sábado, 22 de dezembro de 2018



22 DE DEZEMBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL

A família do comercial e a minha

O fim do ano tem uma barreira alfandegária: o imposto da presença familiar. Quase impossível escapar daquilo que é o prazer de muitos e o sofrimento de outros tantos. Sim, família é tudo para mim e essa frase de rede social tem a ambiguidade, porque tudo pode incluir tudo de bom ou de ruim. Quase toda literatura cômica e trágica envolve encontros familiares e seus desdobramentos: Medeia, de Eurípides; Os Sete Gatinhos, de Nelson Rodrigues; Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams; O Avarento, de Molière; Hamlet, de Shakespeare, ou Casa de Bonecas, de Ibsen. Sem família não existiria literatura e nenhum terapeuta teria emprego.

Como surgiu o modelo que identificamos como família? No século 19, Lewis H. Morgan escreveu livros que se tornaram referência em sua época, como Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1871) e Ancient Society (1877). Neles, o norte-americano propôs teses muito interessantes, como a vinculação entre progresso técnico, social e as estruturas familiares. Karl Marx leu atentamente essas obras. Quando morreu, seu amigo e parceiro intelectual, Friedrich Engels, analisando as anotações do falecido e o livro do americano, produziu outro clássico sobre o assunto: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884). Tanto Morgan quanto Engels cravaram que as sociedades primitivas começavam suas lógicas familiares como matriarcados e que, com o passar do tempo e o aumento da complexidade, desenvolviam formas patriarcais.

Engels articulou ainda mais coisas ao processo: matriarcados combinavam com prosperidade coletiva, por exemplo, ao passo que a propriedade privada combinava com o patriarcado. Algumas dessas teorias caíram por terra depois de um século e meio, porém, os textos se tornaram referência.

Com o advento do Cristianismo, outras nuances foram se naturalizando. O preceito do Velho Testamento de que a mulher deve servir ao marido casou-se muito bem com o patriarcalismo romano e pautou o imaginário medieval europeu. Agostinho, que, como muitos de seus contemporâneos cristãos, tinha horror ao ardor sexual (especialmente feminino), condenava o sexo fora do casamento, mas recomendava que mulheres e homens casados dividissem o leito conjugal.

Com o matrimônio santificado, o aborto vira tabu, os filhos se tornam, no plano ideal, cópias das virtudes dos pais. O casamento é um sacramento, mas diminui quem o faz: o estado celibatário é tido como superior e melhor. Paulo escreve aos coríntios a carta que mais pautou a lógica familiar milênios adentro: "Digo, porém, aos solteiros e às viúvas: É bom que permaneçam como eu. Mas, se não conseguem controlar-se, devem casar-se, pois é melhor casar-se do que ficar ardendo de desejo".

O amor materno, hoje visto como natural, vinha ganhando força desde o século 15, quando o vemos aparecer em pinturas flamengas e francesas. Não era normal que a mãe amamentasse, por exemplo. A prática de amas de leite continuou até o século 20. Como o mundo doméstico se fechou como universo da mulher, ela se viu absorta com os muitos afazeres. A criança mais velha cuidava da mais nova, ou parentes ou empregados assumiam esse papel. Ao homem, a esfera pública, do trabalho, da produtividade. O papel do provedor que nunca está em casa e que não se interessa por ela. A moral vitoriana do século 19 cuidava para que corpos, desejos e novos matrimônios estivessem sob o controle dos pais e de contratos firmados.

Casamento era algo que se fazia não por amor, mas por manutenção de propriedades e sobrenomes. Exceção (ou regra, pois era mais numerosa), uma vez mais, aos pobres, que se casavam sem se preocupar muito com aquilo que não possuíam. Até a maioridade da vida urbana e industrial, a família estendida era o sol ao redor do qual todos orbitavam: trabalhava-se em família, nos negócios de um parente; recorria-se à família em caso de doenças, mortes, para levantar dinheiro, para saber notícias e conformar valores. A consolidação do Estado e da ideia de indivíduo implodiu esse modelo, embora ele resista como imaginário.

A partir de 1960, os filhos não quiseram mais o modelo dos pais. A mulher ganhou, de vez, o mercado de trabalho, o direito a voto e alguma equiparação salarial. A pílula anticoncepcional deu um pouco mais de controle do corpo às mulheres. Mais homens quiseram participar da criação de seus filhos, segurá-los no colo e lavar a louça. Mais mulheres passaram a ser arrimo de família, mesmo que houvesse maridos em casa. Surgem casamentos sem filhos, por opção. O divórcio deixa de ser um estigma. Lentamente, emergem o fim do patriarcado e a condenação da violência doméstica.

Como você viu, querida leitora e estimado leitor, há muitos modelos de família e houve muitos tipos ao longo da história. Não há uma essência, apenas existências. Sua família existe e foi fundamental na definição do seu modo de ser. Não existem pais perfeitos, porém, anime-se, você também não é um filho perfeito. Irmãos são uma espécie de fluxo permanente e, nem sempre, visível, mas ali, sob as camadas superficiais, correm em níveis profundos. Sei que a família é uma invenção histórica. Como pessoa fruto da história, amo a minha e estou ansioso pelo fim do ano. Afinal, é sempre preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL

22 DE DEZEMBRO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

Três palavras e um funeral

Algumas palavras valem mais do que mil imagens ou mesmo um texto inteiro cheio delas. Isso explica o esforço de grandes dicionários para identificar a palavra do ano e o zeitgeist que, de forma sintética, ela expressa.

Nos últimos anos, essa escolha vem dependendo cada vez menos da avaliação subjetiva de especialistas e mais dos dados recolhidos da internet. Analisando o que as pessoas mais procuraram no Google ao longo do ano, é possível identificar as questões que dominaram as conversas na arena pública, assim como as angústias e incertezas que vieram à tona de forma mais evidente e universal.

Para o dicionário Oxford, o grande vencedor do ano foi o termo "tóxico" - no sentido de irrespirável, insalubre, nocivo. Vale para ambientes de trabalho, relacionamentos, políticos... Já o dicionário Merriam-Webster elegeu "justiça" como a palavra do ano. Aparentemente, o conceito andou ficando confuso, o que talvez possa ser atribuído, em parte, à terceira palavra desta lista de campeãs, na avaliação do site dictionary.com: "desinformação". Onde a informação é bombardeada com versões alucinatórias dos fatos, a ideia de justiça perde a nitidez - e aqueles que dizem defendê-la também podem ser colocados sob suspeita.

Uma redatora da CNN tratou de amarrar todas as pontas dessa lista tríplice em uma única frase: "Muitas pessoas estão exigindo justiça pelos prejuízos causados por líderes tóxicos e suas campanhas de desinformação". (A propósito: a busca pela palavra "nacionalismo" cresceu 8.000% em 2018. Toma tento, 2019.)

No Brasil, muitas seriam as candidatas a palavra do ano (façam suas apostas sem esquecer que há crianças na sala, por favor), mas como a leitura não é exatamente uma paixão nacional, talvez convenha nos contentarmos em pegar carona na lista importada dos dicionários estrangeiros.

Por aqui, mais importante do que encontrar uma palavra-síntese talvez seja lamentar o destino de uma expressão abduzida para um contexto que não apenas nublou seu sentido original como a contaminou com um tipo de energia radioativa capaz de nausear leitores e falantes da língua culta. Espancada, humilhada e abatida pelo mau uso, a palavra "mito" abandonou os livros de história, a literatura, a Grécia, a astronomia e os tratados de psicanálise e hoje rasteja, como um farrapo de quatro letras, à espera da redenção - que, mais cedo ou mais tarde, um dia virá.

O resto é mitomania.

CLÁUDIA LAITANO


22 DE DEZEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

CRIACIONISMO OUTRA VEZ

Questionar a veracidade da teoria da origem das espécies, desculpem, é ignorância
Voltamos a falar no ensino do criacionismo nas escolas. A mania de andar para trás teima em nos perseguir.

Até 1859, quando Charles Darwin publicou o livro sobre a origem das espécies, todos acreditavam que Deus as havia criado num único dia. Essa crença começou a ser questionada no século 19, época em que os museus ingleses passaram a exibir plantas e esqueletos de animais já extintos. Como justificar o desaparecimento de tantas espécies tão semelhantes às que ainda povoavam a Terra? A explicação corrente era a de que a ira divina exterminava periodicamente algumas espécies para criar outras, parecidas com as anteriores.

Darwin entendeu que a ciência devia estudar a grande variabilidade existente entre os indivíduos da mesma espécie, característica que não era levada em consideração pelos naturalistas da época. Suas observações sobre os pássaros das ilhas que visitou a bordo do Beagle, bem como a leitura dos trabalhos de Malthus a respeito da finitude dos recursos naturais, levaram Darwin a concluir que a vida é uma eterna competição pelo acesso a eles, na qual os indivíduos que não se adaptaram às exigências do ambiente foram eliminados por seleção natural. Como consequência, todos os seres vivos deviam ter ancestrais comuns. O homem, por exemplo, seria descendente do mesmo ancestral que deu origem aos demais primatas.

Imaginem o furor que essa ideia provocou na Inglaterra vitoriana e no mundo religioso. Negar que fôramos criados à imagem e semelhança de Deus era uma blasfêmia inaceitável (ainda hoje, considerada como tal por muitos religiosos).

Desde então, a teoria que Darwin enunciou naquele tempo foi exaustivamente testada e confirmada. O conceito de mutação gênica, a descrição da molécula de DNA e as descobertas da genética e da biologia molecular, nos séculos 20 e 21, demonstraram que a seleção natural está presente até nos mecanismos moleculares das funções fisiológicas das células.

O problema não está no ensino do criacionismo como pensamento religioso que ainda influencia muitas pessoas, mas em apresentá-lo como alternativa em pé de igualdade à evolução das espécies por seleção natural.

Theodosius Dobzhanski, um dos maiores geneticistas do século passado, afirmou: "Nada em biologia faz sentido senão à luz da evolução". A seleção natural é um mecanismo universal que explica a evolução da vida na Terra e em qualquer planeta em que venha a ser encontrada.

Ao contrário do pensamento científico, o religioso está alicerçado na fé. Como não preciso de experimentos para provar que Deus existe, que Jesus Cristo foi seu filho e que a vida eterna é o nosso destino, posso crer que a Terra tem 10 mil anos e que Eva foi criada a partir de uma costela de Adão.

Nada contra os crentes, a ciência não é a única forma de entender o mundo, as religiões procuram fazê-lo por outros caminhos. No entanto, assim como os cientistas têm obrigação de respeitar crenças alheias, os religiosos não devem se opor ao conhecimento científico.

Questionar a veracidade da teoria da origem das espécies enunciada por Darwin e Wallace há mais de 150 anos, desculpem, é ignorância. É o mesmo que duvidar da gravitação universal de Newton, colocar outra vez a Terra no centro do universo sem levar em conta Copérnico e Galileu, negar a relatividade enunciada por Einstein ou a teoria quântica de Max Planck.

A Terra não tem 10 mil anos, mas 4,5 bilhões. A vida surgiu a partir das moléculas primordiais de RNA que se formaram há uns 4 bilhões, assim que o planeta esfriou. Chimpanzés e bonobos compartilham conosco mais de 95% dos genes que herdamos de nosso ancestral comum. Não fosse um meteorito cair na península de Yucatán, no México, há 65 milhões de anos, os dinossauros ainda dominariam a Terra, e nós dificilmente estaríamos por aqui.

Há os que preferem crer que a mão de Deus deu origem ao homem e a todos os seres vivos. Alguns não negam as evidências da evolução, mas propõem que Ele está por trás de todas as mutações gênicas adaptativas que selecionaram as espécies. Para eles, admitir que surgimos como resultado dos acasos envolvidos na seleção natural não faz sentido.

Para mim, imaginar que um ser superior criou tudo num passe de mágica reduz a complexidade da biologia que, através de mecanismos seletivos, chegou ao único animal que se atreveu a desvendar os mistérios da criação da vida.

DRAUZIO VARELLA



22 DE DEZEMBRO DE 2018

PAULO GLEICH

LEMBRANÇAS NATALINAS

Vésperas do Natal, uns 25 anos atrás, reunião de família. Anúncio: naquele ano, a festa seria de perus magros, à altura do mirrado orçamento familiar. Vivíamos da bolsa de doutorado da mãe e das minguantes economias do pai, que buscava, sem êxito, trabalho no país para o qual haviam se mudado com seus quatro filhos, com a louca coragem que não raro acompanha a realização de um desejo.

Não haveria grandes presentes como em outras épocas, o cardápio seria mais simples do que as faustas ceias dos comerciais de TV. Lembro de uma sensação de envergonhado pesar na fala dos pais, que, no entanto, não se criou entre os filhos: a nós, foi dada a incumbência de decidir, respeitadas as limitações financeiras, o cardápio da ceia. O consenso foi, talvez, o mais rapidamente alcançado em uma discussão familiar: comeríamos cachorro-quente.

Adolescente, me orgulhei em segredo da ousadia de meus pais em topar a inusitada escolha. Mais lhes importava a alegria dos filhos do que o valor gastronômico da ceia. Além disso, à família se juntaram alguns expatriados perdidos por aquelas bandas, trazendo um bem-vindo antídoto à inevitável emergência das neuroses e picuinhas familiares. Pode ser que minha memória embaralhe as lembranças dos três Natais que passamos naquele país, mas pouco importa: as que guardei são todas boas.

Lembro que ganhamos presentes, daqueles que, por pudor por seu baixo custo, chamam-se lembrancinhas, como se não merecessem o título oficial. Eram artigos de necessidade, como pantufas novas para atravessar o inverno - que, aliás, eram cabeças de gorila de pelúcia, o toque frívolo que dá a um objeto a qualidade de regalo. Nunca as esqueci, bem como a primeira lâmina de barbear que ganhei naquele Natal, reconhecimento concreto de que me tornava um homem, apesar dos ainda parcos fios de bigode.

Muitos anos depois, a mãe confessou seu sofrimento por, naqueles anos, não poder presentear os filhos com seus objetos de desejo - como as cobiçadas calças Levi?s que, naquele tempo e lugar, eram os distintivos trajados pelos adolescentes. Não que fosse afeita a marcas e grifes, pelo contrário, mas desejava poder dar a felicidade que, imaginava, seus filhos teriam com a sonhada vestimenta. Talvez ainda não soubesse que filhos e mães são fadados à insatisfação mútua - ao menos, quando tudo corre mais ou menos bem.

O Natal é a festa familiar por excelência, e talvez por isso seja tão amado quanto odiado - como são os sentimentos que circulam nesses afetos tão próximos, nunca tão puros como os idealizamos. É fácil uma faísca virar fogueira, pois a família é também uma lembrança viva de nossas origens, um espelho no qual às vezes é difícil se enxergar. Não são infrequentes os relatos de desavenças, frustrações e desencontros sob as luzes natalinas.

Seja como for o Natal de cada um, é uma boa ocasião para refletir sobre o que fazemos com essas relações que nos constituíram e que levamos para sempre conosco. Talvez escolhi guardar na lembrança o Natal do cachorro-quente por representar o melhor de minha família: uma criatividade um pouco excêntrica e uma porta sempre aberta para receber o outro. Não se decide nascer em berço de ouro ou manjedoura, mas ao crescer são possíveis algumas escolhas para não ficar eternamente preso nas presepadas familiares.

PAULO GLEICH

22 DE DEZEMBRO DE 2018
J.J.CAMARGO

OS FILHOS NUNCA CRESCEM

Não fazemos mais do que repetir a angústia que nossos pais viveram por nós
A fase mais tranquila da vida de uma família é aquela em que todos vão para a cama ao mesmo tempo, e alguém bem que podia ter-nos advertido disso para que festejássemos enquanto era possível.

Nunca valorizamos essa fase maravilhosa, até a noite da primeira festinha em que fingimos dormir, mas não passamos de cochilos sobressaltados até que, graças a Deus, chega a hora de buscar a cria e finalmente começar o repouso, justo quando não havia mais noite para repousar.

Nessa fase, resmungamos sem suspeitar do muito pior que está a caminho: o interminável tempo em que a prole está tão "madura" que volta por conta própria, e a tortura mais dilacerante é despertar-se a cada 15 minutos para descobrir que ainda há luz embaixo da porta. E que quando ela, por fim, se apaga, o nosso quarto já parece mais claro, iluminado pela claridade boêmia do fim da madrugada.

Uma revelação pouco assumida nessa fase da vida é a descoberta, numa noitada qualquer, de que não há nenhuma razão para supormos que o zelo pelos nossos filhos seja original, e que, na verdade, não fazemos mais do que repetir a angústia que nossos pais viveram por nós, enquanto nos sentíamos independentes e donos absolutos do nosso brilhante destino. Só isso já justificaria um telefonema aos nossos velhinhos para agradecer, mesmo que eles, como nós, nunca tenham feito o que fizeram esperando retribuição.

Sempre me impressionou perceber o quanto esse sentimento de proteção não tem idade nem limite, de modo a seguirmos pela vida pensando nos nossos filhos do mesmo jeito protecionista daquela fase abençoada em que só a gente tinha a chave da porta. Talvez porque, no nosso coração, as crias nunca cresçam.

Dona Marilu foi operada havia uns 20 anos e seguiu em acompanhamento até muito depois de findo o protocolo de câncer de pulmão. Vinha com frequência simplesmente para conferir "se o bem que estou me sentindo não é falso!". Uma fofa.

Uma tarde, ligou para dizer que estava preocupada com uma de suas filhas e pediu que tratasse de encaixá-la para consulta o mais rápido que eu pudesse. Havia aflição verdadeira naquela voz. No dia seguinte, entraram no consultório mãe e filha, ambas com cara de saúde plena. Dona Marilu resumiu: "Esta é a minha menina do meio. Ela não está nada bem. Como eu só confio no senhor, sei que ela precisa muito lhe ouvir!".

Nunca me senti tão vulnerável ao iniciar uma consulta. Difícil lidar com o risinho debochado da "menina do meio", que na calma madura dos seus 68 anos estava visivelmente interessada em destruir o ídolo de mamãe. Em nome da sobrevivência, a única solução que me ocorreu foi inverter a abordagem clássica:

"Por que sua mãe acha que eu posso ajudá-la, se nós dois estamos completamente convencidos que não há nada que eu possa fazer?".

A gargalhada que se seguiu foi o jeito daquela mulher inteligente reconhecer que eu tinha superado a emergência. E tem gente que acha monótona a atividade em consultório!

J.J.CAMARGO


22 DE DEZEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

O super-homem e o super-hímen

Os americanos chamam o Estado da Virgínia de Vrdgínia. A palavra sai meio anasalada, como se tivesse um til entre o vê e o erre. V~rdgínia. Acho bonito.

Quem deu esse nome ao Estado foi Sir Walter Raleigh, um marinheiro que? Na verdade, chamar Walter Raleigh de marinheiro é uma redução tosca. Raleigh teve uma vida que merecia uma série da Netflix. Era um super-homem. Foi pirata e poeta, historiador e explorador, viajou por todo o mundo, inclusive pelo Brasil. E era um galanteador. Um dia, a rainha Elizabeth I caminha pelas ruas de Londres e, no meio do caminho, havia uma poça d?água, havia uma poça d?água no meio do caminho. Raleigh, airoso, tirou a capa de sobre os ombros e estendeu-a na água para a soberana passar. Ela ficou encantada. Depois disso, dizem as más línguas do século 17, eles se tornaram amantes.

Foi justamente em homenagem à rainha Elizabeth que Raleigh, ao chegar às inexploradas terras norte-americanas, chamou-as de "Virgínia". Porque Elizabeth era conhecida como "a rainha virgem". Neste momento, você vai desconfiar: "Como é que ela era virgem, se foi amante de Raleigh?". Há explicação, perspicaz e suspicaz leitor. É que ela era virgem por dois motivos: de direito, porque nunca se casou; de fato, porque, segundo certos historiadores maliciosos, sofria de um mal chamado "hímen complacente". O hímen real, por mais que fosse golpeado e vergastado durante o amor, comportava-se como uma defesa formada por Kannemann e Geromel: não se rompia. Muitos médicos se ofereceram para resolver o problema com uma cirurgia razoavelmente simples, mas Elizabeth jamais aceitou.

Por quê?

Porque ela temia a dor que sentiria quando o hímen fosse cortado. Na época, lembre-se, a anestesia não havia sido inventada.

Agora pergunto: como o ser humano viveu tanto tempo sem anestesia? Dentes arrancados, membros serrados, cortes costurados, tudo era feito no seco, com o paciente desperto e, não raro, amarrado. Os antigos egípcios faziam trepanações sem anestesia, imagine.

Nós vivemos no melhor mundo que já existiu, desde que o primeiro Homo sapiens desceu das árvores, na África, há uns 300 mil anos. Nós temos anestesia e a medicina nos fará viver até os 120 anos, como predisse a Bíblia no Gênesis. Nós comemos melhor e nos vestimos melhor. Nós temos a noção universal de que os direitos humanos e a democracia são bens em si mesmos. Nós temos leis que protegem os mais fracos. Nós temos mais respeito por minorias e pela diversidade.

Mas ainda temos muito a melhorar. E, quando o mundo melhorar e já não estivermos mais entre a sua superfície e o sol, o que os pósteros dirão da maneira como vivíamos? Quando souberem, por exemplo, que em grandes cidades do Rio Grande do Sul faltava energia elétrica depois de cada chuva e que milhares de residências ficavam sem luz todas as semanas? Você pode imaginar o que dirão?

Eu posso. Eu sei. Basta contar isso a um americano, a um europeu ou a um japonês. Eles ouvem isso, abrem a boca e se espantam:

- Como os brasileiros conseguem viver assim?

Como? Sei por quê. É porque o Brasil ainda está no passado. Vivendo no passado, ninguém sabe como o futuro pode ser melhor.

DAVID COIMBRA


22 DE DEZEMBRO DE 2018
VARIANDO

O VALOR DOS PRESENTES

O Natal é a época de relançar o convívio com os mais próximos e da esperança de refazer os laços partidos, tempo de perdoar e ser perdoado. Mas isso não vale para todos. Para alguns, a data abre a porta para um tormento: a troca de presentes ao pé da árvore. Odeiam encenar o Papai Noel que os faz gastar e caminhar atrás de objetos que nunca parecem adequados.

Resmungam contra o capitalismo, contra a socie- dade de consumo, contra os shoppings, contra tudo o que lembra compras de Natal. Têm pesadelos com o amigo-secreto da firma, alergia a renas, sobressaltos a guirlandas, pânico de canções natalinas. Sentem-se aprisionados a uma empreitada social forçada.

Tenho simpatia por esses sofredores, entendo as queixas, mas eles erram o alvo. Encontramos em várias sociedades simples, antes da contaminação pelo nosso mundo, rituais de presentes que exigem contraprestações. Ou seja, é demasiado humano e arcaico trocar objetos como forma de dar materialidade a laços sociais. O Natal é apenas o nosso momento privilegiado de troca. Portanto resmunguem contra a humanidade, tentem, na próxima encarnação, outra espécie ou outro planeta.

Mas vamos ao cerne da questão. O drama é pesar e quantificar o amor. Cada presente, cada lembrancinha, traz um cálculo embutido: o quanto cada um vale para os outros. É aqui que nossos resmungões se atolam, na dificílima contabilidade amorosa. O medo de esquecer e de não ser lembrado. Enfim, a planilha do Excel amoroso dá muito trabalho.

Não há muito o que fazer, é arregaçar as mãos e ir ocupar-se dos outros. Não esqueça que seus amados não querem apenas o presente, querem saber se você sabe deles, e nisso está a adequação do objeto. Conferem se está bem embrulhado, se foi difícil achá-lo. Eles querem ocupá-lo, querem seu tempo. Vida em sociedade pede isso, meus caros ermitões.

Há famílias e grupos que medem a força dos vínculos pela bolsa de valores dos presentes, conhecem etiquetas e sacolas, decifram os cifrões ocultos. Acho triste quando o dom é demasiado material, sintoma do enfraquecimento dos laços que o dinheiro viria a sanar. Creio que disso reclamam os natalofóbicos e aqui me junto a eles.

É possível resistir. Os cartões, além do "de" - "para", embalam um objeto com balanços afetivos, relançam votos de mútua atenção. Faça você mesmo seus presentes se tiver algum dom. Brinque com o que você sabe dos seus. Procure objetos ímpares fora do circuito tradicional. Bote a cabeça a funcionar e invente mimos alternativos. Dê livros. Presenteie com convites, propostas de experiências: levar o sobrinho no estádio, pescar com o afilhado, organizar um piquenique com os netos.

O Natal é o vestibular anual dos vínculos. Antes do fim do ano, não vem mal a exigência de prestar conta da capacidade de sermos gentis, amorosos e, principalmente, atentos.

MÁRIO CORSO

sábado, 15 de dezembro de 2018



15 DE DEZEMBRO DE 2018
LYA LUFT

Logo ali na esquina 

Sempre admirei os mais velhos quando diziam "pensei que já tinha visto tudo, mas sempre surge uma novidade boa ou péssima". A velhice me parecia, e parece agora que faço parte, uma época de serenidade, certa sabedoria, certa benevolência, certa liberdade. Digo e faço coisas que não faria nem diria aos 30 ou 40. Certa vez traduzi um livrinho cujo título era algo parecido com "Vou vestir vestido roxo". Algo assim. Depoimentos de várias mulheres velhas (por que o medo da palavra?) dizendo que agora podiam usar chapéu florido, ou vestido roxo, ou se divertir pisando na poça de água, sem que alguém venha criticar.

Sim, existem certas liberdades. Posso, como adorava fazer em criança e na juventude mas nem sempre me deixavam, ficar longo tempo vendo a paisagem, sonhando, pensando, lendo, enquanto alguma coisa se faz no meu interior mais interior. Quem sabe, personagens de um novo livro. Quem sabe, um pouco de tranquilidade a mais. Quem sabe, entender algo que parecia absurdo. Dou de ombros para coisas que me fariam arrancar os cabelos décadas atrás.

Mas, mesmo assim, cada dia vejo que não vi tudo. Por exemplo, notícias de maldade mesquinha que ataca pessoas em seu momento de dor. Parece mentira, mas é real. Parece impossível, mas longe disso. Sempre há quem se regozije com a dor alheia. Sempre há gente cuja única vantagem é conhecer ou inventar fraquezas de outros.

Também há quem diga que a grave crise de mudança de clima não existe: arrogantes e ignorantes, combinação explosiva. O presidente de uma nação poderosa acaba de admitir que, mesmo que cientistas mostrem pilhas de provas dessa perigosa ameaça para o mundo, a inteligência dele e sua intuição lhe dizem que é bobagem. O mudo que se exploda. E nós junto.

Por outro lado, em lugar de mais benevolente, me impaciento mais com certas mazelas, maldades e maluquices. Endeusar criminosos; louvar como coisa natural e quase obrigatória alguns dramas sexuais; querer que os filhos brinquem com bonecas e as filhas com carrinhos de brinquedo - como se isso fosse aliviar e resolver individualidades; professores humilhados e fisicamente atacados; velhos políticos mais-do-que-raposas-espertas reeleitos, mantendo privilégios - apesar de muitas mudanças que já começam, graças a Deus. Pobreza e miséria aumentando e alguns dizendo que nunca estivemos tão bem. Amizades desfeitas por razões ideológicas - como se o humano e pessoal importassem menos do que conceitos, ignorância, petulância ou radicalismos.

Enfim, a coisa vai ficando cansativa e mesmo assim vemos que não vimos tudo. Mas lembro que também vimos, vemos, coisas muito positivas: solidariedade, afeto, preocupação com o próximo, honradez; famílias que gostam de conviver... professores amados pelos alunos... médicos salvando vidas e pacientes lembrando-se disso... funcionários querendo fazer bem seu trabalho... patrões que não pagam só o mínimo necessário se podem pagar mais... enfim, gente sendo gente. Isso me faz concluir que, se achei que já tinha visto tudo, às vezes há surpresas boas logo ali na esquina.

LYA LUFT

15 DE DEZEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

A cara dos caretas


O Brasil se apresenta ao mundo como um país moderno: não é. Nossa imagem lá fora se reduz a algumas mulatas de peito de fora sambando no Carnaval, símbolo de uma "irreverência" para gringo ver. Ora, nem o topless pegou nesse Brasil com 8 mil quilômetros de orla. Se uma mulher tirar a parte de cima do biquíni na praia, vão dizer que é coisa de comunista.

Tudo que sai do quadrado é coisa de comunista. Amamentar em público, adoção de crianças por casais homoafetivos, debater as mudanças climáticas, exposições sem censura, lutar pelos benefícios dos trabalhadores, oportunizar aos negros as chances de ascensão que não tiveram, respeitar a sexualidade de cada indivíduo. Tudo que alinharia nosso país com os mais avançados, aqui é visto como coisa de comunista por quem acredita que só se evolui por meio da economia.

Precisamos de uma economia forte, gerar empregos e combater a corrupção: quanto a isso, estamos de acordo. Divergimos é na visão social, quando fica evidente nosso subdesenvolvimento. O exemplo está aí, nas declarações da futura ministra dos Direitos Humanos, que tenta nos alinhar com o que há de mais retrógrado.

É muito difícil mudar a mentalidade de um país. Fomos criados achando que existem cidadãos bem nascidos, tementes a Deus - e o resto. Achando que uma pessoa que ama alguém do mesmo sexo é uma aberração, e que se alguém não se sente feliz dentro do próprio corpo é por falta de laço. Achando graça quando um homem diz que não sabe por que está batendo, mas a mulher sabe por que está apanhando. Achando que se gays forem vistos se beijando numa festa nossos filhos vão "querer" ser gays também. Sabe o que aconteceu nos últimos anos? 

Avançamos muito. Não é fácil assimilar novos padrões de comportamento, mas eles se impõem. Não fosse assim, as mulheres ainda estariam casando virgens e aprendendo bordado em vez de fazerem faculdade. Já tivemos a revolução industrial, a revolução feminista e estamos em plena revolução tecnológica - não há como deter o futuro. No máximo, atrasar sua chegada. É o que acabamos de fazer: demos poder a quem despreza a evolução dos costumes, e lá vamos nós para o fim da fila, perder um pouco mais de tempo.

Chovendo no molhado: ninguém precisa ser gay, ninguém tem que assistir a uma exposição que lhe choca, ninguém tem que abrir mão da sua religião, ninguém é obrigado a fazer aborto. Você é livre para ser quem é, e, se for uma pessoa justa, vai colaborar para que os outros também sejam, reduzindo os conflitos. O Brasil gosta de se apresentar como um país feliz, então vale lembrar que a felicidade é leve, arejada e expandida. Ninguém é feliz sendo repressor e reprimido. Não vejo nenhum caminho de progresso para o Brasil se seguirmos agindo como bobalhões infantilizados que se recusam a amadurecer.

MARTHA MEDEIROS



15 DE DEZEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Qual a mãe que você tem?

Se a sua esposa encontra uma escova caída no tapete do carro. Ela é morena, os cabelos nas cerdas são loiros. Ela pergunta de quem é, você esclarece que é da sua mãe, quando ofereceu carona para o shopping anteontem. Foi a única loira familiar que se lembrou na hora, à queima-roupa. Evidentemente, que a esposa liga para a sogra, na sua frente, sem tempo para que possa editar a vida. Há várias opções maternas neste instante diante da crise de ciúme:

a) A mãe conhece o filho que tem, as suas safadezas pregressas, assume a ocorrência porque não quer influenciar negativamente na história do casal. Acostumada a lavar as mãos do filho, diz que a escova é realmente dela e que estava a procurando que nem louca no banheiro.

b) A mãe retruca, sinceramente: "Que escova?". Pede descrição e detalhes, a cor do cabo, o modelo, a marca, pergunta onde foi encontrada, se é nova ou velha, para comentar secamente que não é dela. Totalmente desligada, nem reparou no divórcio no ar.

c) A mãe finge demência com o telefonema gratuito e somente questiona: "Está tudo bem com vocês, querida?". Não deseja mentir, então foge do assunto. Começa a falar que não vem se sentindo bem nos últimos dias. A esposa não tem clima para continuar o interrogatório.

d) A mãe, logo que recebe a informação, já acusa o filho gritando: que é um idiota, um canalha como o pai dele, que não tem vergonha na cara, que é um pulha facilitando vagabundas... A esposa fica com pena de seu marido e o perdoa sumariamente, concluindo que ele deve ter sofrido muito na infância.

e) A mãe atende o telefonema com paciência e educação, desculpa-se pela distração. Depois, pede para o filho passar lá para entregar o objeto perdido. Parece um conto de fadas. Mas, quando ele chega para a devolução da escova, ela o puxa pela camisa para dentro de casa e dá uma surra colossal nele, desferindo uma sucessão de tabefes na cara e carraspanas na cabeça: "Pretende destruir o seu casamento? Tem que aprender a respeitar sua esposa. Ela é uma santa. Cala a boca que você vai ouvir o que é bom para tosse".

CARPINEJAR

15 DE DEZEMBRO DE 2018
PIANGERS

Não existe tempo de qualidade

Você já deve ter ouvido essa história de "tempo de qualidade". É um termo que pais ocupados inventaram para dizer que, apesar de não terem tempo para os próprios filhos, o pouco tempo que têm é o que chamam de "tempo de qualidade". Você sabe: o pai que está sempre em alguma reunião importante, a mãe que está sempre no celular, o casal que está sempre viajando e deixa os filhos com a babá. Eles não têm tempo para as bobagens da criação de filhos. Mas o pouco tempo que têm é um "tempo de qualidade".

Tempo de qualidade é essa mentira que a gente conta pra gente mesmo pra justificar nossos únicos 15 minutos por semana ao lado dos nossos filhos. O que dá pra fazer em 15 minutos? Nada muito formidável. Mas se conseguirmos trocar meia dúzia de palavras, se tivermos um ensinamento profundo que tiramos de um texto que lemos na internet, se conseguirmos passar alguns segundos sem brigar, reclamar ou gritar com nossos filhos, isso é o que podemos chamar de "tempo de qualidade".

Passamos a semana correndo, atendendo telefone, lendo e-mail, fazendo reunião, terceirizando a educação dos nossos filhos, levando-os para o contraturno, a natação, o futebol, a casa da vó, a colônia de férias, e, quando estamos com eles, naqueles pequenos minutinhos, fingimos que estamos realmente lá, prestando atenção genuína. Mas, como temos pouco tempo junto, aquele tempo não é realmente o que se pode chamar de "qualidade". Porque não existe qualidade em uma relação que não tem intimidade. E intimidade se conquista com o tempo de quantidade. Não tem outro nome, é horas mesmo. Dias. De preferência muitos dias calmos e sem muita coisa pra fazer. Sábados e domingos, mas também terça-feira à noite e segundas-feiras bem cedo, café da manhã juntos, confidências sem julgamentos.

Pra ter tempo de qualidade a gente precisa, antes, ter tempo de quantidade. Longas horas dedicadas ao prazer de simplesmente estar junto. Qual foi a última vez que você não tinha nada pra fazer? Qual foi a última vez que passeou de bicicleta? Que fez uma pintura pra dar de presente pra alguém? Que deitou na grama? Qual foi a última vez em que você leu pro seu filho? Qual foi a última vez em que inventaram uma brincadeira nova? Qual foi a última vez em que você teve tempo de qualidade?

PIANGERS

15 DE DEZEMBRO DE 2018
HORIZONTES

Millenials impõem desafios educacionais

Quando nos propomos a refletir sobre a educação das juventudes contemporâneas, rapidamente reconhecemos que sua formação merece ser pensada a partir de outros enquadramentos, diferentes daquelas normas e padrões que delinearam as gerações que nos precederam. As universidades e os variados sistemas de ensino tanto públicos quanto privados gradativamente estão assumindo a tarefa de repensarem-se, ajustando-se às novas demandas sociais e econômicas e, principalmente, reconhecendo que seus públicos não são mais os mesmos. As crianças e os jovens, nascidos nas últimas três décadas, estão crescendo em um mundo com inúmeras fontes de informação, novos modos de relacionamento social e experienciando aprendizagens de conhecimentos cada vez mais complexos e menos permanentes.

Millenials é um dos inúmeros termos disseminados pela literatura especializada para a descrição subjetiva desses novos indivíduos. As suas habilidades para o manejo das tecnologias digitais, suas formas de prestar atenção em múltiplos objetos de conhecimento ao mesmo tempo e sua agilidade no tratamento das informações são destacadas por uma vasta produção científica (brasileira e estrangeira) na atualidade. Nossas instituições educativas têm sido interpeladas, a partir deste conjunto de condições, a repensar seus currículos, seus espaços de aprendizagem e, talvez de uma maneira mais urgente, seus modos de relação com o conhecimento. Esboça-se um consenso: a universidade do século 21 não será mais a mesma!

Todavia, ao estabelecermos uma reflexão séria sobre nossos desenhos institucionais para um novo tempo, precisamos considerar a questão da desigualdade. Foi publicado no início deste mês a pesquisa "Millenials na América e no Caribe: trabalhar ou estudar?", visando traçar um diagnóstico da juventude na região, considerando as respostas de 15 mil jovens na faixa etária de 15 a 24 anos. De acordo com esses dados, constatou-se que cerca de 21% dos jovens não estudam, nem trabalham - no Brasil, esse número equivale a cerca de 33 milhões de jovens. A mesma pesquisa indica também que 41% só estudam, 21% só trabalham e 17% trabalham e estudam ao mesmo tempo. Delinear possibilidades formativas para esses jovens implica necessariamente no reconhecimento da precariedade que perfaz suas existências em nosso continente.

A referida investigação, conduzida por reconhecidos centros de pesquisa, também descreve que os jovens da América Latina e do Caribe evidenciam algum tipo de atraso em suas capacidades cognitivas. O documento final da pesquisa aponta que cerca de 40% dos entrevistados não conseguem realizar cálculos matemáticos relativamente simples "como dividir certa quantia de dinheiro em partes iguais". Explicita-se também a carência de habilidades técnicas e de conhecimento da dinâmica do mundo do trabalho e das profissões. Por outro lado, no que tange às nomeadas competências socioemocionais, os resultados caminham em direção oposta. Os jovens latino-americanos e caribenhos demonstraram níveis altos de autoestima, autoeficácia e perseverança. Nesse âmbito, a pesquisa nos explicita uma interessante condição de ambivalência, qual seja: ainda que desprovidos de conhecimentos básicos e determinadas habilidades profissionais, nossos jovens são otimistas com relação ao seu futuro.

Para fins deste texto, gostaria de destacar que a gramática formativa centrada em torno das potencialidades dos Millenials - em suas condições de inovação e de promoção de crescimento econômico para a região - precisam ser cotejadas com a questão das desigualdades. A despeito das indiscutíveis habilidades que essa geração possui, as oportunidades educacionais e a inserção intermitente no mercado de trabalho bloqueiam seu pleno desenvolvimento. Nossas instituições de ensino precisam assumir como tarefa seu reposicionamento curricular para atender a pluralidade de demandas advindas dos Millenials; porém, não seria desejável que esquecessem as matrizes de desigualdade que ainda perfazem seus modos de habitar o século 21. Em outras palavras: precisamos de prudência para que nossa necessidade de inovação não engendre novos dispositivos de precarização existencial de nossos jovens - eis o nosso desafio!

Doutor em Educação e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos robertoddsilva@yahoo.com.br - ROBERTO RAFAEL DIAS DA SILVA


15 DE DEZEMBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL

Crise de livros e de ideias

Há anos tenho o hábito de andar pela Avenida Paulista aos domingos. Parada obrigatória: a loja da Livraria Cultura no Conjunto Nacional. Livrarias são a minha Disney (ou minha Vegas) A alegria principal estava sempre nos livros. A secundária era ver o ambiente quase sempre cheio.

Crianças, jovens, adultos, pessoas lendo e outras tomando café, todos cercados pelo conhecimento, pelo lazer, pelos volumes físicos das prateleiras. Sempre me pareceu que escolas com sons vindos dos pátios e a algaravia de lojas de livros eram sinais de vida e de esperança.

Minha esperança diminui no ocaso de 2018. Saraiva e Cultura enfrentam drama de sobrevivência. Pediram recuperação judicial. Juntas, vendiam quase 40% dos livros consumidos no país. Aparentemente, aquela multidão no Conjunto Nacional estava ali rindo e nada comprando. Lamento pelo negócio de pessoas como as que conheço e estimo, mais ainda pelo que representa em um país como o Brasil.

Desapareceram quase todas as livrarias de bairro em São Paulo. Quando cheguei a esta cidade, havia a Belas-Artes entre o cinema de mesmo nome e a Paulista. Já fechou, como tantas outras. As sobreviventes lutam de forma épica. O meteoro da crise está eliminando os grandes dinossauros e os pequenos mamíferos.

Alguns dados parecem indicar que não estamos lendo menos do que o pouquíssimo que já líamos. Não é uma nova crise de leitores. Talvez tenha apenas mudado o modelo de negócio, o que seria um mal menor. As pessoas estariam comprando mais pela internet e baixando mais textos virtuais do que comprando livros físicos. Isso não seria tão terrível, pois ocorreu o mesmo com o desaparecimento do telégrafo sem que a comunicação humana desaparecesse. Não tenho dados para avaliar a extensão da crise das livrarias brasileiras. Apenas observo com certa ansiedade.

Há algo anterior à crise. Somos um país que lê pouco. Somos uma terra onde a elite lê quase nada. Mudando ligeiramente a frase: somos uma terra que vive lendo coisas ao celular e poucos livros. O suporte seria irrelevante, como o foi o ciclo do desaparecimento do papiro/pergaminho e a ascensão do papel. Tanto faz se alguém ler Machado de Assis com caneta nanquim, impresso em papel ou no tablet, basta que leia Machado. Será que isso ocorre? Até hoje, lançando olhares indiscretos a vizinhos na poltrona ao lado do voo ou em outros lugares, nunca vi nada que indicasse o bruxo do Cosme Velho.

Há outra questão. Existe uma cultura de gratuidade na internet. Coloco o link de um artigo na minha página. Várias pessoas reclamam: "Não consigo ler, tem de ser assinante". O jornal mantém um exército de jornalistas, paga revisores, sustenta correspondentes, edifica prédios e paga impostos, cria produtos a um preço alto e, ao fim da jornada de custos, entregaria o ponto final da cadeia produtiva de graça. Pergunta prática: quem pagaria o almoço, jamais gratuito? Por que pensamos sempre que a cultura e a informação devem ser gratuitas e a camiseta não?

Não entro no mérito do debate sobre financiamento de questões de interesse social. O que tem amplo sentido deveria ser gratuito? Seria a situação perfeita. Então, como fazer? Questão sempre delicada: o consumidor sempre paga, sempre, resta saber se direta ou indiretamente.

O debate é vasto. A crise das livrarias pode ser apenas de gestão e não de falta de leitores. Quero levantar outra questão. Informação tem sentido social, aprimora cidadania e é fundamental. Bem: por mais relevante que sejam cultura e informação, livros e acesso ao conhecimento, devo reconhecer que comida é ainda mais relevante. Na pirâmide das necessidades humanas, comer é anterior a ler. Por que ninguém jamais reclama de ter de pagar pela banana do supermercado e faz muxoxo de ter de pagar pelo jornal? Uma fã me disse que, se todos os livros fossem gratuitos, ela leria mais. Acho piedoso o propósito. Se o Restaurante Fasano servisse o que serve a R$ 10 por pessoa acompanhado de vinhos indicados pelo Manoel Beato por um adicional de R$ 2, eu, creio, jantaria lá todas as noites. Amo ler, todavia se fosse para uma ilha e tivesse de optar entre a Ilíada e um estoque de pão, creio que abandonaria o bom Homero no cais do porto. Sedento no Saara, você desejaria Proust? A comida jamais é gratuita.

O livro e o jornal deveriam sê-lo? Alguém já protestou em suas redes que o bar cobre pela cerveja? Já fizeram protesto pelo absurdo de existir valor até por uma garrafinha de água? O essencial tem custo. Tudo tem custo. Por que apenas o custo da informação é contestado? Alguém poderia argumentar que seria papel do Estado fornecer cultura e informação de forma coletiva e gratuita.

Sabemos, por dolorosa experiência tupiniquim, que a gratuidade oferecida pelo Estado é a mais onerosa e de maior risco de controle de informação.

Não sei se existe uma boa solução para questões tão amplas. Há poucos leitores, o modelo de negócio dos livros passa por crise estrutural, tudo tem um custo e há menos gente querendo incorporar o custo como investimento, já que boa leitura nunca é gasto.

O mundo está menor, mais ágrafo e mais escuro. Quer colaborar? Que tal dar livros de presente agora? Ir a livrarias virou gesto de resistência. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


15 DE DEZEMBRO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

Mercadores da esperança

Trata-se do negócio mais lucrativo do mundo: o produto que eles vendem é inesgotável e, às vezes, é o único alívio disponível no mercado
O medo da morte matou minha mãe. Às vezes, diante de uma doença grave, a única chance de sobrevivência passa pela decisão de encarar alguns terrores íntimos o que, obviamente, nunca é simples.

Em vários momentos, nos estágios iniciais do câncer que a mataria menos de dois anos depois do primeiro diagnóstico, minha mãe poderia ter agido de forma mais ágil na busca da cura. Como o tumor que a matou não costuma ser letal, é provável que tivesse se curado - ou assim me disseram alguns médicos. Mas, em vez de dividir o problema com os filhos e acatar as orientações de tratamento disponíveis, ela trocou várias vezes de oncologista, na esperança de que um deles oferecesse o diagnóstico que gostaria de ouvir. Confiava em sua própria força, que sempre foi imensa e nunca nos faltou, e também na capacidade da fé de remover montanhas - assim como tumores. Quando finalmente decidiu dividir o problema comigo e meus irmãos, já não havia mais nada a ser feito.

Entre o consolo de uma esperança mística e a irrevogável materialidade de um diagnóstico ruim, muitos preferem acreditar no primeiro. E não é difícil de entender por quê. A proximidade da morte engendra aquele tipo de circunstância capaz de mudar quase tudo o que sabemos sobre nós mesmos, inclusive aquilo que consideramos essencial - como a fé ou a ausência de. É por isso que pessoas doentes (e todos aqueles que as amam e sofrem com elas) são as vítimas preferidas dos mercadores da fé e da esperança. Trata-se do negócio mais lucrativo do mundo, já que o produto que eles vendem não apenas é inesgotável como muitas vezes é o único alívio disponível no mercado.

Não tenho dúvidas de que minha mãe teria ido ao encontro de João de Deus, tivesse tido tempo ou oportunidade para tanto. E eu, mesmo considerando o gesto inútil e desesperado, teria provavelmente me oferecido para acompanhá-la. Naquele momento, também eu estava desesperada. Não tanto a ponto de rever minhas posições em relação a curas espirituais (abandonar o materialismo que me situa e me constitui seria como desistir de um pedaço do meu próprio corpo), mas o suficiente para apoiar qualquer movimento que diminuísse sua dor e seu medo.

É curioso que os dois maiores casos de abusos sexuais e estupros em série, no Brasil, tenham sido praticados por um homem de ciência (o ex-médico de reprodução assistida Roger Abdelmassih, condenado a 181 anos de prisão por estupro de pacientes) e um homem de fé (o médium e curandeiro João de Deus, acusado por cerca de 200 vítimas). Ambos têm, em comum, o fato de terem explorado a confiança e a fragilidade das mulheres que recorriam a eles em busca de ajuda.

Pela forma torpe e desumana como agiram durante décadas, convencidos da impunidade e da própria importância, merecem todo o rigor da lei. A grande diferença entre os dois é que o escritório do médico ficou às moscas assim que as denúncias começaram a vir à tona, enquanto a Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, continuou atraindo fiéis mesmo depois de uma procissão de vítimas aparecerem na televisão relatando situações horrendas de abuso. A fé tem poderes a que o espírito crítico e a razão apenas aspiram - como bem sabem todos aqueles que aprenderam a extrair dela sexo, dinheiro e ainda mais poder.

CLÁUDIA LAITANO


15 DE DEZEMBRO DE 2018
COM A PALAVRA

"O problema principal do mundo hoje é a imigração"

O historiador das ideias norte-americano Mark Lilla despertou grande controvérsia em seu país com o artigo The End of Identity Liberalism ("O fim do progressismo identitário", em livre tradução), publicado no jornal The New York Times em 2016, quando criticou o foco da esquerda americana na política de identidade. Lilla argumentou que a melhor forma de o Partido Democrata defender as minorias é ganhar as eleições, e para isso o discurso fragmentado para diferentes públicos deveria dar lugar a uma narrativa unificada que valorizasse um espírito mais amplo de cidadania e solidariedade. O argumento foi ampliado no livro O Progressista de Ontem e o do Amanhã (Companhia das Letras). O professor da Universidade Columbia, em Nova York, esteve em Porto Alegre para realizar conferência no Fronteiras do Pensamento e recebeu ZH para a seguinte entrevista.

O SENHOR ARGUMENTA QUE O DISCURSO FOCADO NA POLÍTICA DE IDENTIDADE FEZ O PARTIDO DEMOCRATA PERDER TERRENO NOS EUA. ESSE FENÔMENO ECOA UM IMPASSE DO CAMPO PROGRESSISTA EM OUTRAS PARTES DO MUNDO?

Estou descobrindo que sim. Escrevi o livro tendo em mente apenas o caso dos EUA, sem pensar muito se havia coisas similares em outros países. No momento em que o livro saiu, editores ao redor do mundo queriam publicá-lo porque achavam que falava de sua situação. Isso inclui a maioria dos países europeus, Brasil, México, China, Japão, Coreia do Sul. Tem sido extraordinário. O único continente em que não foi publicado é a África. Escrevi o artigo original para o New York Times em dois dias e descobri que havia ecos em todo o mundo e que a crise na esquerda americana não é um caso isolado. Isso me fez pensar nas pré-condições sociológicas mais profundas disso, onde estamos no capitalismo contemporâneo, a sociedade da informação. Todas essas coisas podem ter contribuído para isso. Tem sido educativo para mim.

A POLÍTICA DE IDENTIDADE PODERIA SER ENTENDIDA COMO UM BODE EXPIATÓRIO PARA OS CONSERVADORES CANALIZAREM A FRUSTRAÇÃO DA POPULAÇÃO QUE NO FUNDO É COM O PRÓPRIO CAPITALISMO E SUAS CRISES?

Há certamente um elemento disso. Uma das coisas mais difíceis com que precisei lidar no livro é que a mídia de direita nos EUA instrumentalizou a política de identidade. Eles pegam casos particulares, que são reais, e os exageram, desenvolvendo uma narrativa sobre como são as universidades e por aí vai. Isso incita e enraivece o tipo de pessoas que votam em Trump e em Bolsonaro. O outro elemento é que no livro eu diferencio, mas não o suficiente, entre dois tipos de política de identidade: uma é política e a outra eu diria que é cultural. A política de identidade política tem a ver com a obtenção e a defesa dos direitos de grupos minoritários, sejam afro-americanos, mexicanos americanos, mulheres e minorias de gênero. Essa é uma batalha legal e política. Mas isso mudou com o desenvolvimento de uma segunda onda de política de identidade, focada em mudar a cultura, com demandas individuais por reconhecimento. Aqui, não é tanto uma classe de pessoas com uma reivindicação política, mas é sobre mim e o que me torna especial e por que preciso ser respeitado e compreendido como pessoa. Quanto mais os jovens ficam absorvidos por suas identidades pessoais, especialmente em torno de gênero, menos engajados ficam com a batalha política mais ampla em que estou envolvido e preocupado em relação ao liberalismo e à esquerda nos EUA.

QUAL É O PAPEL DAS UNIVERSIDADES NESSE CENÁRIO, UMA VEZ QUE LÁ FLORESCERAM MUITAS DAS TEORIAS QUE EMBASAM AS POLÍTICAS DE IDENTIDADE?

O que aprendi é que a história americana é também a história de outros lugares. Tem a ver com o colapso das esperanças revolucionárias da esquerda no mundo nos anos 1960 e início dos anos 1970. Desenvolveu-se uma esquerda radical que descobriu que não tinha as pessoas por trás, porque as pessoas se tornaram burguesas, porque eram tradicionais em suas vidas familiares. Então, a esquerda rompeu com sua base tradicional e radicalizou-se. E descobriu que não tinha as pessoas consigo. Daí, abandou as pessoas para educar as elites. A esquerda retirou-se para as universidades e começou a se engajar na educação ou reeducação cultural. E o que fez não foi ajudar a classe trabalhadora, mas transformar a classe burguesa. As pessoas na classe burguesa foram afetadas por essas coisas, pensando de forma diferente sobre si mesmas e sobre a sociedade e suas identidades. É parte de uma história mais ampla sobre o que aconteceu com a esquerda nas últimas décadas.

ALÉM DO FOCO NA POLÍTICA DE IDENTIDADE, QUAIS FORAM OS OUTROS ERROS DOS DEMOCRATAS NOS EUA?

Procuro deixar claro no livro que o problema mais profundo com a política de identidade nos EUA não é que as pessoas no interior do país rejeitaram isso. É que o foco na identidade distraiu os democratas, liberais e a esquerda da tarefa de desenvolver uma visão de país, seus princípios, o que compartilhamos e o que nosso futuro em comum poderia ser. Estou interessado no que não aconteceu por causa da política de identidade. E muitas coisas não aconteceram. Não houve uma conversa sobre o que significa ser um cidadão americano, o que devemos ao outro, nenhuma palavra sobre dever. Os democratas defendem muitas coisas, mas não sabem como falar sobre quais são os princípios mais amplos que determinam por que eles defendem essas coisas. Acho que tem a ver com solidariedade, dignidade, todo tipo de coisa, mas eles nem pensam mais nesses termos. Não são apenas pequenos erros aqui e ali. Tem a ver com um bloqueio psicológico sobre como se dirigir ao país como um todo em termos inspiradores.

QUESTIONARAM O FATO DE O SENHOR SER UM HOMEM BRANCO FALANDO SOBRE MINORIAS?

Eu não estava falando da condição de negros, mulheres, gays ou algo assim. Estava falando do papel que essas questões exercem em nossa política. Mas o fato de eu abordar algumas dessas questões foi chocante e perturbador para as pessoas. O livro foi uma experiência deprimente e motivadora. A parte deprimente é que o problema é muito pior do que eu havia pensado. As pessoas envolvidas nesse tipo de trabalho, as fanáticas, não podem ser alcançadas, você não consegue se envolver com elas. A boa notícia é que nas últimas eleições de meio de mandato (nos EUA) tivemos candidatos de todo tipo de origem. Muitas mulheres negras, candidatos gays. E nenhum deles falou de suas identidades. Falaram sobre Donald Trump, Donald Trump, Donald Trump. E assuntos locais, escola, educação, estradas. Não tenho perfil no Twitter, mas vi muita gente dizendo: "Viram? Lilla estava errado porque agora há um grupo diversificado de pessoas nas eleições!". Digo que isso justamente prova o meu ponto de vista. Quero ver um grupo muito diversificado de pessoas concorrendo nas eleições, mas tentando desenvolver uma mensagem em comum.

NO BRASIL, MUITO DO DEBATE NAS ÚLTIMAS ELEIÇÕES GIROU EM TORNO DE VALORES TRADICIONAIS, COMO FAMÍLIA, CASAMENTO, RELIGIÃO. ASSUNTOS URGENTES DO PAÍS, COMO MELHORIAS EFETIVAS NA EDUCAÇÃO E EMPREGO, PARECEM TER FICADO EM SEGUNDO PLANO. O SENHOR ACREDITA QUE ISSO REFLETE UMA TENDÊNCIA MUNDIAL?

O que você está me dizendo é muito interessante porque acho que é parte do futuro. Ou pelo menos posso dizer que estou começando a ver isso cada vez mais. Se você olhar para a Polônia, para a Hungria, essas questões sociais, como as chamamos nos EUA, tornaram-se primordiais na política. Na New York Review of Books, está saindo um artigo meu sobre a nova direita jovem francesa. Em sua luta contra o casamento gay, eles mobilizaram muitas pessoas e também jovens intelectuais. Marion Le Pen (sobrinha de Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Frente Nacional) está falando desses assuntos. Esse será o futuro na França também.

NO QUE ESSA ONDA DE INTOLERÂNCIA PODE RESULTAR PARA A GEOPOLÍTICA MUNDIAL?

É ruim para a geopolítica mundial, mas não acho que a tolerância seja a questão. É que as pessoas que exploram esses temas tornam-se demagogas e antidemocráticas. Esse é o problema. De resto, as sociedades estão se tornando mais tolerantes. Todas as sociedades desenvolvidas, em comparação com 50 anos atrás, passaram por uma transformação incrível. O problema principal é a imigração. A imigração é um problema sério porque muito dela é ilegal. Parece-me que as democracias têm o direito de determinar a quantas pessoas é permitido ser cidadãs. Minha posição é que a esquerda tem de ser muito forte contra a imigração ilegal para tirar esse tema da direita. Sem esse tema, o que a direita tem hoje em termos de intolerância? O antissemitismo está mudando. Muito do antissemitismo na Europa é o antissemitismo muçulmano, não é branco. As pessoas, aos poucos, estão se acostumando ao fato de seus sobrinhos e sobrinhas serem gays. As mulheres estão no mercado de trabalho. Não temos muitos problemas com essas coisas. Mas a imigração alimenta essas questões.

VEJAMOS A CRISE DA SÍRIA OU DA VENEZUELA. COMO DEVEMOS LIDAR COM ISSO?

Há muitos problemas diferentes. Há problemas de direitos humanos, em que as pessoas vão embora porque estão ameaçadas; tem a imigração econômica, porque as pessoas estão sem esperança; e tem a imigração por causa da internet. Se um imigrante africano consegue entrar na França, por exemplo, sua condição de vida pode ser terrível. Mas não é isso que ele diz para as pessoas em casa. Ele faz um vídeo mostrando a (avenida) Champs-Élysées, a Torre Eiffel e manda histórias de como é sua vida, mas na verdade não é a sua vida, porque seria humilhante dizer como é sua vida. E quanto mais essas histórias circulam, mais pessoas querem vir. Na África, os problemas econômicos, políticos e climáticos estão levando as pessoas para fora. Não há boas respostas fáceis para isso. Quando os chamados sírios foram para a Alemanha, havia jovens solteiros paquistaneses. Não eram só famílias sírias. Havia muitos homens solteiros. Havia tensões com homens solteiros que queriam essencialmente se dar melhor na vida, com o sonho de fazer dinheiro e voltar para casa. Eles moram sozinhos, não têm mulheres, sentem-se marginalizados, sentem-se desrespeitados. E alguns deles são muçulmanos e são atraídos para o islã radical. Se não, há crime e todo o resto. É uma situação muito insalubre. Acredito que não podemos fazer nada pelos outros países se não tivermos liberais e pessoas de esquerda no poder político. E não podemos chegar ao poder se formos suaves com a imigração. Então, precisamos ser duros com a imigração ilegal para então estarmos na posição de ver o que podemos fazer para ajudar esses países.

HÁ ECONOMISTAS QUE JÁ PROJETAM UMA POSSÍVEL RECESSÃO ECONÔMICA PARA 2020. QUAL SERIA O IMPACTO POLÍTICO?

Não sou economista, mas a questão interessante é: se houvesse uma nova crise econômica, como reagiríamos? Muito dos desenvolvimentos que estamos vendo na direita foram precipitados pela crise econômica (de 2008), em que muita gente perdeu dinheiro, emprego, seu padrão de vida caiu e não foi recuperado ainda. Então, podemos apenas especular. Se houvesse outra crise, me parece que não ajudaria a esquerda, mas continuaria a ajudar a direita populista. Porque levaria a mais ressentimento. Seria uma crise apenas para as pessoas sem dinheiro. Do jeito que as coisas estão estruturadas agora, o ressentimento contra os ricos, estranhamente, está sendo lucrativo para a direita, não para a esquerda. É a estranheza do nosso tempo.

POR QUE A ESQUERDA NÃO CONSEGUIU INSTRUMENTALIZAR ESSE DESCONTENTAMENTO MUNDIAL?

O motivo básico é que ninguém sabe o que fazer com a economia global. Ninguém tem uma resposta para todos os problemas que surgiram da conectividade e da globalização. Ninguém tem uma resposta para o fato de que você pode movimentar capital de uma parte do mundo para outra e que isso prejudica uma cidade ou região instantaneamente enquanto ajuda outra. Estamos simplesmente em uma nova situação. O Estado-nação, o conceito de soberania, todas essas coisas foram questionadas por causa dessa nova força que está lá fora. Então, esse é um tempo para os intelectuais começarem a pensar sobre isso e continuarem pensando. O problema é que na política você não pode dizer: "Dou um retorno para você depois de seis meses, quando eu descobrir". Você tem que ter uma resposta agora. Então a pergunta é: você explora isso ao dizer que tem uma poção mágica que pode resolver isso ou não? A direita está disposta a dizer que tem uma poção mágica. Mas, independentemente de quem está no poder, não se controla a economia mundial. O que acontece é que as pessoas desacreditam o sistema democrático como tal, não a direita ou a esquerda. A democracia está em declínio porque, não importa em quem as pessoas votem, elas continuam sendo chacoalhadas por essas forças. A vítima real não é a direita ou a esquerda, mas a democracia, porque há uma grande desconfiança do próprio sistema. E isso serve à direita. Não à direita responsável, conservadora, mas à direita alternativa, a extrema direita.

NO LIVRO A MENTE IMPRUDENTE, O SENHOR ABORDA AS ILUSÕES POLÍTICAS DE GRANDES FILÓSOFOS, ALGUNS DOS QUAIS SE DEIXARAM SEDUZIR POR REGIMES AUTORITÁRIOS, COMO HEIDEGGER E CARL SCHMITT. POR QUE ESSAS GRANDES MENTES ÀS VEZES SE DEIXAM LEVAR?

No livro, eu chamo de "a sedução de Siracusa". Sabemos que, certa vez, Platão foi a Siracusa, na Sicília, porque um amigo que era aluno de Platão falou para Dionísio sobre a ideia da República ideal. Dionísio disse: "Que ele venha e me ensine". E Platão foi. E não foi ouvido. Então fez uma segunda viagem e foi preso. No final, percebeu que a distância entre o filósofo e a cidade é muito grande. Mas por que ele foi? Acho que há uma certa vontade de poder, como diz Nietzsche, um perigo dentro da filosofia. Você está fazendo o seu trabalho, tem algumas ideias sobre o futuro, e então alguém bate à porta: "Olá, sou Hitler. Prazer em conhecer". É uma tentação, é uma sedução para ir. Essa é uma sedução direta do líder. Mas há também a sedução de uma ideologia. Desde o século 19, convivemos com essas ideologias poderosas que são como ditadores. Em certos momentos, se você se entrega a essa causa, então essa causa é o mesmo que a sua filosofia, e então você se junta a ela.

A MENTE NAUFRAGADA, OUTRO DE SEUS LIVROS, ABORDA A FIGURA DO REACIONÁRIO. COMO VOCÊ RELACIONA O LIVRO AO QUE OCORRE HOJE NO MUNDO?

Estamos vivendo um tempo de mudança, mas a questão é a velocidade da mudança. Zygmunt Bauman (sociólogo polonês, 1925-2017) tem um ponto de vista muito bom sobre a era líquida. Nas sociedades tradicionais, as instituições mudam, mas mudam lentamente. Em um tempo de vida normal, as instituições que existiam quando você nasceu não eram muito diferentes. Mas há um momento em que a vida institucional passa a ser mais curta do que o tempo de vida humana. Durante a nossa vida, vemos mudar nossa ideia de sexualidade, de casamento, todas essas coisas. As sociedades criam ordem. Não somos feitos, enquanto criaturas, para uma sociedade que gera desordem. Quando os computadores começaram, havia um manual. Essa era a Bíblia. Mas agora não temos ideia do que se passa com as máquinas. Temos instabilidade na economia, instabilidade causada pela onipresença do mundo inteiro pela internet, enfim, é profundamente desestabilizador para o tipo de criatura que somos. É compreensível que algumas pessoas queiram dizer: "Devagar, devagar".

O SENHOR ESTÁ ESCREVENDO UM LIVRO INTITULADO IGNORANCE AND BLISS (IGNORÂNCIA E BÊNÇÃO, EM LIVRE TRADUÇÃO). PODERIA FALAR SOBRE ELE?

É sobre a ideia de que quanto menos sabemos, mais felizes somos. Um pensamento ocidental tradicional é baseado na ideia socrática de que conhecimento é igual a virtude e igual a felicidade. Mas a tradição mais popular diz que não. Diz que não devemos tentar aprender muito porque isso nos fará infelizes. Que quando éramos mais simples, vivíamos de um jeito mais feliz. Então, é um livro sobre todas as diferentes formas pelas quais esse pensamento está lá e nos faz questionar duas ideias: inocência e curiosidade.

FÁBIO PRIKLADNICKI


15 DE DEZEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

VIVER MENOS

Os Estados Unidos são o país mais rico do mundo, mas sua expectativa de vida só caiu nos últimos anos
Dinheiro compra tudo, até o amor verdadeiro. Quando escreveu essa frase, Nelson Rodrigues, talvez o maior dramaturgo brasileiro do século 20, certamente não levou em conta a saúde humana, bem que uma vez perdido nem sempre o dinheiro permite recuperar (embora seja de grande valia).

Veja o caso dos Estados Unidos, o país mais rico do mundo. Em 2017, a expectativa média de vida ao nascer da população americana caiu pelo terceiro ano consecutivo. A expectativa do americano nascido em 2016 era a de viver em média 78,7 anos; número que em 2017 diminuiu para 78,6 anos.

A diminuição de um mês no intervalo de um ano pode não parecer exagerada, mas é altamente significativa. Primeiro, porque mostra ser continuada; depois, porque vai na contramão dos sucessivos aumentos anuais que a expectativa de vida ao nascer experimentou nos Estados Unidos desde a última queda, ocorrida no início da década de 1960.

Em 2016, a mortalidade geral na população americana foi de 728,8 para cada 100 mil habitantes; número que aumentou para 731,9 em 2017, diferença estatisticamente significante.

No entanto, as mortes por doenças cardiovasculares no país têm diminuído graças às medidas preventivas, aos métodos de diagnóstico e tratamento e à tecnologia que possibilita intervenções capazes de controlar o ritmo das batidas e a irrigação sanguínea do músculo cardíaco. Ao mesmo tempo, diminuíram as mortes por câncer, porque o diagnóstico é mais precoce, os tratamentos mais eficazes e a prevalência do tabagismo cai lenta, porém continuadamente. Se houve queda das duas principais causas de morte, como explicar a sucessão de reduções da expectativa de vida dos três últimos anos?

Os aumentos de mortalidade mais expressivos nos Estados Unidos ocorreram por suicídio, acidentes e overdoses de drogas ilícitas (principalmente por heroína e fentanil). Outras condições também contribuíram: acidentes vasculares cerebrais, gripe, pneumonia, Alzheimer e outras demências.

Na comparação com 2016, o número de suicídios aumentou 26% entre os homens e 53% entre as mulheres. No período de 2010 a 2016 o índice entre meninas adolescentes cresceu 70%. O índice atual de suicídios é de 14 para cada 100 mil habitantes (cerca da metade do índice de homicídios no Brasil).

Em 2017, as drogas ilícitas provocaram 70.237 mortes (número comparável ao de homicídios no Brasil). As que foram causadas por overdoses de heroína e fentanil aumentaram perto de 10%. Com a popularização do consumo de opioides sintéticos, como o fentanil, as mortes por overdose dessa classe de drogas aumentaram 45% em relação ao ano anterior.

Os americanos investem em saúde cerca de 17% do produto interno bruto do país. Como o PIB deles é de U$ 19 trilhões, o investimento total em saúde atinge a cifra de U$ 3,2 trilhões, ou seja, praticamente o PIB inteiro do Brasil.

Para justificar um investimento dessa ordem, quantos anos deveria viver o americano médio? Cem? 110?

DRAUZIO VARELLA