIPRO NETO

Somos uns boçais

Lamentavelmente, a arte quase sempre tem razão quando escancara a sórdida realidade

Sou professor desde 1975. Desde sempre, a base das minhas aulas reside em textos dos mais diferentes matizes, da literatura clássica à moderna, da publicidade à nossa riquíssima música popular, do jornalismo aos fatos dos nossos dialetos etc.

Ninguém consegue compreender um texto sem o domínio da variedade linguística em que ele foi escrito, mas esse domínio não é suficiente. Sem compreender os diálogos que o texto que se lê estabelece com outros textos, com a história, com o presente, com o mundo em que se está e com outros mundos, nada de nada de compreender o que se lê.

Pois bem. Os brasileiros estamos, dia após dia, em contato com sucessivos fatos que expõem a nossa tragédia, a nossa miséria, o nosso atraso, a face crua da nossa barbárie, o nosso horror cotidiano, inexorável, boçal. Como dizia Caetano Veloso na canção "Podres Poderes", de 1984, "Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos / E perdem os verdes / Somos uns boçais".

Gente que leva tudo ao pé da letra talvez não consiga entender a relação "avançam os sinais vermelhos/perdem os verdes", chave para a compreensão do excerto, finalizado com a triste e lamentavelmente verdadeira sentença: "Somos uns boçais". Note que o verbo não está na terceira do plural ("São"), mas na primeira ("somos"). Poderia soar arrogante e presunçoso excluir-se do bolo, da massa, da massa bruta, da bruta massa de que fazemos parte neste triste Brasil.

O Brasilzão de 2014 ainda avança os sinais vermelhos e perde os verdes, se é que chega a enxergá-los.

Num álbum posterior (o primoroso "Circulado", de 1991), o mesmo Caetano incluiu a também ainda atual canção "O Cu do Mundo", em cuja letra se encontram estes versos: "O furto, o estupro, o rápido pútrido / O fétido sequestro / O adjetivo esdrúxulo em U / Onde o cujo faz a curva / (O cu do mundo, esse nosso sítio) / O crime estúpido/ o criminoso só / Substantivo, comum / O fruto espúrio reluz / À subsombra desumana dos linchadores / A mais triste nação / Na época mais podre / Compõe-se de possíveis / Grupos de linchadores". Certamente Caetano não tirou do nada esses versos. Duas décadas depois, nada mudou, nada muda neste país.

Fico me perguntando o que poderia ter mudado se, nesses anos todos, os professores tivéssemos trabalhado textos como esses (não só nas aulas de português, mas também nas de história, geografia, filosofia etc.).

Será que a sala de aula ainda tem (se é que já teve) o poder de fazer a garotada mergulhar na reflexão sobre a nossa dura realidade? Será que o nosso sistema educacional e os nossos professores têm mesmo condições de promover a tão propalada "revolução pela educação" e, consequentemente, de pôr para aprender a pensar a nossa garotada toda?

E será que a nossa sociedade, violenta até mais não poder, tem condições de estabelecer a paz? Quando digo "violenta até mais não poder", não me refiro aos criminosos "verdadeiros"; refiro-me ao cidadão brasileiro médio, aquele que trafega no acostamento das rodovias, que ultrapassa na entrada da cabine de pedágio, que não respeita a faixa de pedestres, que impõe a toda a vizinhança, em altíssimo volume, o som de bate-estaca etc., etc., etc. Isso tudo não é característica de uma sociedade violentíssima e boçal, caro leitor?

Lamentavelmente, a arte quase sempre tem razão quando escancara a realidade. Os velhos versos de Caetano são apenas uma pequena amostra do que se pode aprender, apreender, compreender e depreender da leitura e da audição do que não é lixo. Aliás, chega de lixo! É isso.


inculta@uol.com.br
CONTARDO CALLIGARIS

Amor à venda

Por que recusamos a ideia de que existem fantasias sexuais que envolvem a troca de dinheiro?

"Amante a Domicílio", de John Turturro, é um filme, como se diz, "delicioso". Nos Estados Unidos, uma série de artigos celebraram a "descoberta" de que existiria um "lado bom" da prostituição.

Em várias entrevistas, Turturro (que escreve, dirige e atua junto com Woody Allen, Sharon Stone, Vanessa Paradis e Sofia Vergara, todos notáveis) levou a conversa por esse lado: "Há coisas positivas no que fazem os trabalhadores do sexo". Por exemplo, Avigal, oprimida e entristecida pela viuvez e por sua própria tradição religiosa, redescobre a "magia" do amor graças a Fioravante, o gigolô. E é transando com ele que a dra. Parker se permite enfim mandar o retrato do marido à merda.

A consagração dessa visão do filme veio com um artigo de Karley Sciortino no "Guardian". Karley Sciortino escreve sobre sexo para "Vice" e para "Vogue", além de manter um (ótimo) blog, "Slutever" (sempreputa). Sciortino recorreu a Camille Paglia para lembrar que "moralismo e ignorância" são responsáveis por nossos estereótipos sinistros da prostituição e confirmar que Turturro nos mostrou o que há de positivo nela.

No Brasil, estranha-se menos que a prostituição possa ter algum lado "bom", mesmo que seja pela ideia machista e idiota de que ela serviria para a iniciação dos garotos (que, aliás, não precisam mais disso há tempos).

Mas, nos EUA, a coisa é diferente: com a exceção de Nevada, prostituir-se e contratar os serviços de uma ou de um prostituto são condutas punidas por prisão e multa. Isso, sem falar no que acontece com quem "promove a prostituição" (o que vai desde ser cafetão até alugar um apê a quem exerça a profissão). Enfim, em 2007, Eliot Spitzer se tornou governador do Estado de Nova York por ter sido um promotor severo contra as prostitutas e, em 2008, ele perdeu o governo por ter se relacionado, justamente, com prostitutas.

De fato, imaginar que a prostituição seja proibida em Nova York é uma piada. Mas a legislação reflete pensamentos comuns. Numa pesquisa-brincadeira de 2008, em Chicago, 200 clientes aceitaram falar de por que frequentavam prostitutas: 83% declararam que eles eram viciados e 40% afirmaram que só procuravam prostitutas quando estavam bêbados. A maioria acreditava que as prostitutas exercem sua profissão porque foram abusadas na infância. Em suma, clientes e prostitutas (ou prostitutos), todos doentes!

Não vale acusar o proverbial puritanismo dos EUA. Na própria França, ainda este ano, tem chances de ser aprovada uma lei que ("para acabar com a prostituição" --hello?) vai criminalizar o cliente.

Enfim, constata-se que existe um tabu sobre o sexo pago.

Uma hipótese, para explicá-lo, é o seguinte círculo vicioso: 1) recusamos a ideia de que exista uma fantasia sexual que envolve a troca de dinheiro, 2) concluímos que, portanto, a prostituição só acontece por necessidade absoluta de quem se prostitui, 3) queremos abolir a prostituição (de fato ou mentalmente) porque não queremos que existam diferenças econômicas que possam induzir alguém a vender sua intimidade.

O problema é o pressuposto: por que recusaríamos a ideia de que existam fantasias sexuais que envolvem a troca de dinheiro? Talvez por elas serem quase sempre fantasias de dominação, e muitos que gozam sonhando com a distribuição do poder preferem não saber exatamente do que eles estão gozando.

Em outras palavras, o dinheiro organiza fantasias eróticas, mas ele é presente demais na nossa vida social (inclusive nas relações de casal, entre parentes, amigos etc.) para que a gente se permita reconhecer esse efeito de sua circulação.

Nota: não é necessariamente quem paga que gosta de dominar. Certo, há os que curtem comprar amantes ou mulheres ou maridos. Mas também há os que pedem para ser explorados e, nas salas de bate-papo, se apresentam assim: acabe com a minha vida!, quero ser chantageado!

Achamos "Amante a Domicílio" "delicioso" porque ele confirma nossa crença (esperança?) de que a troca de dinheiro nas relações seja indiferente (no filme, apaixonamentos, renúncias, generosidades e pequenezas, tudo acontece como se ninguém estivesse pagando ninguém).

Será, então, que Turturro nos propõe uma ilusão? Talvez. Mas é a mesma ilusão na qual vivemos: nas nossas relações de cada dia, sempre tentamos esquecer o "erotismo" silencioso das trocas financeiras.

ccalligari@uol.com.br

quarta-feira, 30 de abril de 2014



30 de abril de 2014 | N° 17779 
MARTHA MEDEIROS

O coletivo em chamas

Quando bem criança, eu ia de ônibus com minha mãe para o centro da cidade. Era uma aventura.

No colégio, voltava para casa de ônibus todas as manhãs. Aliás, na primeira excursão do colégio, fui com as colegas conhecer o Rio de Janeiro e lá nossa pequena “máfia” (Ana, Alice, Suzana, Anelise...) ia de Botafogo para Copacabana também de ônibus, escondidas das freiras – o máximo de rebeldia da nossa adolescência.

Meu primeiro namorado não tinha carro, ainda que tivesse habilitação: quando a saída não era a pé, era de ônibus. Íamos a um boteco, a um show, a um parque – de ônibus.

E muito viajei de ônibus para Torres, Florianópolis, Canela, Santana do Livramento, Montevidéu. Já fui até Salvador de ônibus, ida e volta. Eu não era pobre: era jovem.

Depois, surgiu o lotação, e com ele a promessa de maior conforto e agilidade: aderi. E hoje não uso mais uma coisa nem outra, me desloco de automóvel e táxi, mas nunca perdi o respeito pelo principal transporte público não só do Brasil, mas de todos os países, inclusive daqueles que possuem metrô há mais de cem anos, caso da Inglaterra e da Argentina.

Se a roda é o símbolo-mor da evolução da humanidade, o ônibus é sua representação mais significativa. Ele leva trabalhadores aos seus empregos, estudantes às suas escolas, torcedores aos estádios, possibilita que as pessoas se visitem em bairros e cidades distantes, faz a economia girar, põe a vida em movimento.

Todo mundo, absolutamente todo mundo precisa de um, ou precisa de alguém que utiliza um.

O mesmo “todo mundo” que come pão e toma leite diariamente, só que ninguém faz passeata contra o aumento do pão e do leite. No entanto, quando há aumento da tarifa de ônibus, para-se uma cidade. Revoltados, os manifestantes enfrentam policiais, quebram agências bancárias e incendeiam... ônibus? Logo os ônibus?

Qualquer vandalismo é um tiro no pé, já que a cidade é de todos, mas queimar ônibus desafia meu racionalismo, me deixa perplexa, principalmente pela frequência com que tem acontecido. Virou uma banalidade, já nem é mais um ato político. Dos motivos mais bobos, como no caso de o seu time ter perdido um jogo, até algo mais trágico e emocional, como um tio atropelado na estrada, parece que a única forma de protestar é riscar um fósforo e pronto, temos uma fogueira e um revide. Só que não se está falando de um artefato de papel.

Um ônibus é um bem enorme, pesado, robusto – e extremamente necessário na manhã seguinte. Um ônibus. Dois. Sete. Agora imagine 34 ônibus queimados de uma só vez, como aconteceu recentemente em Osasco, na grande São Paulo. Calcule o prejuízo não só para a empresa proprietária dos veículos, mas para a sociedade.

Não chegamos até aqui para voltar à pré-história.

domingo, 27 de abril de 2014

Ferreira Gullar

Arte de enganar pobres

É muito fácil assumir o governo e passar a dar comida, casa e dinheiro a milhões de pessoas

A esse populismo, que surgiu na América Latina há alguns anos, entendi de chamá-lo de neopopulismo para distingui-lo do outro, de décadas atrás, originário da direita, como o de Perón, na Argentina, e o de Getúlio Vargas, no Brasil; o atual, que Hugo Chávez intitulou de socialismo bolivariano, como o nome está dizendo, quer ser socialismo, isto é, de esquerda.

De fato, não é nem socialismo nem de esquerda, mas sim uma contrafação do projeto revolucionário que, em nosso continente, após o fim da União Soviética, ficou num beco sem saída: não podia insistir na pregação de uma ideologia que fracassara nem converter-se ao capitalismo, contra o qual pregava.

Por algum tempo, o PT ainda teimou em sua pregação esquerdista, mas, em face das sucessivas derrotas de Lula como candidato à Presidência da República, teve que mudar o discurso e, ao chegar ao governo, seguir as determinações do regime capitalista. Mas teve a esperteza de usar o poder para ampliar ao máximo o assistencialismo, em suas diversas formas, desde o Bolsa Família até medidas econômicas para ampliar o consumo por parte das camadas mais pobres.

A preocupação, portanto, não era, e não é, governar visando o bem-estar da nação como um todo, mas, sim, usar a máquina do Estado para crescer politicamente. O neopopulismo é isso: distribuir benesses às camadas mais pobres da população para ganhar-lhe os votos e manter-se indefinidamente no poder.

Não resta dúvida de que reduzir a miséria, melhorar as condições de vida dos mais necessitados, está correto. O que está errado é valer-se politicamente de suas carências para apoderar-se do governo, da máquina oficial, dos recursos públicos e usá-los em benefício próprio, sem se importar com as consequências que decorreriam disso.

É nas consequências que está a questão. A desigualdade social é inaceitável, e o objetivo de um governo efetivamente democrático é enfrentar esse problema e fazer o possível para resolvê-lo; como não é fácil resolvê-lo, deve, pelo menos, tomar as medidas certas nessa direção. Mas é mais fácil fingir que o resolve.

Foi Marx quem disse que só se muda o que se conhece. Noutras palavras, para resolver um problema como o da desigualdade social, há que conhecer-lhe as causas e as dificuldades para superá-las. É uma ilusão pensar que ele só existe porque os governantes nunca quiseram resolvê-lo. Isso, em muitos casos, será verdade, mas não basta querer. Pior ainda é fingir que o está resolvendo, lançando mão do assistencialismo demagógico próprio do populismo.

É fácil assumir o governo e passar a dar comida, casa e dinheiro a milhões de pessoas; dinheiro esse que devia ir para a educação, para o saneamento, para resolver os problemas da infraestrutura, ou seja, para dar melhores condições profissionais ao trabalhador e possibilitar o crescimento econômico. Esse é o caminho certo, que nenhum governante desconhece e, se não o segue, é porque não quer. O resultado é que não se formam profissionais e torna-se inviável o produto exportável, fonte de recursos para o crescimento econômico.

As consequências inevitáveis desse procedimento são, por um lado, induzir milhões de pessoas a não trabalharem e, por outro, inibir o crescimento econômico, enquanto aumentam os gastos públicos.

O neopopulismo, fingindo opor-se à desigualdade social, na verdade induz os beneficiados pelo Bolsa Família a só aceitarem emprego se o patrão não assinar a carteira de trabalho, o que constituiu uma conquista do trabalhador brasileiro. E foi o governo do Partido dos Trabalhadores que os levou a esse retrocesso. Pode? Não por acaso, o Brasil é hoje um dos países onde se pagam mais impostos no mundo, enquanto o número dos que vivem do dinheiro público aumenta todos os dias. Fazer filhos tornou-se fonte de renda.

Assim é o populismo de hoje, que veio para supostamente reduzir a pobreza, quando se sabe que uma família, por receber mensalmente menos da metade de um salário mínimo, não deixa de ser pobre. Claro, não passa fome, mas jamais sairá do nível de carência, a que se conformou, subornada pelo assistencialismo governamental. Esse é o verdadeiro mensalão, que compra o voto de milhões de eleitores com o nosso dinheiro.


quarta-feira, 23 de abril de 2014


23 de abril de 2014 | N° 17772
MARTHA MEDEIROS

A loucura mora ao lado

Por muitos anos, minha mãe morou num prédio que ficava ao lado de uma clínica dermatológica. O médico responsável morava com a família no andar de cima da clínica. Uma tranquilidade: no caso de um imprevisto, era só bater na porta desse vizinho providencial e o atendimento seria imediato e eficaz. Minha mãe nunca precisou, mas certa vez levou lá minha filha, ainda pequena, durante uma ocasião em que eu estava viajando. E o atendimento foi realmente imediato e eficaz. Um luxo.

Passado um tempo, a esposa e o filhinho do médico evaporaram. A clientela diminuiu. Até que a clínica fechou de vez. O médico passou a ser visto raramente. Barba por fazer, roupas desleixadas. Minha mãe e eu chegamos a comentar sobre a esquisitice da situação, mas não imaginamos que fosse algo grave, até que um dia nos deparamos com a foto dele estampada na página policial do jornal, sendo acusado do assassinato da mulher e do filho. Durante algumas semanas, muitas reportagens foram feitas, mas os corpos nunca foram encontrados e o aparente crime ficou sem solução. A casa foi vendida, o cara sumiu, o mistério venceu.

Lembrei desse episódio quando soube da tragédia de Três Passos. Todo crime é chocante, mas ficamos ainda mais chocados quando os prováveis assassinos são os chamados cidadãos acima de qualquer suspeita – como se dinheiro, beleza e classe social imunizassem contra a violência e a patologia. Não imunizam nem evitam nada, apenas nos colocam todos na mesma calçada. Talvez estejamos cumprimentando todo dia alguém que mataria uma criança, confiantes de que a vizinhança é gentil e que é uma sorte não vivermos entre marginais.

De forma objetiva, Bernardo foi vítima da ganância da madrasta e da amiga desta, mas necessitamos de uma explicação mais profunda e para isso recorremos ao nosso vasto cardápio de acusações. Há quem responsabilize o ateísmo, a televisão, os games, os filmes de ação, a liberalidade dos costumes, a decadência do império, a revolução feminista, a corrupção, os distúrbios psíquicos, o consumismo, a internet, o narcotráfico, o individualismo etc., etc., etc., até compor uma lista apocalíptica de fatores que justifique o saudosismo: “A vida já foi mais valorizada”.


Foi mesmo? Conforta pensar que somos vítimas de uma era, mas o fato é que a vida sempre foi trágica. Nosso susto é apenas proporcional à proximidade com que a tragédia se manifesta. Lá nos cafundós do judas, onde crianças também morrem pelas mãos de parentes, tudo parece mais fácil de deglutir: elas não se parecem com nossos filhos e nós não parecemos com seus pais. Mas, quando acontece na casa ao lado, aí a gente se embaralha e só nos resta entregar os pontos e reconhecer que não há explicação que console. Simplesmente o mundo é e sempre foi um hospício.

sábado, 19 de abril de 2014


20 de abril de 2014 | N° 17769
MARTHA MEDEIROS

Casa comigo

Os dois namorados estavam dentro do carro, à noite, estacionados em frente ao prédio da excelentíssima, discutindo a relação. Discutindo mesmo, aos berros, brigando. Em meio a algum pra mim chega!, surgiram dois meliantes armados e interromperam aquele bate-boca. Transferiram os namorados para o banco de trás e saíram em disparada com eles: sequestro relâmpago. Rodaram a cidade durante 50 minutos, fizeram saques em caixas eletrônicos, até que os levaram para um lugar ermo, no meio do mato.

Duas coronhadas, uma em cada um, rostos sangrando, mas era pouco: despiram os dois, deixando-os apenas com a roupa de baixo, e os amarraram em troncos de árvores. Não houve agressão sexual, mas não se pode dizer que foi um passeio no bosque. Em plena madrugada, abandonaram o casal imobilizado e seguiram com o carro do rapaz rumo à impunidade garantida.

Restou o silêncio. Assustados, os dois tentaram, tentaram de novo, e conseguiram, finalmente, se desamarrar. Livres, sozinhos, sem saber onde estavam, olharam um para o outro e tiveram um ataque de riso. Ele a abraçou fortemente e só conseguiu dizer duas palavras: “Casa comigo”.

Aconteceu mesmo. Quem me contou, olho no olho, foi a protagonista feminina da história. Eu não conseguiria imaginar pedido de casamento mais romântico. Sem vinho, sem luz de velas e sem anel de brilhantes – um pedido movido simplesmente pela emergência da vida, pela busca de uma felicidade genuína, pela supressão da razão em detrimento da emoção verdadeira.

Estavam para morrer, os dois. Foram unidos pelo mesmo pensamento desde que foram surpreendidos por dois estranhos armados: acabou. Não tem mais por que discutir a relação. Não tem mais relação. Não tem mais manhã seguinte. Não tem mais futuro. Acabou. Que perda de tempo. Para que brigar? Para que se estressar com ciúmes, com queixas, com mágoas? Acabou.

E então descobrem que não acabou. Desamarram-se, estão nus por fora e por dentro, despidos de qualquer racionalidade, apenas aliviados com o desfecho da aventura e absolutamente tomados pela potência do que é essencial na vida. O amor.

Casa comigo.

Estão casados há 10 anos. Não sei se plenamente felizes. É provável que os motivos dos ciúmes e das queixas e de tudo aquilo que explodiu naquela discussão dentro do carro antes do sequestro tenha se repetido outras vezes. A realidade impõe os seus caprichos. Obriga a gente a pensar e manter a sanidade. Maldita sanidade.

Mas houve um momento em que eles não pensaram. Só sentiram. Sentiram tudo. Sentiram sem amarras. Sentiram soltos. Sentiram livres. Pura emoção. E a emoção se impôs: casa comigo. Tiveram os piores padrinhos do mundo: a violência e o medo. Mas que beijo deve ter sido dado ali no meio do nada.



19 de abril de 2014 | N° 17768
NÍLSON SOUZA

Gabo vive

No dia em que começaram a matá-lo, García Márquez deixou o hospital às 13h45min de uma tarde ensolarada na Cidade do México e foi conduzido de ambulância para sua casa no bairro colonial de San Ángel para receber cuidados paliativos e o carinho de seus familiares. Ninguém sabe se ele sonhou que atravessava uma mata de figueiras-bravas, onde caía uma chuva miúda e branca, como seu personagem Santiago Nasar.

Tampouco se sabe se foi feliz no seu último sono longe de casa. O que se sabe, pelo noticiário, é que estava com câncer terminal e que os médicos decidiram não sacrificá-lo com um tratamento doloroso, considerando o avançado estado da doença e sua idade. O autor de Cem Anos de Solidão estava com 87 anos.

Dizem seus acompanhantes que ele enfrentou a última internação com bom humor, embora incomodado com a presença implacável de jornalistas na frente do hospital. Foram eles, os homens da mídia, que começaram a matá-lo antes da hora, cumprindo os desígnios de uma atividade que o próprio escritor classificou um dia de “melhor profissão do mundo”. Jornalista de origem, o genial romancista colombiano concluiu assim o seu célebre texto sobre a missão de informar: “Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la.

Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte”.

Pois agora ele é a notícia, como, aliás, sempre foi desde que começou a se destacar na literatura. Morreu na última quinta-feira, em casa. Não chega a ser um desses imprevistos da vida. É, antes, o previsto, o certo, o inevitável. Uma pena que tenha chegado a hora desse ser humano tão criativo, que encantou milhões de leitores com seus livros envolventes e sua realidade fantástica. Mas, como ele mesmo ensinou em sua autobiografia, a vida não é o que a gente viveu, mas sim o que a gente recorda, e como a gente recorda para contá-la.


Esse homem realmente viveu para contar. E contou com maestria, paixão e empatia com os leitores. Mereceu, portanto, que sua morte anunciada chegasse suave, sem demasiado sofrimento e na companhia de seus afetos. De minha parte, na condição de leitor, admirador e seguidor da profissão que ele enalteceu, só posso dizer que acabei de pichar simbolicamente uma frase no meu coração: “Gabo vive!”.
RUTH DE AQUINO
11/04/2014 20h38

Quem paga o pato é você

Lula fala como se não fosse em nada responsável por tudo o que está aí. E a maioria ainda acredita nele

O maior líder da oposição atualmente, que cobra mais medidas concretas da presidente Dilma Rousseff, que mais reclama do estado preocupante da economia brasileira, que ganha mais manchetes, que mais mexe com o mercado quando abre o verbo, e que mais tem condições de ganhar a eleição, todo mundo sabe, é Lula, o criador da criatura.

Lula sempre soube que não entende nada de economia. Mas entende de povo. Sabe que os brasileiros estão pessimistas e irritados com a inflação sentida no mercado e na feira. O tal “teto da meta” já foi estourado há muito tempo no dia a dia, e isso é fatal para uma líder sem carisma. As greves começarão a pipocar, para o povo recuperar o poder aquisitivo. Lula não gosta nadinha do que vê. Você pode chamá-lo do que quiser, menos de bobo.

Em sua entrevista a blogueiros, com repercussão na imprensa que ele ataca, Lula foi direto na jugular da companheira. “Poderíamos estar melhor, e a Dilma terá de dizer isso na campanha claramente: como a gente vai melhorar a economia brasileira.” Lula fala como se não fosse em nada responsável por tudo o que está aí. E a grande maioria dos eleitores acredita nele.

Se será ou não candidato, é outro papo. Lula interveio agora na Presidência de maneira mais bruta que o Comitê Olímpico Internacional interveio na Olimpíada do Rio. É o mesmo raciocínio. Quando um projeto corre o risco de desandar, entra no ringue o mais forte para evitar danos futuros. O projeto Dilma soçobra como os Jogos no Rio. Falta credibilidade a ambos.

Lula não quer ninguém atrapalhando o PT. Nem a pupila Dilma, nem o ex-vice-presidente da Câmara, André Vargas, hoje um náufrago abandonado à própria sorte. “No final”, disse Lula, “quem paga o pato (da amizade de Vargas com o doleiro preso Alberto Youssef) é o PT.”
Quem paga hoje o pato não é o PT, mas o cidadão brasileiro. Paga o pato, a galinha, os ovos, o tomate. Paga mais do que dizem os índices oficiais de inflação. Paga o pato do despreparo e do oba-oba da equipe econômica, que deitou no sofá do Planalto em tempos fáceis e agora não consegue nem maquiar a economia real. Adiam-se aumentos nas contas de luz e de gasolina, e ninguém acredita mais em meta nenhuma.

Na corrida contra o tempo e contra o descrédito, até a eleição, Dilma tropeça em si mesma, se encolhe, não pode aparecer em público porque será vaiada, torce para a Seleção ganhar a Copa e tem de engolir as broncas públicas de Lula. “Minha candidata é a Dilma”, repete Lula. Mas ele só alimenta o que chama de “boataria”, quando se diz insatisfeito com os rumos da economia no Brasil.

“O problema maior foi deixar a inflação bater no topo da meta”, diz o economista Edmar Bacha, um dos pais do Plano Real e ex-presidente do BNDES e do IBGE. “Estavam brincando com fogo e estão colhendo o que semearam.” Está claro, segundo Bacha, que a taxa de inflação real é maior que os 6,15% anuais. “Essa taxa, parcialmente oculta pelo controle dos preços administrados, contamina muito a própria ordem social.” Bacha não se assusta com as greves nem crê na argentinização do Brasil. “Não é o fim do mundo. Quem está parando é gente com poder de barganha, operários envolvidos em obras estratégicas.”

No Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro, funcionários em greve das obras de expansão do metrô irromperam com paus e pedras na esquina de minha rua. Estavam furiosos com os colegas que furavam a paralisação e insistiam em trabalhar. Os grevistas exigem pagamento de 100% sobre as horas extras, aumento da cesta básica de R$ 230 para R$ 300, retroativo a fevereiro, e 10% de aumento nos salários.

É só conversar com qualquer um na rua, taxista, segurança, lojista, feirante, dona de casa, que você ouvirá o que as pesquisas detectam: insatisfação, medo e desconfiança. O Rio teve a inflação mais alta do país, 7,87% em 12 meses. A alta em alimentos e serviços é muito maior, tanto que a moeda na cidade passou a ser apelidada de “surreal”. Como a maioria não acredita em “legado social da Copa”, tornou-se visível uma torcida cada vez mais militante contra o desempenho da Seleção.

Os grevistas da linha 4 do metrô carioca reivindicam só 10% de aumento porque não leem jornal nem revista. Se fossem bem informados, saberiam que o governo federal aumentou as despesas totais em 15%, só no primeiro bimestre de 2014. A conta de pessoal e encargos sociais cresceu 13,5% em janeiro e fevereiro.


Péssimo exemplo! Com as finanças públicas sem controle no Brasil de Lula e Dilma, quem paga o pato não é o PT, é você. Até rimou.