sábado, 30 de abril de 2016



30 de abril de 2016 | N° 18513 
CARPINEJAR

Trabalhos de Hércules


Sua aprovação pela família da namorada depende de um demorado estudo de caso. Você pode ser tolerado, mas contar com o apoio é negócio sério. Não é porque troca sorrisos, é chamado para o churrasco de domingo e recebe lembrança nas datas comemorativas que foi aceito. Não cante vitória antes do apito final. Os sogros são craques na arte de misturar cordialidade e fingimento.

O estágio probatório não decorre da quantidade de meses da convivência, é resultado de três experiências cruciais: aniversário, casamento de parente e velório de alguém próximo. Com exceção do primeiro, o mais fácil de se prever, o segundo e o terceiro virão de sortilégios e fatalidades do reduto familiar. É comum não atravessar a trilogia da aceitação, e assim namorados permanecem no limbo do estado civil e jamais são definitivamente aprovados ou negados.

Para ser levado a sério, necessita atravessar os rituais fundamentais da maturidade, caracterizados pela passagem do tempo, pela celebração do amor e pelo respeito ao fim e à morte. Só assim entenderá a gravidade de um compromisso. Reagirá aos extremos dos encontros e das pessoas, onde tudo pode acontecer – tudo mesmo!, desde piadas de mau gosto, passando por provocações carentes, desembocando em escândalos inesquecíveis. A chance de escapar de um constrangimento é mínima. Descerá ao último círculo infernal do contato humano. Prepare-se para a chacota de primos, para indiscrições das tias, para a troca consecutiva de seu nome.

Não haverá melhor curso de noivo do que enfrentar a parentada alheia na alegria e na tristeza.

No aniversário de sua namorada, demonstrará a avareza ou a generosidade, se é capaz de fazer uma festa-surpresa, chamar os amigos e escolher um presente que simbolize que a conhece bem. Representa um momento único de discrição, em que descobrirá se está preparado para desaparecer em nome da visibilidade completa da aniversariante.

No casamento, serão testadas a sua educação e autocontrole. Não deve beber demais ou comer excessivamente, muito menos estragar a reputação na pista de dança descendo até o chão. Evite puxar estranhas para coreografias e convidar vovós a números sensuais. Trata-se da prévia do seu futuro casamento, se é habilitado a suportar o calvário das declarações românticas sem recorrer ao cinismo e ao sarcasmo.

No enterro de um ente querido daquela que ama, terá que encontrar a elegância do terno e da alma escura. Provará o gosto amargo da saudade e das cenas engasgadas da despedida. Conhecerá também a insuficiência das palavras de apoio. Por mais que ofereça colo e conforto, jamais aplacará o sofrimento de sua companhia. Secará as lágrimas do rosto dela com a ponta dos dedos, cuidando para não borrar ainda mais a sua maquiagem, consolará quem você nunca viu na vida, manterá a cabeça erguida e atenta aos gritos e uivos ao redor do caixão.

Se você sair ileso da tríade de situações-limite pode retirar a certidão de nascimento na família da sua namorada.



30 de abril de 2016 | N° 18513 
MARTHA MEDEIROS

Adúlteros

Um adulto de verdade trai a si próprio sem um pingo de culpa. Festeja a alforria que o acúmulo de vivência lhe trouxe de bônus

Todo adulto é um adúltero. Não precisa ser fiel a mais nada.

Se ele continua apegado a antigas convicções, antigas preferências e antigas manias, é um preguiçoso que se acomodou, escolheu viver de forma repetitiva, no piloto automático, cansado para novos entusiasmos. Está aguardando a morte sem aproveitar a liberdade que a maturidade lhe daria, caso tivesse amadurecido. Se ainda está agarrado ao que lhe definia aos 18 anos, então não saiu mesmo dos 18.

Um adulto de verdade, bem acabado, trai a si próprio sem um pingo de culpa. Festeja a alforria que o acúmulo de vivência lhe trouxe de bônus. Tornou-se um condenado à morte com direito a centenas de últimos desejos.

Um adulto é um adúltero que um dia jurou fidelidade eterna aos Beatles e aos Rolling Stones, mas que um belo dia cansou de conservá-los com naftalina e que resolveu confessar que já não consegue escutar Yesterday sem enfrentar náuseas e que se sente ridículo dançando I Can´t Get No Satisfaction. Trocou o rock pelo neo soul, seja lá o que for isso. Escuta coisas que despertam sua atenção aqui e ali, estilos que gosta num dia e dispensa no outro, e segue em busca de novidades sem querer aterrissar em mais nenhuma “banda preferida” que lhe enclausure num perfil. Só não rasga a carteira de identidade porque o juízo se mantém.

Um adulto é um adúltero que adorava o verão quando era um frangote, mas que, ao abandonar as pranchas e ao se aproximar dos livros, acabou criando uma predileção pelo inverno, até que o tempo passou mais um pouco e ele entendeu que a primavera e o outono é que eram cativantes pela ausência de extremismo, e agora, neste instante, voltou a preferir o verão, mas não assina embaixo, não tem mais firma reconhecida em cartório algum.

Um adulto é um adúltero que deixou de ser fiel aos próprios gostos. Deu-se conta disso quando, ao frequentar a casa de amigos, reparava que serviam a ele sempre o mesmo prato preferido: como explicar que virou um cafajeste gastronômico chegado a outros sabores? As conversas igualmente passaram a se repetir, e ele se pegou aceitando convites de estranhos - hoje é chegado a outros amigos também.

Don Juan de si mesmo, já não tem cor que lhe assente, autor que o represente, estilo de vestir que o catalogue, pensamento que o antecipe, sonho que o enquadre, viagem que o carimbe. Só não muda de time porque restou algum caráter.

Quanto ao amor, não é tolo. Sabe que quanto mais ele se abre para o mundo, quanto mais areja e celebra a própria vida, mais seguro estará nos braços de uma única pessoa, preservando a intimidade conquistada. Amor não é cor, música, esporte, estação do ano, ponto no mapa. Ele varia a si mesmo justamente para não precisar se procurar em mais ninguém.

quarta-feira, 27 de abril de 2016


27 de abril de 2016 | N° 18510 
MARTHA MEDEIROS

Dress code


Ela estava em frente à tevê, na sala, assistindo a mais uma excitante edição do Jornal Nacional, que naquele momento mostrava a entrevista feita com o porteiro de um prédio de luxo cujos apartamentos haviam sofrido um arrastão. Nisso, surge o filho vindo do quarto, enfiando a carteira no bolso da calça e se aproximando para dar um beijo de tchau.

– Tchau, mãe.

– Onde é que você vai?

– Vou pegar a Ana e vamos a um bar encontrar uns amigos.

– Você não está pensando em ir pra rua nesse estado.

– Não entendi.

– Com essa roupa, não vou deixar você sair de casa.

– O que tem minha roupa?

– Vão confundir você com um bandido, meu filho. Vai lá dentro se trocar, a Ana espera.

– Bebeu, mãe? Vou trocar nada. O que tem de errado com a roupa? Comprei esta camisa ontem, custou uma nota.

– Pois é.

– E a calça? É a melhor que eu tenho.

– Tô dizendo. Parece um fora da lei.

– Engraçadinha, virou piadista agora. Tchau, não volto tarde.

– João Guilherme, eu não estou brincando. Não criei filho para ser parado em blitz no meio da rua, colocando mão pra cima de capô de viatura. Vai lá dentro e te desarruma um pouco.

– Mãe...

– Tá me olhando com essa cara por quê? Você não viu essa reportagem que acabou de passar? Eram quatro os assaltantes, um mais engomadinho que o outro. E a Aline, a vizinha aqui do 302, você não soube? Trouxe um meliante pra casa achando que tinha encontrado o príncipe encantado. Maior pinta de deputado. Na manhã seguinte, quando acordou, descobriu que o príncipe havia feito a limpa no apartamento. O retrato falado dele poderia estampar a capa do catálogo do Giorgio Armani. E você querendo sair na rua nessa beca.

– Você tem que parar de ver televisão.

– E você tem que parar de ser tão alienado, João Guilherme. Parece que não sabe em que mundo vive.

– Tchau, mãe, quanto mais cedo eu sair, mais cedo eu volto. Tenho reunião amanhã de manhã no banco.

– Não inventa de ir de gravata. Juízo.

sábado, 23 de abril de 2016



23 de abril de 2016 | N° 18507 
MARTHA MEDEIROS

Sua estupidez não lhe deixa ver


Vá trabalhar. Vá namorar alguém que goste de você pelo que você é e não pelas suas presepadas juvenis. Você que faz rachas na rua.

Se tem menos de 18 anos, é um bobalhão com titica de galinha na cabeça. Na sua infinita idiotice, acredita que seduzirá as meninas caso roube o carro do pai ou – pior! – roube qualquer carro a fim de voar pelas avenidas. Pensa que é assim que irá se transformar em um adulto: desafiando o perigo. Criança, vá estudar. Vá trabalhar. Vá namorar alguém que goste de você pelo que você é e não pelas suas presepadas juvenis. Não dê motivo para seus pais se arrependerem de ter trazido você ao mundo. Vire homem, e não um bandido. Tem gente que pode morrer por sua causa. Sua estupidez não lhe deixa ver.

Se tem mais de 18 anos, também é um bobalhão com titica de galinha na cabeça, igualzinho à criatura do parágrafo acima, incluindo a infantilidade.

E se tem 39 anos, 52 multas, uma carteira de habilitação suspensa, 10 cervejas na corrente sanguínea e um carro possante em mãos, aí não há o que explique. Fazer um racha nessas condições? É bem grandinho para prever as consequências de seu vício em adrenalina. E deveria estar a par de outras atividades que resultam em bastante emoção: saltar de paraquedas, surfar, escalar montanhas, fazer trekking, rafting, rali, mergulho, balonismo, bungee jump. Até jogar truco provoca certa palpitação.

Mas se nada disso interessa, se o sujeito encasquetou com o automobilismo, trago boas notícias: existe um autódromo bem pertinho de Porto Alegre, em Viamão. Chama-se Tarumã, que dias atrás completou 56 anos de existência. A pista tem extensão de mais de três quilômetros, nove curvas e o asfalto foi todo recapado. É o circuito com a maior média de velocidade do Brasil. O site traz toda a programação – de repente você consegue se inscrever em alguma categoria de corrida. Não sai barato, mas posso garantir que gastará bem menos do que com advogados e indenizações por lesões corporais graves.

Ah, lá tem um kartódromo também. Parece que custa R$ 85 por pessoa ou algo assim. Você coloca um capacete, pisa fundo no acelerador e não ameaça a vida de nenhum pedestre e de nenhum outro motorista.

Não serve? Tem que ser roleta-russa? Tem que ser algo bem irresponsável, uma cretinice daquelas? Entendi. A busca é por uma emoção realmente diferenciada, como ir para a cadeia.

Se você é um desses que faz racha pelas ruas da cidade, abra o olho enquanto é tempo. A estupidez está cegando você. Depois não adiantará alegar que não viu nada.



23 de abril de 2016 | N° 18507 
CARPINEJAR

Jair e Zé Capitão

Jair tem 80 anos, Zé Capitão tem cara de 90. Não conheço amizade tão bonita entre dois homens. Amizade pura de menino, de sujar as calças da missa subindo em árvores e jogando bolita de gude.

Eles nunca se entristecem, é estar perto que formam um domingo e reencontram a esperança infinita da infância. Sempre arrumam o que fazer, mesmo que seja atirar pedras no rio, buscando o arremesso certo, de faiscar a superfície.

Conversam sem dó sobre qualquer assunto, de política a pintura, de pássaros a aviões. Jair é divorciado, e Zé é casado. A paixão pelas suas mulheres somente alimentou a confidência. Velhos homens hoje, mas com uma velhice dividida que é quase uma juventude.

Eles se veem duas vezes ao mês na fazenda de Zé em Lagoinha de Fora (MG), depois de Lagoa Santa. Jair armou uma placa para avisar todos que passam onde mora o seu melhor amigo: a 2 km o buraco de Zé Capitão. Criou o desenho de um pescador queimado pelo sol.

Zé não anda mais, amputou as duas pernas devido a diabetes. Jair movimenta-se pelos dois para pescar carpas. O filho do Zé ainda corta os cabelos de Jair, apesar do hábito de aparar mal e abrir um caminho de ratos. Jair deixa porque é filho do Zé.

Jair é chamado de Jairo por Zé Capitão – ninguém sabe o motivo. Assim como Zé, quando gosta de algo, diz que é mexicano. “Come esta mexerica? É mexicana!” Ninguém também sabe o motivo. Não é bom perguntar. Há piadas que são só dos dois, segredos de longas risadas.

No entardecer, ambos se juntam para cantar serestas. A Noite do Meu Bem é a preferida do dueto que arranha uma viola caipira. Os cachorros disputam a audiência com ganidos para a lua.

Eles deitam na cama assistindo novela: Jair, Zé e Elza, a jovem esposa de Zé. Engraçado os três estirados. Não falam coisa alguma até vir o comercial. Não existe malícia, não existem segundas intenções. São homens antigos ocupando os espaços do silêncio.

Se não fossem amigos, não seriam Jair nem Zé Capitão.

Já perderam dinheiro, bens, posses, relações, jamais se perderam, jamais serão loucos. Loucura é estar completamente sozinho neste mundo.

Amigos podem ser mais do que irmãos de sangue. Pois inventam os seus próprios pais para cuidar melhor um do outro.

quarta-feira, 20 de abril de 2016


20 de abril de 2016 | N° 18504 
MARTHA MEDEIROS

Cumplicidade


Quem é amigo de quem naquele antro situado no Planalto Central? Temer é aliado de Cunha? Cunha é parceiro de Calheiros? Calheiros está do lado de Jucá? As respostas não importam, uma vez que lealdade nunca foi assunto levado a sério em Brasília. É certo que um dia ainda veremos Dilma e Aécio abraçados, Lula beijando a mão de Janaína Paschoal e todos cortejando a todos, bastando para isso conveniências políticas e um esquecimentozinho básico (e, claro, desde que permaneçam todos soltos, livres da cadeia ou do hospício). Já vi esse filme várias vezes e, mesmo consciente da seriedade do momento, não tenho mais paciência para esse elenco de canastrões.

Vamos trocar de filme?

Cumplicidade é o assunto do excelente Truman, coprodução espanhola e argentina com o ator Ricardo Darín, que conquistou o padrão Fernanda Montenegro de dramaturgia – qualquer coisa que ele faça em frente à câmera é fenomenal, mesmo que apenas respirar. E com o também excelente Javier Cámara, que com um texto mínimo alcança a mesma potência cênica. Olhares, gestos, silêncios e rápidas observações satíricas bastam para compor uma conjuntura de emoções intensas.

Dois amigos de uma vida inteira que se reencontram quando um deles adoece com gravidade. Dois homens que moram em continentes diferentes, mas que nunca deixaram de ser íntimos. Na verdade, três, pois há um cachorro na história (o Truman do título). A amizade verdadeira não precisa de muitas palavras. Quem tem um cão sabe.

Eu esperava uma longa conversa sobre a vida e a morte (e não acharia ruim), mas o filme é absolutamente fiel ao universo masculino: homens não são de muita filosofice, e isso me fez sair do cinema ainda mais encantada pela classe. Não todos, mas muitos homens são daquele jeito mesmo que a gente vê na tela: emotivos, engraçados, econômicos, sensíveis, sem frescuras, avessos ao dramalhão e levemente safados. 

Há, bem perto do final, uma cena que causa certo desconforto, mas que o personagem de Darín resume com duas palavras: “Faz sentido”. E faz. Porque é difícil racionalizar diante da dor, nem todos sabem como externar seu sofrimento, somos todos carentes diante de uma situação-limite, e, às vezes, o que parece gratuito é apenas uma forma de arrancar a fórceps o que está represado dentro. Como explicar? Não tem explicação. É por ser assim, instintivo, que o que aparenta ser errado ganha o selo da pureza.

Cúmplice, em política e na bandidagem, é aquele que comete um crime junto com você. Nas relações de amizade – e no cinema de qualidade, que não apela para o sentimentalismo barato –, cúmplice é aquele que não julga, simplesmente compreende e, sem muitas perguntas, segura tua mão.

terça-feira, 19 de abril de 2016



19 de abril de 2016 | N° 18503 
CARPINEJAR

Lasca inútil

Eu apoiei o braço na mesinha do microondas. E arranquei sem querer a tira de madeira. Busquei colar, mas faltava um pedaço ínfimo, para reconstituir integralmente a peça. A lasquinha inútil, que não enxergava onde estava, era a responsável pela liga. Vasculhei o chão com as mãos, e nada.

Fiquei me encarando no reflexo do microondas, como se procurasse um rosto que não o meu. As relações de amor são assim: perdem-se por uma lasca.

É algo que nenhum dos dois percebeu como importante, mas que fará a maior falta para encaixar as partes das personalidades. É algo desprovido de valor isoladamente, só que conservava intacta a superfície e a promessa de uma vida conjunta.

As duas extremidades apresentam uma fissura irremediável. Quem diria que uma lasca fosse quebrar o móvel? Uma lasquinha boba, uma lasquinha de ralos centímetros.

A lasca é a construção da destruição, é a fabricação do vazio. Lasca é um erro que não existia no começo do romance, é um atrito, um desgaste, uma falha da soberba dos movimentos. É pensar que conquistou a pessoa e, desse jeito, perdê-la definitivamente – esquece que ela ainda aguarda alguma surpresa e que a mesinha não é de ferro. 

É acreditar que ela sempre estará ali segurando o microondas ou as expectativas. É o que deixou de ser dito por achar que haveria tempo de sobra. É o que deixou de ser sentido por achar que poderia ser feito no dia seguinte. A paciência é maravilhosa na solidão, e perversa na vida a dois.

A lasca é o tarde demais: a fissura, a falta de uma sobra. É a roldana de um poço fechado, é a maçaneta que cai ao abrir a porta, é a aldrava que não gira quando a janela pede vento.

O amor engasga, a fé engasga, a esperança engasga. É a separação por confiar que nada seria capaz de separar o casal.

A lasca é o egoísmo de querer cuidar somente de si e realizar os próprios sonhos enquanto o outro espera. Não há maior egoísmo do que fazer o outro esperar resolvermos os nossos problemas ou ambições. Ou se resolve junto, ou a ruptura virá impiedosamente.

A maior parte dos casais confunde o eterno com o imutável. Imutável é a surdez do tédio, a monotonia de não sair do lugar. Eterno é viver mudando para nunca cansar de amar.

Não visualizava a lasca porque ela havia entrado na pele de minha mão. A lasca é uma farpa que entra na carne dos relacionamentos. E machuca com a violência do vidro partido e jamais refeito.

quarta-feira, 13 de abril de 2016



13 de abril de 2016 | N° 18498 
MARTHA MEDEIROS

Sua majestade, o dinheiro

Diante dos fatos, a vergonha. Vergonha pelas alianças sem critério, pelos acertos por baixo dos panos, pelos conchavos, pela desfaçatez com a qual ninguém se constrange mais. Governantes cometem indecências para garantir sua boquinha e a corrupção, que é a verdadeira inimiga de todos nós, segue pouco discutida.

Como e quando a corrupção irá acabar?

Se a Lava-Jato fosse uma operação permanente de combate à impunidade, a corrupção talvez diminuísse um pouco, pois sempre tem um ou outro que amarela quando cogita ir para a cadeia. Mas o mais provável é que surjam novos e sofisticados métodos de roubalheira – o ser humano é criativo. Será que não existe um jeito de cortar a corrupção pela raiz?

O primeiro passo é lembrar qual é a raiz da corrupção: o dinheiro.

O segundo passo é acreditar em conto de fadas. O empresário Ricardo Semler deu uma ótima entrevista para a Globonews, em que declarou que só há uma maneira de acabar com a corrupção no Brasil e no mundo: modificando nossa relação com o dinheiro.

Talvez ele também acredite em príncipes e princesas, mas por mais idealista que seja, não há como discordar. Por que as pessoas corrompem e são corrompidas? Para obterem vantagens – quase todas envolvendo dinheiro ou poder.

Em um mundo ideal (portanto, irreal), as pessoas receberiam pelo seu trabalho um valor justo para garantir suas necessidades e estaria ótimo assim. Se seu trabalho rendesse mais do que elas precisam, beleza – elas teriam acesso a supérfluos, o que não é pecado, desde que esteja tudo dentro da lei, sem precisar burlar contratos ou molhar a mão alheia. Se valorizássemos as principais qualidades humanas, ninguém precisaria fazer besteira para parecer mais importante do que é.

Como se mede a importância de alguém? Pela ética. Pela compaixão. Pela honestidade. Pela competência.

Isso no reino da fantasia, pois aqui, neste mundo pirado e competitivo, as pessoas medem a importância uma das outras por metro quadrado, por cavalos no motor, por dólares no Exterior, por técnicas farsescas de sedução, pelo que está escrito no cartão.

Não basta ter reais suficientes. Queremos realeza.

Mas em vez de nos sentirmos soberanos através do número de amigos que fizemos, através da credibilidade conquistada, através de nossas vitórias profissionais e emocionais, queremos é sentir o gostinho de estacionar onde bem entender, de voar pelas estradas sem ninguém nos alcançar, de receber tratamento VIP, de sermos vistos como diferenciados, criaturas acima do bem e do mal. Para que esperar merecermos coisas boas da vida se podemos comprar as extraordinárias?

A corrupção só terminará quando o dinheiro deixar de ser usado para mascarar nossa miséria existencial.

sábado, 9 de abril de 2016



09 de abril de 2016 | N° 18495 
MARTHA MEDEIROS

Um pouco de doçura


São a Leila e a Cris que seguram o leitor nas mãos: fisgado e rendido, ele ficará preso até a última linha, quando então retornará à vida acreditando novamente na espécie humana

Que a vida anda truculenta não é novidade. Milhares de pessoas têm recorrido à meditação, yoga, ayurveda e tudo o que ajude a purificar a mente, o corpo e o espírito. Pois recomendo incluir um livro na receita. Prescrevo Leila Ferreira e Cris Guerra para detox.

Doçura, inteligência, graça, suavidade – lembra? Também imaginei que estivessem em extinção, mas descobri que seguem vivos nas páginas de Que Ninguém Nos Ouça, escrito a quatro mãos pelas duas escritoras mineiras acima mencionadas. Não que seja uma literatura para mocinhas inocentes: o assunto muitas vezes é barra. Nem Leila, nem Cris saltaram de um conto de fadas. Leila foi criada apenas pela mãe e passou por uma infância de provações. 

Cris ficou viúva quando estava com sete meses de gravidez. Porém, mesmo quando confidenciam a parte trash de suas trajetórias (pequenas e grandes tragédias cotidianas que deixam cicatrizes), a delicadeza continua mantendo o tom. Amargas? Nem que quisessem. Nem que tentassem. É o único talento que elas não têm.

São confessionais sem seres histriônicas. Verdadeiras sem serem rudes. Honestas sem serem simplórias. Nesses tempos em que está tudo polarizado (ou é isso ou aquilo, cada extremo defendendo-se aos gritos), como não ficar comovido por quem é tão hábil em encontrar o equilíbrio saudável entre as diferenças?

Leila, 62 anos, é jornalista tarimbada, com 1.600 entrevistas no currículo, feitas no tempo em que trabalhava na tevê. Cris, 45, é uma blogueira antenada e está vivendo o auge da profissão. Duas mulheres e seus amores felizes e infelizes, suas dores inevitáveis e seus prazeres escolhidos, suas visões sobre o envelhecimento, sobre o papel da moda, sobre dietas estúpidas, sobre os efeitos colaterais da agressividade, sobre o poder das amizades, sobre suas vidas em princípio tão particulares, mas que encontram ressonância na minha e certamente encontrarão na sua também. Um livro feminino, mas digestível para qualquer sexo. É doce, mas não é enjoativo. Sugar free.

Sou muito amiga da Leila, e conheço a Cris também, ainda que pouco. Duas mulheres incomuns e com experiências singulares: só pelo voyeurismo consentido, já valeria dar uma espiada nessa troca de e-mails entre as duas. Porém, basta abrir a primeira página para perder a ilusão de que teremos algum controle sobre a leitura. São a Leila e a Cris que seguram o leitor nas mãos: fisgado e rendido, ele ficará preso até a última linha, quando então retornará à vida acreditando novamente na espécie humana.

Se não estou enganada, é do que mais precisamos no momento.



09 de abril de 2016 | N° 18495 
MÁRIO CORSO

Eu, o vidiota


Poucas coisas me deixam mais abobado do que estar em frente a uma TV. Logo eu, que quase não a assisto. Nada ideológico, planejado, apenas sempre tenho outra coisa para fazer. A passividade que ela pede é demais para minha inquietude. Coisa de maluco, não tomem como uma virtude.

Mas então, por que eu fico um débil mental quando estou em bares, em restaurantes, na casa de amigos e surge uma tela ligada? E o detalhe escabroso, eu fico fascinado com os comerciais, nunca com os programas. É o mundo rápido e colorido da propaganda que me hipnotiza.

Poderia ser pela novidade, pois essas propagandas que vos enchem o saco, para mim, são todas novas. Imagine um canal em que todos os comerciais são originais, serão vistos uma vez e depois desaparecerão no abismo dos comerciais esquecidos. Assim é para mim. Mas a explicação pela novidade não me basta.

Descobri que o que me captura é a promessa. Neste mundo partido, sofrido, sem ideologia, sem sonhos, a propaganda converteu-se no último refúgio da utopia. Só lá somos amigos do rei. Só lá podemos encontrar as três mulheres do sabonete Araxá.

O mundo da propaganda é o mundo perfeito, é o mundo que sonhamos. A praia tem sol, está limpa e só tem gente bonita. A cerveja é gelada, o atendimento é rápido, a garçonete não só atende ao chamado como já te traz a birita, e é ainda mais bonita do que os figurantes.

Nosso carro de 220 cavalos roda sozinho de janela aberta numa cidade também limpa – a higiene é um quesito importante nesse mundo –, pois não existe engarrafamento. Existem muitas vagas para estacionar. Ninguém buzina, nem está estressado, tampouco fazem alusões ao passado da nossa mãe.

A comida vem congelada num saco plástico. Mas, tirando dali, em segundos, apenas com o uso de um forno, ela se autoenfeita e pode ser servida para a Rainha da Inglaterra. Todos vão elogiar o sabor local, o terroir, daquela gostosura. A receita é da nona que renasce para lhe dar um beijo.

Esse xampu que você compra não é para limpar seu cabelo. É algo mais, ele protege o seu couro cabeludo, desembaraça, dá brilho, dá volume, restaura, alimenta, previne a caspa, a queda e o baixo-astral. Pois amiga, você vai ficar com um cabelo de parar o trânsito. O do comercial, bem entendido, o outro já é parado.

Tudo isso tem um custo, é claro, mas a conta só chega em propaganda de cartão. E a vantagem é que você paga com o cartão, mas não aparece pagando o cartão. E você já viu pessoas mais cool e viajadas do que as que usam o cartão diamante negro plus? Estão sempre subindo e descendo de jatinhos em pistas privadas. A gente precisa de um cartão assim.

Pois a propaganda é mais do que o primeiro mundo. Só lá a perfeição encontra uma forma. Meu olhos querem voltar a ter esperança, por isso são capturados pelo mundo mágico dos produtos maravilhosos. Mas eu não quero os objetos, eu quero o mundo onde eles estão. Por isso, espio pela única fresta disponível, a propaganda. A utopia que nos sobrou.


09 de abril de 2016 | N° 18495 
CARPINEJAR

Santinho do amor


Todos podem copiar imagens das redes sociais ou baixar álbuns inteiros em segundos, mas o amor ainda permanece artesanato.

A facilidade digital não mudou os símbolos do romance, que seguem os mesmos de nossos bisavós. A rosa continua como a favorita do buquê, o bilhete continua escrito à mão, a dedicatória no primeiro livro emociona mais que o conteúdo da obra, a letra de uma canção repassada ao papel revela momentos a dois.

Se alguém pedir para ver como é a minha namorada, não mostrarei foto nenhuma de meu celular.

Para a surpresa dos outros, abrirei lentamente a carteira e retirarei uma fotinho 3x4 que recebi dela.

A tradição é transgressora no campo emocional. Não há maior demonstração de compromisso do que guardar uma foto 3x4 na carteira dentro daquele envelopinho azul de plástico. Nada aplaca a materialidade desta declaração antiga e sempre atual.

A foto 3x4 é o santinho da intimidade do casal, é o RG da paixão, é o CPF da lealdade.

Supera em importância o status de relacionamento no Facebook. Ultrapassa o valor de uma aliança no dedo.

Os pares que trocam as pequenas fotos não vão se separar sem resistência. Tiveram o trabalho de visitar um estúdio, sentar na cadeira alta e atender às ordens de seriedade do fotógrafo. Reservaram uma das cópias para a sua companhia predileta. Não é pouca coisa em tempos tão líquidos, quando o desprendimento vem sendo desculpa da preguiça.

Quando a minha namorada me presenteou com a sua fotinho, estava simbolicamente afirmando que confiava em mim, recomendando para que cuidasse de nossos laços e lembrasse de onde venho e para quem eu volto. Logo tornou-se um talismã da ternura, um escapulário de bolso.

Representa o atestado de nascimento de nossa relação que valerá enquanto não nos casamos, assim como a certidão de nascimento é o documento provisório antes da identidade.

E o mais bonito da foto é que ela não está rindo, ninguém ri em foto 3x4 – é o amor que gargalha de orgulho em meus dedos sempre que digo que somos apaixonados.

quarta-feira, 6 de abril de 2016



06 de abril de 2016 | N° 18492 
MARTHA MEDEIROS

Arte e política


O blogueiro que pediu boicote a certos intelectuais infelizmente não está sozinho. A disputa partidária está fritando o cérebro de alguns. Quem adorava Chico Buarque e Luis Fernando Verissimo passou a desprezá-los pela diferença de convicções. Já vi gente debochando das canções de Lobão, mesmo que, anos antes, não perdesse seus shows. Discordar de um comportamento, ok. Todo artista é um cidadão e suas atitudes são passíveis de críticas. Mas a arte não pode ser julgada da mesma forma. Ela é ruim ou boa por si mesma, não pela conduta pessoal do autor. É um legado cultural que precisa ser preservado.

Até hoje me insultam por adorar Woody Allen – “como você pode promover um pedófilo?”. Não acredito que Allen seja pedófilo. Se for, que o prendam, mas não deixarei de admirar seu talento, assim como admiro os filmes de Roman Polanski (condenado por abuso sexual de uma adolescente), reverencio as obras de Picasso (machista, egocêntrico), me encanta ver Nick Nolte e Sean Penn atuando (já foram presos). 

Sou fã dos Rolling Stones (drogas, drogas, drogas), gosto dos textos de Nelson Rodrigues (reacionário, obsceno), estimo a carreira construída por Marilia Pêra (pró-Collor), admiro o trabalho de Letícia Sabatella (pró-Dilma), reverencio a literatura de Machado de Assis e Jorge Luis Borges (ambos de direita) e de Mario Benedetti e García Márquez (ambos de esquerda), apreciava o suingue de Simonal (rei da pilantragem), acompanhava o trabalho de Paulo Francis (elitista, petulante), respeito Roberto Carlos (apoiava o regime militar), me impressionam os murais de Diego Rivera (traiu Frida Kahlo com a irmã dela) e sigo escutando Janis Joplin, Cassia Eller, Kurt Cobain, Amy Winehouse e Cazuza, que nunca ganharam medalhas por bom comportamento.

Se você fizer a lista dos seus, só encontrará anjos que votam como você?

Boicotar uma empresa a fim de que ela melhore seus serviços é um ato político. Já rechaçar a obra de um artista por seu partidarismo é o mesmo que condená-lo por sua inclinação sexual, cor da pele ou estilo de vida. Lógico que devemos escolher quem pode frequentar nossa casa, ser nosso sócio, subir conosco ao altar, mas depreciar boas músicas, filmes e livros criados por X ou Y, alegando que, longe dos holofotes, eles não compactuam com nossa visão de mundo é uma reação provinciana. Negar a eles o gostinho da nossa audiência não os tornará supérfluos – nós é que perderemos a oportunidade de expansão.

“Prepara/ que agora é a hora/ do show das poderosas/ que descem e rebolam/ afrontam as fogosas.” Mais poesia? “Hoje ninguém dorme em casa/ hoje vai ser meu brinquedo/ porque eu quero te pegar gostoso”. Tudo bem, todo mundo na pista se divertindo com as funkeiras, mas é isso que nos resta?

Boicotar Chico Buarque é o fim.

terça-feira, 5 de abril de 2016



05 de abril de 2016 | N° 18491 
CARPINEJAR

Final de semana perfeito


Meu filho nunca pisou numa locadora de filmes. Ele baixa todas as séries e jogos em seu computador ou acompanha as obras de sua preferência nos canais de assinatura da web.

Já eu vivi o império das locadoras. Meu sonho por ordem era abrir uma locadora, uma livraria e um café. E, com certeza, não era só meu, antes da revolução de Steve Jobs.

O cinema em casa fez a cabeça de toda uma geração, que alugava fitas, experimentando uma extensão do empréstimo dos livros da biblioteca na escola.

Lembro da alegria ansiosa de sair do trabalho na sexta para buscar os lançamentos e garimpar clássicos. Horas a fio revistando as prateleiras, com pilhas de capas nas mãos e a séria dificuldade de escolher o que realmente desfrutava de tempo para ver.

Não controlava a gula. Havia uma fórmula secreta no desperdício. Quando eu locava cinco filmes, assistia a três. Quando locava quatro filmes, assistia a dois. Quando locava três filmes, assistia a um. Quando locava dois, não assistia a nenhum. Jamais locava um, pois era impossível ceder às promoções para permanecer uma semana dependendo do número de locações. Tenho dúvidas do que vi, a sensação é de que conclui um filme, mas na verdade apenas o retirei.

Apesar do prazo dilatado, atravessava uma maldição. Não conseguia entregar no dia. Acho que paguei mais em multa do que em aluguel. Eu não registrava a data da devolução e entrava em pânico quando reconhecia os títulos esquecidos em cima do aparelho de VHS.

As locadoras foram um termômetro da felicidade. A saudade de pegar uma montanha de filmes com amigos e virar a madrugada comendo pizza e emendando roteiros e dramas até o amanhecer. Ou, quando me apaixonava, curtir o sábado e domingo com a namorada na cama, só apertando o play e o pause. Se eu retirasse oito filmes, certamente me encontrava amando, disposto a sumir no quarto e esquecer o mundo.

O deslocamento físico e o manuseio balbuciante dos estojos intensificavam o prazer. Definir pela sinopse malredigida o que valeria a pena e ganhar a discussão com a mulher sobre qual título levar formavam um ritual de final de semana perfeito que não existe como antes.

Lamento a ausência galopante das locadoras em nossos hábitos. Não cumpri as minhas fantasias. Faltou coragem de entrar na salinha de filmes pornôs, um espaço à parte, carregado de preconceito e com câmeras nos cantos. Hoje estaria preparado, sem nenhuma vergonha da minha sexualidade. Pena que é tarde demais.

sábado, 2 de abril de 2016



02 de abril de 2016 | N° 18489 
MARTHA MEDEIROS

Meu querido

Para meu desespero, de vez em quando escapa a palavra inteira, e só me resta o autoflagelo, pois a pessoa não irá acreditar que eu a considero “querida” mesmo

Quando eu soube que o Lula, durante o célebre interrogatório do início de março, chamou o delegado de querido 30 vezes, recordei uma coluna que escrevi anos atrás sobre o tratamento que damos aos outros e suas sutilezas. O Lula, claro, devia estar querendo arrancar as tripas do querido.

Amigos íntimos tratam uns aos outros de “seu viado” e isso é uma declaração de amor. Tenho uma ex-colega do colégio que costuma entrar no meu WhatsApp perguntando “e aí, veia?” e eu não caio em prantos porque sei que ela só dedica esse afeto a quem considera muito especial. Ou seja: se quisermos respeito, melhor procurar quem nos odeia.

A maioria dos e-mails que recebo começa com “Oi, Martha”, às vezes “Oi, Martinha”, e suspiro aliviada: não há dúvida de que o desconhecido me quer bem. Mas quando a mensagem inicia com um reverente “Dona Martha”, fico lívida e com as pernas bambas. Serei detonada, e não vai ser pouco.

E se a mensagem começa com Ilustríssima, aí nem continuo a leitura. Sou muito carente.

Uma vez estava assistindo a uma palestra de uma senhora distinta e educada. Quando chegou a hora das perguntas da plateia, uma moça levantou na maior inocência e questionou a palestrante sobre um assunto incômodo. Fez-se um silêncio fúnebre durante três segundos, até que a resposta iniciou com uma voz gutural: “Minha filha, você...”

Nem quis escutar o resto. Aquele “minha filha” era uma navalha perfurando a jugular da desavisada que ousou interpelar a estrela do evento. Quem não sabe? Você só usa “minha filha” ou “meu filho” em dois casos: quando está se comunicando com alguém que tem o mesmo DNA que o seu ou quando se sente tão superior que não resiste em humilhar a criatura repugnante que se atreveu a cruzar seu caminho.

Vale o mesmo para “meu bem”.

Eu tenho um problema. Aliás, tenho vários, mas hoje vou revelar apenas este: eu costumava chamar as pessoas de querido e querida. Só que não estava nem um pouco irritada. Não estava querendo esganá-las. Não estava sendo cínica ou pedante – um pouco brega, no máximo. Era a droga de um carinho verdadeiro. Aí resolvi cortar a última sílaba e passei a chamar as pessoas de “queri” (pronuncia-se “quêri”). Um apelido para meus queridos e queridas, assim não restaria dúvida de que eu estava sendo fofa de verdade, e não de mentirinha.

Tem funcionado. Que saudade, queri! Adorei seu post, queri!

Porém, para meu desespero, de vez em quando escapa a palavra inteira, e só me resta o autoflagelo, pois a pessoa não irá acreditar que eu a considero querida mesmo. Com toda a razão.

O melhor é não deixar dúvida nenhuma sobre meu apego. Ultimamente, o que mais tenho dito é: adoro você, monstro.



02 de abril de 2016 | N° 18489 
CARPINEJAR

Agradável insatisfação


Quando a namorada escolhe a sua roupa para sair, a minha opinião somente vale para criar dúvidas. Se confesso que adorei, não significa que manterá a combinação. Cinco minutos depois estará com outro traje pedindo a minha opinião de novo. Ou seja, aquele vestido que elogiei já não existe mais, morreu de inédito.

A impressão é que não faz sentido o meu palpite, mas tem uma função eliminatória. Ela é capaz de recusar uma roupa que não gostei, porém não seguirá cegamente o que gostei. Porque precisa gostar mais do que eu. E uma mulher só gosta comparando.

Esqueça o sonho de que ela pegará um figurino no armário e deu, que será rápida e prática. Seu costume é realizar um leilão do seu guarda-roupa. Sempre derrubará os cabides sem medo da bagunça, com a intenção de intercambiar tecidos. É uma pintora diante da tela imensa do espelho, produzindo cores inéditas na paleta. Não esmorecerá até definir a opção certa para o clima e para a ocasião. Não deseja apenas estar bonita, porém ser também oportuna. Odeia a hipótese de chegar num lugar com jeito de fantasiada.

Escolher depende do cruzamento das peças com os acessórios. O costume é aprovar o vestido e não achar um sapato à altura, optar por uma calça e uma camisa e cismar com o cinto. Uma simples hesitação põe o trabalho de horas abaixo.

A importância do encontro pode ser mensurada pelo número de roupas que testou. Mais de cinco é sinal de que leva a sério o passeio.

Não reclamo quando a minha namorada troca de roupa seguidamente. Não reclamo da demora e do atraso. É a minha chance de vê-la nua várias vezes. É a minha chance de vê-la se despindo para mim várias vezes.

domingo, 27 de março de 2016



elio gaspari
27/03/2016  02h00
Temer é solução porque evita a eleição


Nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por 'As Ilusões Armadas'. Escreve às quartas-feiras e domingos.

A Odebrecht enriqueceu o idioma politico nacional quando um de seus cleptotécnicos chamou de "Setor de Operações Estruturadas" seu departamento de pixulecos. As planilhas onde a empresa listou 316 maganos que amamentava apressaram a montagem de outro setor de operações estruturadas, poderoso e multipartidário.

Seu objetivo principal é obter a ascensão de Michel Temer à Presidência. Vale ressaltar que na planilha da Odebrecht estão os nomes de todos os marqueses dos grandes partidos, menos o dele.

Temer é um estuário de esperanças. Junta os cidadãos que detestam o PT, os eleitores que passaram a detestar a doutora Dilma, os empresários atônitos com a paralisia do Estado e sobretudo os políticos e fornecedores do governo, aterrorizados com a atividade do Ministério Público.

Temer é acima de tudo conveniente. Vota-se o impedimento da doutora, ele assume, reduz a tensão, forma um ministério de celebridades, consegue uma trégua (sobretudo na imprensa), leva para o governo gente que perdeu a eleição e impõe seu estilo tolerante, tranquilizando os comissários depostos. Se for possível, ajuda a preservar a vida pública de seus correligionários que temem a chegada dos rapazes da Federal. Essas seriam as esperanças.

Outra coisa é aquilo que o caminho do impedimento garante. Se não houver a deposição da doutora, haverá o risco da cassação da chapa Dilma-Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral, que levaria à convocação de uma eleição presidencial imediata e direta. Isso não interessa à oligarquia ferida pela Lava Jato nem ao andar de cima da vida nacional. Não interessa porque não tem candidato à mão e porque a banda oposicionista que está encalacrada na Lava Jato sabe que deve evitar a avenida Paulista e o julgamento popular.

Temer convém por muitos motivos, sobretudo porque evita a eleição. A serviço dessa circunstância move-se o setor de operações estruturadas. Ele não funciona como o da Odebrecht. Não tem sede, comando nem agenda detalhada. Toca de ouvido e conversa em silêncio. Quando foi necessário, aprendeu a conviver com o PT, dando-lhe conforto. Ele só não consegue conviver com a Lava Jato.

Ninguém quer rogar praga contra um eventual governo Temer, mas que tal um advogado de empreiteiras no círculo dos marqueses do Planalto ou mesmo no Ministério da Justiça?

ODEBRECHT

Em outubro de 2014, quando o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa contou suas traficâncias ao Ministério Público, Marcelo Odebrecht assinou uma "nota de esclarecimento" na qual queixou-se de "alguns veículos" da imprensa por tratarem como verdadeira a "denúncia vazia de um criminoso confesso que é 'premiado' por denunciar a major quantidade possível de empresas e pessoas".

Uma verdadeira aula.

Na semana passada a Odebrecht anunciou sua disposição de prestar "colaboração definitiva com as investigações da Operação Lava Jato." Quem souber o que vem a ser "colaboração definitiva" ganha um fim de semana em Angra, com direito a tornozeleira.

Continuando em seu tom professoral de 2014 a empresa diz que a Lava Jato revelou "a existência de um sistema ilegal e ilegítimo de financiamento do sistema partidário-eleitoral do país".

Tudo bem, antes da Lava Jato os doutores não sabiam de nada. Nem depois, visto que em novembro passado, com Marcelo na cadeia, continuavam aspergindo capilés.

O Ministério Público informa que não há negociação em andamento para se obter a colaboração definitiva ou provisória da Odebrecht.

RECORDAR É VIVER

Diante da planilha do "Setor de Operações Estruturadas" da Odebrecht é bom lembrar que em 1995 caiu no colo do tucanato a "Pasta Rosa", com a contabilidade político-eleitoral da Federação Brasileira dos Bancos. Ela era muito mais rica e mais bem documentada do que a papelada da Odebrecht.

O tucanato sentou gloriosamente em cima da pasta, passaram-se 20 anos e continua fingindo que não houve nada.

EXAGEROS

A doutora Dilma diz que o juiz Sérgio Moro colocou "em risco a soberania nacional" ao divulgar telefonemas em que ela estava na outra ponta da linha.

Falso como depoimento de comissário. A conversa da doutora com Lula não tratou de assunto relacionado com a soberania do país. Também não envolveu qualquer recurso criptográfico. Se Moro tivesse divulgado um trecho de telegrama secreto, esticando-se a corda, o argumento da soberania poderia ter algum valor. Quem grampeou a soberania do Brasil foi o companheiro Obama, mas essa é outra história.

Já o juiz Moro diz que os grampos divulgados por ele defendiam o interesse público. Algum dia o doutor poderá explicar que interesse público havia na divulgação do telefonema 80829474, de 9 de março.

Nele Lula e sua filha Lurian combinam que tomarão café da manhã juntos no dia seguinte. Nada mais. Dessa rápida conversa resulta apenas uma curiosidade, a senhora chama Lula de "gato".

DILMA E TALLEYRAND

Coxo, Talleyrand caminhava com um aparelho ortopédico. Seduziu tout Paris, encantando a alma de mulheres e o bolso dos homens. (Ele seria o pai do pintor Delacroix.)

Atribui-se a Talleyrand uma frase que teria sido útil para os comissários que acabaram presos por causa dos pixulecos.

Um sujeito lhe disse:

"Dou-lhe vinte mil francos e não conto a ninguém".

Ele respondeu:

"Dê-me quarenta mil e conte a quem quiser".

O NÚMERO MÁGICO É 342 E NÃO 171

A ideia de que o governo precisa de 171 votos para barrar o impedimento da doutora Dilma é verdadeira, mas incompleta. Ela é repetida com frequência, inclusive aqui.

O processo de impeachment requer dois terços dos votos da Câmara (342) para ir em frente. O número mágico é esse.

O governo não precisa de 171 votos a favor de Dilma. Essa condição seria suficiente, mas não é necessária. O que ele precisa é que a maioria favorável ao impedimento não chegue a 342.

Isso pode ser conseguido com votos contra a iniciativa (na qual o deputado se expõe), pela abstenção e sobretudo pela simples ausência. Assim, se 152 deputados ficarem a favor da doutora (19 abaixo dos 171 do terço), mas 19 outros não aparecerem na hora da votação, o pedido de impeachment vai ao arquivo.

Foi isso que aconteceu em 1984 com a emenda que restabelecia as eleições diretas. Ela precisava do voto de 320 deputados. Quem decidiu a parada foram as ausências (113). Contra, votaram apenas 65 deputados. Com 298 votos, a emenda morreu. Na hora de a onça beber água o governo pressionava deputados pedindo-lhes que não comparecessem.

No caso do impedimento de Collor, quando rompeu-se o dique de proteção ao governo eram necessários 336 votos e 441 deputados decidiram afastá-lo. 


26 de março de 2016 | N° 18483 
MARTHA MEDEIROS

O dia seguinte

Não importa qual foi a força oculta que ajudou a desanuviar o problema, o que importa é que funcionou e confirmou que é pra isso que existe o dia seguinte

Você chorou quase a noite inteira, imaginou que não haveria saída e se sentiu tão desamparado e incrivelmente só que nem se atreveu a torcer pelo telefonema que tanto desejava, mas que, surpreendentemente, chegou ainda pela manhã, acalmando toda aquela aflição. É pra isso que existe o dia seguinte.

Você se envolveu num amor que nem era amor, apenas entusiasmo, uma necessidade de superar dores passadas. Então, de uma forma madura, resolveu que era hora de deixar as coisas bem claras, mesmo provocando algum sofrimento. Sempre é melhor a verdade do que a farsa. Acordou sozinho, porém íntegro e pronto para histórias que não sejam forjadas. É pra isso que existe o dia seguinte.

Você não sabia como pagar, não sabia como argumentar, não sabia como sair daquela sinuca, e dormiu com todos os demônios rogando pragas nos seus ouvidos, até que acordou calmo como um Buda e encontrou um jeito de resolver. Talvez a solução tenha sido assoprada durante o sono, não se sabe, mas não importa qual foi a força oculta que ajudou a desanuviar o problema, o que importa é que funcionou e confirmou que é pra isso que existe o dia seguinte.

Foi a noite mais fantástica da sua vida? Valeu a pena se preparar por sete meses para viver aquele encantamento de poucas horas? Saiu tudo como o esperado? Mais espetacular impossível? Também é pra isso que existe o dia seguinte: congratular-se.

Você não devia, mas enviou aquele e-mail com palavras rudes, acusações exageradas, uma histrionice que nem combina com você, mas que saiu assim, teatral e colocando tudo a perder – e estaria tudo perdido mesmo, não houvesse o dia seguinte e a oportunidade de pedir desculpas.

Você se iludiu, como todos sempre se iludem. Acreditou em meia-dúzia de palavras sedutoras e construiu uma fantasia. Bem-vindo ao clube. Preferiria continuar fantasiando? Pra isso existe o dia seguinte: reconduzir você à realidade, que nem sempre é animadora, mas ao menos é honesta.

Foi o dia mais tedioso da sua vida, mais sem nexo, perdido em sonolência e paralisia, 24 horas inúteis, uma postergação de tudo, porém serviu para alertar que este abatimento não representa você, e o dia seguinte, mesmo não sendo tão diferente, ao menos lhe devolveu o ânimo para ler um livro, sempre há uma maneira de se salvar do nada absoluto.

E se todos os dias seguintes têm sido repetecos dos dias anteriores, se você está cansado de aguardar que o dia seguinte traga alguma novidade que lhe tire o chão e abra um novo céu, se você já se convenceu de que o dia seguinte é uma esperança que nunca se concretiza e que só serve para enganar os trouxas, ainda assim, prepare-se: um desses dias seguintes iguais a todos não terminará como você espera.



26 de março de 2016 | N° 18483 
CARPINEJAR

Não é brincadeira


Não é o trabalho que me cansa. Não é viajar três vezes por semana e dormir três horas por dia. Não é acordar cedo e conciliar casa, filhos e contas a pagar. Não é o excesso de tarefas, de obrigações e de responsabilidades. Não reclamo por não parar quieto, por ler em trânsito, por comer voando, por render os intervalos apressados de mim para a musculação e rústica. Não reclamo das olheiras e dos cochilos de pé no ônibus.

Só me falta na vida não mais me preocupar com o amor. O que me exaure é a procura de alguém: alguém que esteja dentro da minha solidão para não precisar mais estar sozinho.

Se quem é solteiro já sofre, imagine a situação de quem ainda por cima é romântico, pretende casar e seguir um relacionamento sério.

É uma maratona que começa nos aplicativos e redes sociais, é peneirar fotos, hábitos e postagens, é convidar no Facebook, é adicionar o telefone, é manter agenda ativa de eventos, é tentar fazer uma piada que não será entendida por diferença de geração, é perdoar gente com alternância absurda de humor, é gostar daquela que não gosta de você e recusar aquela que se interessou por você, é distinguir psicopatas e doidas das intensos e apaixonadas, é não saber se segue os conselhos dos familiares (vá devagar!) ou dos amigos (não deixe de ir!), é se defender de grosserias e gratuidades, é adorar a aparência e não suportar a burrice, é admirar a inteligência e não aguentar a cafonice, 

é se arrumar todo para não conhecer ninguém interessante, é enfrentar a estranheza de um novo corpo, é receber em casa, perceber que não há futuro e gastar os bons modos fingindo simpatia, é comparar as relações de antes com os problemas de agora, é atravessar as cantadas chatas dos bares, é decodificar os gritos nas baladas, é sair para jantar, é explicar um filme, é acreditar que achou, é perceber que não achou ainda, é festejar um velório, é enterrar uma festa, é recomeçar a busca, é alternar momentos de extrema esperança e excitação com picos de desânimo e ceticismo, é temer a recaída com ex com as sucessivas desventuras, é acompanhar os colegas em fracassos, é errar a medida da bebida e arcar com a ressaca moral, é retomar a terapia, é abandonar a terapia.

Não existe canseira maior, tanto física quanto espiritual, do que a expedição pelo par ideal.

Cada mês do solteiro romântico equivale a um ano do casado, tamanha a volta na alma, os passeios pela Cidade Baixa e pelo Moinhos de Vento, as promessas infundadas e os romances abortados.

O curioso e engraçado é que, quando encontrar a minha mulher, esquecerei todo o esforço que tive, não protestarei pela demora, não xingarei os percalços. Graças a Deus, a felicidade sempre foi desmemoriada – a boba da dor é que não esquece nada e jamais perdoa.



25 de março de 2016 | N° 18482 
NÍLSON SOUZA

AMOR ANTIGO

Amo minha cidade muito antes de conhecê-la.


Trabalhei durante 14 anos no Beco do Fanha, tive uma namorada na Rua da Figueira, andei de bonde pela Rua do Paraíso, estacionei meu Fusca muitas vezes na Rua do Arvoredo e percorri, por incontáveis dias e noites, a Rua Formosa, o Beco do Império, a Rua da Varzinha, a Rua do Cotovelo e tantas outras localizadas nas proximidades.

Falo, como já perceberam os mais antigos e os estudiosos da geografia porto-alegrense, desta Capital aniversariante, onde nasci e onde – a exemplo de Quintana – serei provavelmente poeira ou folha levada no vento da madrugada.

A Porto Alegre dos meus andares já era outra quando realmente a conheci. Meu primeiro emprego no jornalismo foi na Rua Caldas Júnior, onde um dia morou um taberneiro fanhoso, segundo o historiador Sérgio da Costa Franco. Minha namorada, hoje minha mulher, morava na Rua Coronel Genuíno quando a conheci, mas lá já não estava mais a figueira que lhe deu o nome romântico. A Rua do Paraíso já tinha virado José Montauri quando me pendurei no bonde-gaiola, que se inclinava pelas cercanias da Praça XV. E os arvoredos da Fernando Machado, testemunhas do célebre episódio do açougueiro que fazia linguiça com carne humana, já eram escassos quando passei a estacionar por lá.

Frequentador compulsório do Centro Histórico, onde trabalhava, perambulei pela Duque de Caxias, que um dia foi mais formosa, pela Espírito Santo, que substituiu o beco imperial, pela Demétrio Ribeiro, que já não tinha mais várzeas, e pela Riachuelo, que ainda rima com cotovelo. Há tantas mais, inclusive a inspiradora Rua dos Pecados Mortais, rebatizada para homenagear um dos nossos generais – o cachoeirense Bento Martins.

Porto Alegre, que completa 244 anos neste sábado, ainda tem ruas encantadas que nem em sonhos sonhei, mas basta uma consulta ao mapa do passado para se perceber que a vida nesta cidade já foi mais tranquila, criativa, pacífica e deliciosa.

Tenho saudade da Porto Alegre que conheci e também daquela que não conheci, mas amo esta que me abriga e me desafia. Feliz aniversário, meu chão!


25 de março de 2016 | N° 18482 
DAVID COIMBRA

O mal da liberdade

Outro dia, eu falava de liberdade. A liberdade é uma desgraça. Os homens acham que ser livre é ser feliz. Ao contrário: ao buscar a liberdade, o homem encontra a aflição.

O Eclesiástico recomenda o seguinte, acerca do que denomina “jugo suave” da sabedoria:

“Bota teu pé nos seus grilhões

E o teu pescoço na sua coleira.

Sujeita teu ombro e carrega-a,

E não te impacientes com suas correntes.

No fim, encontrarás nela teu descanso

E ela se transformará em teu contentamento.”

Esse Eclesiástico não é o Eclesiastes. O Eclesiastes era o rei Salomão, que viveu com fausto, inteligência e 600 concubinas 10 séculos antes de Cristo. O Eclesiástico respirou o ar da Palestina 800 anos depois de Salomão. Como Cristo, também se chamava Jesus. Jesus ben Sirac.

Gosto dessa passagem que citei acima: o homem encontrando remanso na submissão. E, se a submissão é à sabedoria, tanto melhor. Feliz do homem que pode escolher de quem será escravo.

Mas até essa forma de liberdade, a liberdade de fazer escolhas, faz mal. Você acha que poder tomar decisões é ser livre? Nada: ser livre é não ter opção. Você tem de ir por ali e pronto, está resolvido, não é preciso mais pensar no assunto.

Olhe para uma criança. Se você é pai e lhe dá opções, você lhe causa sofrimento e revolta. Bom pai é aquele que decide tudo pela criança. Você vai vestir isso aqui. Você vai comer o que está na mesa. Está na hora de dormir, vá para a cama.

A criança reclama, mas, no centro da sua alma, está se sentindo protegida.

E esta é a palavra, este é o ponto: proteção. A segurança é o contrário da liberdade.

É uma fórmula matemática: quanto mais segurança, menos liberdade; quanto mais liberdade, menos segurança.

Era do que havia falado, dias atrás.

Às vezes, porém, esses dois conceitos não se opõem: fundem-se. Vou tomar como exemplo estes dois grandes países da América que conheço bem: o Brasil e os Estados Unidos.

Nos Estados Unidos, a lei é mais dura do que no Brasil. Os juízes, em geral, são Moros. Havendo crime, procuram o culpado; identificando o culpado, procuram condená-lo exemplarmente. A população carcerária é cinco vezes maior do que a do Brasil. São 2,5 milhões de pessoas “behind bars”, como eles dizem. Um roubo trivial às vezes custa 10 anos de cadeia.

Se você desobedece ou simplesmente discute com um policial americano, ele o imobiliza, algema e arrasta para uma cela de cadeia. Já vi policiais censurando cidadãos aos gritos por coisas sem importância, como atravessar fora da faixa de segurança. Meu Deus, que constrangimento. Dá medo dessa polícia daqui.

No Brasil, levar uma descompostura dessas dimensões de um policial é algo impensável, mesmo quando o cidadão erra flagrantemente. E um roubo comum não dá cadeia. O sujeito vai para a delegacia e, em poucas horas, está nas ruas de novo, para de novo roubar. É o tal prende e solta. Se contasse para um americano que no Brasil alguns tipos são detidos mais de 60 vezes, ele não conseguiria entender. Mas não conto. Tenho vergonha.

No Brasil, portanto, parece haver mais liberdade do que nos Estados Unidos. Parece.

Na realidade, sinto-me mais livre nos Estados Unidos, porque aqui posso caminhar pelas ruas sem medo daquela turma que vem da outra calçada, vejo casas sem cerca, bancos sem vigilância, prédios sem porteiro. Aqui, não preciso tomar cuidado quando paro o carro debaixo do semáforo, nem tenho que dar dois reais para o flanelinha, porque não há flanelinha.

Essa questão é a seiva do nosso drama atual. Falarei mais disso amanhã.