sábado, 3 de outubro de 2015



04 de outubro de 2015 | N° 18314 
MARTHA MEDEIROS

A cultura da humilhação

A insensibilidade geral tem produzido gargalhadas de um lado e tragédias de outro

Já nem lembrava de Monica Lewinsky, que foi estagiária da Casa Branca e teve um rápido affair com o ex-presidente americano Bill Clinton em 1996. O fato foi explorado à exaustão, na época.

Pois Monica hoje tem 41 anos e fez uma palestra TED recentemente, disponível pelo YouTube. São 20 minutos em que ela conta as consequências daquele episódio comentado no mundo inteiro e faz alertas importantes sobre cyberbullying. Se você nesse instante pensou "imagina se vou perder 20 minutos ouvindo aquela desqualificada", você é o público-alvo desse vídeo.

Você, eu e todos os que usam tecnologia precisamos refletir sobre o assunto. A internet possibilita inúmeros encontros, amplia ações sociais, estimula a criatividade, agiliza negócios e já não se pode viver sem ela, mas tem um lado obscuro, como todos sabem. Reclamamos dos agressivos da web, dos haters, mas até onde pode ir a crueldade alheia?

Em 2010, um estudante chamado Tyler Clementi foi flagrado por uma webcam tendo relações íntimas com outro rapaz em seu dormitório na universidade. As cenas foram parar na internet. Dias depois, Tyler se suicidou. Tinha 18 anos.

O serviço assistencial britânico Child Line, que atende crianças e adolescentes, revela um alarmante aumento no número de suicídios nos últimos anos, e as ridicularizações nas redes sociais têm a ver com esse incremento. O CVV (Centro de Valorização da Vida) também possui dados que apontam nessa direção. A insensibilidade geral tem produzido gargalhadas de um lado e tragédias de outro.

Humilhação pública virou produto de alto valor comercial. Basta que uma pessoa passe vergonha para que o flagrante mereça muitos cliques, e esses cliques valham muito dinheiro, sustentando sites de fofocas e transformando a nós todos em imbecis digitais. Não existe mais compaixão nem respeito pela intimidade alheia.

O que Monica Lewinsky tem a dizer sobre isso? Ouça-a. Estou aqui apenas resumindo a palestra dela a fim de atiçar você para assisti-la. Quando tinha 22 anos, ela se meteu numa encrenca federal (mesmo) e foi o que bastou para todos se sentirem no direito de acabar com sua reputação. Eu postei a palestra na minha fanpage (facebook.com/marthamattosmedeiros) e um dos comentários deixados foi: "Ah, é aquela, a sucker, tenho que ver isso, kkkk". É uma reação automática. Podendo avacalhar, não perdemos a chance. Porém, o que antes era uma pegação de pé em meio a um círculo restrito, ganhou abrangência universal e exposição vitalícia.

Se a gente não quer que essa cultura da humilhação prevaleça, melhor começar a agir com mais responsabilidade agora, já. Até porque ninguém está livre de amanhã ser o alvo.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015



30 de setembro de 2015 | N° 18310 
MARTHA MEDEIROS

PODER E STATUS


Três anos atrás, fui a Brasília receber a Ordem do Mérito Cultural. Eram entre 30 e 40 agraciados de diversas regiões do país. Chegando ao hotel, soube da programação: a entrega da comenda seria na manhã seguinte, no Palácio do Planalto, e à tardinha haveria um coquetel no Palácio da Alvorada. Fomos avisados de que cada um de nós teria um carro com motorista à disposição enquanto estivéssemos na cidade.

O dia amanheceu. Enquanto me arrumava para a cerimônia, fui até a sacada do quarto e vi uma fila de sedans pretos enfileirados na porta do hotel. Desci até o lobby para juntar-me ao grupo. Então, em fila, fomos conduzidos cada um para um carro, e saímos em comitiva, todos ao mesmo tempo, para o mesmo local. Patético, pra dizer o mínimo.

Não estou depreciando a honraria concedida, da qual me orgulho muito, mas óbvio que tinha algo errado ali, como sempre teve.

Na Suécia, deputados moram de segunda a sexta em apartamentos funcionais de 40m2 com lavanderia comunitária. Não têm empregados. Seus gabinetes de trabalho possuem 18m2, sem secretária, assessor ou carro com motorista. O dinheiro do contribuinte não é usado para privilégios de qualquer espécie. Além do bom uso do dinheiro público, essa postura é um seletor natural: quem quer mordomia, que bata em outra vizinhança. Entra para a política apenas aquele que deseja servir ao país, e não ser servido por ele.

O papa Francisco, dias atrás, circulou por Washington a bordo de um automóvel compacto e popular, um gesto simples que ajudou a redefinir o que é poder. Todos nós merecemos eficiência e conforto. Buscar mais que isso não é crime, mas é uma necessidade supérflua. Moramos em apartamentos mais espaçosos do que de fato precisamos, contratamos funcionários para fazer o que poderíamos fazer nós mesmos e dirigimos veículos cuja potência a lei nem permite testar (qual a vantagem de um carro ir de 0 a 100 km/h em cinco segundos, a não ser que estejamos fugindo da polícia?).

Em nossa sociedade, a aparência reina. O bairro em que você mora, a marca do seu jeans, o hotel em que você se hospeda: além do benefício real (a qualidade) há o benefício agregado – o status. Tudo bem. Só que status e poder não são a mesma coisa.

Status é ranking. Costuma ser valorizado por quem verticaliza as relações. Não vejo problema em se proporcionar coisas belas, saborosas, requintadas. Se são pagas com o próprio suor, é um direito adquirido, mas não confere poder algum, apenas bem-estar privado.

O poder é horizontal. Poderoso é aquele que distribui, compartilha, multiplica. Que produz ideias, arte, soluções, e as torna úteis e benéficas para os outros. Que não passa a vida tentando preencher o próprio vazio.

Não precisamos que nossas coisas falem por nós, a não ser que nossos atos já não digam nada.

sábado, 26 de setembro de 2015




27 de setembro de 2015 | N° 18307 
MARTHA MEDEIROS

A tarde é a nova noite

Qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme: todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa

Estava folheando uma revista quando vi uma pequena nota sobre a inauguração de um bar em São Paulo que tem seu ápice de frequência durante o almoço e nas horas seguintes. O título da nota era: A tarde é a nova noite. Juntei as palmas das mãos, fechei os olhos e agradeci as preces atendidas.

O proprietário do bar, instalado na cobertura de um prédio, alega que a noite de São Paulo ficou tão grande que começou a ocupar o dia também. Porto Alegre não tem uma noite assim tão grande e, na minha modesta opinião, não precisa esperar para ter, pode adotar essa moda agora mesmo e ser moderna hoje, já, imediatamente. A tarde é a nova noite. Meu mantra.

Nos últimos meses, fui a uma festa de casamento de dia, a um show de comemoração de um site de dia e a um lançamento de uma revista numa casa noturna – de dia. Chamei de casa noturna por hábito: qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme. Todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa. Chego a me emocionar com tamanha civilidade.

A tarde é a nova noite. E não precisa ser de tardezinha. Pode ser início da tarde, meio da tarde, pode ser tarde só no nome, pois que cedo.

A vida acontecendo à luz do dia. Consequência saudável de um mundo evoluído, em que as pessoas, por trabalharem online, podem ser produtivas a qualquer hora, em qualquer lugar, sem necessidade de cumprirem expediente rígido e formal, liberando-se, assim, das quatro paredes do ambiente corporativo. Sei que isso ainda é para poucos, que a maioria das pessoas possui empregos inflexíveis, mas não custa sonhar que o padrão de poucos se tornará em breve o padrão de todos, que as pessoas possam trabalhar em horários alternativos e ter disponibilidade para encontrar sua turma para celebrar, gargalhar e prestigiar os espaços de lazer da cidade ainda sob céu claro.

Se isso for utópico demais, que esses encontros com luz natural aconteçam então nos fins de semana apenas, aos sábados e domingos, mas sempre aproveitando o dia (carpe diem!) de dia mesmo.

Estou advogando em causa própria, claro. Assumidamente uma cinderela urbana, é com muito custo que atravesso os ponteiros da meia-noite sem virar abóbora. Logo, prezo tudo que é solar. Entendo que o dia se presta para os esportes, os parques, os sucos, mas acredito que também podemos ter festas e baladas à tarde, sem prejuízo àquelas que não resistem a um paetê – há muito tempo que o brilho virou item fashion ao ar livre também.

A tarde é a nova noite. Eis aí uma tendência original, descolada e livre de ressaca na manhã seguinte. Que a moda pegue – e não largue.



27 de setembro de 2015 | N° 18307 
CARPINEJAR

A alegria veste a tristeza


Tenho uma predileção por uma frase de Federico Fellini: para a sombra existir, o sol deve estar a pique na cabeça.

Sem a luz, o escuro não se forma. Sem o escuro, a luz não tem sentido.

O mesmo acontece com a alegria.

Dentro da alegria mais genuína, mais intensa, mora a sombra da tristeza. A tristeza só existe em função da alegria. É o medo de perder a felicidade que faz com que você se esforce para mantê-la.

Não há alegria inteira, nem tristeza pura, uma depende da outra. Podemos transpirar euforia, mas sobreviverá uma pontinha de melancolia lá no fundo de nosso riso. Porque mantemos a consciência de que a alegria, por mais duradoura que seja, vai passar. Que ela logo se transformará em nostalgia, e que não estaremos mais plenos como daquele jeito de novo – e isso não é ruim e nem é bom, é inevitável da experiência. A tristeza dentro da alegria nos permite pensar e entender o quanto aquele momento é importante e que precisamos aproveitá-lo enquanto dura.

A alegria é esta vontade de ser para sempre que termina. A tristeza vem nos consolar a aceitar que o fim de uma lembrança não significa o fim de nossa vida.

De igual forma, dentro da tristeza mais severa, da depressão mais aguda, é possível notar a presença de uma alegria discreta, retraída, tímida. Tudo pode soar péssimo, mas um abraço, um quindim, um filme, o telefonema insistente de um amigo é capaz de nos devolver a vontade de dar a volta por cima. A simplicidade é terapêutica, a banalidade nos cura dos grandes males da solidão. Haverá sempre o sol por detrás das nuvens escuras dos pensamentos suicidas. 

Na sombra mais espessa de nosso temperamento, coexistem os raios solares minúsculos do contentamento, das dádivas da rotina e dos pequenos prazeres. Estaremos desolados com o tempo fechado e chuvoso do rosto, não enxergando nenhuma saída, mas a alegria se conservará perto e nos mostrará que a tristeza também passará, que é uma fase e um ciclo para absorver separações, desentendimentos e traumas. A lágrima brilhará como uma vidraça limpa e iluminada.

Se a tristeza é saudade dentro da alegria, a alegria é esperança dentro da tristeza. Nenhum sentimento é definitivo e completo.

A luz veste a sombra, a sombra veste a luz. A alegria costura a tristeza, a tristeza costura a alegria. Alfaiates que se revezam no longo pano dos dias.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015



23 de setembro de 2015 | N° 18303 
MARTHA MEDEIROS

Amor bandido

Não encontro vocabulário que alcance a dimensão do que sinto. Tenho lido os jornais e também comentários diversos no Face, de todas as correntes. Nunca soube de tanto e nunca tive tantas dúvidas, o que me conforta: dúvida é esperança. Mas esperança de quê?

O único talento dos nossos políticos é o de transferir o poder entre si e o de se lixar para o bem público, que deveria ser o objetivo único. Nossos representantes, eleitos por nós, são tão miseráveis, que preenchem o próprio vazio com cargos. Até uma manchete divulgando que o cara está preso pode satisfazê-lo – antes isso do que o anonimato. Prisão domiciliar está sendo comemorada como uma Mega Sena. Indecentes, quase todos. Dou desconto para um Pedro Simon e outro.

Penso muito na Dilma, no ser humano por trás da presidente, em como deve ser o momento em que ela vai pra cama à noite. Imagino que pense antes de dormir: maldita hora em que venci a eleição, poderia estar hoje em posição privilegiada, apontando o dedo em vez de tê-los apontados pra mim. E Aécio, da mesma forma, antes de dormir deve agradecer a sorte de ter perdido. Logo eles trocarão de lugar e assumirão o discurso um do outro, e a pantomima seguirá. Não foi sempre assim?

Depois de Dilma, virá outro inconsequente. Alternância de partido muda quase nada. O que mudaria alguma coisa seria uma mentalidade incorruptível, estímulo à criatividade e total desapego ao poder. Mujica ainda foi o que de mais novo surgiu por aí, ao mostrar que nem todo governante se envaidece com a própria influência. 

O Brasil bem que tentou, deu seu voto de confiança a Lula anos atrás, e algumas coisas foram melhoradas, mas ela estava no caminho, a casca de banana em que tantos derrapam: a ganância. E lá se foi a ética pro espaço, permitindo a continuidade da velha troca de favores que não se interessa por projetos que beneficiem o povo a médio e longo prazos. Mantêm-se os projetos de interesse imediato, sem visão de futuro, que só sustentam o ego de alguns. O ego, sempre ele.

Infelizmente, ame-o ou deixe-o continua sendo o slogan perfeito pra nós, ainda que representativo de uma época nefasta. Como escolher? Nasci neste país que nunca atendeu a meus ideais, e não consigo deixá-lo e também não consigo amá-lo. Amar o Brasil é amor bandido, é ficar ao lado de quem provoca muita dor e só satisfaz minimamente. Seu lado bom (arte, natureza e o que mais mesmo?) alimenta o comodismo.

Então fico, ainda que a sensação seja a de estar num bote inflável, à deriva, sem saber para onde estou indo: que brasileiro, a esta altura, não possui alma de refugiado? Na beira da praia, em vez do corpo imóvel de um menino, vemos meninos fazendo arrastões: é diferente? É, mas nem tanto. Não existe situação vantajosa em meio a desgovernos.

terça-feira, 22 de setembro de 2015




22 de setembro de 2015 | N° 18302 
CARPINEJAR

Como uma nota de três reais


Elogio, quando sempre, vira bajulação. Ternura, quando excedida, vira cinismo. Concordância, quando constante, vira sarcasmo. Aceitação, quando submissa, é indiferença.

Amizade é medida (já o amor é perder a medida). Percebo quem é falso pela ânsia de agradar a qualquer custo. É um torturador pelo afago. Alegria se transforma em histeria; a espontaneidade, em afetação.

Não é um contato natural, mas uma negociação: a impressão é de que o outro, que não para de me reverenciar, está vendendo algo que não sei, algo que não estou vendo. É muita simpatia para nada. É muita camaradagem gratuita. É esnobar com uma nota de R$ 3.

Mantenho um pé atrás com quem é abusivamente açucarado. Evito quem é dado ao léu, antes mesmo de estabelecer intimidade. Gritinhos no “oi” apressam o meu adeus. Diminutivos esgotam a minha paciência. Quem se aproxima querido demais falará mal de mim pelas costas. A traição está insinuada na atração artificial.

Não tenho dúvida. Acúmulo de gentileza é véspera de maldade, de oportunismo, próprio daquele que pretende enganar. Desconfio de quem chega com mimimi, só exaltando as minhas virtudes, concordando com os meus comentários. É característica de personalidade maquiavélica, porque me faz relaxar, confessar as dificuldades e abrir a guarda para tirar vantagem.

Não levo a sério quem carrega nos adjetivos, superfatura nas exclamações, endeusa nos cumprimentos. Amigo que se gosta vive se provocando. O que adula é um inimigo disfarçado.

Hipocrisia vem do exagero do perfume. O tipo busca dissimular a carência de banho com borrifadas, procura abafar a maldade e a inveja com o comportamento contrário. Temo mais a chuva de confetes do que os relâmpagos e dilúvios.

A afetação me põe ressabiado. Não aturo a fala dublada – a impressão é de que falta a opção do áudio original. Parece que a voz vem de um ventríloquo. Parece uma tia chata interpretando as vontades de um bebê.

A pessoa se comunica miando, ganindo, arrastando as vogais. Força empatia, ri sem nenhuma piada, é solene sem necessidade. Gente falsa é o mesmo que conversar com alguém fingindo o orgasmo em todo momento. Não tem como acreditar que algum dia será para valer.

Autenticidade implica alternância e até um certo mau-humor. Prefiro o ferrão ao mel.

sábado, 19 de setembro de 2015



20 de setembro de 2015 | N° 18300 
CARPINEJAR

Perdi 1 milhão de reais

Não festejei o meu primeiro milhão porque fumei o meu primeiro milhão.


Eu me dei conta de que se juntasse as minhas baforadas com as tragadas do cantor Renato Godá, amigo de vício e de faixa etária, já teríamos posto fora R$ 1 milhão. Nesta brincadeira existencialista e maldita, torramos um patrimônio difícil de obter. Participamos de um Big Brother às avessas: em vez de ganhar, gastamos a recompensa máxima do reality show.

Cada um fumou duas carteiras por dia durante 26 anos, o que resultaria em R$ 284.700. Se esse valor tivesse sido investido há três décadas em uma aplicação que rendesse 1% ao mês, sem considerar inflação e troca de moeda, o montante atualizado com juros seria de R$ 1.170.117.

Foram quarenta cigarros do amanhecer até o anoitecer desde os 17 anos. Apaguei no cinzeiro mais de 380 mil filtros. Encheria uma piscina olímpica com as minhas bitucas.

O resultado é assustador. Nenhuma morte seria tão cara. Fui um perdulário invisível. Não percebi o investimento porque identificava como um mero troco. Quem adquire cigarro não anota sua compra, e tampouco registra como gasto. Só que empenhei uma parcela fixa diária e interminável de quinze reais. Somadas ao longo de minha história, formam uma bagatela que paralisa os mais incrédulos, digna de prêmio dividido da Mega Sena.

Com tudo o que fumamos, poderíamos abrir uma grande empresa com forte capital de giro. Ou comprar à vista uma cobertura de 300 m2 no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre. Ou levar cinco carros Santa Fé zero quilômetro para as nossas garagens. Acabaríamos ricos, com uma poupança redentora, não precisaríamos nos preocupar com a crise e muito menos em trabalhar duro todo o mês. Mas cedemos a nossa fortuna imaginária e os nossos pulmões reais para a indústria tabagista.

Não transformamos o nosso suor em sorte, em previdência, em títulos de capitalização, em economias para a universidade dos filhos, ele simplesmente virou fumaça.

Qualquer um é considerado maluco ao queimar dinheiro. Eu e o meu comparsa músico queimamos 1 milhão de reais com a boca.



20 de setembro de 2015 | N° 18300
MARTHA MEDEIROS

Escuta

Amar nada mais é do que ouvir com prazer histórias que não nos interessam

Eu estava diante de um cenário deslumbrante que poucas vezes vi igual. O lugar chama-se Tonnara di Scopello, uma baía minúscula no norte da Sicília, na Itália. A beleza era de deixar qualquer um sem palavras, mas ao meu lado estava uma mulher que tinha palavras de sobra e provavelmente já estivera naquele recanto uma centena de vezes a ponto de não se deixar embasbacar pela vista. A única coisa que ela queria precisava! era falar. Quando cheguei, ela já estava ao telefone. Quando fui embora, ela ainda não havia desligado. Parecia longe de ter esgotado o assunto.

Italianos falam muito, reza a lenda. Mas ela abusava do estereótipo. Não parou de falar nem quando uma menininha de uns quatro anos, que imaginei ser sua filha, veio solicitar sua atenção. Ela passou a mão na cabecinha da criança, enxotando-a com suavidade, e com a outra continuava segurando o celular junto ao ouvido. 

Em pé, de biquíni, caminhava dois passos para frente e voltava os mesmos dois passos, ininterruptamente. E falava. E falava. Meu conhecimento do idioma é limitado, mas suficiente para perceber que ela não estava ditando um discurso e tampouco estava apresentando a defesa da sua tese de mestrado. Ela estava simplesmente conversando sobre a vida, contando casos, isso que a gente faz em mesa de bar.

Por um instante, supus que no outro lado da linha haveria um excelente ouvinte. Mas não me surpreenderia se fosse outra pessoa que também não parasse de falar. Porque nesse ponto chegamos: escutar, hoje em dia, é o de menos. A parte desimportante da convivência.

Aprecio a concisão, logo, fico meio impressionada com quem dá voltas sobre o mesmo tema, com quem reproduz diálogos inteiros (“Então ela disse isso, e ele respondeu aquilo, e ela retrucou assim, e ele então falou que...”), com quem entra em detalhes desnecessários a fim de espichar a conversa, com quem não finaliza o pensamento, e sim emenda um no outro até que se perde: “Onde é que eu estava mesmo?”.

Estava encantado com o som da própria voz. Encantado por ainda existir comunicação verbal nesse mundo de tantas abreviações digitais. Encantado por ser o narrador, o protagonista da cena. Quem não? Somos todos meio italianos, principalmente em mesas de bar, onde todos falam, ninguém escuta ninguém e voltam todos para casa embriagados de afeto e amizade.

Mas escute: se alguém ainda silencia e presta atenção no que você diz (não vale o analista), leve em conta o romantismo dessa atitude, a declaração muda que está sendo oferecida carinhosamente a você. Como diz um amigo meu, amar nada mais é do que ouvir com prazer histórias que não nos interessam.

Do outro lado da linha daquela mulher siciliana talvez houvesse um homem apaixonado. Prefiro essa ilusão do que imaginar que era outra matraca que também não escutava nada.

mar­thamedeiros@terra.com.br

quarta-feira, 16 de setembro de 2015


16 de setembro de 2015 | N° 18296 
MARTHA MEDEIROS

Rock at home


Onde você está agora? No quarto, no escritório, no ônibus? Aliás, que horas são agora? É de manhã, é de tarde, você está entediado, aborrecido, feliz da vida?

Difícil estar feliz da vida diante da situação desalentadora do país e do nosso Estado, mas há que se buscar pequenos prazeres para seguir adiante, e é o que estou fazendo. Neste exato instante (você já pensou sobre a distância que separa o momento em que escrevo e o momento em que você me lê?) estou tomando um cálice de vinho (é noite!) e escuto o novo CD de uma banda que me reconecta com o espírito que eu tinha aos 16 anos e que permanecerá comigo pra lá dos 90 – velhinhas também escutam rock.

O disco: 1 Hopeful Rd, da banda californiana Vintage Trouble, que surgiu em 2010 resgatando um rhythm’n’blues que anda meio esquecido nesta era de música eletrônica, bate-estaca, tum-tum-tum. Já falei dessa banda em sites, blogs, postagens no Face, agora falo no jornal porque sei que roqueiros clássicos sobrevivem por aí, feito dinossauros que se negam a entrar em extinção.

A primeira faixa do disco é vigorosa demais pro meu gosto, mas da segunda faixa em diante é um passeio na estrada. Não sou colunista de música, especialista em nada, então escute por sua conta e risco, mas algo me diz que você irá gostar de pegar essa carona comigo.

Por enquanto, a banda ainda toca em bares mundo afora, em pubs, espaços pequenos (eu assisti ao Barão Vermelho pela primeira vez numa boate que me permitia estar a cinco metros de Cazuza, no mesmo plano, sem distância entre palco e plateia), mas Vintage Trouble já está abrindo shows para o The Who e o AC/DC. Não tenho dúvida de que em breve brilhará sozinha em grandes palcos. Se ela estivesse no Rock in Rio, que começa na próxima sexta-feira, eu marcaria presença na fila do gargarejo, extasiada.

Ao mesmo tempo que divulgo e enalteço a banda, sei que posso estar dando um tiro no pé e eles nunca passarem de azarões, virarem aqueles que quase chegaram lá, quase estouraram, quase lançaram hits. Mas precisamos mesmo de ídolos que chegaram lá? Não basta chegarem a nós?

Ainda estou aqui. Ainda tomando um vinho. Se você está trabalhando e é de dia, me compreenda e relativize, a noite logo chegará pra você, eu ainda estou no ontem – e o rock, neste minuto, toma conta do recinto.

Às vésperas de mais uma edição do maior festival do gênero, me rendo à nostalgia. Estive no primeiro Rock in Rio, em 1985, e continuo até hoje fiel a esse som que perdeu o seu caráter transgressor, mas que ainda exerce sobre mim um efeito que o jazz, a bossa e o samba, por mais sensacionais que sejam, não atingem. O efeito de me fazer sentir viva, a despeito das notícias da primeira página. Tim-tim.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015



09 de setembro de 2015 | N° 18289 
MARTHA MEDEIROS


Que horas ela volta? 

Em junho passado, o ator e colunista da Folha de S. Paulo Gregório Duvivier publicou um texto chamado “Nos países em que você lava a própria privada, ninguém mata por uma bicicleta”. 
Muitos elogiaram, compartilharam, mas uma coluna de jornal não é suficiente para mudar a cabeça de um país. Se o texto dele foi um importante tijolinho, no cinema temos um tijolaço que também pode ajudar a construir uma nova mentalidade nacional. Trata-se do excelente Que Horas ela Volta?, da diretora Ana Muylaert, com a extraordinária Regina Casé.

O filme conta a história de uma empregada nordestina que trabalha e mora na casa de uma família do Morumbi, bairro nobre de São Paulo. Ela praticamente criou o filho dos patrões, enquanto que não vê a própria filha há anos, desde que a deixou em sua terra para tentar a vida no Sudeste. Até que um dia a jovem chega a São Paulo para prestar vestibular e viver com a mãe.


Nem um pouco submissa, ciente de seus direitos de cidadã, a garota revoluciona o cotidiano familiar regido pelo tradicional “cada um que conheça o seu lugar”. Ela realmente conhece o dela, só que não é o mesmo de sua mãe, que está habituada a diminuir-se e resignar-se, e que se horroriza com a “insolência” da filha. 

 Em duas horas de projeção, está tudo ali: a invisibilidade do proletariado (a empregada serve os canapés numa festa em que nenhum convidado olha para seu rosto), a gentileza que procura atenuar a culpa pela diferença de classes (a patroa compra um colchão melhorzinho para a garota que dormirá no quarto da mãe, assegurando assim que ela não ultrapassará as fronteiras da ala íntima da casa), tudo embalado na boa intenção que mascara a perversidade da desigualdade. Segundo a própria diretora, o filme trata sobre “as regras sociais invisíveis que nos regem, muitas vezes, sem nossa própria consciência”.

Essas regras invisíveis são desvendadas no filme com tanta veracidade, tanta familiaridade, que se tornam perturbadoras. A certa altura, a personagem de Regina Casé tenta explicar para a filha que ela não pode aceitar os agrados dos patrões, pois eles oferecem sorvete e convidam para sentar na sala apenas por educação. “Eles têm certeza de que diremos não”. Até que a classe emergente começa a dizer sim, a reconhecer o verdadeiro lugar a que pertence, e a pirâmide desestrutura-se.

A que Horas ela Volta? sintetiza o momento atual do Brasil, evidencia as razões dessa guerra de nervos partidária, expõe o estresse gerado quando uma teoria demagógica se aproxima da prática, revela o indisfarçado incômodo de assistir à ascensão intelectual e econômica de quem, até então, existia apenas para nos servir. Enfim, escancara o susto gerado pela perspectiva de que todos terão que lavar sua própria privada um dia.

sábado, 5 de setembro de 2015




06 de setembro de 2015 | N° 18286 
MARTHA MEDEIROS

Homens e mulheres: por que isso nunca vai dar certo


Amada, não se apavore com esta mensagem, apenas preste atenção. Sofri um acidente. Silvia me trouxe para o hospital. Vou entrar em cirurgia daqui a pouco, os médicos estão apenas esperando o resultado de alguns exames. Fui atropelado por uma moto. Sofri alguns cortes profundos nas costas e meu joelho está destroçado. Dói muito, mas estou tentando ser forte. O sangramento já foi contido. Por favor, venha assim que puder, estou no setor de emergência do Hospital Nossa Senhora da Purificação, entrada pelos fundos. 


O atropelador fugiu, mas duas testemunhas se apresentaram para prestar depoimento. Há uma capela aqui, reze pelo seu marido. Traga a carteirinha do convênio. O celular está comigo, como você pode perceber. Avise o pessoal do escritório. Não demore. Amo você.”

“Quem é Silvia?”

Querido Ricardo, não adianta falar pessoalmente porque você não me escuta, então resolvi mandar essa mensagem pelo Face, onde fico mais à vontade para me abrir. Depois do que aconteceu na terça-feira, eu refleti muito e concluí que você não está levando em consideração tudo o que faço para salvar nosso namoro: me dedico à sua família, à sua casa, aos seus amigos, isso sem me descuidar um minuto da nossa relação. 

Sempre fui solícita aos problemas de todos, enquanto que você não presta atenção em nada relacionado a mim, sempre focado na sua cerveja, no seu time e nas necessidades imediatas do seu dia a dia, nunca atento ao que realmente interessa e sem perceber como me deixa sobrecarregada. Custa você ser mais participativo? 

Claro que custa, você só tem olhos para o próprio umbigo. Provavelmente se considera um eleito que nada precisa fazer a não ser existir, e os outros que se encarreguem dos problemas. Cansei, Ricardo. Essa mensagem é para dizer que estou indo embora. Terminamos aqui. Vou em busca de alguém que divida comigo as preocupações e os prazeres, que queira investir em mim, em um futuro partilhado, que deseje filhos e um teto em comum. Você só me enrola e já percebi que jamais irá dizer o que desejo escutar. Estou destruída, mas vou me reerguer. Nem perca seu tempo me procurando, não mudarei de ideia, não importa o que você diga.”

“O que aconteceu na terça-feira?”


06 de setembro de 2015 | N° 18286 
CARPINEJAR

Ele morreu me dando a mão


Sou um mensageiro, um carteiro à paisana. Desde pequeno, sinto que psicografo os vivos para os vivos. Mas não imaginava que pudesse estar envolvido seriamente num outro casamento.

Descobri que o aposentado Luiz Fernando, 60 anos, conhecido como Beliche pela família, morreu segurando o recorte de minha crônica “O amor depois do divórcio”.

Ele dormiu numa quinta-feira, em 4 de abril de 2013, e não acordou mais, devido a uma parada cardíaca.

Durante um mês, não tirou o texto publicado em Zero Hora (17/3/2013) dos seus bolsos. Transportava da calça ao casaco. Virou sua segunda identidade: amassada, dobrada, com a tinta curtida do braile da releitura.

Não largava a proximidade com aquelas palavras, que se transformaram em seu pingente de São Jorge, seu escapulário de papel, cortado bruscamente com as próprias mãos da revista Donna.

Entregaria a crônica para sua ex-mulher Ana Maria. Estavam separados havia cinco meses, depois de 15 anos dividindo a mesma casa.

Angustiado com o fim da relação, porém esperançoso de que isso não significava o fim do amor, naquela confusão de não prever o que virá e buscando corrigir os seus erros.

Ele decidira não continuar distante da paixão de sua vida, apesar das brigas e dos desentendimentos, só que faleceu a uma semana da audiência de divórcio.

Luiz Fernando acalentava o sonho de ler a crônica em voz alta na sessão do Juizado. Planejara uma reaproximação maiúscula, contundente, definitiva. Seria sua forma de pedir desculpas e assinalar o quanto aprendera com a distância e o sofrimento.

Vinha decorando o meu texto, memorizando letra por letra, vírgula por vírgula, sendo dono da reflexão mais do que eu já fora um dia:

“Viram que o príncipe se vestia mal, e o sapo coaxava bonito. Viram que não existe demônio ou santo no amor. Não existe certo ou errado, existe o amor e ponto. Este amor provisório, inconstante, inacabado e vivo.

Este amor pano de prato, não toalha de mesa, mas que serve para secar a louça e as lágrimas. Quem era ciumento retorna equilibrado, quem era indiferente regressa atento”.

Fui sua última carta, fui sua confissão, fui seu testamento, fui sua boca murmurando beijos, fui seu braço formigando abraços, fui o seu derradeiro aceno.

Ele nunca declamou a crônica para sua ex-esposa, nunca expressou o quanto amargava a ausência de sua companheira, nunca admitiu a saudade feroz e inimiga que consumia a sua paciência.

O que ele não desconfiava é que Ana Maria também queria se reconciliar.

sábado, 29 de agosto de 2015




30 de agosto de 2015 | N° 18279 
MARTHA MEDEIROS

A teoria do cachorro molhado

Gatos não gostam de banho, é sabido. O meu detesta. Outro dia o deixei numa pet shop para uma ducha completa e, duas horas depois, meu telefone tocou: eram os funcionários se desculpando, pois não haviam conseguido cumprir a missão. Haviam colocado o Nero numa jaulinha aguardando sua vez, e quando a vez chegou ele virou um tigre. Um tigre com dor de dente e pedra no rim, ninguém conseguiu encostar na fera. Saiu da pet shop tão imundo como entrara.

Quando a coisa aperta, o jeito é apelar para fórmulas caseiras. No dia seguinte, estávamos eu e minha filha conversando na cozinha quando vimos que Nero havia saltado para dentro do tanque da área de serviço a fim de lamber algumas gotas de água que sobraram por ali. Nem ao menos traçamos um plano verbal: bastou uma troca de olhares entre mim e ela para sabermos o que deveria ser feito. Me aproximei, abri a torneira bem devagarzinho e deixei cair um filete sobre a cabeça do bichano. Para nossa surpresa, não houve reação. 

Então passamos um sabonete líquido de uma forma meio disfarçada, como se estivéssemos fazendo um cafuné, até que tivemos que abrir mais a torneira para retirar o sabonete, e aí começou a selvageria. Pouparei você dos detalhes, já bastam as notícias catastróficas dos jornais. O que posso dizer é que Nero se sentiu traído, violentado, agredido, surrupiado em seus direitos. Mostrou as garras e jurou ódio eterno à família.

No entanto, o ódio eterno não durou nem três minutos, graças ao seu recurso de secagem instantânea. Não foi preciso enxugá-lo com uma toalha, ele preferiu fazer o serviço sozinho enquanto andava pela casa. Usou a teoria do cachorro molhado, que serve para gatos também: uma boa sacudida resolve.

Bem que podia ser assim conosco, seres de duas patas. Quer se livrar do que não lhe serve, quer tirar de cima um encosto, quer liberar-se do que é pegajoso, grudento, insatisfatório? Uma boa agitada na cabeça, tronco e membros, como se estivesse recebendo um passe. Pronto. Igualzinho como a gente faz quando sai da piscina, quando encontra refúgio numa marquise para fugir da chuva, quando escapa de uma nuvem de poeira. Abanar-se, arejar a roupa do corpo com umas puxadinhas, agitar os cabelos de um lado para o outro, até que o que não lhe pertence descole de você.

Funciona com água, poeira, fuligem, areia. Mas deveria funcionar também para mágoas, maus pensamentos, paranoias. Uma chacoalhada e xô, vai tudo embora, nos deixando zero bala de novo. Sem precisar da ajuda de Freud, Lacan, Jung, apenas adotando a teoria do cachorro molhado. Tente, às vezes a gente consegue. Uma boa sacudida e o ódio eterno por tudo e todos não excede mais do que três minutos.


30 de agosto de 2015 | N° 18279 
CARPINEJAR

Amiga para sair


Homem pode sair sozinho para uma balada e não vai parecer um psicopata.

Pelo contrário, será visto como um caubói, corajoso, livre atirador.

Sempre haverá um balcão para sentar e se mostrar seguro, sempre haverá um barman para puxar conversa e se distrair enquanto o tempo passa. Não depende de matilha e bando para se sobressair. Usufrui de independência para correr riscos, sem a pecha do isolamento, sem a carga social do abandono, sem a obrigatoriedade de uma cumplicidade aos seus crimes amorosos.

Já há um preconceito contra as mulheres.

É ela estar sozinha num bar em alta noite que já recebe todas as suspeitas. É fotografada culturalmente mais do que terrorista lendo jornal em metrô.

Torna-se dependente de uma amiga. Toda mulher precisa de uma amiga solteira. É um item indispensável para alçar voos e mergulhar na boemia.

Não pode somente aceitar o encontro de um homem para uma festa, precisa convencer a amiga, o que não é uma operação simples, mas uma trabalheira.

A aposta de flerte acaba sendo um convite coletivo.

Para um encontro a dois, a mulher recorre a um plano diabólico, a uma operação militar, a um cavalo de Troia.

Tem que cavar atrativos para tirar a sua amiga de casa. No desespero, é capaz de se oferecer para custear o táxi e a consumação. Ou de buscar e levar de volta. Ou de emprestar uma roupa e, inclusive, pagar a manicure.

A ala masculina não faz ideia do esforço de agenda: telefonar sem parar para voluntárias. Pior do que marcar futebol numa segunda-feira chuvosa.

O “sim” para ver alguém logo vira um “e agora, quem vai comigo?”. Bate um terror, uma caça às bruxas, uma acalorada licitação no Facebook.

A mulher é obrigada a trabalhar e ainda achar uma fresta em seu rápido intervalo para efetuar ligações e mandar mensagens e descobrir quem está disponível para a camaradagem e explicar a aproximação com aquele candidato.

Largar a vida de solteira requer primeiro persuadir uma confidente, com nenhum motivo em especial para o programa. Pois o papel da acompanhante não deixa de ser vexatório. Cumprirá a sina de segurar a vela e desfrutar do timing para abandonar a cena de fininho quando pintar uma atmosfera romântica. Sofrerá o constrangimento de se preparar e se maquiar para nada, apenas para atender aos caprichos de uma amizade.

Há grandes riscos de desistir da roubada na última hora e duplicar o caos da interessada.

E o que era difícil – arrumar uma companhia – transforma-se em missão quase impossível – arrumar uma nova companhia em cima do laço.

Mulher sofre para seduzir. Não subestime o que ela enfrentou para estar com você frente a frente.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015



26 de agosto de 2015 | N° 18274 
MARTHA

Bendita maldita

Assisti ao documentário sobre Cássia Eller e, ao terminar, pensei: tanta gente iria gostar, iria entender – ou não iria entender, mas ficaria mexido... É o que estou fazendo aqui. Convidando.

O filme segue a cronologia do nascimento à morte, cobrindo a infância, as primeiras apresentações, as relações amorosas, a maternidade e, por fim, o sucesso. Mas é muito mais do que um simples registro biográfico, e o interesse que desperta não se restringe aos fãs. É uma aula sobre diversidade.

Cássia era tímida. Cássia era vulcânica. Cássia era um doce. Cássia era o demo. Cássia era recatada. Cássia era despudorada. Cássia era roqueira. Cássia era sambista. Cássia era macho. Cássia era fêmea.

Para muitos, o parágrafo acima traz inverdades. Cássia era avaliada pelo senso comum apenas pelo seu lado B, e foi enquadrando-a desse jeito, como uma Janis Joplin tupiniquim, que muitos a digeriram. Cantora talentosa e porra-louca: pronto, está carimbada. Pode colocar na estante dos estereótipos.

Só que não. Todas as afirmações acima estão corretas, e essa multiplicidade de facetas deixa o povo inquieto. As pessoas costumam querer saber direitinho com quem estão lidando, e esse “direitinho” implica um perfil exato e coerente. Se não for assim, a maioria desiste e se afasta. Paradoxos dão trabalho.

Cássia Eller, além de encantar através da sua arte, confirmou que as pessoas não precisam ser malucas ou caretas, boazinhas ou endiabradas, isso ou aquilo. A conjunção alternativa – ou – exige um posicionamento, mas o fato de termos um caráter preponderante não aniquila a segunda hipótese. Mais vale enxergar o mundo através da conjunção coordenativa: e. Somos malucos e caretas, bonzinhos e endiabrados.

Cássia administrava, a seu modo, todas as mulheres e homens que nela existiam. Todas as sonoridades. Todas as reações. Ficava travada diante de um estranho, mas era uma leoa em cima de um palco. Ia de coturno para os bares, mas usava vestido floreado quando grávida. Tinha tudo dentro dela e esse tudo transbordava conforme a demanda do momento, e se isso confunde, azar do confundido. É vida sendo vivida às ganhas.

No final, o documentário traz uma rápida, mas necessária reflexão sobre como a imprensa foi apressada e leviana ao noticiar a morte da cantora. E, com mais destaque, mostra como foi a disputa pela guarda de Francisco Eller, com oito anos na época. 

Numa decisão precursora, o garoto ficou com a companheira de Cássia, com quem ele vive até hoje. Chico, como é conhecido, está lançando seu primeiro CD e, aos 21 anos, é retraído como a mãe, ao menos para entrevistas. Quando alguém pergunta sobre sua história, em vez de responder, ele pega o violão e avisa: “A música é outro jeito de contar”.

É sobre isso o documentário. Todos nós temos mil maneiras de nos contar.

sábado, 22 de agosto de 2015



23 de agosto de 2015 | N° 18271 
MARTHA MEDEIROS

A piada do macaco


A maioria das besteiras que fazemos é fruto de elucubrações que vão minando nosso cérebro

Sempre que começo a criar cenas fantasiosas na minha cabeça, lembro a piada do macaco. Você já deve ter escutado de mil maneiras essa história, mas vou contar do meu jeito: um cara está dirigindo sozinho na estrada quando o pneu fura. Ele está sem macaco para trocá-lo (e sem celular). Não passa ninguém na rodovia, porém há uma oficina a 8km. Ele começa a caminhar pelo acostamento até a oficina, imaginando o que acontecerá. 

Vou chegar lá todo sujo, suado, e o dono da oficina vai desconfiar da minha aparência. Não vai acreditar que o pneu do meu carro furou, vai achar que sou um assaltante. Quando finalmente eu convencê-lo de que sou do bem, ele vai querer me vender o macaco em vez de emprestá-lo, vai pensar que usarei a porcaria do macaco dele e depois não vou devolver. O desgraçado vai pedir um valor abusivo pela ferramenta. Terei que gastar uma nota por causa desse canalha, que nem um copo d´água vai me oferecer.

Chegando lá, antes que o dono da oficina abra a boca, ele o empurra e grita: “Não preciso de você pra nada, seu infeliz, pode enfiar seu macaco você sabe onde!”.

É um exemplo espetacular de piada didática: como não se deixar subjugar pela nossa mente doentia.

Vai dizer: a maioria das besteiras que fazemos é fruto dessas elucubrações que vão minando nosso cérebro. Quem não?

O cara está indo buscar a namorada para uma festa. No caminho, vai dando corda à imaginação: “Garanto que ela vai estar de minissaia preta de novo. Fica uma gata, pena que não sou só eu que acho isso. O Bento já espichou o olho pra ela na última vez. Ela reparou, evidente, e está a fim de me provocar. Vive grudada naquele celular, é certo que os dois estão se falando pelo Whatsapp. Ela quer me ver louco de ciúmes só pra se vingar da mensagem que minha ex deixou na minha timeline. O Bento vai aproveitar a nossa crise e partir pra cima dela hoje à noite. Ainda mais com a piranha dando mole com a minissaia”.

Ao chegar à casa da namorada, em vez de dizer que ela está linda, o ogro despeja: “Tá achando que sou otário? Pede pro Bento te levar, não vou mais a droga de festa nenhuma”.

A esposa recebe do marido uma dúzia de rosas vermelhas, junto a um cartão romântico e um e-ticket para Veneza. Começa a conjecturar: “Que maluquice é essa? Essas flores só podem ser para outra mulher e o paspalho do Pedro se confundiu ao dar o endereço para a florista. Com quase 20 anos de casados, é certo que esse Don Juan está aprontando. 

Quando ele chegar em casa, vai perceber a panaquice que fez e mentir que essas palavras doces eram mesmo para mim. Vai dizer que resolveu finalmente realizar nosso sonho de conhecer Veneza. Com o dólar nas alturas, sei. Capaz que vou acreditar. Aquele traste não me ama mais”.

No fim do dia, quando o marido abre a porta, o trovão: “Pedro, quero o divórcio”.

Lembre-se sempre da piada do macaco.



23 de agosto de 2015 | N° 18271 
CARPINEJAR

Meu filho aprendeu a perder


Jogo para ganhar. Jamais aceitei qualquer derrota, mesmo em treino, mesmo em amistoso. Não se arrisque no frescobol comigo, por exemplo, que vou encontrar um jeito de vencer, ainda que a brincadeira não proporcione nenhuma vantagem.

Só aprendi a perder por amor aos filhos. Passei a não mais me estressar com o placar pela alegria de vê-los felizes.

Quando Vicente era pequeno, eu não forçava o desempenho, não tirava vantagem de minha superioridade física, tirava o pé no futebol, treinava para acertar na trave com o gol feito. Ele sempre ganhava em nossas partidas no pátio.

Como trabalho paterno, restava-me tensionar o duelo: errar e ainda lamentar, perder e ainda resmungar e não permitir um escore muito dilatado. Dramatizava a derrota para não entregar que entregava o resultado. Disfarçava a marmelada com um toque de ribalta. O pequeno se esbaldava em comemorações, em gritos e rodopios, em uivos de triunfo, e esnobava a sua supremacia em histórias para a mãe no almoço e na janta.

Quando ele cresceu e ficou adolescente, comecei a firmar o passo, a aumentar a frequência do acerto, a equilibrar o duelo, a arrancar algumas vitórias em meio à enxurrada de derrotas. Saía lentamente da zona de rebaixamento. O esforço superava a encenação. Já suava excessivamente, já penava, já não economizava o fôlego. Fazia entradas duras e não me omitia de correr. As disputas milagrosamente se igualaram.

Festejava a humildade do meu rapaz: finalmente aceitava perder, admitia perder. Atingia um novo estágio do aprendizado da vida.

Diante dos revezes, em que não conseguia brilhar, ele me cumprimentava e reconhecia que fui melhor. Não botava a culpa nas circunstâncias. Não arranjava desculpas furadas. Até me elogiava pela vitória e me incentivava a prosseguir evoluindo os fundamentos.

Terminava encantado com o seu discernimento e a sua esportividade: inacreditável como se tornou leve e compreensivo, valorizando a competição acima do resultado! Antes intolerante e manhoso, mostrava-se solidário e gentil.

Mas não havia percebido, presa ingênua das maquinações do amor.

Tardei a ter consciência da real natureza da mudança de comportamento de meu filho.

Agora é ele quem me deixa ganhar de propósito, pois acha que envelheci.

  22 de agosto de 2015 | N° 18270 
PALAVRA DE MÉDICO
J.J. CAMARGO

Devolvam nosso sonho


Por que os pacientes idosos lamentam a superficialidade das relações da medicina moderna?

Nos últimos 50 anos, a medicina avançou mais do que em toda a história da humanidade pelo assombroso progresso tecnológico, que contou com a contribuição de inúmeras áreas do conhecimento. A aplicação da física transformou o mundo da imagética, e enquanto o Raio-X era o método mais sofisticado de inspeção não invasiva do corpo humano há apenas 30 anos, atualmente as incríveis imagens da moderna tomografia têm estimulado os mais audaciosos a sugerir diagnósticos histológicos. A antecipação dos achados pelos exames de imagem melhorou a seleção dos pacientes e praticamente extinguiu as inúteis cirurgias oncológicas exploradoras.

A necessidade de acompanhar os batimentos cardíacos de astronautas conduziu ao desenvolvimento dos moderníssimos monitores da terapia intensiva, e os avanços da genética e os progressos da biologia molecular prenunciam a conquista da tão sonhada longevidade qualificada.

Apesar dessa competência adquirida, os pacientes idosos de hoje falam com nostalgia dos médicos de ontem. E lamentam a superficialidade das relações impostas pela chamada medicina moderna. Quando houve a ruptura? Onde perdemos o compasso?

É verdade que o médico antigo, limitado à condição de mero contemplador da história natural das doenças, dedicava-se exclusivamente a aliviar sofrimento e, nesta tarefa, os quesitos parceria e solidariedade eram as escassas armas de que dispunha.

É possível que o médico moderno, cônscio de sua maior competência, tenha sido vítima de alguma soberba, mas nada que justifique a frieza de que se queixam os pacientes.

A chamada medicina de grupo, um subproduto lamentável da socialização do atendimento, substituiu a figura do “meu médico” pelo “meu plano de saúde” e pariu a figura do atravessador, que delibera sobre a necessidade de exames, escolhe terapias e materiais, exige justificativas para condutas das quais não tem a menor noção, determina que o paciente deva vir de casa sem preparação para uma cirurgia de grande porte, enfim, brinca de médico, mas, quando pressionado, nega-se a assumir qualquer responsabilidade, porque, afinal, isso é coisa para os médicos de verdade.

Essa sucessão de atropelamentos do bom senso, aliada a honorários aviltantes, tem minado o ânimo de um profissional que devia ter sua atividade embalada pela doçura e pela generosidade, e se sente frustrado ao vê-la transformada em mero instrumento de sobrevivência.

Não desisto de transmitir aos iniciantes minha convicção de que medicina de qualidade, temperada com uma boa relação afetiva, é receita certa para a realização pessoal e profissional.

Mas agora mesmo fiquei desconfortável ao perceber que está cada vez mais difícil convencer os mais jovens de que isto ainda é possível e conseguir entusiasmo para seguir colocando lenha na fogueira dessa utopia.


22 de agosto de 2015 | N° 18270 
CLÁUDIA LAITANO

Boa-fé


No princípio, era a fé. Muito antes das grandes religiões monoteístas estabelecerem seus dogmas e colarem à palavra sua conotação espiritual, fé era o elemento imaterial do acordo de confiança entre duas partes. Se dois homens saíam juntos para caçar javalis e combinavam dividir a caça na volta, era a fé na palavra mutuamente acordada que garantia que um não iria matar o outro para levar o javali inteiro pra casa.

Vem do Direito Romano o conceito de “bona fide”, que daria origem à “boa-fé” como ela aparece na teoria jurídica e nas leis até os dias de hoje. Conforme o Direito, existem dois tipos de boa-fé: a subjetiva, que busca conhecer as intenções de uma pessoa em determinada circunstância, e a objetiva, que lida com parâmetros que devem ser seguidos por todos, independentemente do que cada um sabe ou acredita. A “má-fé” relaciona-se, portanto, à boa-fé subjetiva. 

Age com má-fé, por exemplo, o caçador que arruma uma boa desculpa para comer sozinho o javali – se é lorota ou não, só ele sabe. No caso da boa-fé objetiva, não vem ao caso a boa ou má intenção do caçador, mas o princípio segundo o qual ele agiu, a lealdade aos acordos estabelecidos e o desejo genuíno de cooperar para um ambiente de justiça e confiança.

Quando o assunto é religião, somos constantemente tentados a eliminar o hífen e a dar um sentido literal aos termos boa fé e má fé. A fé boa sendo aquela que realiza um desejo interior de transcendência e fraternidade que mesmo uma ateísta convicta como esta que vos escreve consegue entender e respeitar. A fé má, desvirtuada, sendo a que incita à intolerância e desrespeita as diferenças de credo, muitas vezes contradizendo os próprios dogmas que afirma defender, ou se aproveita da boa fé (sem hífen) dos crentes.

As denúncias do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, apresentadas nesta semana ao STF, incluem a informação de que parte da propina que o deputado teria recebido foi paga por meio de transferências para as contas da Assembleia de Deus – à qual o deputado é ligado por domínios do espírito e da internet (Cunha é dono de um portal chamado Jesus.com).

Se comprovadas, as acusações de que Eduardo Cunha faz parte do esquema de corrupção descoberto pela Operação Lava-Jato revelam que ele agiu sem a boa-fé objetiva – aquela que exige princípios, probidade e honradez nas relações. Já o envolvimento de uma igreja nas contas sujas de dinheiro desviado de corrupção é um caso exemplar do que pode acontecer quando má fé e ausência de boa-fé acabam associadas na mesma pessoa.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015



19 de agosto de 2015 | N° 18266 
MARTHA MEDEIROS

Educação financeira


Dormir tranquila sem me preocupar com dívidas e poder viajar de vez em quando: é o que faz de mim uma milionária, no meu ponto de vista. Nada a ver com fortuna em banco, e sim em poder desfrutar essas duas condições fundamentais para meu equilíbrio. Raramente compro a prazo, nunca usei cheque especial, gasto o que tenho e, se não tenho, não gasto. Mesmo quando estou mais folgada de grana, não deixo de pesquisar preço no supermercado e, se algo não vale o que está sendo cobrado, não compro. Qualquer etiqueta que chegue aos três dígitos me faz recuar e pensar.

Sou milionária porque posso comprar flores frescas para casa e vinho para minhas refeições. Posso pagar um convênio de saúde particular e investir em livros, cursos, shows. Posso colocar combustível no carro e ter um carro – ainda que já não veja grande vantagem em ter um carro.

Sou milionária, antes de tudo, porque não preciso dizer sim para todas as propostas que chegam, e essa liberdade é inegociável. Hoje, posso abrir mão daquilo que sei que não realizaria com prazer. Não agarro com sofreguidão qualquer oportunidade de somar zeros na minha conta. Faço apenas o que quero e gosto, sem ser regida pelo mais + mais + mais. Meu conceito de luxo não envolve grifes exclusivas e vida de princesa. Poder fazer escolhas atendendo apenas à minha vontade e à minha consciência, sem nenhum tipo de pressão, é o que de mais valioso conquistei até aqui.

Claro que não foi sempre assim. Aos 19 anos, trabalhava de manhã e à tarde e estudava à noite. Nunca parei de trabalhar desde então. Já varei madrugadas acordada e fiz muitos plantões em finais de semana. Eu me virava como se viram todas as pessoas. A maior parte delas, a vida inteira.

A tranquilidade veio de uns poucos anos para cá. Mas a educação financeira veio desde cedo, desde a casa de meus pais. Expressões como calote, agiota e ficar no vermelho não faziam parte do vocabulário da família. Dívidas só eram contraídas com o objetivo de investir, nunca para consumir. Pagar as contas em dia era uma religião, só se gastava com supérfluo o que sobrasse – se sobrasse. Honrar o nome era sagrado, nosso patrimônio maior.

Hoje, o Rio Grande do Sul está falido por não ter seguido os conceitos básicos da educação financeira. No entanto, muitos que criticam a atual situação do Estado agem da mesma forma como pessoas físicas. Compreendo que quem ganha uma merreca (a maioria) precise fazer malabarismo com o que ganha, mas mesmo quem nasceu em berço esplêndido tem dificuldade em priorizar: paga R$ 1.500 por um casaco, mas está devendo o condomínio; gasta R$ 300 no salão de beleza, mas atrasa o salário da empregada. Foca na aparência achando que o rombo nunca vai aparecer.

Vale pra tudo e todos: a conta sempre chega.