sábado, 24 de setembro de 2016



24 de setembro de 2016 | N° 18643 
LYA LUFT

Belos, cálidos dias


A gente nasce sem querer, numa família não escolhida (ou cada alma escolhe a sua?), com uma bagagem de genes que nem Deus sabe direito no que vão dar – lançados no grande mundo, ainda por cima tendo de desempenhar direito nosso papel.

Que papel? O que a família exige? O que a sociedade espera? O papel que cobramos de nós mesmos enquanto corremos entre acertos e trapalhadas, dor e graça, tateando num nevoeiro de confusões, emoções, razões e desesperos – ou contentamento? Atores sem preparo, sem roteiro, sem papel e sem alguém que nos sopre nossas falas, nesse palco desmesurado e instável. Se for difícil demais, nos matamos de tristeza, de tédio, de medo, de solidão e vazio, ou por vingança por algo demais cruel. É quando não conseguimos desempenhar papel nenhum: escolheremos então o nada, se é que a morte é nada.

Mas em geral gostamos da vida, não nos matamos, até nos sentimos bem. Não que eu ache que somos farsantes ou falsos. Apenas fomos aqui plantados, em geral desejados, quase sempre amados, algumas vezes desamados, mal criados e erradamente educados. A gente comparece do jeito que dá, desde quando começa a ter consciência – acho que isso também ninguém ainda determinou (o Google não me deu muita certeza): quando começa a consciência de existir, e das coisas ao redor?

Minhas memórias se iniciam aos dois anos e pouco, deitada no assoalho claro da casa, espiando embaixo de um móvel grande e escuro, admirando bolinhas de poeira que dançavam segundo minha respiração: para mim, eram seres vivos. Ou sentada no assoalho da casa da avó que costurava, eu espiando alfinetes cintilantes entre as frestas das tábuas. Tudo era mágico naquele tempo, e eu não precisava ser nenhum personagem.

Mas a vida se impõe, com chamados, deveres, conselhos, promessas, agrados, punições, por mais brandas que fossem: havia uma ordem em tudo. E a gente tinha de se adaptar, para que os castigos (não ganhar sorvete, não poder brincar com as amigas) não fossem mais numerosos do que as alegrias. Na verdade, os castigos eram poucos, quase bobos, mas eu me assustava: alguma coisa chamada “des-ordem” existia, eu me enredava com ela. Todo mundo devia ser calmo, acomodado, pressuroso, obediente, não lembro mais todas as qualidades que nos faziam boas meninas e bons meninos naquele tempo quase remoto.

E as perdas: amados e amigos se vão, jovens ou já velhos, a gente soltando pedaços. Ou os afetos simplesmente empalideceram. Mas há os que chegam: maravilhosamente chegam filhos, netos, novos amigos, velhos amigos permanecem, os livros, os filmes, os quadros, as músicas, a montanha, o mar, as horas de encantamento, as viagens – e voltar para casa, doce “zona de conforto”. Acolhimento, segurança dentro do possível neste mundo em que o crime compensa, o cinismo floresce, a autoridade fracassa, a confusão impera, a mediocridade se impõe. Seja como for, vamos desempenhando ou reinventando nossos papéis, ou não os cumprindo e levando rasteira. Não é ruim, não é bom: é a vida.

Belos, cálidos dias de primavera. O país, quem sabe, começando a se mover para se recompor. Aquela criaturinha chamada esperança canta no peitoril da minha janela. Quem sabe, quem sabe?



24 de setembro de 2016 | N° 18643 
MARTHA MEDEIROS

A colunista está em férias. Esta coluna foi originalmente publicada em 15 de junho de 2003

Ilustríssimos


Por que cargas d’água somos tratados tão respeitosamente quando alguém está com vontade de nos enforcar?

Sua família sempre lhe chamou de Guto, tanto que você já nem lembra que nome realmente tem. É Guto pra lá e pra cá. Guto no jardim de infância, Guto no colégio, Guto no clube. Você tem todos os motivos, portanto, para ficar lívido e com as pernas bambas quando sua mãe grita lá da sala: Ricardo Augusto, venha já aqui. Ricardo Augusto??? Alguma você aprontou.

Por que cargas d’água somos tratados tão respeitosamente quando alguém está com vontade de nos enforcar? Sua mulher sempre lhe chamou de Beto: só lhe chama de Valter Alberto quando está a ponto de pedir o divórcio. E seu pai só lhe chama de Ana Beatriz quando avisa que a mesada será cortada. Por que cortar a mesada da sua Aninha, papai? A senhora sabe muito bem por quê. Você acaba de virar senhora com 14 anos.

Recebo um monte de e-mails carinhosos que começam com um simples Martha, ou Cara Martha, ou Prezada Martha, uma intimidade natural, já que de certo modo participo da vida das pessoas através do jornal. Mas, quando entra um e-mail intitulado Dona Martha, valha-me Deus. Respiro fundo porque já sei que vão me detonar de cima a baixo, vão me chamar das coisas mais horrendas, vão me humilhar até me reduzirem a pó. Mas leio tudo, pois lá no finalzinho encontrarei o infalível “Cordialmente, fulano.” Cordialmente é ótimo. Cordialmente, fui esculhambada.

E quando chega uma correspondência pra você em que no envelope está escrito “Ilustríssima”? Penso três mil vezes antes de abrir. Mas abro, mesmo sabendo que não é convite pra festa, pré-estreia de filme, desfile de moda, sessão de autógrafos ou inauguração de restaurante. Ilustríssima? Só pode ser convite para a palestra de algum PhD em física quântica, para comemoração do bicentenário de uma loja de molduras ou convocação para reunião de condomínio. Os ilustríssimos não merecem se divertir.

Agora, pânico mesmo, só quando me chamam de Vossa Excelência. Como não sou o Presidente da República, volto a pensar 3 mil vezes antes de abrir a correspondência, mas resolvo não abrir coisa nenhuma. Só pode ser do Judiciário. Intimação pra depor.


24 de setembro de 2016 | N° 18643 
CARPINEJAR

Chorar sobre o xampu derramado

A grande prova do amor feminino é dividir o xampu.

É um dos produtos que ela mais briga para conservar e menos se dispõe a partilhar. A cada banho, verifica o decréscimo dos mililitros. Aliás, xampu merecia vir com régua de mamadeira do lado de fora, tamanho o controle do néctar.

A guerra das mulheres contra bárbaros e invasores advém de longa data. Na infância, eram obrigadas a se precaverem da curiosidade dos irmãos e do pai e fiscalizarem o desperdício com rigor e olhar clínico. Para não correrem riscos desnecessários, algumas meninas não deixavam o pote à mostra na bandejinha aérea.

Vale a pena experimentar os limites da paixão da sua namorada por você. Não se furte do embate. Escolha o menor frasco (sempre o mais caro), encha a mão e espalhe com vontade pelo seu couro cabeludo. Gaste generosas quantidades durante uma semana sem parar, para consolidar a baixa no volume. Se ela não vier perguntar se anda usando o xampu dela e fingir que nada aconteceu, você conquistou definitivamente o coração de sua musa. Está acima do bem e do mal, dos cuidados com as mechas e madeixas, da neurose consumista.

Já aconteceu de namorada parar de falar comigo dois dias inteiros porque notou, quando foi me beijar, que colocava o seu xampu mais caro na barba:

– Não duvido que não tenha usado no sovaco e nos pentelhos.

Eu tinha, mas não confessei.

Passei por outra que terminou o relacionamento pois derrubei um pote de seu xampu Joico de R$ 200. Considerou o gesto da envergadura de uma infidelidade. E não qualquer infidelidade. Parecia que eu havia comido a sua melhor amiga. Gritava diante da cornitude da espuma.

Lembro o epitáfio verbal de nosso amor:

– Eu economizando e você joga tudo no chão. Não cuida de minhas coisas, nem vai cuidar de mim.

Liberdade mesmo encontrei com a minha esposa, Beatriz. Inventei de pôr uma máscara de caviar da Kérastase que achei em seu banheiro. Deve ser um salário mínimo em forma de condicionador. Faz um tempão que venho aproveitando o seu poder restaurador, com o claro objetivo de lustrar e perfumar a minha careca. Ela não reclamou até agora. Se bem que o grande teste virá quando ler o meu texto.

sábado, 17 de setembro de 2016


17 de setembro de 2016 | N° 18637 
CARPINEJAR

Terrorismo amoroso

Todo casado que trai e esconde esta informação merece ser torturado. Todo casado que põe a aliança no bolso para fazer maldades merece um castigo. Nem é para aprender a não trair, mas para aprender a não mentir.

Não custa nada dizer a verdade e admitir que está comprometido desde o primeiro encontro. Para os amantes que experimentam a desconfortável omissão, proponho que se divirtam criando o medo, já que dificilmente o outro lado desistirá do casamento. O medo é uma espécie estranha de respeito.

Veja como desmascarar a silenciosa pilantragem amorosa:

• Mande mensagem às 20h de sábado. Se ele somente responder no dia seguinte é casado.

• A pessoa não entra no seu mundo (porque é casada) nem lhe convida para o dela (porque é casada). Encontros sempre são genéricos em lugares neutros. Peça o seu endereço para enviar surpresas.

• Deixe chupão no pescoço ou marca nos braços. Só o casado terá vergonha.

• Telefone na frente dele para ver como ele lhe nomeou no celular, de repente você descobre que é uma pizzaria.

• O casado é preciso como um relógio suíço. Agenda hora para telefonar de volta: “Te ligo daqui a 20 minutos”. Não atenda e retorne em seguida. Certamente o cara estará ocupado com a sua esposa.

• Enfie, sorrateiramente, uma calcinha no bolso do casaco e avise que ele tem um presentinho pela noite passada. Se ele não devolver a calcinha, é porque jogou no lixo para eliminar provas.

• Se ele consulta o celular logo depois de transar, é casado. Se ele toma banho logo depois de transar, é casado.

• Todo telefonema do casado tem eco. Ele liga do carro ou do banheiro.

• O casado infiel não especifica relacionamento no Facebook. Poste uma mensagem marcando o sujeito. Caso não aceite, é casado.

• Convide para passear no shopping e tente abraçá-lo ou segurar a sua mão. Demonstrando pânico e suando frio, ele é casado.

• Pergunte onde ele trabalha e prometa aparecer uma hora dessas para um café. Na hipótese de ele desaparecer, é casado.

• Conte que você descobriu que tem vários amigos em comum, mas não revele nomes. Se ele não parar de questionar a identidade dos conhecidos, é casado.

• Mencione que vem saindo com outros homens. Na hipótese de ele não se opor ao flerte, é casado.

Esta é a grande diferença entre o homem e a mulher quando traem. A mulher não mente, jamais diz que não tem um relacionamento. Enfrenta a infidelidade com toda a honestidade.


17 de setembro de 2016 | N° 18637 
LYA LUFT

O rio do tempo e nós

Neste mês de setembro, ocorre a maioria dos aniversários de minha família: eu mesma, netas, filho, irmão, além dos que já se foram, como mãe e avó materna, sem contar os amigos. Suponho que tenhamos sido inventados nos cálidos meses de verão. Tenho, em relação ao correr do tempo, não amargura ou medo real, mas curiosidade – desde quando, menina mimada, bati o pé porque queria alguma coisa “agora”. Algum adulto presente achou graça e resolveu liquidar a minha manha: “Deixa de ser boba, o agora nem existe”.

Iniciou-se um diálogo surreal: a menina curiosa e teimosa insistia em saber que história era aquela.Explicaram que o tempo passa constantemente, de modo que, quando pronunciamos a última letra da palavra “agora”, esse agora já é passado. Obstinada, várias vezes tentei pensar a palavra “agora” empilhando as letras numa coisa só – mas desisti.

Então, a cada momento, tudo passava, mudava e já era outro? Eu já era outra? Comecei a me angustiar, eu me angustiava com coisas que pouco tinham a ver com crianças, que, segundo adultos de então, deviam brincar, comer, dormir e se portar bem. Ainda por cima, alguém com humor macabro me alertou: “O tempo só para de passar quando a gente morre”. (Assunto para outra crônica.)

Sempre tive vontade de ser adulta: achava a vida e os assuntos dos “grandes” muito mais interessantes do que os infantis. Detestava ser comandada, numa época de educação bastante severa: por que ir para a cama às sete e meia? Por que só comer comidinha inocente, como purê de batata e carne de frango? Por que não falar muito à mesa? Por que ter de aprender prendas domésticas como toda boa menina? Eu não queria ser uma boa menina: queria ser a Emília do Monteiro Lobato.

Aí fui vendo que a passagem do tempo não apenas significava transformação e novidades (parte boa para quem facilmente se entediava), mas também perdas, e para muitos o terror da perda da juventude.Tornou-se uma epidemia a busca desesperada por deter a qualquer custo os sinais do tempo: parecer trinta aos sessenta, ter lábios sensuais aos setenta – vale a pena?

A velhice (desde que não com o detestável nome de melhor idade) é uma fase natural da vida – um dom a ser curtido. Dor e doença não escolhem idade. Nem sempre a juventude é linda. No avançar do tempo, importa preservar certa elegância (quando dá...) e cultivar o bom humor (quando possível...). Tônia Carrero, ao fazer oitenta, respondeu a uma jovem jornalista que lhe perguntava como encarava a velhice: “Velhice? Eu acho ótimo! Porque a alternativa é morrer jovem”. E minha amada comadre Mafalda Verissimo, que sempre me faz falta, contou, fingindo-se indignada, que alguém ao telefone, sabendo que era ela, exclamou: “Dona Mafalda! A senhora, ainda tão lúcida!”.

Que se arrume o que nos incomoda, mas dentro de alguma normalidade. Deixem a gente ter o privilégio de envelhecer em paz, que a gente vai tentar não ficar ainda por cima rabugenta. E quem sabe o rio do tempo desemboca em algum mistério mais interessante do que nossas trapalhadas de agora?


17 de setembro de 2016 | N° 18637 
MARTHA MEDEIROS

Do mês que vem não passa

O casamento seguia um tédio, mas o clima estava mais ameno. Olhando de longe, qualquer um diria que aqueles dois se entendiam bem

Juntos chegaram à conclusão de que o casamento estava um tédio, que o amor havia sumido e que a presença um do outro incomodava mais do que estimulava: nem mesmo a amizade e a ternura haviam sobrevivido. Depois de algumas cobranças inevitáveis, muita DR e lágrimas à beça, optaram por seguir cada um para seu lado. Quando? Logo depois das férias de julho: a gente viaja com as crianças e depois você sai de casa. Perfeito.

Voltaram de viagem mais duros do que nunca foram, o saldo completamente no vermelho. Não era uma boa hora para comprometer o orçamento com um novo aluguel. Ela compreendeu e disse para ele ficar em casa até as finanças se estabilizarem de novo, quando ele então poderia procurar um apartamentozinho.

O casamento seguia um tédio, mas o clima estava mais ameno, sabiam que dali a pouco estariam separados para sempre, então calhava uma harmonização, eles até passaram a sorrir com mais frequência e, olhando assim, de longe, qualquer um diria que aqueles dois se entendiam bem.

As dívidas da viagem foram pagas e, depois de mais uma entre tantas discussões bestas, resolveram agendar de vez a separação: logo depois do aniversário do pequeno Bruninho, que dali a um mês faria 19 anos e media 1m87cm.

Bruninho não quis festa, e o saldo do casal voltou a ficar positivo, mas não por muito tempo: a tevê já veiculava comerciais com a presença do Papai Noel. Natal era sempre uma despesa, e os sogros viriam do interior pra comemorar com a família reunida, melhor deixar passar o Natal e o Ano-Novo. É melhor, também acho.

Em fevereiro a Bia, filha mais velha, inventou de ir para a praia do Rosa com as amigas e ficou o mês inteiro lá, assim que ela voltasse os dois dariam o xeque-mate na relação. Bia voltou e já era quase Páscoa, e Páscoa sem ir pra fazenda da tia Sonia não era Páscoa. Depois da Páscoa, receberam o convite para serem padrinhos de casamento de um afilhado, melhor não criar constrangimento na igreja. Em seguida, foi o aniversário dele, que sempre fica meio caído nessa data, melhor deixar passar o inferno astral. E quando passou, aí foi ela que aniversariou.

Estão casados até hoje. Mas do mês que vem não passa.

A colunista está em férias. Este texto foi originalmente publicado em 16 de junho de 2002.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016



10 de setembro de 2016 | N° 18631 
LYA LUFT

A filha pródiga

Em maio de 2004, mais de um ano depois de começar a coluna que mantive aqui na Zero Hora – acho que na mesma página 3 –, escrevi uma despedida. Ia sair para o grande mundo, coração pesado porque queria ir mas queria ficar, ou levar comigo tudo: o jornal, os colegas, os leitores. Porém, a vida nem sempre nos permite essas escolhas totais, e o convite era, como disse com muita elegância Jayme Sirotsky, irrecusável. Ele aliás acrescentou, com aquele humor de quem fala de um amigo, “eu sabia que o Civita ia te roubar da gente”.

Por 12 anos, escrevi na Veja. Porém, toda relação acaba, pela morte ou pela separação. Foi um divórcio amigável. Mas sempre é ruim. Entre outras coisas, senti falta disso que fiz desde muito jovem, com idas e vindas: escrever uma coluna em revista ou jornal. Foi então que chegou um e-mail da Cláudia Laitano, com recados de Marta Gleich. No começo, como em geral faço, não acreditei muito. Mas, sim, reafirmou a Cláudia, me queriam, me convocavam, coluna semanal na Zero. Só acreditei mesmo quando, uma semana depois, a própria Marta me ligou, “vamos combinar tua vinda para acertar pessoalmente”.

Até ali, só o marido sabia, esse que sempre me estimula. Então, comuniquei à família. Filhos aplaudiram: “Nota 10, mãe”, “Que legal, mãe, eu sabia” e “Mãe, estás voltando para casa”. A turma adolescente se animou, o rapaz me abraçou, e as meninas me olharam como se vissem a Beyoncé: “Que irado, vó!! Como tu conseguiste isso?”. Baixei uns olhos modestos: “Quando a gente envelhece, vai conseguindo umas coisas...”.

De modo que voltei para esta casa, onde estou em grandes companhias, como o querido Verissimo, Martha, Cláudia, David, Rosane e outros, e ao lado do Tulio Milman – que já me chama de “vizinha”. Sentir que se pertence a um grupo onde reinam respeito e amizade é ótimo, sobretudo para um bicho da sua toca, como esta que aqui escreve. Ah, e não vou ter de escrever sobre política!!!!!! Maravilha, pois, do jeito que as coisas estão, até eu ando sem palavras – o que é raro. Vamos falar desta complicada e fascinante criatura a que chamamos “gente”. Compromisso mesmo é não decepcionar.

Espero que gostem de mim, que me elogiem, me critiquem, me xinguem, façam sugestões – como se faz nas boas famílias. Para mim, escrever é falar ao pé do ouvido do leitor, amigo imaginário da minha vida adulta. Em criança, tive uma família inteira deles, diminutos, sentados no peitoril da janela do meu quarto, onde tínhamos grandes e animadas conversas. Talvez fossem duendes, sempre de roupa e gorrinho verde pontudo. Não lembro do que falávamos, mas eram ótimos, aqueles meus amigos inventados.

Termino esta primeira coluna citando mais ou menos o que escrevi naquela despedida 12 anos atrás, que a Marta Gleich (a quem agora chamo “the boss”) já em parte revelou: o “nunca diga nunca” é muito real. Talvez eu volte. Nunca se sabe o que pode acontecer. Pois aconteceu. Um novo ciclo se inicia, como tantas vezes em tantas coisas da vida. E tranquilizem-se, meus novos amigos, imaginários ou não: vocês não vão precisar usar gorrinho verde.



10 de setembro de 2016 | N° 18631 
CARPINEJAR

Gafes familiares

Amizade é selada na gafe. Amor cresce no constrangimento. É quando a vida dá errado e descobrimos que não somos sozinhos. Eu e a minha mãe temos rounds de comédia ao longo da relação. Episódios engraçados de desentendimentos. E só são memoráveis porque nos perdoamos com o riso depois.

Ela sofreu muito quando eu era pequeno. Eu vivia caindo, costurando a cabeça no pronto-socorro, quebrando vidraças dos vizinhos, roubando frutas, recebendo notificações da direção da escola. Não foi um tempo de calmaria, realmente abusei. E ela esquecia das minhas travessuras com a mesma rapidez que criava outras.

Lembro quando insisti para participar do coral da igreja. Tinha nove anos e voz de taquara rachada. Ela não quis me ofender e me levou a uma audição. Cada um dos candidatos mostrava a potência da voz individualmente. Um passo à frente no altar e os meninos reproduziam um trecho da Aquarela do Brasil. Quando chegou a minha vez, eu perguntei ao regente se a mãe não podia cantar em meu lugar.

Agora a minha mãe devolve na terceira idade tudo o que aprontei na infância. Decidiu ser engraçadinha. Não recebe crítica de ninguém porque é engraçadinha. Ganhou a onipotência de criança, não é responsabilizada por nada já que é fofinha e não fez por mal.

Nestes dias, estávamos em restaurante chique, aquele em que os talheres brilham tanto quanto o espelho e o guardanapo é longo e branco como uma toalha de Ano-Novo. A mãe ficou indecisa com o cardápio e assumiu atitude de aeroporto. 

Ou seja, reparar o que os garçons carregavam nas bandejas para qualificar o seu poder de decisão. Respirei fundo e prometi não brigar. Precisava melhorar a minha paciência e não censurá-la como sempre faço. Até que ela se levantou, dirigiu-se à mesa ao lado e indagou a um homem almoçando se poderia provar a sua comida. Foi tão rápido que não consegui me esconder debaixo da mesa.

Sair com a minha mãe hoje é aguentar não ser mais o personagem principal. Restrinjo-me a um eterno e útil coadjuvante. Nunca terei razão, mesmo quando demonstro equilíbrio e sensatez. Ela é que chama atenção, arranca gargalhadas e rouba a cena.



10 de setembro de 2016 | N° 18631
MARTHA MEDEIROS

O caso Multipalco

As grandes empresas e o governo é que podem fazer a diferença para a conclusão de uma instituição que irá potencializar a vida cultural do Brasil. Todo gaúcho sabe que a admirável dona Eva Sopher, 93 anos, dedica sua vida ao Theatro São Pedro e ao Multipalco, esta obra que parece tão inacabada quanto a Sagrada Família de Gaudí, em Barcelona. O Multipalco está demorando tanto para ser concluído que virou saga, mito, causo.

Porém, o que começou em 2003 com cinco anos de prazo para ser concluído já se estendeu por 13 anos e está mais do que na hora de ter um desfecho decente. Você sabe o que é, de verdade, o Multipalco?

Não é apenas aquela bela concha acústica ao ar livre. Não é apenas o ótimo restaurante Du Atos. O Multipalco é um complexo cultural inédito na nossa cidade e no nosso país. É um local que ministra aulas de música para jovens instrumentistas, é um espaço para teatro infantil, para corpo de baile, para ensaios de orquestras, para seminários. O esqueleto do prédio está pronto e funciona. Acabamento de primeira qualidade, salas amplas, competência na gestão. Falta pouco para se tornar o orgulho máximo dos gaúchos.

Recentemente uma coluna de Alfredo Fedrizzi repercutiu por tratar dos motivos pelos quais tantos desejam sair de Porto Alegre. Óbvio que há lugares mais atraentes para se viver, mas qual é a nossa contribuição para valorizar os projetos que, como o Multipalco, seriam aclamados em qualquer lugar do mundo?

As maiores construtoras nacionais estão envolvidas até o pescoço em escândalos. Gastaram os tubos com políticos a fim de se beneficiarem com contratos vantajosos. O que conseguiram com isso? Frequentar as páginas policiais. Tivessem direcionado uma fração desses milhões para obras de incremento à cultura, teriam feito diferença no futuro do país, seriam sócios de um progresso efetivo. Mas não.

A população contribui a seu jeito. O máximo que pode fazer é comprar ingressos, prestigiar espetáculos de qualidade, mas não é suficiente. As grandes empresas e o governo é que podem fazer a diferença, que podem doar o montante necessário para a conclusão de uma instituição que irá potencializar a vida cultural do Brasil. Não é supérfluo: se queremos um novo país, fatalmente a mudança passará pela cultura.

Se você conhece quem pode dar um arremate feliz para essa longa história, divulgue o e-mail: presidencia@ teatrosaopedro.com.br. Colabore compartilhando essa coluna e essa preocupação. Dona Eva, repito, tem 93 anos. Não merece ser privada de ver concluído um projeto que não é para ela, mas para nós, para as próximas gerações, para a realização de uma evolução que precisa deixar de ser utópica.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016


07 de setembro de 2016 | N° 18628 
MARTHA MEDEIROS
Aquarius


Ando desconfiada da minha capacidade de avaliar obras cinematográficas, pois a mais recente estreia do único ídolo que tenho na vida, Woody Allen, não me arrebatou como eu esperava. Fui preparada para gostar, mas devo ser uma das raras pessoas a ter achado Café Society razoável, nada além disso. Diante da minha inesperada decepção, considerei que o problema era eu e insisti: entrei numa sala de cinema para assistir a Aquarius preparada de novo para gostar. Mas o inesperado aconteceu novamente: gostar foi pouco. Saí completamente arrebatada e comovida.

Por onde começar? Talvez enaltecendo a interpretação incrível de Sonia Braga. Ela está perfeita no hiper-realismo que o diretor Kleber Mendonça Filho impõe como meio de contar sua história: somos voyeurs de cenas que não parecem ter sido escritas e ensaiadas, elas simplesmente existem como existe a nossa vida, exatamente igual.

Aquarius mostra a maneira como Clara, uma mulher viúva, com três filhos adultos e que passou por um câncer de mama, reage à insistência de uma construtora para que ela venda o apartamento onde viveu quando jovem, depois com o marido e as crianças, até a solidão madura e bem resolvida de hoje. Ela é a única moradora de um velho prédio em frente ao mar, e não vê motivo para sair dali, mesmo que todos os seus vizinhos já tenham cedido e se mudado.

Aquarius fala sobre integridade. Sobre a dificuldade de abrir mão daquilo que nos constitui, do nosso edifício interno, onde abrigamos nossos valores, mesmo que eles pareçam desatualizados. Clara nos encanta, mas sua teimosia nos confunde: por que ela não vende logo o apê e se livra das incomodações? Porque, mais do que um apartamento, ele é a fortaleza que resguarda o caráter de sua dona. Mais do que um imóvel, é a extensão de seu corpo. A resistência dela não é teimosia. É dignidade concreta.

Hoje em dia, quase ninguém mais percebe nossos alicerces, aquilo que nos sustenta emocionalmente. No início do filme, uma jovem vai entrevistar Clara, que é expert em música, colecionadora de vinis, mulher de sensibilidade apurada. Dias depois, quando Clara lê no jornal o título que escolheram para a matéria, desilude-se um pouco mais: as pessoas nem ao menos nos escutam. Não quando nossa verdade não dá audiência, não gera lucro.

Somos os últimos sobreviventes de uma era em estado terminal. O analógico e o digital quase não dialogam mais, e a emoção tenta prevalecer sobre a razão, mas até quando? Clara sabe que há outros cânceres que nos corroem e que também deixam cicatrizes – a ganância, entre eles. Mas se ela venceu um, vai tentar vencer todos

sábado, 3 de setembro de 2016



03 de setembro de 2016 | N° 18625 
MARTHA MEDEIROS

Dublê


Ele quer transar às 3h30min da manhã. Dublê, assuma e não se queixe. Poderia ser pior: ele querer discutir a relação. Dublês, enviem seus currículos. Estou contratando.

Cena 1. Era para eu estar concentrada em frente ao computador escrevendo uma coluna para a próxima semana, mas a inspiração é zero e nem posso alegar que nada está acontecendo ao meu redor. Como não? Só que travei. Cansei. Um dublê de colunista, por favor. Eu vou até ali na cozinha tomar um copo d´água e volto em um ano.

Cena 2. Estou paralisada diante das vertiginosas demandas digitais. Inúmeros e-mails sem resposta, milhares de curtidas que não dei nas postagens dos amigos, o site do banco está fora do ar, esqueci a senha da conta jurídica, entrou um vírus, a navegação está lenta, mandei um WhatsApp comprometedor para a pessoa errada. Preciso de um dublê educado, zen e especialista em TI. Enquanto isso, vou até ao banheiro escovar os dentes e retorno em dois anos.

Cena 3. Ele quer transar às 3h30min da manhã. Dublê, assuma e não se queixe. Poderia ser pior: ele querer discutir a relação.

Cena 4. Minha mãe reclama que estamos nos vendo pouco. Falamos todos os dias pelo telefone, mas isto não conta. Dublê, visite-a, leve revistas, chocolates e não se esqueça de tirar duas ou três selfies para eu postar no Face, caso ela invente de entrar com uma ação contra mim.

Cena 5. Blitz. Eu bebi meio cálice de vinho, mas isto já é suficiente para prisão perpétua e apreensão do veículo. Dublê, dirija meu carro e esteja sóbrio. Eu vou até ali no bistrô beber o resto da garrafa com minhas amigas e volto direto pra casa, a pé.

Cena 6. A expressão “um aperto no peito” deixou de ser figurativa para ser real. O nome disso, se não for princípio de infarto, é angústia. Dublê, são tempos difíceis. Se alguém quiser bater boca, me represente enquanto medito até o próximo sábado.

Cena 7. Uma filha está usando um alargador na orelha. A outra abandonou a casa e o emprego para se aventurar pelo mundo. Minha funcionária pediu adiantamento, o segundo neste mês. Estou precisando tonalizar o cabelo de novo. Minhas unhas estão um lixo. Engordei três quilos e justo agora minha instrutora de pilates saiu de férias, e a terapeuta também. Você não é multitarefas? Dublê de mulher tem que ser.

Cena 8. Ao acertar minha participação num evento literário, sou avisada de que preciso imprimir três vias do contrato e reconhecer firma em cartório. Pelo visto, há muitos escritores falsificando suas assinaturas por aí. Preciso de um dublê despachante pra ontem.

Cena 9. Tratamento de canal. Ressonância magnética. Ecografia. Por favor, marque as consultas e vá no meu lugar, pode usar meu plano de saúde.

Cena 10. Não acredito. Ele quer discutir a relação. Dublê!!

03 de setembro de 2016 | N° 18625 
CARPINEJAR

Táticas para ser visto pelo garçom


Garçom no Rio de Janeiro é como sogro: a princípio não gosta de você. Diferentemente de outras cidades onde você senta e é logo visto, lá você senta e desaparece. Precisa fazer coreografias desesperadas para ser atendido. Receber o cardápio pode significar a sua morte.

O abandono na mesa trará letal desprestígio. Costuma significar o fim precoce de um namoro, de um negócio em potencial, de uma amizade no nascedouro. É uma humilhação levantar a mão inúmeras vezes e jamais ganhar atenção.

Demorei a compreender a aristocracia do garçom carioca. Ele não é garçom, nasce maitre.

Em todas as minhas experiências botequeiras, apelava para querido ou amigo, e nada. Não vinha em minha direção. Ele me ignorava. Não havia como pedir um prato ou uma bebida. Ou seja, não tinha como existir, pois comer e beber são os gatilhos de qualquer papo.

Até que descobri a santa estratégia: garçom apenas atende bem quando chamado pelo nome. Perda de tempo assoviar e gritar ei, oi, ui – ele lhe tratará com capricho ao ser identificado. Descobrir o nome do garçom é o kit de sobrevivência na noite.

Foi o que fiz na semana passada quando levei Beatriz a um bar no Leblon. Logo no início, quando ele me alcançou o menu, perguntei quem era e esbanjei o poder de persuasão.

Devo ter chamado o Alberto mais vezes do que pronunciei o nome de minha mulher naquela noite. Estava ficando chato, porém a receita vingou perfeitamente. A cada nova necessidade, assumia uma postura redentora, de São João Batista a sempre batizar o sujeito no Rio Jordão do meu chope:

– Por favor, Alberto! – Alberto? – Gentileza, Alberto?

Ele tornou-se o meu Messias dos bolinhos de bacalhau e da porção de fritas. Entre falar o seu nome e fazer o pedido, não demorava nem 10 segundos. Ele corria entre as mesas com larga vantagem entre os seus colegas, um verdadeiro Usain Bolt das bandejas.

Já comemorava o êxito da fórmula, já imaginava escrevendo um livro de autoajuda revelando a chave do sucesso da boemia, já me via na lista dos mais vendidos da revista Veja, mas chegou a conta e tratei de bancar o canastrão diante do 10% opcional:

– É obrigatório, Alberto, pelo seu excelente atendimento.

– Obrigado, senhor, só que meu nome é Roberto.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

 

31 de agosto de 2016 | N° 18622 
MARTHA MEDEIROS

Guerra de torcidas

Inevitável lembrar o dia da votação do impeachment do Collor. A cada voto favorável à sua saída, eu aplaudia. Era 1992 e eu tinha certeza absoluta de que lado estava. Aliás, não havia divisão, era um processo apartidário. Todos os brasileiros estavam do mesmo lado.

Hoje, o país vive situação similar, mas o país foi rachado em dois.

O discurso de Dilma no Senado, na segunda-feira, foi digno e sua disposição para o interrogatório, louvável. Estava me causando boa impressão, até que vieram as ameaças: se ela fosse deposta, adeus à democracia, seria o fim do país, nenhum contrato assinado teria mais valor.

A gente sabe que não é bem assim. Existe também a alternativa de o país seguir seu curso, fazer ajustes necessários, fortalecer a economia e respirar até a eleição presidencial de 2018. A não ser que a oposição se articule para tirar Temer do governo antes disso, uma ação que chamaríamos de quê? Revanche? Toma lá dá cá? Golpe? Direito constitucional?

Passei então a observar o outro lado do balcão e houve momentos em que concordei com alguns argumentos pró-impeachment, mas não senti a menor vontade de fazer parte daquela turma. Os que julgam Dilma também estão enrolados até o pescoço. Tanta retórica começou a me dar náuseas e percebi que não havia, ali, preocupação com o Brasil, e sim paixão pela política, pelo jogo, pelo poder.

No início da noite, uma câmera flagrou um cumprimento amigável entre Aécio e Dilma. Dava para perceber que sorriam. É isso aí. Tal qual a troca de camisetas entre jogadores ao fim de uma partida de futebol. Todos disputam a posse de bola em campo, mas, no final das contas, é só um esporte. Amanhã um pode estar jogando no time do outro.

É bem provável que a decisão já tenha sido tomada: Dilma saiu ou Dilma ficou. No momento em que escrevo, não sei. Tampouco consigo ter a certeza que tantos têm sobre o que é justo, neste caso, e o que não é. Segundo os comentários deixados nas redes sociais, voltaremos a ser uma ditadura, se ela sair, ou amargaremos uma crise sem fim, se ela ficar. Exagero. Não creio que haverá nem um grande atraso nem um grande avanço, independentemente do resultado. Então torço, antes de tudo, para que vença a lei.

Transformação, pra valer, virá com a continuidade do trabalho da Lava-Jato. Não se pode parar de punir quem roubou, seja de que partido for – começando por Eduardo Cunha. É a corrupção que tem que sofrer um impeachment colossal a fim de abrir caminho para uma renovação no nosso modo de fazer política. Só então evoluiremos, trocando gatunos por pessoas realmente comprometidas e mantendo dinheiro em caixa para investir num projeto de país que nos una de novo.

sábado, 27 de agosto de 2016




27 de agosto de 2016 | N° 18619 
MARTHA MEDEIROS

Falta de estoque

Preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Outro dia quis dar de presente para um amigo um álbum com algumas fotos que sei que ele iria gostar. Não um álbum digitalizado, mas daqueles em que colocamos as fotos nos compartimentos plastificados. Que via-crúcis. A maioria dos álbuns que encontrei nas lojas era de bebês e de noivas. Por fim, encontrei um como eu queria, de capa lisa e com a dimensão desejada. Quando ele recebeu, abriu um sorriso daqueles: disse que fazia tempo que não era surpreendido, e acreditei. Quem ainda se dá o trabalho de revelar fotos?

Ao mesmo tempo, soube de uma livraria em Paris que funciona numa sala onde há apenas uma Espresso Book Machine – uma máquina que imprime livros na hora. Você entra, escolhe o que deseja num cardápio com cerca de 5 mil títulos e em poucos minutos leva para casa seu produto. Como tirar uma Xerox numa casa lotérica.

Os álbuns de fotos estão rareando no mercado. Os livros impressos ainda existem, mas começam a ser automatizados. Discos também ainda existem, mesmo a gente baixando música direto de aplicativos. Cadernos, agendas, revistas, canetas, lápis: tudo em vias de virar quinquilharia inútil, objetos de culto, no máximo.

O mundo físico está se diluindo. E estoque é palavra que cairá em desuso rapidinho.

Observo minha casa e não imagino as paredes sem estarem tomadas por livros até o teto, as estantes entupidas de CDs, as dezenas de canetas enfiadas em potes, minha coleção de cartões-postais, os móveis amparando objetos trazidos de viagens, vários quadros pendurados, o chão forrado de tapetes diversos, os sofás cobertos de almofadas, lenhas e nós de pinho aguardando a hora de arder dentro da lareira. Um armazém doméstico.

Não guardo papelada inútil e rancores antigos, aprendi a deletar rapidinho tudo que é peso morto – para alguma coisa tinha que servir essa tal de maturidade. Mas preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Entrar numa livraria onde só existe uma impressora me parece a descrição de um pesadelo. Digo o mesmo de uma casa onde tudo é monocromático, futurista, com muitos espaços vazios sem um cisco à vista, os móveis apenas dois ou três. Afinal, é um hospital ou um lar?

As pessoas andam meio piradas, e acho que essa assepsia só piora o quadro. Não limpem tanto a área, deixem as coisas se amontoarem: pela manutenção das prateleiras, ao menos. Quero poder procurar, furungar e encontrar o que quero, não apenas dar um toque numa tela. É o meu singelo manifesto contra a higienização dos nossos hábitos.



27 de agosto de 2016 | N° 18619 
CARPINEJAR

Até Tóquio

Nunca subestime o poder de argumentação.

Se conversar não convence, pelo menos cansa o outro lado. O outro lado concordará comigo mais para dormir de uma vez por todas do que porque decidiu me apoiar.

Não me interessa ganhar uma discussão, só não quero perdê-la.

Quando estou errado, não deixo de defender os meus argumentos. Posso sofrer uma goleada, mas não desisto de buscar o gol de honra.

Jamais me entrego, jamais entrego os meus amigos. Amizade é a minha máfia. Não confunda o egoísmo com lealdade, é uma questão de preservação pessoal. Caso denunciar os amigos, sacrificarei os futuros álibis.

Homem ilhado é homem vulnerável.

Nego até depois do fim. Não duvido de que a verdade não fique com compaixão da minha forjada coerência. Não tremo de raiva, não grito, não altero o tom de voz. Não consulto o relógio para indicar ansiedade. Olho nos olhos para exalar confiança.

Nenhum mal é definitivo. O importante é não cair nocauteado pela confissão e permitir que o resultado seja fruto da subjetividade dos jurados.

Se você errar o nome da mulher, por exemplo, ainda há conserto. Mesmo que seja na cama. Confie em mim. Aliás, confie em si.

É apenas elogiar o ato falho. Criar um manifesto em defesa do ato falho. Inverter a situação. Nada melhor do que uma torção psicanalítica para evitar fraturas amorosas.

– Eu não sou Priscila. Priscila é o nome de sua ex! – resmunga a esposa, já chorando.

– Eu lhe chamei de Priscila? Que bom!

– Que bom?

– Que bom, amor. Eu estava esperando este momento.

– Tá de sacanagem comigo, troca meu nome no meio do sexo e acha isso normal? Você é um doente! Um doente!

– Não, agora é que estou curado. Não preciso mais cuidar do que falo. Vivia me censurando, me inibindo, com medo de lhe magoar. O ato falho prova que tenho confiança em você, que me permito errar e não lhe acho mais fraca, mais tola, mais bobinha, que você amadureceu para mim e demonstra condições de segurar a barra nos momentos difíceis.

– Você vem me enxergando diferente?

– Sim, amor, muito mais forte. Que orgulho de você. Eu a admiro bem mais hoje.

– Mesmo?

– E também prova que não estou mais me defendendo ou pensando naquilo que preciso dizer. Não me controlo na sua frente. Eu me soltei, eu me libertei do passado, posso amar como nunca. O ato falho é um exorcismo, não devo mais nada para Priscila.

– Mas, amor, já estamos juntos há quatro anos?

– Pois é, amor, o ato falho costuma acontecer a cada quatro anos, como a Olimpíada.

– Tudo bem, dessa vez passa, mas não haverá perdão para uma próxima.

sábado, 20 de agosto de 2016



20 de agosto de 2016 | N° 18613 
MARTHA MEDEIROS

Vida dura comparada com a de quem?

Há mil jeitos de aliviar a dor dos outros. Ficamos com a parte mais fácil, tenha certeza


Vamos supor que a mesa da sua cozinha tenha sido atacada por cupins, que você esteja de relações cortadas com sua mãe, que venha sofrendo uma dor-de-cotovelo daquelas, que tenha engordado durante o inverno, que esteja estremecida com uma amiga com posição política oposta à sua, que tenham batido no seu carro estacionado e não deixaram nem um bilhete no para-brisa. Continue supondo: fez as contas e não vai dar para viajar no fim do ano, seu filho admitiu que fuma maconha, e seu patrão encasquetou que você está fazendo corpo mole no trabalho, mas a única coisa mole é seu tríceps.

Sem falar que anda frio, que sair à noite anda perigoso e você andou se estressando com comentários deixados nas redes sociais. O peixe que comeu no almoço estava estragado, e sua prima perdeu o livro que você emprestou. Convidaram você para um casamento, e você não tem roupa. Um maluco caçando pokémons pisou em cima do seu yorkshire. Será porque é agosto?

Pode nada disso estar acontecendo com você, mas certamente você tem sua lista de queixas. Todos nós temos. Mas queixas comparadas com o quê?

Passei uma tarde na Kinder, uma entidade que reposiciona nossos valores. Há mais de 25 anos, oferece educação especial e reabilitação a 300 crianças e adolescentes carentes com sérios comprometimentos neurológicos e físicos. Emprega cerca de 50 profissionais, entre pedagogos, fisioterapeutas, educadores. Mantém uma sede ampla, limpa e bem equipada – tudo mantido com doações privadas e repasses públicos. 

O que acontece lá dentro é um milagre. Cada funcionário trabalha com um baita sorriso no rosto, como se estivesse na Disney. Atendem meninos e meninas com deficiências de moderadas a graves (não há caso leve por lá) e se sentem orgulhosos e plenamente gratificados por fazer diferença na vida de quem nasceu em total desvantagem em relação a nós. Desvantagens como não conseguir falar, não conseguir ficar em pé sozinho, não ter articulação motora.

Quem começou tudo isso foi, de certa forma, uma refugiada. Barbara Fischinger chegou novinha aqui no sul, vinda da Alemanha, e não poupou esforços até realizar seu sonho de viabilizar um projeto de assistência aos que têm comprometimentos múltiplos. O que ela fez e ainda faz é de uma importância que até nos deixa acanhados, nós que nos julgamos especiais sei lá por quê. 

Especiais são aqueles que se dedicam a projetos de inclusão social e o fazem com amor e entrega ilimitada. A nós, resta colaborar. Podendo, entre no site kinder.org.br. Há mil jeitos de aliviar a dor dos outros. Vamos dar uma mão para que esse pessoal prossiga com o que começou. Ficamos com a parte mais fácil, tenha certeza.



20 de agosto de 2016 | N° 18613 
CARPINEJAR



Solidão não é estar sozinho, mas é não conseguir ficar sozinho, não se suportar sozinho.

Assim como a solidão não tem conexão com o deserto e o isolamento. Pode acontecer casado, acompanhado, cheio de gente ao lado.

Solidão é uma insuficiência que cresce: é a infinita capacidade de piorar o mundo para melhorar as reclamações.

Solidão é não encontrar ânimo tanto para acordar quanto para dormir, é quando o desespero desemboca em angústia.

Solidão é guerrear com a imaginação, lutar com a memória, combater os pensamentos. É se posicionar contra o perdão.

Solidão é uma saudade de si.

Solidão é rir sem vontade mais do que ter vontade de chorar.

Solidão é parar de achar graça quando as coisas dão errado.

Solidão é não ser compreendido. É explicar o que machucou e não receber o curativo da atenção.

Solidão é ser desacreditado sempre que se conta a verdade. É revelar uma urgência e ser menosprezado. É expor uma necessidade e não ser levado a sério.

Solidão é a incomunicabilidade. É conviver com alguém e não ter como falar o que incomoda, é perder o ritmo da confissão, é não saber mais como começar uma conversa.

Solidão é ser assaltado várias vezes pela mesma tristeza. É não resolver nunca o problema, é aceitar a falta de solução.

Solidão é jamais encerrar as mágoas, adiar a despedida para fingir que a relação não acabou.

Solidão é não terminar mais nenhum livro e ouvir uma única música ininterruptamente.

Solidão é forjar respostas para não enfrentar as perguntas.

Solidão é chegar muito atrasado na emoção. É um desabafo feito exclusivamente de soluços.

Solidão é ir substituindo a vida por mentiras, é ir substituindo o compromisso pelas desculpas.

Solidão é assumir a culpa por aquilo que não aconteceu e, ironicamente, fugir da responsabilidade por tudo aquilo que aconteceu.

Solidão é ser desajeitado para amar e ser incompetente para odiar.

Solidão é quando o silêncio vira fardo.

Solidão não é o vazio, é ocupar o coração pela pessoa errada.

Solidão é manter um quarto infantil para um filho adulto.

Solidão é lembrar o aniversário um dia depois.

Solidão é um asilo para crianças, um orfanato para velhos.

Solidão é desinteressar-se pelas palavras e, em seguida, desinteressar-se pelo corpo.

Solidão não é ausência de sexo, é ausência de prazer.

Solidão é extraviar o contato com a família e não ter a humildade de reatar.

Solidão é desaparecer para os amigos durante a alegria e depois ver os amigos desaparecendo nos momentos da tristeza.

Solidão é pagar mesada aos defeitos e salário para as dores e não sobrar nada para agradecer aos céus.

Solidão é enjoar de tudo o que antes lhe inspirava, é quando a felicidade transforma-se em tédio.

Solidão é rastejar com asas, não dispor da concentração mínima para recuperar o que era importante.

Solidão é não ser mais solidário consigo.

Solidão é recordar os bons momentos somente para se torturar.

Solidão é inventar doenças e morrer de desgosto pelo excesso de saúde.

Solidão é se sentir só ainda desejando estar só.

sábado, 13 de agosto de 2016



13 de agosto de 2016 | N° 18607 
CARPINEJAR

Quando mordi a minha língua

O que sentimos ou deixamos de sentir está impresso nos mínimos gestos. Você pode ser uma pedra, não falar nada, mas até a pedra um dia será amaciada pelo musgo.

Não adianta sonegar emoções, traficar amores, camuflar problemas, porque será descoberto. Entregará o que vem lhe preocupando pela aparência. Somos horóscopos ambulantes, biscoitos da sorte prestes a serem quebrados por uma mensagem.

No fim do Ensino Médio, eu vivia brigando com os meus colegas, desafiando os professores, respondendo desaforado aos pais.

Óbvio que fui forçado a visitar a psicóloga da escola. Prometi a mim mesmo que lacraria a boca, ficaria calado durante a consulta inteira, faria terrorismo com a quietude. Não achava justo ser obrigado a me analisar e ainda mais numa época em que a terapia estava vinculada preconceituosamente à loucura.

Eu me ajeitei na poltrona com o meu estojo e caderno de aula debaixo do braço e a indisposição macabra de silenciar a cada pergunta. Mas a psicanalista não questionou nada, e o seu silêncio inesperado foi me enervando. Ela me observava com interesse, e eu querendo cada vez mais me esconder. Quando alguém permanece quieto muito tempo em nossa frente é como encarar um espelho e o tamanho de nossas dúvidas. Ela me provocava não me provocando, ela me emparedava abrindo todas as portas. Aquela liberdade assustadora de não ser cobrado a participar me aprisionava.

Mexi em meu estojo para me distrair. Ela perguntou se eu poderia emprestar uma caneta.

Alcancei uma Bic azul. Ela viu que a tampa estava mordida. Olhou com carinho e comentou:

– Enquanto não morder o tubo, está tudo bem. Eu ri de nervoso e demonstrei curiosidade.

– Morder a tampa significa alguma coisa?

– Significa que não fecha as conversas, que foge das discussões com medo de dizer a verdade, que reprime o desejo e vira as costas remoendo sozinho as suas frustrações e decepções, jamais repartindo a sua verdadeira opinião com ninguém, nem com seus melhores amigos.

Não revelei coisa alguma durante uma hora do encontro, mas ela me decifrou inteiramente apenas analisando a tampinha mordida da caneta. Uma mera, idiota e banal tampinha iluminou o meu comportamento.

A partir daquele dia, nunca mais subestimei a psicanálise e cuidei para morder somente a insossa borracha nos momentos de maior ansiedade.




13 de agosto de 2016 | N° 18607 
MARTHA MEDEIROS

A arte salva

A arte formula perguntas, nos devolve o mistério, nos coloca diante do desconhecimento, que é a única forma de crescer

A já remota cerimônia de abertura da Olimpíada no Rio deixou claro que música, dança e teatro não são supérfluos, que precisamos de um Ministério da Cultura forte e valorizado, e que arte também é uma religião.

A arte possibilita a comunicação instantânea entre povos que não falam a mesma língua e não possuem os mesmos costumes. A arte acessa em cada um de nós uma emoção que suplanta as mesquinharias triviais e cotidianas. Traz à tona valores fundamentais, a começar pela humildade. A arte nos reposiciona: saímos do lugar-comum, transcendemos e passamos a desenvolver um olhar mais amplo e generoso para o que nos cerca. A arte homenageia nossa inteligência e nossa sensibilidade. A arte é universal. É feita de mágica, beleza, espanto. Cala a nossa voz e desperta nossos sentimentos, sem os quais seríamos pessoas vazias, robotizadas.

Através da arte, nos aproximamos de outras vivências e combatemos nossos preconceitos. A arte é empática. Elimina fronteiras. Desconstrói rótulos. Mesmo quando comercial, traz sempre um valor intrínseco. A arte não tem que atender nossas demandas, não tem que ser “boazinha”, não tem que ser prática – ela existe para provocar, para desenterrar aquilo que escondemos de nós mesmos por covardia: emoção dói, por isso choramos. Ela recupera a inocência da infância, aquele tempo de descobertas, quando nada sabíamos. A arte formula perguntas, nos devolve o mistério, nos coloca diante do desconhecimento, que é a única forma de crescer. A arte impõe a subjetividade como caminho para a evolução.

Precisamos da arte para extrair de nós o nosso melhor. Portanto, que nossas escolas invistam em aulas de teatro e música, que mantenham oficinas de literatura, que coloquem o artesanato no currículo, que não apenas levem os estudantes a museus, mas que também os habilitem a manejar luz, som, matéria. Sem desprezar o mundo digital, que as crianças voltem a fazer trabalhos manuais, encontrando uma forma legítima, autêntica e excitante de criar algo que as personalize.

Não é preciso Deus quando se pode contar com maestros, bailarinos, compositores, instrumentistas, cineastas, escritores, pintores, dramaturgos, ceramistas, escultores, designers, atores, cantores, coreógrafos, malabaristas – e inclusive atletas. Nadia Comaneci foi uma artista. Garrincha foi um artista. Toda pessoa que consegue transformar o inesperado em poesia – através de um salto, um drible – reforça nossa autoestima e nossa fé. Se religião é crer, eu creio na arte. Ela não promove guerras, intolerância, terrorismo, repressões. Ela apenas retribui nossa crença nela, fazendo com que acreditemos em nós também.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016



10 de agosto de 2016 | N° 18604 
MARTHA MEDEIROS

O que eu caço por aí

Estava distraída andando pelo parque num dia de sol quando escutei, sem querer, a conversa de duas moças que caminhavam logo atrás de mim.

Disse uma para a outra: “Ele aparece muito depressa, não dá tempo de pegar”.

Imaginei que ela estivesse narrando as desventuras da noite anterior. Visualizei a cena: ela tomava uma caipirinha em uma mesa de bar quando entrou no recinto o homem de seus sonhos, que deu uma rápida conferida no ambiente e logo sumiu porta afora, como era de costume. O comentário dela não fazia todo o sentido? “Ele aparece muito depressa, não dá tempo de pegar”.

Se não era esse o caso, talvez fôssemos colegas de profissão e o comentário faria sentido igual, uma vez que, além de eu estar no parque me exercitando, estava também fazendo algo que minha atividade exige: caçando. Calma. Caçando assunto. Às vezes, eles também surgem muito depressa, nem dá tempo de pegar.

Parece insano reclamar de falta de assunto, já que não se pode alegar que o mundo esteja um tédio. Absolutamente tudo está acontecendo neste ano, a ponto de uma boa piada ter se propagado por aí: “Tentei acompanhar 2016, mas desisto, vou esperar sair em DVD”.

Ainda assim, quem escreve colunas há mais de duas décadas vive com a sensação de ter esgotado seu estoque de opiniões. Olimpíada, corrupção, desastres ambientais, mortes, crises, eleições, retrocessos, avanços, dores existenciais, ativismo político e social: mudam os personagens, os enredos são reescritos, a filosofia clássica é reinterpretada, mas o que é que ainda surpreende de fato? Lembro que até há pouco tempo eu pensava que o último acontecimento realmente impactante deste início de século havia sido o 11 de Setembro, porém até o terrorismo está em vias de se banalizar.

O jeito é extrair uma impressão pessoal não só das grandes questões, mas também das trivialidades que todos estão comentando (e agora todos são todos mesmo), com bom humor ou mau humor, sem se angustiar por não conseguir ser original em meio a bilhões de palpiteiros simultâneos desse universo tecnológico.

Costumo fazer minhas caminhadas sem levar o celular, mas aquelas duas moças atrás de mim estavam com seus smarthphones caçando você-sabe-o-quê, só que quem se deu bem fui eu, pois ele passou depressa e eu consegui pegar – um assunto! Graças ao comentário delas, trouxe pra casa minha caça: a crônica foi escrita, entregue para o jornal e agora está sendo lida. De certa forma, meu Pokémon é você.