sábado, 27 de setembro de 2014


28 de setembro de 2014 | N° 17936
MARTHA MEDEIROS

Diga-me o que vestes

Lembro-me de uma matéria interessante que li anos atrás na revista Elle: convidaram uma estudante e uma executiva para passar 24 horas com a roupa uma da outra. Explico: a estudante, que costumava se vestir de uma maneira sexy e irreverente, teve de se vestir com o que encontrou no closet da executiva, e esta, por sua vez, teve de abandonar seu estilo sóbrio e conservador para escolher peças no closet da estudante. Resultado: viraram outra mulher por um dia.

A estudante, que adorava decote, barriga de fora e sandália de salto alto, colocou pela primeira vez um terno escuro com camisa para dentro da calça e sapato fechado. A executiva, habituada aos tailleurs bem-comportados, encarou uma saia acima do joelho, top de alcinhas, sandália gladiadora e gargantilha com crucifixo. Conclusão delas: não dá para mudar nosso jeito de ser simplesmente trocando de roupa.

Em termos, em termos. As próprias protagonistas da reportagem adotaram uma postura completamente diferente na hora de se deixar fotografar e, mesmo que tenham sido orientadas pela produtora de moda, a verdade é que a roupa conduz nossa atitude, sim.

A estudante, uma clone de Miley Cyrus sempre de mãos na cintura e ar provocante, cruzou os braços docemente quando colocou o terno. A executiva, que costumava ficar encolhida em seu trajes pastéis, jogou os cabelos para trás e encarou as lentes com um olhar sedutor, digno de quem se veste para matar. Lógico que a roupa pode despertar novas facetas de nossa personalidade.

Dormir com um pijamão apeluciado e dormir com uma lingerie de renda vermelha: tanto faz? Você de legging e tênis pela manhã, de jeans e jaqueta de couro à tarde, e à noite com um vestido justo decotado nas costas. Sim, é a mesma mulher, mas são três estados de espírito diferentes.

A roupa, subliminarmente, autoriza um determinado tipo de comportamento. Os homens se sentem mais confiantes quando estão de gravata, até seu jeito de caminhar se transforma. Já as mulheres sentem-se mais joviais quando estão de camiseta e mais sensuais quando estão de preto. Coloque um longo Versace numa freira e ela subitamente esquecerá da oração da Ave-Maria, empacará em “o Senhor é convosco” e, dali em diante se pegará, cantarolando algo da Beyoncé.


Cada pessoa deve vestir-se de acordo com o que é, e não com o que que gostaria de aparentar, mas não é pecado experimentar um personagem fora do habitual: desejar ser menos tímida, ou mais séria, ou um pouco excêntrica. É uma transformação que deve vir de dentro, mas o visual ajuda. Um botão a mais aberto na camisa pode operar milagres numa alma introvertida.

28 de setembro de 2014 | N° 17936
ANTONIO PRATA

O agudo e a crônica

Quando eu comecei a escrever crônicas, quinze anos atrás, prometi a mim mesmo que iria revolver somente a terra do meu canteiro, resistindo à tentação de arrastar o meu modesto arado por latifúndios pedregosos como a política, a economia, a crise no Oriente Médio. (Como diz o mestre Humberto Werneck, crônica é conversa sentado no meio-fio, não discurso sobre um caixotinho). Todo domingo, porém, questiono minha promessa: o mundo é vil, o país é injusto, há muitas causas importantes sem voz e muitos calhordas com megafones – devo seguir falando da minha infância, de um amigo que reencontrei, dos primeiros passos da minha filha?

Às vezes, em bate-papos com leitores, me perguntam por que eu raramente escrevo sobre o assunto da semana. Digo que a chance de eu ter alguma coisa relevante a dizer sobre o assunto da semana é pequena, ainda mais concorrendo com jornalistas e especialistas que estão debruçados sobre a questão. Serei mais profundo ou divertido, terei, enfim, mais chance de dizer algo verdadeiro (mesmo que pequeno, mas verdadeiro, e é isso que importa) se mirar no que eu conheço: a minha infância, o amigo que reencontrei, os primeiros passos da minha filha.

Também costumam perguntar, nesses bate-papos, se por falar sempre de si mesmo o cronista não seria um autocentrado e, portanto, um alienado. Acho o contrário: o cronista procura nele mesmo (ou melhor, numa ficção de si mesmo) os assuntos que possam tocar os outros. Todo mundo teve infância, todo mundo tem amigos que a vida afastou, mesmo quem não é pai ou mãe sabe o que é uma criança. Se ao falar do meu umbigo eu não cutucar o seu, a relação umbilical da literatura não se estabeleceu: pode escrever pro Painel do Leitor.

Esses questionamentos crônicos me voltam mais agudos nestas eleições. Na quinta retrasada, dia 18, um PM matou um ambulante com um tiro na cabeça. Nesta segunda, o PM foi solto. Não houve manifestações nem indignação por parte da população e Geraldo “quem não reagiu tá vivo” Alckmin, o chefe da PM, deve ser reeleito no primeiro turno. (Sobre o silêncio de São Paulo diante do assassinato, ler Flávio Moura em: http://migre.me/lRQpJ). Naquela mesma quinta, 18, no presídio de Pedrinhas, Maranhão, foi assassinado o décimo sétimo preso, só este ano. Ano passado, foram 60; alguns deles, decapitados diante das câmeras de celulares.

Os senhores feudais que dominam o Maranhão e gerenciam Pedrinhas são da base de apoio da Dilma, que acusa Marina de ser uma proposta insensata por não contar com o apoio de senhores feudais como os que dominam o Maranhão e gerenciam Pedrinhas. Marina, contudo, não é nada insensata: a paladina da nova política apoia quem, em SP? Alckmin.


Devo seguir falando da minha infância, de um amigo que reencontrei, dos primeiros passos da minha filha? Às vezes, acredito que sim: que a crônica existe para iluminar uns rincõezinhos assombreados do cotidiano, pra abrir nossos olhos para a graça que passa despercebida, pelas esquinas – e que isso também é um ato político. Outras vezes, porém, me vejo como um nobre gordo, na França, em 1788, comendo codornas enquanto o povo morre de fome, de bala ou é decapitado do lado de fora e nos calabouços do castelo.

28 de setembro de 2014 | N° 17936
FABRÍCIO CARPINEJAR

Fossa Nova

Nunca se comenta, nunca se discute, mas uma das principais modas é a da fossa. Fossa Nova que João Gilberto não sonhou em cantar.

Nenhum estilista providenciou um desfile sobre os deprimidos do amor, mas são as roupas que mais saem e as mais usadas.

Nenhuma Fashion Week abordou o assunto, mas não há vivalma que não tenha experimentado a eterna tendência.

As roupas da fossa são simples. Escuras, velhas e desbotadas. Aderem ao inverno total, apesar do sol brilhando lá fora. Não trazem cores quentes e ávidas do contato. Não provocam a atenção do verão e da primavera. Expressam cores resmungos, cores sombrias, avessas às gargalhadas e absolutamente discretas.

Vestidos? Jamais. Necas da sensualidade de pernas e tornozelos à mostra.

Blazers e casacos? Impossível. Às favas a sobriedade e a harmonia do conjunto masculino.

As calças pedem bolsos destinados ao lenço de papel, à aliança solteira e ao celular no silencioso. Pode ser de um abrigo surrado ou daquela calça jeans pronta para o sacrifício final.

As mulheres preferem as pantufas e os moletons com mais bolsos ainda.

Os homens optam pelo figurino de pintor de paredes: camiseta básica e manchada.

Os hábitos alimentares influenciam os modelos. As mulheres mergulham em potes de sorvete e desmancham barras de chocolate. Os homens recorrem ao álcool e à pizza como antidepressivos. Quem pede pizza durante três dias na semana é certo que vem penando por uma separação. Toda tele-entrega já identifica o cliente.

Estarão disfarçados de mendigo, interessados na praticidade: colocar e esquecer. Suas vestimentas formam um estranho macacão.

Não querem responder perguntas, odeiam cumprimentos educados como “tudo bem?” ou “o que fez no final de semana?”. Não desejam interagir. Querem passar despercebidos dentro da própria casa mesmo quando não tem ninguém.

São darks pelas olheiras. São grunges pela sobreposição. São punks pelos cabelos desalinhados e duros.

É uma mistura de épocas e de restos de coleções. Seus adeptos representam brechós andando, brechós-centopeias.

O que diferencia o deprimido é a falta de capricho no detalhe. Ele dispensa acessórios.

Se a mulher passeia pelo bairro desprovida de penteado é sócia do desastre.

Se o homem anda pela rua calçando um sapato sem meia está submerso na dor de corno e de cotovelo.

Se a mulher caminha sem maquiagem, brincos e colar está enfrentando um divórcio.

Se o homem percorre seu caminho ao trabalho desfalcado de cinto está vivendo sua decadência sentimental.


Vestir a dor tampouco exige medidas. As peças sobram ou apertam a cintura e não se reclama. Dois números acima, dois números abaixo, tanto faz, o desconforto não incomoda. A proposta é não se gostar mesmo.

sábado, 20 de setembro de 2014


21 de setembro de 2014 | N° 17929
MARTHA MEDEIROS

Obrigação

Uma pesquisa revelou que 61% dos eleitores rejeitam a obrigatoriedade do voto. A desilusão com a política é apontada como um dos motivos. Sendo o voto um instrumento de transformação, eu jamais abriria mão dele, mesmo que fosse opcional, mas concordo: quem dera todos votassem por consciência em vez de fazerem uni-duni-tê em frente à urna apenas por dever cívico. Obrigação é uma palavra que me arrepia. Desde garota. Passei a infância desejando crescer porque intuía que a espontaneidade vivia no lado maduro da existência.

Sei que cada criança processa os ensinamentos que recebe através de um código muito particular, mas o fato é que eu me sentia numa camisa de força. Horário de ir para cama, ter que raspar o prato mesmo estando sem fome, a televisão racionada, o dever de só tirar notas boas. Obrigações que resultaram numa mulher responsável e bem-criada, ao contrário de tantas outras crianças que fazem o que bem entendem e viram adultos mimados e despreparados para lidar com frustrações. Só que, aos oito anos de idade, eu não sabia nada sobre pedagogia. A teoria sobre criação de filhos não fazia parte do meu repertório. Eu só sabia das minhas vontades. Eu queria ser livre porque me parecia o único jeito de ser honesta com meus sentimentos e pensamentos.

Não queria fazer nada por obrigação. Nem comer, nem dormir, nem ser feliz por obrigação. Considerava uma violência quando, ao perguntar aos adultos “por que desse jeito?”, ouvia como resposta “porque sim e pronto” ou “porque é assim que tem que ser”.

Obedecia militarmente “a hora certa” de fazer as coisas como se houvesse um relógio universal regendo uma orquestra de bons moços a serviço do andamento do espetáculo. Não que me fosse custoso cumprir. Só era custoso entender.

Pior do que me comportar como “todo mundo” era viver uma afetividade também regida por regras. Não parecia que as pessoas se encontravam por saudades, por afinidades ou para repartir calor humano. Parecia obrigação também. A obrigação das datas festivas. A obrigação dos domingos. A obrigação dos parentescos.

Ai de mim se gostasse mais de uma avó do que de outra. Ou se não quisesse sair do quarto para jantar. Ou se me recusasse a ir à missa. Ao colégio eu sabia que tinha que ir, não questionava. Só questionava o que me parecia facultativo.

Apesar dos meus “facultativos” não baterem com os dos meus pais, optei por não dar trabalho, segui a cartilha da boa menina. Fiz minha parte e eles a deles – benfeita, diga-se, ou não seria quem sou.

Mas quem eu sou mesmo? Cumpridora, pontual, educada, porém, hoje, profundamente intolerante a tudo o que não for espontâneo, ao teatro das convenções, às blindagens contra a intimidade, ao que serve apenas para manter a orquestra tocando.



21 de setembro de 2014 | N° 17929
FABRÍCIO CARPINEJAR

O coração cuspindo

Quando você não tem como resgatar uma história de amor, meu amigo, meu irmão, o coração vai cuspindo.

O coração está gripado. Está doente. Você respira bem, mas o coração não. Não criaram uma aspirina para o coração. Não tem como tomar um remédio. Ou esquecer.

Seu coração cospe o nome dela, as imagens dela em cada tentativa de romance.

As mulheres com quem vai sair não notarão o seu peito apertado. O seu peito confrangido. O seu peito constrangido. O seu peito doendo a falta de esperança. Mas, entenda, seu coração vai cuspir muito ainda. Talvez seja pneumonia do coração.

Seguirá com a vida porque não tem o que fazer: ela arrancou o futuro da relação, a esperança, ela não mudará, continuará lhe destratando, sendo grosseira, muda, fria, insensível.

Ela não dará jamais as respostas que deseja. A saúde que espera. O arrependimento que anseia. Cuspirá, meu querido. Nas calçadas e nos canteiros, cuidando para não ser visto.

Um exorcismo que não termina, fracassando para jogar fora o excesso não vivido a dois. Sofre da nostalgia do que não viveu e não viverá mais.

Ela não merece seu amor - o que agrava a sua angústia. Pertencimento e merecimento não andam lado a lado, descobriu isso, infelizmente.

Você já cansou de rezar. A tosse é o cansaço da memória. O cansaço do silêncio. O cansaço de Deus. O cansaço da insistência: esta insistência cansada na desistência. O amor pulsa inteiro entre palavras quebradas. O amor bate inteiro com a fé estraçalhada.

Tudo foi piorando de tal forma que ou você afundava junto com ela, humilhado, ou você emergia, sozinho e ferido. Todo amor a uma mulher deve coincidir com o amor à vida.

Seu coração tosse quando janta acompanhado em um restaurante diferente e percebe que sua ex poderia gostar de um prato, da decoração, quando seu pedido no cardápio é mais o pedido dela do que o seu, quando você tem vontade de sair dali para contar para ela que precisa conhecer um novo restaurante, que é a sua cara.

Mas ela não escutará você. Porque estará de mau humor, estará cobrando novamente, sempre insatisfeita, sempre infeliz. Você tentou fazê-la feliz e ela somente lhe machucou.

Já conclui que ela odeia sua felicidade, ama seu amor e odeia sua felicidade. Não dará importância à sua poesia, aos seus detalhes, ao tempo que leva reunindo a saudade de lugar a lugar para oferecê-la.

Seu coração tosse sem parar quando busca se envolver com uma pretendente. Depois da euforia do sexo, da inconsciência do sexo, ficará com uma vontade imensa de se isolar e mandar a companhia embora. Terá que ser educado para disfarçar a tosse e não transmitir a sensação que usou a pessoa. Você vem se usando, não usando ninguém.

A tosse é indelicada e convence seu rosto a mergulhar na tristeza. Não consegue conversar, pois seu coração quer cuspir. De novo e de novo. Você não fala mais com ela. Você não telefona. Você não manda mensagens. Você não tem nenhum motivo ou pretexto. A tosse é a paixão sufocada. A paixão por dentro sem voz, sem comunicação, sem nada.


Ela tampouco imagina que seu coração está cuspindo. Seu coração cospe. Intervalos longos em que o mundo para e desaparece. Seu coração resmunga. Seu coração não é seu, ainda é dela, até quando?

quarta-feira, 17 de setembro de 2014


17 de setembro de 2014 | N° 17925
MARTHA MEDEIROS

Homens, santos e desertores

Outro dia, o Fábio Prikladnicki escreveu um artigo interessante sobre essa mania de aplaudir de pé qualquer apresentação teatral, seja ela excelente, razoável ou uma porcaria. É de fato constrangedor prestar reverência a um artista apenas por hábito, mas felizmente não foi o que aconteceu sábado passado no Theatro São Pedro, quando o ator Ricardo Blat foi tão magnífico em Homens, Santos e Desertores, que até uma múmia daria um jeito de levantar ao final.

Foi aplaudido com vigor, confirmando que, na televisão, atores coadjuvantes ficam presos a uma jaula com poucos recursos, mas no palco ganham uma liberdade de atuação que os torna comparáveis aos grandes. Só achei a peça curta: uns 15 minutos a mais poderiam aumentar a consistência do conflito mostrado no palco. Mas o que importa é que o desempenho foi hipnótico e os aplausos em pé se justificaram – reação espontânea e agradecida da plateia.

O texto é de Mario Bortolotto, um dos nomes em evidência na nova dramaturgia brasileira. Na peça, ele coloca em cena a inadequação social, a dificuldade de se integrar e a solidão como rota de fuga – há muitos desertores por aí. Pode-se desertar de uma forma convencional (colocar o pé na estrada) ou trágica (o suicídio). E, como desertores não costumam olhar para trás e avaliar os estragos causados, cabe àqueles que ficam administrar o abandono.

“Ninguém nunca tem culpa sozinho.” Essa é uma frase que pincei da peça e que pode confortar ou incomodar, depende: a quem atribuímos a tal culpa? Quando a culpa parece ser apenas dos outros, daqueles que não nos aceitam como somos, que vivem à revelia das nossas vontades, vale perguntar: por que colocamos nas mãos deles o que é responsabilidade nossa? As outras pessoas não vieram ao mundo para nos bajular, para nos mimar.

Elas têm suas próprias necessidades, suas próprias carências. Não são agressores conscientes, apenas estão tocando a vida da forma que acham que devem. Serão os únicos culpados pela nossa infelicidade? Nós é que devemos encontrar um jeito de não sermos tão dependentes do olhar alheio.

Por outro lado, se assumimos sozinhos a culpa pela nossa incompetência diante da vida, pela nossa dificuldade em lidar com os desafios, por não conseguirmos manter laços afetivos, também é um exagero. O egoísmo do mundo tem crescido, as pessoas andam desinteressadas em manter vínculos, temos sido jogados às feras mesmo. Os outros contribuem para nossa dor, sem dúvida.


Do que se conclui: tudo o que nos acontece tem vários “pais” e “mães”. Ao reconhecermos isso, fica mais democrática a distribuição de responsabilidades e o impulso de fugir diminui. Desertar é uma tentativa de escapar da culpa, mas raçudo mesmo é aquele que fica e a reparte – e toca a vida sem abandonar ninguém.

sábado, 13 de setembro de 2014


14 de setembro de 2014 | N° 17922
MARTHA MEDEIROS

O galão d’água

Reproduzo o relato que minha filha recebeu pelo whatsapp de uma garota brasileira que mora no Japão: Ontem veio um homem aqui e deixou um galão dágua na frente da minha porta. Disse que durante a madrugada eles fariam uma vistoria nos encanamentos de água do bairro e por isso estavam passando para avisar, deixar o galão e pedir desculpas por terem que desligar o registro de água por algumas horas.

Eu disse para ele que não precisava deixar a água, afinal, estaríamos dormindo nesse horário, mas ele respondeu: Você paga suas contas todos os meses e nós temos obrigação de não deixar você sem água nem por um minuto. E ainda disse: Se precisar de mais, pode pedir. E assim seguiu a distribuir nas outras casas. Durante a madrugada, olhei pela janela e havia um grupo trabalhando nas ruas em silêncio. Hoje vieram novamente, casa por casa, só para agradecer.

Pois é. Não é assim que deveria ser tudo na vida? Decência, responsabilidade e educação: por que é tão raro, tão complicado? A simplicidade da cena: um galão d’água deixado de porta em porta para o caso de os moradores terem alguma eventual necessidade às duas horas da manhã, às três horas da manhã.

Não é caridade, e sim direito do cidadão que paga taxas e impostos. Eu não deveria me comover com isso, mas me comovo, porque a gente cumpre com os compromissos como qualquer japonês, qualquer sueco, qualquer canadense, mas onde está a contrapartida?

Acho que isso explica nossa desesperança de que uma eleição mude alguma coisa. Já não acreditamos que um candidato consiga não se deixar corromper pelo poder, que possa governar sem dever favores para outros partidos, que solucione as mazelas do povo em detrimento das negociatas de gabinete. Política passou a ter um sentido desvirtuado.

Ninguém obriga um homem ou uma mulher a se candidatar a um cargo público. Se ele se oferece para a missão de governar, deveria fazer isso unicamente por seu espírito altruísta. Mas soa como piada. Altruísmo na política brasileira? Tem graça.

Um galão d’água na porta. Um serviço de atendimento ao consumidor que funcione de forma fácil. Um policial em cada esquina. Nota fiscal entregue em todas as transações comerciais. Lixeiras por toda parte. Ruas bem sinalizadas. Transporte farto, barato e que cumpra horários. Hospitais com vagas dia e noite. Escolas eficientes. Confiança em vez de burocracia. Sinceridade em vez de enrolação. Agilidade em vez de empurrar com a barriga. Se todo mundo concorda que é assim que tem que ser, por que não acontece, quem emperra?

Não é só culpa de quem governa, mas dos governados também. Viciados em retórica, seduzidos por vantagens exclusivas e não coletivas, sempre nos perguntando “como posso faturar com essa situação?”, não permitimos que o Brasil se moralize e avance.

Galão d’água na porta de casa? Só com um troquinho por fora, meu irmão.



14 de setembro de 2014 | N° 17922
FABRÍCIO CARPINEJAR

Moteleiros

Não se dorme em motel, por mais que se tente, não se dorme.

Trata-se de uma maldição, o casal dirá que deseja virar a noite e aproveitar o café da manhã. Nunca vi alguém tomar café da manhã em motel. No máximo, é possível passar seis horas em seus domínios. Descansar é impossível.

Motel é para transar e mais nada. Foi criado unicamente para a luxúria e insônia. Deveria ganhar diária grátis quem consegue fechar os olhos ali dentro. Só bêbado, mesmo. Só desmaiando. Só em coma alcoólico.

Não existe nem a tranquilidade de Bíblia na gaveta. Não há o aconchego de ninho, a atmosfera de conchinha, de se apegar mansamente nos braços da mulher e virar para o lado.

Não há lado no quarto de motel. É uma gaiola de vidro, de hamster correndo.

É uma jaula de musculação, de ginástica, de levantamento de halteres. Não há como sonhar em paz com um espelho no teto. É acordar e se espiar de cima. Parece que estamos mortos, levitando, que saímos do próprio corpo.

Há uma luz que nos cega entrando pelas frestas e pelos reflexos dos vidros. Pode fechar as cortinas que ainda tem claridade. É como dormir de luz acesa. O quarto de motel é o sol da Sibéria em miniatura. Mesmo que sufoque completamente as janelas, uma luz negra banha os objetos. Os objetos brilham, o telefone brilha, como adesivos de decoração infantil. É como deitar nas cadeiras do Planetário.

Estar em seu território é não se encontrar com o silêncio. Tem um chiado ininterrupto entre as paredes. Não sei se é a tevê, não sei se é o rádio, não sei se é a alavanca da cama. Apertou algum botão por engano e não localiza qual é. O apartamento não traz a segurança da intimidade. A porta está fechada, mas a impressão é que surgirá alguém para limpar a qualquer momento, alguém sairá do elevador dos pratos ou de uma outra porta secreta.

Não há como descansar, a estrutura é moldada para contorcionismo, oferece degraus, divisórias, box. Não tem o fundo plano para o sossego. Um horizonte de calma e de estabilidade. Uma cena igual e monótona para se entregar ao cansaço.

Como repousar num banheiro? Estamos enredados em um banheiro imenso e infinito, um banheiro feito dormitório. As lajes, o mármore e os azulejos são pedras frias, pedras que não entoam cantigas de ninar. A cama é redonda, triangular, tudo menos quadrada. Os pés escapam, ficam soltos de suas órbitas, dançam no ar, pedalam perdidos.

O lençol não dá conta do frio. É um lenço fino, pura gaze, que serve para nu artístico. Não tapa nada. Não achará cobertor e edredon no armário. Não tem como se aprochegar. O ar ou é quente demais ou é frio demais. Ou se levantará queimando em febre ou congelado.

Acima de tudo, sentirá falta de seu travesseiro. Aquele peso sob a cabeça é apenas uma almofada morta de sofá.


Terá saudade de seu confidente de penas. Macio, fofo, impregnado de seu cheiro. Mas levar travesseiro para o motel é coisa de depravado.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014


10 de setembro de 2014 | N° 17918
MARTHA MEDEIROS

Os fazedores de besteiras

Sei que o assunto Patricia Moreira já cansou, mas não dá pra perder a oportunidade de olhar para o próprio umbigo e perguntar se somos tão nobres a ponto de nos darmos o direito de atirar pedras no telhado dos outros. Fazendo uma viagenzinha no tempo, você não consegue lembrar de nenhuma besteira já cometida? Nunca foi idiota por um dia?

Eu até que não fui das mais torpes, desde cedo desenvolvi um senso de justiça que me fazia ir contra o rebanho se preciso fosse. Mas isso não me isenta de também já ter ido a favor do rebanho, com mugido e tudo. Simplesmente porque fazer coisas sem sentido é típico de quem ainda não reconheceu seu papel no mundo.

Fecho os olhos e me vejo na estrada, num carro lotado de adolescentes empunhando latinhas de cerveja. Eu era alguma espécie de delinquente? Nem perto disso. A mais correta e ajuizada das criaturas, mas não mandava parar o carro para descer. Eu queria seguir com eles, que hoje são respeitados advogados, administradores, biólogos. Éramos jovens desbundados em busca de uma identidade comum.

A garota Patricia, símbolo do caso Aranha x Grêmio, entrou na onda furada de xingar o goleiro do time adversário porque se sentiu segura para extravasar e fazer bobagem sob a proteção de um grupo. Quem não? Certa vez, fui assistir a um jogo do Grêmio contra o Corinthians, quando o craque do time paulista era Ronaldo, o Fenômeno. Dias antes da partida, o travesti que Ronaldo levara a um motel havia falecido. Pois bastava o atacante tocar na bola para o Olímpico inteiro berrar: vi-ú-vo, vi-ú-vo! Eu não segui o coro, mas se houvesse uma câmera me focalizando, me flagraria rindo. Era uma chacota.

Chamar alguém de macaco não é chacota, e sim ofensa racista, e racismo é crime. Patricia será penalizada juntamente com seus companheiros de imbecilidade e nunca mais repetirá o gesto, tenho certeza, e nós, de fora, também não. Para isso servem as penalizações: para educar, alertar, servir de exemplo. A guria, ironicamente, agiu como macaca de auditório, termo que caiu em desuso por motivos óbvios, e deu-se mal. Assim é. Sempre há um mártir por trás das mudanças de comportamento.

Que agora a Justiça tome conta do caso e basta de perseguições pessoais. A garota não é diferente de nenhum adolescente que já dirigiu sem carteira, que fez brincadeiras de mau gosto com gays, que praticou bullying na escola, que passou trotes por telefone, que fez uma prova chapado, que falsificou carteirinha de estudante, que arranhou o carro de um desafeto, que roubou a namorada do irmão. Tudo errado, mas dentro da previsível tacanheza juvenil.

Sou a favor de penalizar. O Brasil é este caldeirão de escândalos por causa da impunidade. Mas pegar para Cristo é hipocrisia.


sábado, 6 de setembro de 2014


07 de setembro de 2014 | N° 17915
MARTHA MEDEIROS

MAGIA

Sim, vou falar de novo sobre Woody Allen, então, se você não o suporta, pode pular para a página seguinte, ou me ler com ressalvas por eu ser tão tendenciosa, ou simplesmente me dar outro voto de confiança: o filme Magia ao Luar não é extasiante e não vai concorrer ao Oscar em nenhuma categoria (figurino, talvez), e nem mesmo Colin Firth arrebata (pouco à vontade no papel, meio afetado), mas quem se importa?

Trata-se de um legítimo produto Woody Allen, que a cada novo trabalho leva para as telas as conclusões pessoais que vem colhendo no transcorrer de sua vida. Isso é o que me fascina, diferentemente do que os críticos profissionais analisam. Eu viajo para dentro da cabeça desse homem que acompanho desde que ele tinha 36 anos e eu uns 10.

Hoje Woody Allen, aquele neurótico apavorado com a morte, buscando incessantemente um sentido para a vida, cético de carteirinha, é um senhor de quase 79 anos. Se eu, com 26 menos, já abandonei alguns questionamentos irrespondíveis, imagine quem está, teoricamente, mais próximo de apagar a luz.

É natural que cultivemos milhares de indagações, mas a tendência é aceitar as simplificações que a maturidade traz - no final das contas, o que sobra de uma vida são os resultados que não buscamos, mas que aconteceram mesmo assim.

Magia. Truque. Ilusionismo. Depois de uma vida regida por planos, metas e racionalismo, o inacreditável é que ficará marcado em nossa biografia.

Durante muito tempo, Woody Allen não acreditou em nada que não pudesse explicar, mas aos poucos ele relaxou e passou a duvidar de si próprio, foi se dando alta e desfrutando de uma leveza que deixou de ser sinônimo de pequenez, mas de facilitação.

Quem é que aguenta brigar infinitamente contra si mesmo, quem é que tem fôlego para uma busca incessante por respostas que nunca serão conclusivas? Muito melhor é admitir que as respostas mudam com o tempo e que o comprometimento com nossa imagem se torna patético. Mais vale relaxar e levar a sério apenas o que se sente, porque as teorias se tornarão uma teimosia de estimação, nada além.

Eu também sempre fui muito cética, até que mudei. Virei a casaca, deixei de torcer pelo nada e resolvi torcer pelo tudo. Astrologia, anjos, telepatia, acaso, vibrações, energia: hoje respeito toda a família Imponderável da Silva. E vou além, acredito profundamente num troço chamado Amor, que não tem lógica, não tem explicação e não tem racionalidade que o justifique. Basta um sorriso para fazer a mágica funcionar.

Parece que me esqueci de falar do filme, mas o filme é sobre isso, e se não for, que Woody Allen me perdoe as elucubrações: são tantos anos de fidelidade ao seu trabalho que já me permito invadir sua alma sem permissão.



07 de setembro de 2014 | N° 17915
FABRÍCIO CARPINEJAR

Eu te devoto

Se você tem um homem ou uma mulher que lhe ama, é muita sorte.

Mas existe algo maior do que o amor: a devoção.

Se você tem um homem ou uma mulher devota, não é apenas sorte, e sim milagre.

O devoto jamais desistirá de você, é amor até depois da morte.

Ele não tem orgulho, tem fé. No orgulho, só cabe um. Já a fé tem espaço para todo o casal.

O voto matrimonial será cumprido realmente pelo devoto (quem ama às vezes não aguenta cumprir a declaração à risca):

“Prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida.

O devoto foi feito de pele de aço e alma de vidro. Encontra explicações na própria esperança, mesmo quando não é retribuído ou correspondido. Pode ser criticado, ofendido, abandonado, esquecido, maltratado, torturado e não vai desistir.

Ele sofre pelos dois, e se acalma pelos dois. Ele briga pelos dois e se desculpa pelos dois.

Tenho pena do devoto e também admiração.

Nenhum de seus amigos e familiares será capaz de entendê-lo. Porque ama demais, se doa demais, se quebra demais.

É amargamente ingênuo, docemente compreensivo.

Vive mudando sua perspectiva para encaixar a convivência. É um otimista da ação, apesar da tônica pessimista de sua rotina.

Renuncia os objetivos em nome do casamento, da recuperação do casamento, da melhoria do casamento, que talvez nunca venha.

Enquanto é natural procurar motivos externos para justificar a tristeza, o devoto se concentra nas lembranças boas, ainda que raras, para proteger sua vontade de viver.

O devoto é um guerrilheiro da relação, um apaixonado vitalício.

Tem o desespero de ajudar sempre, em atender os pedidos antes de pensar em si.

Ele cessa qualquer trabalho para acolher a súplica de sua companhia. Nunca volta de uma viagem desprovido de uma lembrança, desenha a saudade nos vidros de sua paisagem, derrama-se em reticências nas mensagens. Não encara o nome de sua amada ou amado no celular sem tremer.

Quem ama dorme bocejando, o devoto dorme suspirando.

Quem ama acorda pedindo espaço, o devoto acorda pedindo abraço.

O devoto vai além da compreensão. Escreve cartas, deixa bilhetes de manhã, prepara surpresas, inventa festas. Incansável em sua busca por ser inesquecível.

Ele pode, inclusive, se piorar para não ser melhor do que sua companhia. Ele pode se sonegar para se equiparar ao que recebe.

Eu te devoto supera o Eu te amo.

O único empecilho é que um devoto precisa encontrar um outro devoto para ser feliz.

sábado, 30 de agosto de 2014


31 de agosto de 2014 | N° 17908
MARTHA MEDEIROS

Histórias de amor

Você vive um amor ou uma história de amor?

Tem diferença, sim. Um amor é a realização plena de um sentimento recíproco. Passa por alguns ajustes, negociações, mas desliza. Pode perder velocidade aqui, ganhar ali, mas não é interrompido pelas dúvidas, não permite a entrada de terceiros, tem a consistência das coisas íntegras, duráveis. O amor, amor mesmo, é uma sorte que se honra, uma escolha em que se aposta diariamente, o amor é algo que nasce e frutifica.

Já uma história de amor é, como diz o termo, uma invenção. Algo para ser contado ao analista, desabafado para os amigos, uma narrativa chorosa e trágica, um acontecimento beirando o folclórico, um material bruto pedindo para ser transformado em obra de arte. Toda história de amor está impregnada de obstáculos que lhe conferem um status de ficção.

Amor proibido pela família, rejeitado pela sociedade, condenado por preconceitos, amor que exige fugir de casa, pegar em armas, trocar de identidade: virou história de amor. Perde-se um tempo enorme roteirizando o dia seguinte. Se fosse amor, simplesmente amor, o dia seguinte amanheceria pronto.

Amor que coleciona mais brigas que beijos, mais discussões que declarações, mais rendições que entrega: virou história de amor. Pode subir aos palcos, transformar-se em filme, faturar na bilheteria: tem enredo. Mas não tem continuidade. Sai de cartaz rapidinho.

Amor que sobrevive à distância, que se mantém através de cartas e telefonemas (permita-me a nostalgia, sobreviver pelo whattsapp não combina com literatura), o amor sem parceria, sem corpo presente, o amor que não se pratica, que não se lubrifica, que enferruja por falta de uso: virou história de amor. Sofrido como pedem os poemas, glorificado pela vitimização, até o dia em que a ausência do outro deixa de ser um ingrediente pitoresco e você descobre que cansou de dormir sozinha.

Amor que exige insistência, persistência, paciência: virou história de amor. Se fosse amor, nada além de amor, navegaria em águas mais tranquilas, não exigiria tanto de seus protagonistas, o entendimento seria instantâneo, sem exagero de empenho, desgaste, sofrimento. Aff. Histórias de amor são fantásticas na primeira parte, tiram o ar, movimentam a vida, mas da segunda parte em diante viram teimosia dos autores, que relutam em colocar o ponto final na saga que eles próprios criaram.

Amor ou história de amor, o que se prefere?

Aventureiros, notívagos, hereges, rabugentos, sedutores, inquietos, fetichistas, insaciáveis, pecadores, estrangeiros, narcisistas, intrépidos, dramáticos, agradecemos cada verso e cada noite mal dormida que vocês deixaram de lembrança, mas um dia a gente cresce e a fantasia cede lugar à sensatez: um amor está de bom tamanho.



31 de agosto de 2014 | N° 17908
FABRÍCIO CARPINEJAR

O enigma da bolsa das mulheres

Homem carregando bolsa de mulher é cavalheirismo ou o cúmulo da submissão?

Eu fico sempre baratinado.

Costumo carregar a bolsa de minha esposa no shopping quando leva minha carteira e algum livro. Eu me vejo culpado pelo peso extra.

Mesmo quando não sou beneficiado diretamente, bate uma compaixão em vê-la se esforçar com os ombros. Ela trocará de braço a cada dois quilômetros na esteira das lojas. Toda bolsa de mulher é uma mala sem rodinhas.

Mas tampouco entendo por que ela não faz uma limpeza pontual para aliviar o chumbo.

Não tem sentido dispor de um secador de cabelos, por exemplo, naquele passeio. Ou tem? Ou ela acredita que será disparado um alarme de incêndio acionando as mangueiras do teto em nossa cabeça? Será que ela pensa nisso (é de dar medo se prevê a vida com tanto engenho e longevidade)?

Não custaria nada, antes de sair, eliminar o que não é essencial. E não é que ela esqueceu o que havia dentro da bolsa, mulher somente faz faxina na bolsa quando adquire uma bolsa nova.

Enquanto usa, acumula o mundo em suas profundezas de couro. É sua impressora 3D, imprime objetos na hora.

Não acho correto o trabalho masculino, pois ela poderia ter sido mais econômica. Deveria aprender a lição arcando com as consequências.

Até porque o homem que aceita transportar a bolsa da mulher não será valorizado por nenhuma estranha no caminho.

É muita submissão. Ele se apagará para ser um caddie – carregador de tacos de golfe. Ninguém repara no caddie, apenas no golfista. O caddie desaparece nas corcovas do gramado.

Além da invisibilidade imediata para a concorrência, não nos vestimos para combinar com a bolsa dela. De repente, estaremos de azul marinho com uma bolsa marrom. É o fim da harmonia. Então, teríamos que mergulhar de vez na vassalagem e perguntar para a mulher qual bolsa pretende colocar para definirmos nosso figurino.

– Amor, tenho que me vestir, já escolheu a bolsa?

E também não é justo carregar algo em que não poderemos mexer. Jamais deixará que a gente pegue coisa alguma de dentro do seu conteúdo. Somos menores de idade diante de qualquer bolsa feminina.

Vejo que não permite a ação de nossa curiosidade para evitar o estresse dos interrogatórios. Questionaremos o motivo de ela estar com metade das tralhas. A conversa não desembocaria em nenhum acordo. O que é dispensável para o homem é fundamental para a mulher.

Entro em parafuso se é correto ou não fazer esta gentileza. Seremos favorecidos, por outro lado, com o acervo surpreendente. A bolsa é um pequeno ambulatório, é um toalete ambulante, é uma oficina de costura.

Sem papel higiênico no banheiro, onde encontrará um rolo salvador? Na bolsa dela! Na primeira pontada de uma enxaqueca, onde encontrará o medicamento redentor? Na bolsa dela!


Descosturou a camisa, onde achará linha e agulha? Na bolsa dela! Somando os prós e os contras, o problema existencial resultará num empate. Como voto de minerva, sugiro não carregar a bolsa, porém realizar um curso de massagem para aliviar as dores nas costas de sua esposa.

sábado, 23 de agosto de 2014


24 de agosto de 2014 | N° 17901
MARTHA MEDEIROS

Feliz aniversário

Ela sabe que é um pensamento improdutivo, mas mesmo assim se preocupa com a passagem do tempo, parece uma menina assustada diante do acúmulo de números que sua idade vem ganhando. Não entende onde foram parar seus 16 anos, seus 21, seus 29, seus 35, seus 42.

Ora, onde eles podem estar? Todos ainda dentro dela.

Ao assoprar as velas, a sensação é de que o passado também se apaga e um presente totalmente novo é inaugurado. Sendo virgem da nova idade, é como se estivesse nascendo naquele específico dia com pequenas rugas e manchas surgidas subitamente, e não trazidas do antes. Como se estivesse vindo ao mundo na manhã do festejado dia com os quilos, as dores e os limites de um adulto recém-nascido e com uma expectativa de vida mais curta, sem registro algum do tempo transcorrido até ali, aquele tempo que sumiu.

Sumiu nada.

Você tem seus 16 anos para sempre. Seus 21. Seus 25 e todos os outros números que contabilizou a cada aniversário: você tem oito anos, você tem 19, você tem 37. Você só ainda não tem o que virá, mas os anos que viveu ainda estão sendo vividos, são eles que, somados, lhe transformaram no que é hoje. Sua idade atual não é uma estreia, você não nasceu com esses anos todos que sua carteira de identidade diz que você tem. Só o dia do seu nascimento foi uma estreia. Desde então, você nunca mais saiu de cena. Ainda estão em curso seus primeiros minutos de vida.

Você ainda sente o nervosismo das primeiras vezes, as mesmas dúvidas diante das escolhas, o afeto por pessoas que foram importantes lá atrás, a adrenalina dos riscos corridos. Nada disso evaporou. O ontem segue agindo sobre você, segue interferindo na sua trajetória. É a mesma viagem, a mesma navegação. O meio de transporte é seu corpo, e ele ainda não atracou.

Mas e todo aquele peso extra que você um dia jogou ao mar? Não muda nada. A viajante que durante o percurso vem se desfazendo de algumas coisas continua sendo você. Aquele instante aos 19 anos ou aos 26 em que você cruzou o olhar com alguém que modificaria seu futuro continua acontecendo, o ponteiro continua se mexendo, o tempo não parou. Desiludem-se os amantes apaixonados que, quando se instalam num amor maduro, não encontram mais a mágica anterior que fazia o tempo parar, mas não se deve ser tão fatalista, você não tem 18 anos, ou 37, ou 53. Você tem 18, 37 e 53. No que tange o tempo vivido, não há “ou”. São várias idades contidas numa frequência cardíaca ininterrupta.


Você chegou a uma idade gloriosa, a idade de entender que não existem perdas, só ganhos. Não existe envelhecimento, e sim desenvolvimento constante. O tempo não passa, ele está sempre conosco. O novo não ficou para trás, ao contrário, o novo está adiante: na vida que ainda está por vir.

24 de agosto de 2014 | N° 17901
FABRÍCIO CARPINEJAR

O dia seguinte hoje

Ao fazer festa em casa, do que mais gosto é a bagunça.

Não da festa em si, mas daquilo que precisarei arrumar no dia seguinte.

Sou vidrado pela ideia de reconstrução de um ambiente em algumas horas.

Tudo repentinamente fora do lugar, sujo, imundo, e há o desafio de reencontrar a ordem natural das coisas.

É uma recriação do mundo num final de semana.

O corredor beira o estado de sítio, o banheiro sofreu com o desespero dos boêmios, as estantes dos livros estão cheias de bandejinhas de salgados.

Nem espero o dia seguinte.

Nada mais íntimo dentro de um casamento do que o silêncio das 6h. Todos já foram embora, felizes com a balbúrdia, e nós dois decidimos ajeitar o lar enfrentando o cansaço.

O previsível era deitar com a roupa do corpo e desmaiar, desprezando os escombros e a vida virada pelo avesso.

Mas não, eu e minha mulher adoramos o pós-festa, quando estamos sozinhos.

Reina uma sensação de paz, de sobrevivência.

A faxina é partilhar a memória do encontro. Melhor do que roda de violão.

A faxina é fixar as lembranças antes que sejam corrompidas pela enxaqueca do meio-dia.

Ela segura o lixo de 100 litros e eu vou buscando as garrafas de cerveja espalhadas pelos cantos.

Vamos conversando sobre as cenas mais engraçadas da festa, o comportamento dos amigos, as coreografias das músicas ridículas.

Cada um repassa o que viu e o que conversou. Como anfitriões, tínhamos o trabalho de nos revezar por diferentes turmas e atender a todos, não deixar ninguém excluído e isolado. Naquele momento, completamos o quebra-cabeça da noite.

– Você falou com a Vanessa? E como ela está com o marido?

– Sim, pareciam alegres. Já passou a tormenta.

De nosso papo frugal, seguimos com o rodo e a vassoura, um encarando o outro com ternura.

De vez em quando, reclamo da dor nos braços. De vez em quando, ela reclama da dor nos pés. São exclamações naturais do sacrifício que não se estendem por muito tempo.

Ela massageia rapidamente meus ombros e diz que providenciará uma massagem mais tarde. Eu tiro seus sapatos, apertos seus dedos e juro que depois pego um creme para aliviar o estresse.

A admiração é feita de pequenas pausas e promessas.

E seguimos nosso baile mudo, nossa coreografia de espuma e detergente.

Lamentamos uma mancha que não sairá no sofá ou algumas cicatrizes novas nas paredes. Não choramos por algo que tenha sido quebrado. Entendemos que a amizade é para ser usada.

Recolhemos o exército de copos e cálices, os pratos sujos, e não nos intimidamos com a quantidade de louça que ocupa a mesa inteira da cozinha.

Dividimos as tarefas: primeiro os copos, depois os pratos, em seguida os talheres. Assim não sofremos com a dimensão assustadora do compromisso.

E continuamos nossa troca de impressões ouvindo os pássaros assobiando ao longe. Não temos certeza se são os rumores das aves ou se é a claridade cantando lentamente na janela.

Ela pergunta se estou com fome. Paramos um pouco nossa arrumação para esquentar salgados e comer sentados no chão da cozinha, na posição de índios ao redor da fogueira.

Corre entre nós uma cumplicidade apaixonada, como se só nossos olhos dançassem.

O amor não é apenas uma festa, como alguns imaginam. O amor é também dividir o trabalho de limpar a casa.


Acordamos com o apartamento brilhando e nos beijamos de olhos fechados, ainda sonhando.

23 de agosto de 2014 | N° 17900
PAULO SANT’ANA

Sobreviveu à tortura

Volto hoje, como prometi anteontem, a reproduzir o relato da colunista de O Globo Miriam Leitão ao jornalista Luiz Cláudio Cunha, sobre os horrores que sofreu durante a ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964.

Meu propósito é somente o de que nunca mais se reproduza uma ditadura no Brasil.

Continua Miriam: “Não recebi um único telefonema, não vi nenhum advogado, ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento.

Só três dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só conseguiu me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel, mas só ao final de três semanas fui colocada na cela com as outras presas: Angela, Badora, Beth, Magdalena, estudantes, como eu.

Fiquei 48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 quilos de peso, saí três meses depois pesando 39 quilos. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, tinha enormes chances de perder meu bebê. Foi o que o médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico.

– A má notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que fazer para aumentar as chances do meu filho.

Mas isso foi ao sair. Lá dentro, achei que não havia chance alguma para nós. Eu era levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a madrugada com uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois berrando, me ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar.

Um dia, achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento. Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: ‘Eu sou muito nova para morrer. Quero viver’”.

“Numa noite, numa sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo.

Eu estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro. Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra que enlouquecia a cachorrada: ‘Terrorista, terrorista!’.”

“Sobrevivi e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela. Ele me deu duas netas, Manuela (três anos) e Isabel (um). Do meu filho caçula, Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior patrimônio.


Minha vingança foi sobreviver.”