sábado, 20 de outubro de 2018



20 DE OUTUBRO DE 2018
JJ CAMARGO

SENTIR-SE MÉDICO

Há muitos anos, tenho me preocupado em estabelecer estratégias que funcionem como balizador da atitude médica, não através de protocolos frios, mas servindo-me do árbitro mais comprometido com essa avaliação: o próprio paciente. De tanto perguntar o que tinha sido inesquecível da experiência hospitalar, muito aprendi a identificar a enorme distância entre o sentimento do paciente vivendo seu inferno astral e o médico amortecido por sua rotina dessensibilizante. Nos últimos anos, as melhores escolas têm insistido na valorização dos padrões de qualidade do trabalho médico muito em função do crescimento exponencial das reclamações, cada vez mais expressas como demandas judiciais. 

Nós ainda não sabíamos bem se o jeito moderno de ser médico agradava ou incomodava os pacientes, porque os bancos de dados, em geral, não estavam interessados no que eles sentiam. Na maior parte do tempo, ignorávamos solenemente a única opinião realmente importante de toda a cadeia, apesar de esta ser uma equação constrangedora de tão simples: paciente infeliz = médico equivocado.

Uma pesquisa em um hospital universitário identificou como principais queixas dos pacientes a incapacidade de ouvir, a pressa em encerrar o atendimento, a desconsideração com o tempo de espera e a falta de vínculo decorrente da alta rotatividade dos "médicos". A pesquisa começou com alunos a partir do terceiro ano da graduação e se estendeu até o final da residência médica. A aferição do rendimento do estudante, fugindo do convencional, não contabilizava o desempenho acadêmico, mas simplesmente as notas atribuídas por pacientes, familiares e funcionários.

Uma observação inicial considerada surpreendente foi a predileção pelo atendimento dos terceiranistas, justamente os menos qualificados tecnicamente, mas, muito por isso, mais afeitos a ouvir. Na medida em que o estudante avançava no curso, aparentemente se tornava mais soberbo e menos tolerante à ignorância dos incautos.

A observação curiosa é que esta discrepância entre qualificação técnica e intolerância se propaga também à pós-graduação, e possivelmente depois dela, até a aposentadoria dos pretensiosos. Felizmente, esse comportamento não é constante e dele se salvam todos os médicos de verdade que, por terem descoberto o fascínio da reciprocidade de afeto, nunca se bastam do encanto que move esta usina de gratidão.

O Cleber foi um aluno questionador e meio irreverente. Se durante a aula abordávamos um tema da relação médico-paciente que incluísse alguma emoção, era certo que, no final, ele alongaria a conversa para algum comentário sempre inteligente, mas com uma boa dose de ironia. Não via o Cleber desde a formatura. Um dia desses, o encontrei na saída do Centro de Transplantes e perguntei se estava trabalhando na Santa Casa. A resposta inicial identificava a figura debochada de sempre: "Não, professor, eles ainda não se deram conta do talento que estão desperdiçando! Agora, falando sério, vim lhe procurar porque hoje perdi um paciente querido, relatei para a família o que tinha ocorrido, eles me abraçaram e agradeceram comovidos, e tive que correr para o carro porque não queria que me vissem chorar. Então, me apressei em lhe mostrar que estou melhorando!".

Não sei o que me deixou mais feliz: se o Cleber se descobrindo médico ou a pressa em me contar a descoberta.

JJ CAMARGO

20 DE OUTUBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Como fazer a coisa certa

Certa noite, na mesa do bar, entre chopes gelados e cremosos e dourados, meu amigo Antônio Vicente Martins contou que o pai dele sempre repete determinada frase. O Vicente, se você não sabe, é advogado, foi dirigente do Grêmio e alguns maldosos dizem que ele parece o irmão mais novo do Zeca Pagodinho. Na tal noite, estávamos em meio a libações e risadas, tudo muito leve como tem de ser, mas aquela frase caiu na mesa como uma bigorna, espalhando batata frita para tudo que é lado. Foi a seguinte:

"O que não está certo já é errado".

Colhi a frase da mesa, espanei-a, botei no bolso e guardei para mim. Porque gostei. Trata-se de um código moral rigoroso, difícil de ser seguido, mas bastante preciso, porque elimina a dúvida: se você cogita se algo é correto ou não, a resposta é não.

Não sei se o pai do Vicente leu Kant, mas eles têm filosofias semelhantes. Kant era um filósofo que se preocupava bastante com essas questões éticas. Para ele, o homem elevado em sua humanidade devia fazer o certo não por interesse, nem por medo da punição, mas tão somente porque o certo é? o certo.

Mas como reconhecer o certo?

Kant sugeria algumas fórmulas. Uma delas é usar o seguinte raciocínio: "Eu gostaria que todo mundo fizesse como estou fazendo?".

Você termina de comer o picolé Espacial e joga a embalagem no chão. O que vai acontecer se toda a população fizer o mesmo? A cidade vai ficar emporcalhada, não é? E você não gostaria de viver numa cidade emporcalhada. Logo, não jogue a embalagem do picolé Espacial no chão.

A outra fórmula, que se aproxima da máxima do pai do Vicente, é a seguinte: "Se você não pode contar como fez, não faça".

Não se trata de privacidade, é evidente. Trata-se de ter vergonha ou medo de contar como algo foi feito.

Bem. Agora me diga: será que algum político brasileiro pode contar como fez? Um político de sucesso, qualquer um, de qualquer partido, pode contar como venceu as eleições, por exemplo? Duvido. Há sujeira em todas as eleições, há sujeira em todo o processo político brasileiro, e é contra isso que o eleitor tem se rebelado. Esta é a eleição antissistema. Uma eleição que vai gerar parâmetros: a velha malandragem está perdendo espaço no Brasil.

Os brasileiros cansaram do jeitinho, cansaram da manemolência, cansaram de quem os engana sorrindo. O voto em Bolsonaro não é o da ultradireita ou o da defesa da ditadura. Bolsonaro até pode ser acusado de ser isso, mas o voto nele, definitivamente, não é. O voto em Bolsonaro é o voto contra o establishment político. O eleitor olhou para o cardápio de candidatos e identificou neles todos o mesmo sabor, o mesmo discurso, a mesma lógica, a mesma forma de fazer as coisas. Só um parecia diferente. Foi esse o escolhido.

Não faço a menor ideia de como Bolsonaro vai se comportar como presidente. Apenas torço para que ele seja pelo menos um pouco do que o eleitor espera dele. Que ele, ao agir, saiba que o que não está certo já está errado.

DAVID COIMBRA

20 DE OUTUBRO DE 2018
MÁRIO CORSO

O sétimo sentido

Falamos em sexto sentido para intuições que nos acometem, para percepções cujas fontes são misteriosas. Mas já temos seis sentidos. O sexto sentido é o equilíbrio. Ele é tão discreto, que, como em tantas coisas da vida, só notamos sua existência quando falta.

Quando tiveres uma crise de labirintite, vais entender e pedirás perdão, ajoelhado, pela ingratidão de não levá-lo em conta. Portanto, o correto seria falarmos em sétimo sentido quando entramos na gramática de captar mensagens esotéricas, ler nas entrelinhas do mundo os sinais epifânicos.

Eu, não é hora de ser modesto, tenho um extraordinário sétimo sentido. Recebo revelações, aprendi a interpretar os signos que o universo me manda. Basta estar apreensivo com algo, que, automaticamente, começo a ler nas firulas do banal e sentir o que vem pela frente. Qualquer pequena vibração já me demonstra para onde apontam as tendências. Meu sétimo sentido é especializado em futuro.

Não leio borra de café, voo dos pássaros, entranhas de vítimas sacrificadas, para ficar nas mais antigas e comuns artes divinatórias da humanidade. Tampouco uso tarô, runas, I-Ching, búzios, mapas astrais. Deixo esses apetrechos para quem tem poderes mediúnicos menores.

Minha clarividência usa fontes ampliadas, eu posso ler qualquer coisa. Basta ficar atento ao fluxo do mundo e a mensagem me vem pelos números de placas de carro, pelas pessoas que encontro na rua, pela música que o rádio toca. Enfim, qualquer acontecimento fortuito possui a senha do futuro para quem, como eu, conhece a chave interpretativa do cosmos. É intuitivo, e a revelação chega como um presente dos deuses.

O que me desalenta, e isso é bem chato, é que sempre erro. E, quanto mais seguro estou de algo, mais distante do acontecido. Meu sétimo sentido é descalibrado. Três hipóteses: o universo brinca comigo, mandando sinais ilusórios para me confundir. Ou capto a verdade de um universo paralelo, aliás, melhor do que o nosso. Ou então, o sétimo sentido é expressão da minha mania alucinada, demente e incurável, de tentar antecipar o futuro.

Inclino-me a pensar que a minha paranormalidade, e suponho que a dos outros, é uma sopa feita de medos, apreensões e desejos, turbinados pela ansiedade de saber para onde vamos. A premência em antecipar os fatos afrouxa a razão e a superstição escancara a porta e faz a cama.

Apesar de saber disso, meus poderes não me largam. Basta ter um Gre-Nal pela frente e eu não só sei o resultado como quem fará os gols e em que momento. Sei quem vai pegar o pênalti e o canto em que será batido. Se fizesse previsões genéricas, perigava acertar, mas meus poderes fajutos descem às minúcias.

Tenho um remédio que desliga um pouco meu engenho de futurólogo. Mas bem capaz que vou tomar antes de terminar as eleições e o Brasileirão, não é mesmo?

MÁRIO CORSO

20 DE OUTUBRO DE 2018
MARTA GLEICH

O ano da integração

Aqui na Redação, temos um dia muito aguardado por todos os profissionais: a data em que homenageamos, numa cerimônia simples e sem formalidades, os melhores trabalhos do ano.

É a 15ª edição do Prêmio RBS de Jornalismo e Entretenimento - o que ocorreu nesta semana foi a etapa das redações. Em novembro, teremos a etapa final, de toda a empresa.

Na edição deste ano, celebrada na quarta-feira, entregamos 18 prêmios, além de cinco destaques a profissionais que realizaram um trabalho extraordinário.

Algumas palavras ou expressões resumiram, na premiação, o que está sendo este ano para nós: integração, digital, jornalismo de qualidade e pessoas.

Integração - 2018 fica marcado na história da RBS como o ano em que juntamos, no mesmo ambiente, formando uma grande e vibrante Redação, os jornalistas que produzem quatro marcas: Zero Hora, Diário Gaúcho, GaúchaZH e Rádio Gaúcha. E isso se refletiu na premiação: dos 18 trabalhos reconhecidos, 12 foram resultado da integração das redações, seja porque foram realizados por profissionais de mais de um veículo (exemplo: um jornalista da rádio que se juntou a um do jornal para apurar uma reportagem), seja porque foram divulgados em mais de uma plataforma (um conteúdo que foi distribuído em ZH, GaúchaZH e Rádio Gaúcha, por exemplo). É o ano da integração.

Digital - Outra palavra lembrada foi "digital". Nosso público está cada vez mais mobile. Quase 80% da nossa audiência consome os conteúdos de GaúchaZH no celular. Em 2018, ano em que completou seu primeiro ano, GaúchaZH alcançou a inacreditável marca de 15 milhões de usuários - só para lembrar, o Rio Grande do Sul, nosso principal mercado, tem um pouco mais de 11 milhões de habitantes.

Jornalismo de qualidade - A terceira expressão destacada foi jornalismo de qualidade. Em um ano de coberturas relevantes, como Copa do Mundo e eleições, tentamos aprimorar o conteúdo que entregamos ao público. Entre outras iniciativas, destaca-se o Grupo de Investigação (GDI), que, somente nos últimos 12 meses, publicou 24 reportagens e ainda entrou na cobertura eleitoral checando se o que os candidatos diziam em debates e entrevistas era verdade. Em uma época de proliferação de notícias falsas nas redes sociais - as tais das fake news -, jornalismo realizado com método por profissionais, que significa apuração criteriosa, checagem, ouvir todos os lados, ganha ainda mais relevância.

Pessoas - Como lembrou na cerimônia nosso presidente, Eduardo Sirotsky Melzer, tudo o que fazemos tem por trás as pessoas - talentos que todo dia produzem o que o público de RBS TV, Zero Hora, Diário Gaúcho, GaúchaZH, Rádio Gaúcha e outros veículos da RBS consomem.

Começa a época de fim de ano. Período de celebrar, reconhecer, avaliar - e também de planejar como fazer um 2019 ainda melhor.

MARTA GLEICH

sábado, 13 de outubro de 2018


13 DE OUTUBRO DE 2018
LYA LUFT

Seja gentil

De volta ao Brasil para votar, depois de muito necessárias férias, que há séculos não tirávamos, entrei num turbilhão que, de longe, mesmo com internet, não me parecia tão nocivo. Mas foi pior do que eu pensava: raiva, ódio, insultos, calúnias, intolerância absoluta, mentiras, dissolução de laços bem bonitos e dignos entre amigos e família - por causa da política. Dos políticos. De nós mesmos, que nos tornamos raivosos, intolerantes, capazes das mais loucas afirmações. Expressamos nessa batalha muito de nossas mágoas e frustrações.

Mas, inesperadamente, no Face, encontro uma imagem linda, comovente, quase irreal neste mundo que anda pra lá de besta: uma camiseta, um elefante (meu bicho preferido), com flores atrás de uma orelha, óculos coloridos, e a legenda (estou traduzindo): "NUM MUNDO EM QUE VOCÊ PODE SER QUALQUER COISA, SEJA GENTIL". Ou, se quiserem, seja bondoso. Tolerante. Humano.

A violência desde sempre me assusta: não precisa ser a física, de um tapa, um empurrão, uma voz alterada, mas a emocional, da acusação injusta, da invencionice maligna, da desconsideração com humanidade, cortesia, e democracia - ah, a palavra tão usada, mal usada, abusada.

Os que a defendem são muitas vezes os mais intolerantes, arrogantes e ignorantes que não conhecem nem medem o peso das palavras (dizia meu pai, "o pior burro é o burro falante"): correto é só o que eu penso, bom é só o que eu faço, o resto é tudo bandido, fascista, maldoso, ignorante, explorador de pobres e desvalidos, pisa em cima da cultura, despreza a saúde etc, etc, etc. (Poderia ser uma linha inteira de etcs.)

Basta refletir um pouco, abrir olhos e orelhas, ver que estamos numa situação-limite. Este pobre país nunca esteve tão por baixo, com tantos miseráveis, doentes não atendidos, podridão em vez de saneamento (sem falar na podridão moral), desrespeito, precariedade em vez de infraestrutura, cultura muito esquisita, e a maioria sem saber o que pensar. Ou começando a pensar, o que é bom. Pois andam acontecendo mudanças no país, e há quem comece a respirar: será mesmo, será?

Então resolvi hoje falar dessa camiseta, desse elefantinho, dessa gentileza que deveria ser o habitual, e acho que não é. Na maioria das vezes, em família, amigos, trabalho, não acontece muito, e quando ocorre até nos admiramos: olha só, que cara educado, bondoso, camarada. A gente se sente bem com ele, e não é artificial, nem imposto. O beijo de bom-dia em casa, alguma indagação sobre como foi a noite, ou a festa, ou como poderá ser a prova na escola, o novo amigo, ou o ombro que ontem doía tanto. Pequenas, miúdas coisas que fazem a vida, uma vida boa, uma vida humana como deveria ser: pausas para respirar, para se olhar, para escutar... para reencontrar com prazer.

Claro que a vida não é esse mar de rosas e risos. Mas pode ser, muito mais vezes do que tem sido. Podemos tentar viver e conviver, e votar, e torcer, e trabalhar, estudar, viajar, comer, dormir, sem o incrível estresse da raiva, do xingamento, do insulto, e dos maus desejos e da desinformação fatal.

Viva o elefantinho que nos propõe: neste vasto mundo em que você pode fazer tantas coisas, seja bondoso, seja gentil. Be kind.

LYA LUFT


13 DE OUTUBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Depois que o amor acaba

"Pensando com mais clareza, agora vejo que aquela relação foi a experiência mais fascinante que vivi." Oi?

Um ano antes, a mulher parecia um trapo encardido, passava chorando pelos cantos, lamentando a má sorte de ter se apaixonado por um Don Juan que só a humilhava e a fazia sofrer, e agora aquela dilaceração toda se transformou na experiência mais fascinante já vivida?

Sim. Qual o espanto?

Depois que o amor acaba, entra em cena a isenção. Você não faz mais parte daquela encrenca. Está desobrigada de administrar revezes, de procurar soluções para impasses, de fazer parte de um jogo maluco de sedução. Não há mais adoração, esperança, ódio, raiva, desapontamento. E não havendo nada, tampouco há interesse em descredibilizar o outro para tentar manter o que resta da própria dignidade. Não há mais risco. Ninguém mais precisa se salvar. Agora você pode, enfim, avaliar o que aconteceu por outro ângulo.

Então, dali de onde ela estava, de uma distância segura do passado, tudo se transfigurou. O amor não era mais analisado pelo que havia sido, mas pelo que agora representava.

O que antes era dilacerante virou uma bela experiência anexada ao currículo. O que antes era gigantesco foi reduzido a um tamanho médio. O que antes era definitivo virou passageiro. O que antes era pra sempre encontrou um fim sereno.

Dimensionamos nossas emoções de acordo com a potência do momento. Acreditamos nas definições que costumamos dar ao que está sendo experimentado, usando com orgulho palavras como "infinito", "certeza", "eterno". Ficamos apalermados pelo vigor da experiência, pelo absoluto das nossas sensações, até que, depois de um longo tempo de crença, perde-se a aposta, o jogo termina e vamos para outra mesa do cassino, onde tudo recomeça.

É quando o passado ganha uma nova cara e uma nova definição. O que era desespero transfigura-se em infantilidade, o que era perturbador torna-se risível, o que era intenso parece frugal. Você acreditou que era personagem de um melodrama, era assim que enxergava a história de dentro. Pulou para fora e agora só vê a parte amena, só a beleza da sua inocência. Aquela não é mais você, aquilo deixou de ser um tour de force, agora você se dá conta de que, quando se está no epicentro de um acontecimento, tudo parece maior do que é.

Estando em meio ao tsunami, é inevitável sofrer, emocionar-se, dilacerar-se, abraçar todos os sentimentos inerentes àquele mergulho: não há como antecipar o amanhã, só existe a asfixia do hoje. O consolo é lembrar que é só uma questão de tempo para tudo acabar num leve e agradecido "valeu".

MARTHA MEDEIROS

13 DE OUTUBRO DE 2018
CARPINEJAR

Salvem os tímidos

Nem todo mundo precisa ser popular, comunicativo, expansivo. Nem todo mundo precisa fazer curso de oratória, perder a vergonha. Nem todo mundo precisa se soltar e se inscrever em curso de teatro. Nem todo mundo precisa ser político e megalomaníaco. Nem todo mundo é vaidoso e exibicionista. Nem todo mundo quer selfie e vitrine.

Há uma ditadura da desinibição. Como se a timidez fosse doença. Como se a liderança fosse exclusiva do púlpito e do microfone.

Existe um patrulhamento aos alunos retraídos, aos empregados contidos, impondo a obrigação de se expor. Se a pessoa não for sociável, ela tem problemas de convivência.

Recomenda-se correção de postura, terapia, acampamentos, excursões, apresentações forçadas em público. Vive-se um The Voice permanente nas escolas e empresas. Um karaokê do estardalhaço.

Tem que gritar de qualquer jeito, tem que colocar para fora de qualquer jeito, tem que dançar de qualquer jeito, tem que enfrentar os medos de qualquer jeito.

Terminam malvistos os sussurros, os timbres baixos, o rubor, a educação. Incentiva-se os bagunceiros e os midiáticos, os palhaços e os mitômanos. Se alguém pretende defender a privacidade é confundido como arrogante. Se alguém pensa duas vezes antes de se expressar, é tachado de covarde.

Desde quando inteligência é extroversão?

Não são admitidos o nervosismo, a solidão, a reserva. Não são respeitados os sonhadores, os românticos, os meninos e meninas de poucas palavras e muitas ações. Não são elogiados os perfis privados do Instagram.

Predomina uma histeria para aparecer e garantir oportunidade. Quem não vende o seu talento não merece nenhuma chance. Tudo tem que virar interação e mercadoria com etiqueta e QR Code.

Há os que se bronzeiam ao sol e os que se resguardam na sombra. Há os que se divertem na frente dos outros e os que se fortalecem na solidão do papel. Há os que falam e os que escrevem. Há os cineastas e os atores. Há os que preferem a ribalta e os que se sobressaem nos bastidores.

É fundamental proteger a diversidade de temperamentos. Não assassinar biotipos, não censurar os introvertidos, não corromper o silêncio. Cada um pode escolher o seu jeito de ser feliz. Amar quietinho é também amar. Trabalhar quietinho é também trabalhar. Estudar quietinho é também estudar. Não é menos. Não é uma incompetência. Não é um excrescência social.

O pudor deveria ser mais valorizado. É sinal de decência.

CARPINEJAR

13 DE OUTUBRO DE 2018
PIANGERS

Gente grande

Nós ensinamos aos nossos filhos o que é ser adulto. Se passamos o tempo todo no celular, isso é ser adulto. Se trabalhamos o tempo todo sem parar, isso é ser adulto. Se gritamos uns com os outros e nos desrespeitamos no trânsito, isso é ser adulto. Suas ações falam tão alto que a criança não ouve o que você diz que é certo ou errado. Seu filho vai imitar aquilo que você faz. Minha filha mais nova é muito apegada a mim e, sempre que eu saía pra trabalhar, ela queria ir junto. Uma vez, visitando o escritório, perguntou se poderia trabalhar ali. Eu encaminhei a menina para o RH, que disse: "Claro, quando quiser vir, venha!", brincando. Minha filha respondeu: "Mas qual é a minha mesa? Onde está meu crachá?".

Nossos filhos serão gente grande um dia. São pequenos pedaços de gente que vão se moldando olhando pra nós. É uma responsabilidade. Sempre que um pai sai pra trabalhar, e o filho pergunta "Por que você tem que trabalhar?", o pai responde "Tenho que pagar contas". Ou "Tenho que ganhar dinheiro!". Estamos ensinando aos filhos que a vida é nascer, crescer, pagar contas e morrer.

Alguns pais já jogam a culpa no filho: "Tenho que pagar sua escola! Tenho que comprar seus brinquedos!". Uma mãe, depois de uma palestra em Florianópolis, me contou que respondeu dessa forma. "Meu filho perguntou ?Por que você tem que trabalhar??, e eu respondi ?Pra pagar o leite da sua mamadeira?. Nesse momento, ele me entregou a mamadeira e disse: ?Então, eu paro de tomar mamadeira?."

Só existe uma resposta aceitável, quando nossos filhos nos perguntam por que razão temos que ir trabalhar: "Porque amo meu trabalho". Experimente responder isso e verá os olhos de seu filho brilhando. "Papai vai realizar o sonho de ser aquilo que sempre quis ser." "Mamãe vai inspirar pessoas." "Papai está indo fazer algo que só o papai sabe fazer." Respostas que ensinam que a vida é nascer, crescer e realizar algo grandioso. Que inspiram nossos filhos a serem mais do que pagadores de conta. Nós ensinamos aos nossos filhos o que é ser adulto. Não tanto pelo que a gente fala, mas pelo que a gente faz.

PIANGERS

13 DE OUTUBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

DESPERDÍCIO NABABESCO


É nababesco o desperdício de exames no Brasil. No consultório, canso de ouvir a frase: "Doutor, já que vou colher sangue, pede todos os exames, tenho plano de saúde". Nos atendimentos na Penitenciária Feminina de São Paulo, a mesma solicitação, com a justificativa: "Tenho direito, é o SUS que paga".

Fico impressionado com o número de exames inúteis que os pacientes trazem nas consultas. Chegam com sacolas abarrotadas de radiografias, tomografias computadorizadas, ressonâncias magnéticas e uma infinidade de provas laboratoriais que pouco ou nada contribuíram para ajudá-los.

Num dos grandes laboratórios da cidade, mais de 90% dos resultados caem dentro da faixa de normalidade. Numa das operadoras da saúde suplementar, pelo menos um terço das imagens realizadas junta pó nas prateleiras, sem que ninguém se dê ao trabalho de retirá-las.

São múltiplas as causas dessas distorções. Nas consultas-relâmpago em ambulatórios do serviço público e dos convênios, os médicos se defendem pedindo exames, que poderiam ser evitados caso dispusessem de mais tempo para ouvir as queixas, o histórico da doença e examinar os pacientes.

Para solicitar ultrassom ou tomografia para alguém que se queixa de dores abdominais, basta preencher o pedido. Dá menos trabalho do que avaliar as características e a intensidade da dor, os fatores de melhora e piora, e palpar o abdômen com atenção.

Como regra, o paciente sai da consulta confiante de que as imagens revelarão o que se passa no interior de seu organismo com muito mais precisão do que o médico seria capaz de fazê-lo.

O problema é que, muitas vezes, o exame será marcado para semanas ou meses mais tarde, porque os serviços de imagem ficam sobrecarregados com o excesso de demanda. A demora prejudicará, sobretudo, aqueles em que há urgência para chegar ao diagnóstico, deixados para trás pela enxurrada de pedidos desnecessários.

As operadoras de saúde que hoje se queixam da infinidade de exames subsidiários que encarecem as contas a pagar esquecem que, até há pouco, faziam comerciais na TV que mostravam resgates por helicóptero e exibiam aparelhos de ressonância para convencer os usuários de que ofereciam serviços de qualidade.

Nós, médicos, colaboramos decisivamente para aumentar o custo da medicina: é de nossos receituários que partem as solicitações. Fazemos a vontade dos que nos pedem "todos os exames", pedimos provas laboratoriais sem pensar na relevância para o caso e nos damos ao luxo de solicitar exames e prescrever medicamentos sem ter noção de quanto custam.

Nas faculdades de medicina, ninguém fala de dinheiro. Os estudantes não recebem noções elementares de economia e o preço dos tratamentos é ignorado, como se vivêssemos em outro planeta.

Nos hospitais-escola, o descompromisso com a realidade econômica é universal. Com o argumento de que os internos e residentes precisam aprender, ficam justificadas as imagens mais exóticas e a repetição diária de dosagens de íons, provas de função renal e hepática, hemogramas, glicemias e o que mais passar pela cabeça dos plantonistas das UTIs e das unidades semi-intensivas.

É preciso entender o óbvio: os recursos públicos destinados à saúde são insuficientes. Eles não vêm do governo, saem dos impostos pagos por nós. Cada vez que somos atendidos pelo SUS, fazemos uso de uma parte do dinheiro que é de todos, se o gasto for exagerado, muitos ficarão em desvantagem. É bem provável que sejam os mais necessitados.

Nos planos de saúde acontece o mesmo, com uma diferença: o preço da mensalidade aumenta para todos. É simples assim. Hoje, os gastos com saúde das empresas constituem a segunda despesa mais alta do orçamento anual, só perdem para a folha de pagamento.

O SUS e a saúde suplementar estão diante do mesmo desafio: como reduzir os custos. Sem fazê-lo, ambos sistemas se tornarão inviáveis antes do que imaginamos.

A viabilidade do SUS e da saúde suplementar não será alcançada por meio de ideologias, mas com medidas práticas que reduzam os custos da assistência médica e com intervenções preventivas para evitar que as pessoas fiquem doentes.

DRAUZIO VARELLA

13 DE OUTUBRO DE 2018
J.J. CAMARGO

O RESPEITO AO RITUAL

Porque as coisas importantes exigem um mínimo de ritual é que nos constrangemos tanto com bagunças em algumas formaturas universitárias ou ataques de riso em velórios.

Desde sempre, sabe-se que os momentos realmente importantes em nossas vidas, e são poucos, precisam ser marcados pela solenidade, para que se justifique a importância que pretendemos que tenham no imaginário de terceiros, pois nos nossos corações já os sabemos definitivos.

Coerente com isso, os registros fotográficos da vida dão realce ao nascimento, à graduação, à prole, à mudança de escalas do poder, ao matrimônio ou à morte. Afora esses instantes inesquecíveis, em que o formalismo é tão previsível que se torna espontâneo, existem outros em que o respeito ou não ao ritual pode agigantar ou encolher o que fazemos. Com a possibilidade de compras virtuais, em que ninguém vê a cara de ninguém, desapareceu o ritual do comércio antigo, em que os velhos comerciantes se sentiam ofendidos se o comprador fosse direto ao assunto, atropelando a cordialidade que permeava as relações entre duas pessoas que, antes de serem mercadores, eram seres civilizados.

Os funcionários das grandes lojas ainda tentam resgatar esse formalismo antigo que inspira cordialidade, e sistematicamente perguntam o nome do cliente, o que, em geral, serve para chacoalhar o freguês que, sempre apressado, tende a dispensar o "Boa tarde!", imagina o "Como vai?".

Os médicos da modernidade, encantados com a riqueza de informações asseguradas pelas técnicas contemporâneas de imagem, foram progressivamente abandonando o exame físico, convencidos de que não há nada que inspeção, palpação, percussão e ausculta possam detectar que a tomografia de última geração já não tenha informado, e com superioridade. Além dessa convicção ser mais pretensiosa do que verdadeira, ignora-se que o exame físico, reconhecido como um ritual, representa uma das maiores oportunidades de aproximação, tanto material quanto afetiva, entre duas pessoas reunidas pela aleatoriedade de uma doença que, vitimando uma, encaminhou-a ao socorro da outra.

Abraham Verghese, um infectologista e professor na Universidade de Stanford, relata uma experiência comovente, atendendo vítimas terminais da aids. Durante uma manhã, percorrendo a grande enfermaria de doenças infecciosas, visitou um desses pacientes que, semicomatoso, deveria morrer naquele dia. Tendo verificado o quanto a pressão estava baixa e o pulso quase impalpável, encerrou o exame e se preparava para sair, quando percebeu que o moribundo despertara e, num movimento meio desordenado de mãos trêmulas, tratava de abrir os botões do pijama e lhe oferecia o peito magérrimo para que ele auscultasse. 

Como a dizer que não importava que aquela fosse a última vez: o ritual que os aproximara durante tantas semanas tinha que ser cumprido. E, naquele momento, serviria ao menos para anunciar que ambos, médico e paciente, estavam, ainda que temporariamente, equiparados na maravilha de continuarem vivos. Só isso já garantiria ao ritual ares de comemoração. Não cumpri-lo seria uma desnecessária antecipação da morte, que virá quando tiver que vir. Antes, não.

J.J. CAMARGO

13 DE OUTUBRO DE 2018

DAVID COIMBRA

Galos, noites e quintais


Uma casa de madeira que tenha um quintal atrás e um jardinzinho na frente, em que vizinhos conversem com os cotovelos apoiados na cerca que lhes divide os pátios e, no fim da tarde, possam colocar cadeiras na calçada para tomar um mate e contar histórias antigas. É isso o que as pessoas querem no Brasil. Só isso. E isso está no centro das eleições.

Mas, antes de falar sobre eleições, tenho de falar das histórias antigas. É que, na sexta, para ilustrar a coluna, lembrei da história do "olha que eu caio", que meu avô contava naqueles serões com cadeiras na calçada da Rua Dona Margarida, 355. Se você não leu, faço um resumo: um caixeiro viajante chegou a uma pousada no meio da estrada e pediu um quarto para passar a noite, o dono advertiu que só havia um disponível, um que era? brrr? mal-assombrado. 

O caixeiro não se intimidou, aceitou ficar com o quarto, tinha mais cansaço do que medo. Mas, ao deitar, ouviu uma voz vinda, obviamente, do Além, que fica para lá dos tetos dos quartos: "Olha que eu caio?". E a voz continuava repetindo, em tom grave de advertência, "olha que eu caio?", enquanto caía primeiro um braço, depois uma perna e assim subsequentemente.

Ocorre que não me lembro de como a história termina, e pedi ajuda dos leitores. Recebi. Foram dois os finais apresentados. O Clóvis Zago disse que ouviu esse conto do avô dele e que termina assim: depois de completo o corpo, o homem se levanta do chão já com uma adaga em punho. Como o caixeiro viajante também tinha uma adaga, dá-se um duelo entre os dois, vencendo o caixeiro viajante. The End.

Já o Eder Marion ouvia essa história da boca de seu pai quando eles viviam no pequeno município de Lagoão, interior de Soledade, onde nem energia elétrica existia. Assim, à falta das novelas da Globo, os adultos se reuniam ao anoitecer para contar tais causos. Segundo o pai de Eder, o que aconteceu foi o seguinte: depois que todas as partes do corpo caíram, formou-se um negro alto e forte, que encaixou os membros, se levantou, cumprimentou o caixeiro por sua bravura e pediu que ele o acompanhasse até o porão da casa. 

Eu, se fosse o caixeiro, não iria, não me agrada ir a porões com um negro alto e forte que se formou de pedaços que caíram do teto. Mas ele foi. E se deu bem. Lá embaixo, o Frankenstein caboclo indicou onde estava escondido um tesouro, mas avisou que, para usá-lo, o caixeiro deveria mandar rezar 300 missas para a alma dele, fantasma. O caixeiro prometeu fazer isso, cavou no lugar assinalado e encontrou um baú cheio de moedas de ouro, prata e bronze. Mandou rezar as missas e viveu o resto da vida rico e feliz.

Gosto desse segundo final.

Mas o que queria falar era sobre o desejo que as pessoas têm de viver em paz. Vidas simples, mas pacíficas, sem medo. Vidas de cadeiras nas calçadas. É o que mais move o brasileiro hoje em dia. E foi o principal motivo do voto nas eleições, junto com a Lava-Jato.

Bolsonaro conseguiu convencer o eleitor de que dará mais atenção à segurança, mas suas propostas são superficiais: redução da maioridade penal, flexibilização do porte de armas, menos punições aos policiais que matarem em ação?

Haddad diz que usará a Polícia Federal para reprimir organizações criminosas e que criará um Sistema Único de Segurança Pública, uma espécie de SUS da polícia. Além disso, fez uma proposta trágica, se levado em consideração o que sente a maioria dos cidadãos brasileiros: livrar da cadeia quem comete delitos menores. Não é esse tipo de solução que os eleitores esperam.

Não acredito em nenhuma das propostas apresentadas. Não acredito nessas mágicas se o problema não for atacado na raiz: nas crianças. O menino descalço, que vagabundeia em situação de semiabandono pelas periferias do Brasil, é esse que, daqui a poucos anos, estará atocaiado atrás de uma árvore, com um canhão nas mãos, esperando pela entrada do carro da família na garagem. É ele que roubará, matará e estuprará. É ele que tem de ser atendido no lugar apropriado: a escola pública. Uma nação se faz pela escola pública. E, tristemente, ninguém fala na escola pública no Brasil.

DAVID COIMBRA

13 DE OUTUBRO DE 2018
MÁRIO CORSO

Feliz Dia do Pinguim!

As melhores lembranças que tenho da infância não são do Natal, mas do Dia do Pinguim. Como vocês sabem, comemora-se no primeiro domingo depois do Dia das Crianças. Vai então meu abraço gelado de Dia do Pinguim a todos.

O abraço é frio porque o Dia do Pinguim é a festa do gelo. Quando chegava a primavera, festejávamos o pinguim para nos empanturrarmos de sorvete. A saudade do picolé e companhia estava no auge e era dia do primeiro gelado da estação. Dizem até que dá azar comer sorvete antes do Dia do Pinguim. Bobagem ou não, nunca comi.

Nesse dia, só eram aceitas roupas brancas e pretas. Os pinguins são pais muito dedicados aos seus filhotes. Fazem uma família e é para sempre, por isso é uma festa de apelo popular: expressa a vontade de que os laços durem. É dia de os pais brincarem com os filhos no sol, além de tomarem sorvete.

O problema, quer dizer, as crianças não achavam problema, era o açúcar, e muito açúcar não faz bem. Deve haver adeptos defendendo o Dia do Pinguim Saudável, com sorvetes de frutas, sem adição de açúcar. Sei não, acho que minha criança interior não concorda. No Dia do Pinguim verdadeiro, como antigamente, a gente só comia sorvete e picolé da manhã à noite. Na verdade, havia outras coisas permitidas, como sacolé, banana-split, vaca-preta, essas coisas geladas.

O primeiro movimento do dia, depois do milk-shake matinal, era a Oração ao Pinguim. Pegávamos o pinguim que ficava em cima da geladeira, colocávamos sobre a mesa da cozinha, e fazíamos uma prece para a boa saúde do refrigerador. Se bem lembro, era assim: "Pinguim que estás na neve eterna da Antártida, deixai nossa geladeira sempre bem gelada e que nunca nos falte gelo. Abençoai-a para que nunca estrague, especialmente nos dias mais quentes. Lembrai aos desavisados que as fôrmas de gelo não se enchem sozinhas. Amém".

As pessoas simples pensavam que ele era um santo, o São Pinguim. O que é uma redonda bobagem. Ele é apenas um pássaro simpático, que só sabe voar embaixo d?água, mas que traz sorte para as coisas geladas e, portanto, para a geladeira. Como as pessoas têm um pinguim na cozinha - benzido no dia de São Francisco - para aumentar a vida útil do refrigerador, e como é um santo remédio, gerou a crença.

E brincávamos com gelo também. Havia um jogo de quem conseguia ficar mais tempo com uma pedra de gelo na mão. O problema é que sempre virava bagunça e as pessoas colocavam o gelo na roupa umas das outras. Quem já teve um cubo de gelo na cueca sabe bem como é.

Quando cresci, descobri que, embora o Dia do Pinguim seja uma data tradicional, comemorada mundialmente, só a minha família sabia dela. Invencionices do meu pai, que criou para nós um Halloween austral, e não sinistro. Seja como for, tenho imensa saudade do Dia do Pinguim.

MÁRIO CORSO

13 outubro DE 2018
ARTIGO

AMAMOS O ÓDIO?

A grande surpresa de quem, na boa-fé e buscando combater a corrupção, votou em Jair Bolsonaro no primeiro turno foi descobrir, agora, que o guru e instrutor econômico do candidato é investigado pelo Ministério Público e a Polícia Federal, suspeito de fraudes multimilionárias em fundos de pensão de sete empresas estatais, entre elas a Petrobras.

O investigado, Paulo Guedes, é a figura mais próxima do candidato, ministro da Fazenda e chefão maior da economia caso triunfe no segundo turno. Tal é a intimidade entre ambos que, no único debate a que compareceu, Bolsonaro confessou nada saber de economia e nem necessitar "pois Paulo Guedes sabe tudo".

O Ministério Público tem indícios de que, na gestão Dilma-Temer, o guru de Bolsonaro se associou a executivos ligados ao PT e ao PMDB em sete fundos de pensão e obteve R$ 1 bilhão para sua empresa (a BR- Educacional Gestora de Ativos) aplicar "em projetos educacionais". Há indícios de gestão fraudulenta e emissão de títulos sem lastro por parte de Guedes.

O eleitor terá percebido que foi fraudado? Ou o ódio que lastreou o primeiro turno se fez impermeável?

Amor e ódio são opostos entre si. Ao amar, não se odeia. Ao odiar, não se ama. Mas, de boa-fé e sem perceber a lama das águas, a maré do primeiro turno da eleição presidencial mostrou que amamos o ódio.

Para combater a bandidagem, optamos por quem quer resolver tudo "na bala", numa "guerra civil" individual que nos levaria a ver inimigos na própria sombra. A maioria votou em quem considera "bobagem" preservar a natureza e diz, até, que - se eleito - vai retirar o Brasil do Acordo Climático de Paris, que busca evitar a morte do planeta. Ao votar, não vimos que optamos por quem, além de contrariar a ciência, se envergonha da obra da Criação.

E que a aberração surgia "em nome de Deus" ou de supostos "valores cristãos". Cristo nunca predicou ódio ou violência. Convencia pelo diálogo e pela tolerância do debate, sem impor.

A medíocre campanha em que os candidatos se fantasiam do que não são (como no Carnaval) propicia o horror. Aquela mocinha marcada na pele, à faca, com a suástica nazista por três rapagões que discordavam do adesivo que ela exibia ("Ele não", alusivo a Bolsonaro) foi vítima do possível futuro de ódio que já começou.

O que dizer do delegado policial que viu na suástica apenas o símbolo de "amor do budismo", de milênios atrás, e não o ódio nazista recente e atuante?

Amamos o ódio e odiamos o amor?
FLÁVIO TAVARES

13 DE OUTUBRO DE 2018
+ ECONOMIA

CHEIRO DE QUEIMADO NA MATRIZ INTRIGA

A forte queda dos índices acionários dos EUA na quarta e na quinta-feira acendeu sinal de alerta. Analistas tentam entender as razões da derrocada. Dow Jones, S&P500 e Nasdaq caíram em torno de 4% no acumulado da semana, volatilidade alta para os padrões americanos. O tombo seria maior, não fosse a recuperação parcial de sexta-feira. Em meio ao aumento dos juros por lá - para irritação do presidente Donald Trump -, o rendimento dos títulos de 10 anos chegou a 3,25%, indicando maior busca por segurança.

A atividade americana está superaquecida, mas economistas respeitados começam a falar em recessão nos Estados Unidos nos próximos anos. A guerra comercial com a China entra como ingrediente. Estaria no fim o rali de 10 anos do mercado americano?

Abalo nos EUA

Depois da maior queda na bolsa de Nova York em seis meses, na quarta-feira, o presidente dos EUA, Donald Trump, afirmou que o Federal Reserve (Fed, banco central do país) estava "ficando louco". O motivo seria a disposição de elevar juro mesmo com essa reação negativa do mercado.

À espera dos postos

Agora é aguardar alívio do preço nos postos de combustíveis. No pós-primeiro turno, o dólar fechou a semana a R$ 3,77, após chegar a R$ 4,19 em meados de agosto. O petróleo tipo brent, referência para a Petrobras, chegou a ser negociado na sexta-feira abaixo de US$ 80 o barril, enquanto no início do mês quase chegou em US$ 87.

Durante a semana, a Petrobras reajustou para baixo duas vezes a gasolina nas refinarias. Está agora em R$ 2,1490, valor mais baixo desde o fim de agosto. O pico, em setembro, foi de R$ 2,2514. Pesquisa do Procon da Capital na terça-feira mostrou preços de R$ 4,690 a R$ 5,023 o litro. Oito dias antes, o valor máximo verificado era o mesmo e, o menor, R$ 4,669.

A gaúcha ecossis soluções ambientais está retomando as suas atividades em angola. Especializada em projetos, estudos e assessoria ambiental, fechou parceria com consultorias locais para explorar novos negócios no país africano, que mostra sinais de aquecimento da economia.

Voltada à gestão da educação pública dos municípios, a GovBR Educação lançou plataforma digital que unifica dados da cidade, de escolas e de alunos. A ferramenta inclui aplicativo que permite aos pais acompanhar a rotina escolar dos filhos, incluindo dados como avaliações, frequências e notas. Inclui ainda soluções online, e 100% em nuvem, que unificam os dados sobre a educação pública do município. A plataforma tem custo médio de R$ 10 por estudante ao ano às prefeituras.

Crise? Que crise?

Uma das principais operadoras de planos de saúde no Estado, o Grupo Doctor Clin terá unidade própria no empreendimento Maxplaza, que está sendo construído na área central de Canoas, às margens da BR-116. O investimento na filial será de R$ 6 milhões. A empresa ocupará uma área de 600 metros quadrados. Serão gerados 50 novos postos de trabalho, entre diretos e indiretos. O grupo tem previsão de faturamento para 2018 superior a R$ 200 milhões. Nos últimos cinco anos, a receita cresce 20% em média.

O hospital Blanc Medplex, inaugurado em Porto Alegre em junho, chegou a 450 médicos credenciados em seu modelo de convênio, em que oferece "pacote fechado" de atendimento, no qual o plano de saúde paga um preço fixo pelo serviço prestado. Além disso, a empresa fechou parceria com três planos de saúde que somam 1,1 milhão de beneficiários. A estimativa é de que sejam realizadas cerca de 500 cirurgias por mês por meio das parcerias. Entre junho e outubro, o hospital já realizou cerca de 2 mil procedimentos e a expectativa é encerrar 2018 com 4 mil.

A rede de hamburguerias Severo Burger duplicou o faturamento após mudança no modelo de negócio para o smash burger, em que o recheio é esmagado na chapa bem quente. A empresa diz ser a pioneira neste segmento na Capital.

Os resultados foram observados em julho, agosto e setembro, na comparação com os mesmos meses de 2017. Setembro foi o melhor mês da rede, inaugurada em 2015.

CAIO CIGANA

sábado, 6 de outubro de 2018



06 DE OUTUBRO DE 2018
LYA LUFT

Ida e volta

Depois de quatro anos, em merecidas férias, voltamos a duas cidades que curtimos muito: Atenas e Roma. Atenas pela fascinação do Vicente, que escreve sobre tragédia grega, e pelo meu amor aos lugares revisitados - e alguns novos, como o campo de batalha e o museu (pequeno, remoto, excelente!) de Maratona, ou na própria Atenas o Keramikos, que não conhecíamos, cemitério multissecular com lápides comoventes e muito da história grega. As inscrições, mais uma vez, me mostraram que os sentimentos humanos pouco mudam através dos tempos.

Sem acreditar, consegui, com bem mais limitações do que da outra vez, subir a Acrópole. Depois de cada descanso com o pacientíssimo marido, eu me sentia mais confiante. Quando cheguei ao Partenon, era uma deusa (meio fora de forma, ofegante, mas feliz). Além da história e da beleza, cenas como uma oriental jovem de longos cabelos e vestido esvoaçante descendo lá do alto com delicados sapatinhos de salto... doze. E o mais engraçado comentário, enquanto descansava numa pedra: uma jovem senhora, contemplando com certo enfado as colunas do Partenon, diz a outra em seu idioma, que eu conhecia: "Bem, pra ser franca, aqui na Grécia essas coisas são todas muito parecidas". Meu amigo Moreno jura já ter escutado: "Tanto esforço pra chegar aqui e ver só pedra derrubada!".

Embaixo da Acrópole, o novo museu, que ainda não conhecíamos, fabuloso. Por toda parte, em todos os museus e locais, limpeza, cuidados, organização. Claro que, na véspera de irmos a Roma, cometi a façanha de perder o passaporte. Perdido, sim, não roubado. Entrando e saindo de táxi, caiu da minha mão ou da bolsa: eu tinha de pegar nele o dinheiro do taxista. Com ele, foram-se cartão de crédito e todos os meus (poucos) euros. No primeiro momento, bati pé, infantil: quero ir pra casa, quero ir pra casa. Por fim, tudo deu certíssimo: uma educada polícia ateniense para visitantes fez em minutos o boletim de ocorrência, e a embaixada brasileira, que naquela sexta fecharia das duas até segunda-feira, em poucas horas me entregou um passaporte novo, perfeito.

Depois, Roma: a velha senhora com suas ruelas, segredos, monumentos, fontes e palácios, a cada dois passos ruínas incalculáveis. Outro hotel aconchegante, num bairro onde tudo ressumava o que não tínhamos: fortuna. As grifes mais incríveis ao nosso lado, mas nós queríamos a Piazza Navona, a Piazza di Spagna, o Palácio Barberini, que da última vez estava fechado, a incrível escada de Borromini (que só descemos, claro), o meu predileto, o Panteão, e o Vaticano, e tanta coisa mais. Ainda por cima, a surpresa da qual Vicente e Bernardete Kronfeld, da Áustria, foram cúmplices: na sala do térreo do hotel, lá estava minha amiga da vida inteira, minha comadre Christina Harbich, sentadinha no sofá com cara de nada, um belo champanhe na mão. (Em qualquer lugar do mundo, o afeto é o prêmio maior.)

De uma belíssima Atenas e de uma Roma solene, mas também um pouco doida, finalmente a volta para casa depois de um tempo incalculável dentro do avião, chatíssima coisa se for de dia (à noite, um soninho disfarça o tempo) - e a alegria dos reencontros.

E o Brasil? Bem, aí, Deus nos ajude.

LYA LUFT


06 DE OUTUBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

À metade que perder

Escrevi este texto na segunda-feira passada. Se nada de anormal ocorreu nos seis dias que antecederam sua publicação, é possível que neste domingo estejamos elegendo um novo presidente, ou a dupla que irá para o segundo turno. Em qualquer dos casos, metade do país está prestes a entrar em luto agora ou, no máximo, em três semanas.

O luto, dizem especialistas, passa por cinco fases. A primeira delas é a negação, que é quando a gente desconecta da realidade e não admite o ocorrido - uma defesa psíquica contra a dor. Um dos candidatos, curiosamente, até já fez seu ensaio de negação, questionando a credibilidade das urnas eletrônicas: se ele ganhar, é porque as urnas são confiáveis; se não ganhar, é porque foram adulteradas. O raciocínio lógico de um menino de três anos.

Negar o resultado é perda de tempo. O país precisa continuar a andar, mesmo que aos trancos. Que a metade dos brasileiros em luto passe logo para a segunda fase: a raiva.

A sensação de injustiça embaça tudo, e a revolta é natural. Perder para um candidato que defende o oposto do que você acredita: como suportar? A raiva é a fase em que o enlutado faz besteiras, como quebrar tudo pela frente, sem contabilizar prejuízos e sem perceber a inutilidade de seu descontrole. Já tenho minha estratégia para o caso de estar no lado perdedor: abandonarei as redes sociais por uns dias, até que chegue a terceira etapa, a barganha consigo mesmo.

Aconteceu, não aconteceu? Então que se extraia algum benefício disso. Agora há tempo de sobra para refletir, para se tornar um cidadão mais atuante politicamente, para examinar as questões sem inflamar-se tanto, enfim, é uma ondinha otimista e necessária, ainda que dure pouco. A quarta fase já bate à porta, implacável: a depressão.

Quatro anos sendo governados por alguém em quem a gente não aposta um níquel, um sujeito que vai na contramão dos nossos ideais, que não nos representa de jeito nenhum. Pancada dura. Vontade de nem sair da cama para não ter que assistir ao estrago. A tristeza é profunda pelo fim do combustível essencial, a esperança. Resta contar os dias para que a quinta fase do luto se instale de uma vez: a bendita e inevitável aceitação da perda.

No fim das contas, política é conciliação. Com sorte, o estrago não será tão grande, lideranças da sociedade tentarão evitar inconsequências. Temos um verão inteiro pela frente, os ânimos tendem a acalmar e um mergulho no mar sempre ajuda. Vá que o Internacional ganhe o Brasileirão para compensar, vá que o amor e a arte substituam o desencanto com a política, vá que a democracia resista bravamente e os outros sonhos que a gente ainda tem se realizem. Hora de reorganizar os pensamentos, fazer novos planos e confiar na velha máxima: a vida continua, caramba, a vida continua.

MARTHA MEDEIROS


06 DE OUTUBRO DE 2018

CARPINEJAR



Piscadelas


Sempre fui ingênuo na sedução.

Seduzir nunca era atacar uma mulher na rua com palavras chulas, ou assoviando como um torcedor do desejo, ou segurando os braços enquanto cochichava no ouvido. Ninguém tem a obrigação de gostar de mim. Gostar significa suavidade, a carícia livre do vento no rosto.

A intimidade é tímida e se dá lentamente. A violência que é apressada e quer atalhar com os seus desmandos.

Ser homem é esperar, apenas será homem aquele que deixa a mulher também lhe recusar.

Meu avô, quando tinha 10 anos, é que me disse o que deveria fazer no momento em que me apaixonasse por uma menina:

- Pisca! Não precisava falar nada, o flerte consistia em piscar o olho esquerdo.

- Só isso, vô? - Só. O amor é um cisco nos olhos.

Passei a minha infância piscando. Um semáforo entre o vermelho e o verde sentado na segunda fileira. A professora recomendou, ostensivamente, óculos para os meus pais. As colegas da escola deveriam achar que eu tinha um tique nervoso, ou que vivia com conjuntivite. Nem me davam bola.

Depois de ser a única boca virgem da turma, fui reclamar ao meu avô de sua estratégia infundada.

- Você tem que piscar mesmo, é um gesto cavalheiro, a mulher que amá-lo vai entender e virá confirmar a sua jura.

Eu comecei a me compadecer de meu avô. Coitada da vó que se envolveu com um pirilampo.

Aos 40 anos, lembrei dessa história adormecida em mim, naquele instante mágico que, de modo involuntário, como um hábito que emergiu de sua extinção, eu pisquei para uma mulher que acabara de conhecer.

Em vez de cercear com a minha lábia, emudeci diante dela e de sua beleza imponente. E pisquei muito. Não parava de piscar. Sofria uma vergonha absurda. Havia outros presentes na recepção do centro cultural onde faria a palestra.

Beatriz se aproximou de mim e tirou a limpo o que viu: - Você está piscando para mim ou foi impressão?

É com ela que casei no altar. Meu vô já tinha morrido, o que não me impediu de ouvir a sua estrondosa gargalhada dentro de mim.

CARPINEJAR

06 DE OUTUBRO DE 2018

PIANGERS

Pleito moleque



Talvez pela grande quantidade de candidatos no pleito ou, talvez, pelo clima de briga constante entre as pessoas de opiniões diferentes, essas eleições estão me lembrando da primeira que presenciei, em 1989.

Eu tinha nove anos e lembro das propagandas na televisão. Ninguém sabia direito em quem votar, todos eram novos no assunto, lembro que minha mãe e amigas mudavam de candidato o tempo todo, bastava uma notícia nova, um boato, já estavam todas decepcionadas com político tal, agora a onda era aquele outro. Lembro do pai de um amigo paulista que nos levou em um comício do Mário Covas, ele colocou até uma faixa na nossa cabeça infantil. Era esquisito porque não importava o que era dito no palco, a multidão gritava com toda força. Eu fiquei assustado com aquilo, achando meio ridículo aquele comportamento de manada. Depois do comício, o pai do meu amigo nos pagou uns sorvetes, o que fez o dia valer a pena.

Entre a molecada de nove anos, gostávamos de fazer graça com o Eneias, que tinha tão pouco tempo de televisão que só conseguia falar o próprio nome; o Marronzinho, que nem o nome conseguia falar no curto tempo de propaganda eleitoral; a musiquinha do Afif, "dois patinhos na lagoa, vote Afif vinte dois". Mas nossa música eleitoral favorita era Fera Neném, do Trem da Alegria. "Se eu for presidente você vai se dar bem!", dizia Juninho Bill no refrão. Tudo era piada entre a gente. Imitávamos os políticos, criávamos nossas propostas esdrúxulas. "Refrigerante no bebedouro!", propunha um. "Fim de semana de cinco dias!", gritava outro.

Éramos crianças mas já percebíamos que os candidatos pareciam canastrões. E os poucos adultos que defendiam políticos eram contundentes demais para serem levados a sério. Ríamos escondidos de qualquer gente grande que tivesse caído na lábia dos candidatos. Os pais da molecada eram essas figuras que diziam querer um Brasil melhor, mas dirigiam bêbados e jogavam bituca de cigarro no chão. Na nossa cabeça infantil, a falta de noção dos adultos era a razão para o país estar numa crise eterna. Eu lembro que a gente achava que ia ser criança pra sempre.

PIANGERS


06 DE OUTUBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Não vai ter golpe

Não. A democracia brasileira não corre risco. Seja quem for o novo presidente, ele não se transformará em ditador.

Digo isso porque são insistentes e candentes e frementes os discursos dos supostos defensores da democracia que temem o resultado da eleição. São discursos óbvios, repletos de lugares-comuns, como citar um contraparente que teria sido vítima de tortura, ou coisa que o valha, mas que ainda capturam a admiração de incautos.

Tudo bobiça, como se diz em Santa Catarina.

É verdade que Zé Dirceu e o general Mourão andaram fazendo declarações de natureza pouco democrática, não duvido mesmo que eles quisessem tomar o poder à força, mas, querer, você também quer namorar a Megan Fox, e não vai.

Zé Dirceu disse que o PT está perto de "tomar o poder, o que é diferente de ganhar a eleição". Ora, o PT já tomou o poder. Lula era um presidente com altíssima popularidade, governava o país em um momento em que o crescimento chinês estufou nossa economia de dólares e o Congresso lhe era submisso, hoje se sabe a que custo. Lula podia fazer o que quisesse. E fez. Como (desculpe) uma lula, estendeu seus tentáculos, formando alianças com ditadores africanos e centro-americanos, montou um clube de populistas bolivarianos na América do Sul e se tornou o ídolo das esquerdas sonhadoras em todo o mundo. Lula tinha o dinheiro dos empreiteiros e das estatais e, para arrematar, divisou as profundas possibilidades do pré-sal. Nenhum outro presidente brasileiro, nem Vargas, jamais teve tanto poder quanto ele. Não será Haddad, um estafeta de Lula, que se transformará em ditador.

Já o general Mourão, entre outras tolices, falou em "autogolpe". Imagine o tamanho da estupidez: depois do Marechal Dutra, os militares tentaram ascender à Presidência por meios democráticos em 1955, com Juarez Távora, e em 1960, com o Marechal Lott. Perderam. E acabaram açambarcando o poder pelas armas em 1964. Mas meio constrangidos. Passaram 21 anos em discussões internas, uns querendo devolver o governo aos civis, outros querendo se eternizar no mando. Finalmente, retiraram-se em silêncio para os quartéis e em nenhum momento manifestaram desejo de retornar. Agora, eles chegariam de novo ao poder, com Bolsonaro, só que legitimamente, pelo voto, com aprovação do povo. Por que estragariam tudo dando um golpe? Para que exigir algo que você já tem? Não há lógica.

Um golpe de Estado, no Brasil, para funcionar, precisa necessariamente de dois apoios: da classe média e do Exército. No caso de vitória de Bolsonaro, e consequente derrota do PT, a classe média estaria contentada e quieta. Ou seja: não reivindicaria golpe algum. Além disso, não existe, no Exército brasileiro, um único sinal de que há clima para rebeliões.

Não tenha medo, portanto. A democracia brasileira ainda não está madura, mas continuará viva e bem. Se você quiser votar em Bolsonaro, vote. Se quiser votar no PT, vote. Se quiser votar em qualquer outro, vote. E, se não quiser votar, não vote. Siga a sua consciência, que o Brasil seguirá em paz. Ou mais ou menos em paz.

DAVID COIMBRA

06 DE OUTUBRO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

UNANIMIDADES NACIONAIS 

Aos 88 anos, Fernanda Montenegro anda cada vez mais solitária no conjunto unitário das unanimidades nacionais. Não garanto que não haja gente, neste mesmo instante, tentando reduzir essa categoria a um conjunto vazio (Fernanda, afinal, é artista, o que para alguns é sempre motivo de desconfiança), mas se a reputação da atriz permaneceu inatacada até este final de semana de eleições é possível que nem mesmo um bombardeio de notícias falsas no WhatsApp seja páreo para sua credibilidade. Ou assim esperamos.

Fernanda esteve em Porto Alegre na semana que passou para autografar sua autobiografia, receber uma homenagem da PUCRS e, ironicamente, ler textos de um autor que ficou famoso por colocar as unanimidades sob suspeita: Nelson Rodrigues (1912-1980). A frase mais citada do autor, "toda unanimidade é burra", é daquelas máximas multiuso que podem se encaixar em diferentes contextos com diferentes propósitos. Ou seja: tanto pode ser considerada vazia quanto genial. Me inclino a concordar com a ideia de que todas as unanimidades são burras (no sentido de não refletidas o suficiente), com exceção, claro, daquelas que contam com a minha devoção - pizza, Beatles e Fernanda, por exemplo.

O grande mérito da frase de Nelson Rodrigues talvez seja o de plantar a semente da desconfiança, convidando cada um a reexaminar suas convicções de tempos em tempos. Estou indo nessa direção porque a manada rumou para lá ou porque realmente acredito que esse é o caminho certo? O que pode haver de sensato em uma visão de mundo radicalmente oposta à minha? Aliás, qual é mesmo a minha visão de mundo?

Nelson nunca se conformou com a própria falta de unanimidade. Considerado pornográfico pela crítica mais conservadora, não teve, em vida, a consagração de que gostaria como artista. Politicamente, estava ainda mais longe de ser um consenso. Pai de um preso político, Nelson Rodrigues apoiou o regime militar. Era considerado "tarado" pelos conservadores e "reacionário" pelo outro lado. Nenhum dos dois rótulos o definia completamente - o que demonstra como a falta de unanimidade também pode ser burra. Foi preciso que se passassem alguns anos até que fosse possível admirar Nelson Rodrigues pelo que ele tinha de melhor como dramaturgo, memorialista e cronista - sem esquecer das contradições e das limitações que ajudaram a compor sua obra e sua personalidade.

Fernanda despediu-se do público lendo um trecho de O Mito de Sísifo, de Albert Camus (1913 - 1960), sobre o ofício do ator. Para Camus, o ator vive cotidianamente o começo e o fim de uma vida, a do personagem, percebendo, melhor do que ninguém, como tudo é efêmero - tanto no palco quanto fora dele. Ainda assim, persiste. Escrito em plena ocupação nazista da França, o ensaio de Camus reflete sobre a felicidade possível em tempos sombrios. 

O que afirmar, onde se apoiar, como existir - e resistir - quando tudo em volta parece desmoronar ou não fazer sentido? Sísifo é o personagem que continua empurrando uma pedra ladeira acima mesmo sabendo que ela vai rolar ladeira abaixo em seguida. Que seja. Em um mundo que não faz sentido, o que importa é menos o caminho e os descaminhos, mas a vontade de chegar. Neste domingo, para cima com a pedra, moçada. Com ou sem unanimidade.

CLÁUDIA LAITANO