sábado, 16 de fevereiro de 2019


16 DE FEVEREIRO DE 2019
EDITORIAL

A ESTRATÉGIA DA PREVIDÊNCIA



Espera-se que o presidente da República possa corrigir equívocos e garantir as condições para o exame de um tema do qual depende o futuro de todos os aposentados

Se forem confirmadas, as primeiras linhas recém divulgadas sobre as pretensões do presidente Jair Bolsonaro em relação à reforma da Previdência são positivas, pois sinalizam para o necessário ajuste que poderá gerar um novo ciclo de crescimento do país. Depois de alcançar um meio-termo com as concepções do ministro da Economia, Paulo Guedes, o presidente da República ainda precisará garantir um enorme esforço de comunicação para defender a reforma e aprová-la na Câmara e no Senado. Se a sociedade não for devidamente conscientizada sobre a urgência das mudanças, ficará mais difícil assegurar apoio no Congresso.

Quando o ex-presidente Michel Temer apresentou seu projeto de reforma na área previdenciária, ficou claro que não havia uma estratégia para se contrapor às pressões de corporações que teriam interesses contrariados. Pior: o governo anterior falhou não apenas ao se comunicar, como fez um recuo atrás do outro. Com esse tipo de atitude, ajudou a desmoralizar o próprio projeto, que acabou como um morto-vivo após o escândalo da JBS e o aprofundamento acelerado da crise política.

Em consequência do agravamento da instabilidade, os desequilíbrios das contas públicas acabaram acentuando-se ainda mais, aumentando uma conta que será paga por toda a sociedade. Se o Congresso não descaracterizar o texto, cuja versão final está prometida para a próxima semana, a projeção de técnicos do Ministério da Economia é de que, em uma década, o ganho para os cofres públicos fique entre R$ 800 bilhões e R$ 1 trilhão.

Agora, espera-se que o presidente da República possa corrigir equívocos e garantir um cenário político propício para o exame de um tema do qual depende o futuro de todos os aposentados. A questão é que o atual governo ainda não conseguiu estabelecer uma estratégia adequada para explicar seus atos à população. Ao contrário, segue na atabalhoada batida de surtos e ataques via Twitter, como se ainda estivesse em campanha.

A reforma, seguramente, não é popular e não ecoa os discursos populistas que surgem da base do bolsonarismo. Ainda assim, independentemente de habilidades políticas, é uma exigência para impedir a catástrofe das contas públicas e o aprofundamento da crise econômica. Como transmitir uma mensagem adequada aos quatro cantos do país será o maior desafio do governo até agora.

  16 DE FEVEREIRO DE 2019
ARTIGO

VACA COM CHIFRE

O que dizer quando quem nos governa vê chifre de vaca em abóbora e ameaça guerrear?

A preservação da vida e da obra da Criação tem sido a preocupação fundamental do papa Francisco e, desde a encíclica Laudato Si', estendeu-se do catolicismo às igrejas luteranas tradicionais. A defesa do ambiente natural ganhou nova dimensão. Saltou dos discursos dos governantes à consciência dos indivíduos.

Agora, porém, o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, está preocupado com o sínodo dos bispos da região amazônica, a realizar-se em outubro em Roma, e o considera uma afronta à soberania do Brasil e ao governo Bolsonaro. "Nós não damos palpite sobre o deserto de Saara ou o Alasca", disse o ministro, que foi comandante militar da Amazônia brasileira e, hoje, é a figura mais influente do governo. Além de general, ocupa o ministério sucessor do SNI, o Serviço Nacional de Informações, onipresente na ditadura.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Augusto Heleno disse que o governo está preocupado com o sínodo e pretende "neutralizar" as conclusões que dele surjam. "Vamos entrar fundo nisso", afirmou.

O sínodo dos bispos é uma reunião interna da Igreja Católica e, no caso da Amazônia, estudará o exuberante bioma que se estende por nove países sul-americanos e que vem sendo degradado pela mineração e pelo desmatamento, numa contínua poluição da maior bacia hidrográfica do planeta.

- Por que isso afronta o governo Bolsonaro, se a reunião foi convocada em 2017? - perguntou dom Evaristo Spengler, bispo de Marajó e um dos relatores do sínodo, junto a prelados da Colômbia, Peru, Equador, Venezuela e demais países.

Já na campanha eleitoral, Bolsonaro tratou os defensores do meio ambiente como adversários ou inimigos. Agora, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi ao extremo. Chamou Chico Mendes, símbolo mundial da defesa da floresta (assassinado a mando de grileiros e desmatadores), de "manipulador e grileiro". Atacou a quem não pode se defender.

O candidato Bolsonaro recebeu apoio ostensivo das chamadas "novas igrejas pentecostais", sem considerá-lo intromissão no processo eleitoral. Agora, seu governo considera a preocupação dos católicos pela vida na Amazônia como "intromissão".

A alucinação de ver vaca com chifre em abóbora pode ser mais catastrófica do que todos os desastres que a cobiça irresponsável gerou nos últimos dias, de Brumadinho aos rapazes do Flamengo ou ao helicóptero que matou Ricardo Boechat.

FLÁVIO TAVARES

16 DE FEVEREIRO DE 2019
+ ECONOMIA

CRISE? QUE CRISE?

A unidade Porto Alegre do Veirano Advogados aumentou em 18% seu volume de negócios em 2018. Para este ano, a expectativa é de crescer de 15% a 20%, ancorada por demandas de fusões e aquisições.

Apesar do sobe e desce do dólar, o grupo Exicon, que atua em importação e exportação, aumentou em 23,9% seu faturamento em 2018, mais do que o dobro da meta que havia sido fixada. Nas vendas ao Exterior, o que mais cresceu foi madeira, com 56%.

A SEMANA QUE EU VI

Encrencas palacianas

A semana em que o governo começou a apresentar sua proposta de reforma da Previdência foi tensa no Planalto. Além da crise com o secretário-geral da Presidência, Gustavo Bebianno, foi preciso acalmar os ânimos de ruralistas com medidas que retiravam proteções comerciais e isenções tributárias.

O futuro do Banrisul

Dois dias depois de o Banrisul ter anunciado lucro de R$ 1 bilhão em 2018 e intenção de retomar crédito para projetos de longo prazo, o governador Eduardo Leite indicou o carioca Claudio Coutinho Mendes para a presidência do banco estadual. Para assumir, precisa ser aprovado pela Assembleia.

As prisões na Vale

Em depoimento na Câmara dos Deputados na quinta-feira, o presidente da Vale, Fábio Schvartsman, chamou atenção ao não se levantar para homenagear os mortos de Brumadinho. Na sexta, oito executivos da empresa foram presos, a maioria de gestão de risco.

MARTA SFREDO

16 DE FEVEREIRO DE 2019

INFORME ESPECIAL

O RIO GRANDE MAIS GRISALHO

Muita gente torce o nariz para o assunto, mas em nenhum outro lugar do Brasil a discussão em torno da reforma da Previdência é tão importante quanto no Rio Grande do Sul. O Estado vive um acelerado processo de envelhecimento da população, os casais têm cada vez menos filhos e mais de 40% dos trabalhadores se aposentam por tempo de serviço, bem antes dos 60 anos. Estamos nos tornando um Estado de idosos.

Não que isso seja ruim. Viver mais é uma conquista a ser celebrada. Mas, assim como o avanço da idade gera necessidade de mudanças na rotina, a evolução no perfil da sociedade gaúcha exige ações urgentes do poder público.

Tudo está acontecendo de forma muito rápida. Entre 2015 e 2030, o percentual de idosos no Estado vai passar de 15% para 24%. Ou seja, daqui uma década, uma em cada quatro pessoas que vive no RS terá mais de 60 anos - patamar igual ao da Áustria hoje.

Nessa mesma época, em 2029, a população já deve começar a diminuir.

No decorrer do século 20, o Rio Grande do Sul reduziu o número médio de filhos por mulher. Hoje, a taxa de 1,75% é uma das mais baixas do Brasil, igual à de países como Finlândia e Holanda e menor do que a de Noruega e Suécia.

A Alemanha, que enfrenta desafio semelhante ao nosso, já estuda facilitar a entrada de imigrantes não europeus. Uma pesquisa da Universidade de Coburg, recém publicada, estima que sejam necessários 146 mil trabalhadores de fora do continente para manter a economia alemã aquecida e Angela Merkel promete mudanças na legislação já para o ano que vem. Por aqui, talvez essa também seja a saída. Somos o Estado brasileiro que menos atrai gente de fora. Do jeito que está, a conta não fecha: o número menor de trabalhadores em atividade não será suficiente para financiar os benefícios dos que já se aposentaram.

A mudança exigirá mais investimento em saúde para atender a maior procura por serviços médicos, além da construção de asilos e maior foco em educação - só profissionais mais instruídos serão capazes de gerar mais renda.

Com tanto a fazer, não parece uma ideia ruim começar pela Previdência.

CADU CALDAS

sábado, 9 de fevereiro de 2019



09 DE FEVEREIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

O mundo cor-de-rosa

Nunca simpatizei muito com o cor-de-rosa e menos ainda com o rosinha bebê. Não gosto de unhas cor-de-rosa, batom cor-de-rosa nem mesmo rosas cor-de-rosa: prefiro as brancas. Acho que o rosa veste melhor os homens, há um charme no contraste com a virilidade, mas em mulher fica óbvio justamente por ser a "nossa cor".

Lembro quando, em 2007, fui à Itália lançar meu livro Divã, que aqui no Brasil teve uma capa cuja cor predominante era o fúcsia: não me opus, tinha caráter. Porém, a capa do Divã italiano (lá se chama Lettino) era um rosinha aguado, um rosinha que avisava que era "livro para moças". O estrago já estava feito, então não reclamei, mas percebendo meu desconforto, os editores justificaram dizendo que as mulheres são as maiores compradoras de livros naquele país (como em quase todos, imagino) e que segmentar e anunciar a obra como um romance "rosa" aumentaria as vendas, ainda que o conteúdo tivesse outros matizes. Agradeci com meu melhor sorriso amarelo.

Estando lá, soube também que em Riccione, no norte da Itália, havia sido inaugurada uma praia exclusiva para mulheres, conhecida como "praia cor-de-rosa". Os guarda-sóis, as boias salva-vidas, as toalhas e os demais acessórios eram todos em tons de rosa. Sem entrar no mérito do tédio monocromático, não entendi a razão desta praia privê. Segundo os idealizadores, era para que as mulheres pudessem tomar banho de sol sossegadas, sem precisar enfrentar o incômodo olhar masculino e sem serem importunadas por "latin lovers". Creio que não emplacou dois verões.

Nada contra um clube da luluzinha de vez em quando, mas não abro mão de conviver com os homens, de com eles bater papo, explorar uma livraria, jogar frescobol, assistir a um filme, trocar confidências - estou dizendo isso sem nenhuma malícia, sem sexo envolvido. Amigo homem é um luxo. Dá outra cor às relações.

Minha implicância com o cor-de-rosa talvez venha dessa sugestão de isolamento: quando falamos que a vida de alguém é cor-de-rosa, queremos dizer que é sem máculas, sem reveses - mas quem é que vive nesta bolha de perfeição? Há muito tempo que as mulheres não habitam mais um planeta cor-de-rosa, resguardadas como se ainda não tivessem saído da infância. Abandonamos o conto de fadas e pulamos pra vida real, com direito a todas as cores, incluindo o preto e o branco. Lutamos muito para ter um cotidiano com mais impacto e apelos visuais mais excitantes. O rosinha dos pés à cabeça é o uniforme feminino clássico e alguns estabelecimentos comerciais ainda impõem esta tonalidade às suas funcionárias. Por quê? Dá uma ideia de presídio feminino. De ninguém entra, ninguém sai. De acesso vetado. De confraria de eternas menininhas. Uma praia que, definitivamente, não é mais a nossa.

MARTHA MEDEIROS

09 DE FEVEREIRO DE 2019
PIANGERS

Velozes e sem rodinha

Encontrei um senhor no avião. Como vai? Tudo bem. Adoro seus textos, deixa eu te contar uma. Diga. Acho que um dos momentos mais inesquecíveis da minha relação com a minha filha foi quando ela tinha seis, sete anos, e eu a ensinei a andar de bicicleta. Ele continuou. Eu estava segurando no banquinho, até que soltei. Vi que ela continuou sem mim. Vi que ela estava seguindo pra longe, pra longe de mim. E comecei a chorar. Foi como uma despedida. Minha filha estava ganhando autonomia.

Lembrei dessa história por causa da semana passada, minha própria filha aprendeu a andar de bicicleta sem rodinha. Treinamos algumas vezes na garagem, depois na areia dura da praia. Ela caiu uma, duas vezes. Repetiu o que eu dizia: "Atleta é assim: se machuca e fica mais forte". Me mostrava os ralados do joelho. "Atleta é assim, né, pai?" É, filha. Pegou confiança para fazer curvas. Não precisa mais de um empurrão meu na hora de começar a pedalar. Pedala sozinha.

É um momento tão cheio de significado. Encontrar o equilíbrio. Andar mais rápido. Não precisar mais de empurrões. Superar os machucados. Ela me disse: "Parece mágica!". Como assim? "Parece que tem uma força mágica me equilibrando!" É mágico e cheio de emoção. Uma amiga me disse: sabe qual a minha maior lembrança no meu pai? Ele me ensinando a andar de bicicleta. Meu medo, ansiedade, o cuidado dele, a felicidade quando consegui. Eu seguindo em frente sem olhar pra trás.

Não tive pai. Por muitos anos, eu mesmo não sabia andar de bicicleta. Um amigo me emprestou uma BMX, comecei a pedalar. Ganhei minha primeira bike já adolescente. Tinha três marchas. Agora, todos aqui em casa têm suas próprias magrelas. Esses dias, saímos pra passear. Nunca imaginei que estaríamos todos juntos, pedalando em uma manhã de domingo. Brisa no rosto. Sorriso constante. Parece mágica.

PIANGERS


09 DE FEVEREIRO DE 2019
CARPINEJAR

A delícia de voltar de férias

Todas as férias são duas férias para mim. Sair de casa e se adaptar a um hotel e depois voltar para casa e reconhecer o luxo do meu cantinho.

Ir e regressar são duas alegrias. Não sei o que é melhor: a aventura do desconhecido ou o retorno cheio de nostalgia.

É um comichão infantil pisar de novo no lar após um mês fora. A impressão é de que comprei um apartamento.

Quando volto para a rotina, elogio a decoração que eu mesmo fiz. Eu me pego reverenciando o que sempre tive: soprando o pó de objetos de decoração, aguando plantinhas, passeando pelos quadros dos corredores como se fosse um museu.

Eu me encho de esperança. A distância refaz a luminosidade do apego. Mexo nas gavetas e derrubo os cabides, vem a vontade de usar roupas que faz meses que não ponho, de perfumar os ambientes, de comprar sabonetes de melancia.

Da mesma forma em que há uma gincana para realizar tudo de uma vez nas férias, tudo num único dia e emenda-se praia, piscina, bar, restaurante, passeio de barco e trilha, eu quero esgotar as possibilidades caseiras na minha repatriação.

É o equivalente a receber a chave de um shopping para levar o que desejar. Com a diferença de que não gastarei um pila. Compro com os olhos o que já é meu.

Preciso matar a saudade da minha cama. E durmo como se estivesse no berço. O travesseiro vai me acariciando e não me permite levantar. O dia é noite com o blecaute e perco a noção da hora. Ligo o ar no mínimo do mínimo e me cubro de uma avalanche de edredons. Invento um inverno no verão, deliciosamente.

Preciso matar a saudade do meu escritório. E escrevo como se não houvesse almoço.

Preciso matar a saudade da minha varanda. E tomo chimarrão até a bexiga pedir licença.

Preciso matar a saudade de ler jornais no sofá. E só deixo os cadernos de lado quando os dedos estiverem preteados.

Preciso matar a saudade da televisão grande. E emendo séries e filmes como um viciado.

Abraço a geladeira, cansado de me agachar a um frigobar. Não existe mais o que temer, posso consumir à vontade os produtos da prateleira sem me preocupar com a fatura no check-out.

Todas as férias são duas férias para mim. Não sou capaz de concluir qual contentamento é mais insaciável: passear lá fora ou passear aqui dentro.

CARPINEJAR

09 DE FEVEREIRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

FORTES, SÓ QUE NÃO

A American Psychological Association (APA) lançou um texto com orientações especiais para práticas com homens e meninos*. Em um primeiro olhar, por que atenções especiais se o mundo é masculino?

Stephanie Pappas lembra** que 95,2% dos responsáveis pelas 500 maiores empresas monitoradas pela revista Fortune são homens. O Congresso dos EUA (legislação iniciada em 2017) tem apenas 19% de mulheres em sua composição. Definitivamente, ser homem não é algo a ser protegido ou amparado por cuidados especiais. Há pés de barro no colosso de bronze.

Cerca de 90% de todos os homicídios nos EUA são praticados por homens. Nós somos assassinos e também vítimas: 77% dos que são mortos são do sexo masculino. Há 3,5 vezes mais possibilidades de um homem se matar do que uma mulher. Os homens também vivem menos do que as mulheres. Dominam o mundo e são vítimas dele? Existe algo de podre no reino da Dinamarca.

Li o relatório da APA e cheguei à conclusão oposta à do meu amigo Luiz Felipe Pondé. Os especialistas da APA não querem "curar" alguém da sua heterossexualidade. A identidade sexual profunda resiste a mudanças e tudo já foi tentado, da fogueira ao tratamento hormonal, da lavagem cerebral aos choques de terapias agressivas. O resultado mais comum tem sido o suicídio ou a farsa. O mais importante é que somos mais complexos do que os planos ideais de sociedade. Refletir sobre isso pode ser importante para a vida dos homens.

Como eu entendi o relatório? Determinadas concepções do masculino podem ser ruins para homens também. Os meninos e os homens adultos estão lançando um grito de socorro e estão morrendo em números assustadores. A violência é antiga, os desafios são novos.

Em momentos de tantas opiniões de senso comum, é bom ouvir quem pesquisa de forma sistemática. O relatório dos profissionais dos EUA é um bom começo. Não vou desenvolver os temas tocados no texto da APA. Cada um deve ler e formar suas conclusões. Imagino que, a partir ou além dele, devemos entender que não existem modelos fixos. As chamadas "múltiplas masculinidades" não são, exatamente, um convite para que se vista de pink todo menino, mas ensinar que o modelo cowboy do Velho Oeste, com andar à John Wayne, não é o único. Trabalhar com "essências" costuma causar frustração, dado o aleatório da espécie humana. Exemplo? Eu nada sei sobre dança e sou de uma quase total incapacidade para a coordenação exigente do ato de bailar. Porém, imagino que o estudo de dança exija tanta concentração, disciplina física, dor e capacidade de se superar quanto fazer jiu-jítsu. Um seria mais "masculino" do que o outro? 

A liderança de um chefe de cozinha não é menos épica do que a liderança de um engenheiro de uma equipe. Ambos trabalham com hierarquias, conhecimentos técnicos, maestria na resistência de materiais, cálculos de possibilidades, pensamento racional e objetivo. Penso nas múltiplas masculinidades como o projeto em que pais e mães e todos os responsáveis pela educação de meninos se empenhem no projeto da felicidade e do pleno potencial de cada um e não em fixação de modelos prévios. Ensinar que eu tenho liberdade de escolha e que eu não preciso agradar ao mundo, mas procurar nos meus gostos e desejos o prazer do esforço e da busca dos desafios internos e externos do aperfeiçoamento é algo muito forte e importante para estimular em todo o processo educativo. 

Educar crianças é um gesto complexo porque implica estar minimamente resolvido consigo mesmo, ser capaz de educar não para me agradar ou para melhorar o mundo que eu suponho que tenha sido meu. Educar é um ato de generosidade porque passa por cima das minhas convicções subjetivas e se abre para o novo e surpreendente de cada ser humano filho/aluno a minha frente. "Na minha época era assim" é um dado melancólico que fala das minhas dores e reinvenções de memória, nunca poderia ser um ponto de partida para um projeto de futuro.

Sim, cada pai e cada mãe têm valores e a família é um nicho privilegiado para que sejam transmitidos. Porém, o valor maior é sempre saber que o "sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado" (Marcos 2,27). A crítica de Jesus é a quem coloca a norma como o objetivo e não como instrumento de se chegar além de si rumo ao divino. Todo valor, todo, sem exceção, deve sempre ser questionado na sua possibilidade de fazer cada ser humano crescer, aperfeiçoar seu caráter, atingir felicidade e capacidade de compreensão de si e do mundo. O objetivo não é "ficar bem na foto", mas saber em quais fotos e com quem desejamos, de fato, estar. Isso, inclusive, varia ao longo da vida. Nem as estrelas são eternas.

Os meninos, em particular, são apresentados a normas pétreas sobre o que é ser um homem e os dados sobre violência parecem indicar que os modelos deveriam ser repensados. O problema nem está tanto nas crianças, nos meninos em particular, mas em como a minha geração foi criada com concepções rígidas sobre tudo e tem muita dificuldade em trabalhar com mudanças. Assim, a educação passa a ser um modelo de corrigir minhas memórias e não uma ideia específica sobre algo inteiramente novo, irrepetível, especial e distinto de você: seu filho. 

É muito complicado não fazer do filho/aluno espelho do meu medo ou da minha frustração. Trabalhar com os meninos como seres diferentes do que eu fui é uma maneira de preservar, talvez, sua vida no futuro. Ser homem, hoje, está mais perigoso do que nunca, mortal até. Está na hora de repensar a educação masculina para que os homens sobrevivam. A força deve vir da felicidade, e não do roteiro social. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


09 DE FEVEREIRO DE 2019
COM A PALAVRA

"Nosso nível de tolerância está muito comprometido" - Entrevista - Ana Maria Rossi, psicóloga

Ana Maria Rossi padeceu na infância dos males nos quais virou especialista: estresse e ansiedade. Cresceu ouvindo "relaxa", "descansa". Jornalista e psicóloga que morou por 16 anos nos Estados Unidos, onde se apaixonou pelo tema que a tirou da carreira em comunicação social, a porto-alegrense aprendeu técnicas e estratégias para ajudar ela própria e seus pacientes a transformar o estresse potencialmente prejudicial em algo positivo.

- Se me incomodo com alguma coisa, penso: "Você vai se lembrar disso daqui uma semana? Não? Então rola". Aprendo batendo com a cara no chão. Queremos aprender a selecionar as coisas que vão nos incomodar. Tem aqueles que estão super-reagindo a tudo: ao trânsito, à fila, à pessoa que não os olhou. Temos que aprender a "surfar" pelas adversidades - disse Ana Maria durante esta entrevista, realizada em seu consultório, no bairro Moinhos de Vento, na Capital.

A ESPECIALISTA EM ESTRESSE E ANSIEDADE NÃO TEM CELULAR. POR QUÊ?

Especialista em estresse porque eu sempre fui uma pessoa muito estressada. Aliás, eu sou muito estressada. O estresse é parte da personalidade, das reações da pessoa. Por muito tempo, fiquei incomodada. Pensava: meus pais poderiam ter me feito menos ansiosa, menos estressada, facilitaria a minha vida. Eu era uma pessoa como o peru. Só que o peru morre de véspera, e eu morria uma semana antes. Era tão intensa em tudo que, quando chegava a me deparar com a situação, já estava tão desgastada que, mesmo que fosse uma situação positiva, nem aproveitava. Sempre vivendo no futuro, como uma boa pessoa ansiosa, que está sempre lá na frente. Hoje em dia, estou muito grata de ter nascido tão estressada e tão ansiosa, porque isso me deu a possibilidade de me aprofundar, de mudar radicalmente o meu estilo de vida - de outra maneira, eu já não estaria mais nem aqui - e de ajudar muitas pessoas.

Aprendi estratégias e técnicas que me ajudam a transformar esse estresse potencialmente prejudicial em algo muito positivo. Aprendi os meus limites. Hoje sei o quanto posso me puxar até começar a ter sintomas. Não ter celular é parte de estabelecer esses limites. Trabalho uma média de 12 a 14 horas aqui (no consultório), é muito mais a minha casa do que a minha casa, com três telefones, os três com secretária eletrônica. Em casa, também tenho telefone. Não trabalho com emergência. Por que vou querer um telefone celular? Essa é a razão de não ter. Quando não estou disponível para atender ao telefone, não quero ser interrompida. Nunca tive celular. É uma questão de escolha, de filosofia. Até o momento, não precisei ter. Se houver necessidade, compro.

O CELULAR É UM GRANDE AGENTE ESTRESSOR, NÃO?

As pessoas, muitas vezes, tendem a ter a sensação de que são imprescindíveis, de que, se elas não fizerem alguma coisa naquele momento, o mundo vai acabar. E também há a questão de se tornarem dependentes do celular. Tem aquela coisa de "alguém está me ligando, tenho que atender agora!". Me corrói, me dói mesmo, olhar, em um restaurante, por exemplo, a pessoa do meu lado ao telefone. Às vezes, pelas expressões, pelo jeito, você nota que aquilo está sendo altamente prejudicial para ela. Fico pensando: será que essa conversa seria necessária durante o almoço? Às vezes, num momento de lazer, em vez de aproveitar a companhia, estão falando ao celular ou tuitando.

O QUE É ESTRESSE?

Estresse, para nós, é qualquer situação que requer adaptação da pessoa. Por exemplo, neste momento, estou estressada, querendo colocar 69 anos de vida em uma cápsula para lhe passar, de forma que seja interessante para você.

QUALQUER MÍNIMA ALTERAÇÃO É ESTRESSANTE, ENTÃO?

Com certeza. O tempo, qualquer coisa. Chamamos de estressores os geradores de estresse. Tanto o positivo quanto o negativo podem causar até a morte. Aquele torcedor que vai ao estádio e quando o time precisa muito fazer um gol e faz, ele infarta. Claro que o negativo tem uma repercussão maior.

AS DISCUSSÕES INCANDESCENTES DO PERÍODO ELEITORAL, NO ANO PASSADO, QUE PROVOCARAM TANTOS DESENTENDIMENTOS E ROMPIMENTOS, ESTÃO SENDO RETOMADAS?

Nunca tinha visto algo assim, me surpreendeu. Para algumas pessoas, o relacionamento já estava pesando, e esse foi um excelente motivo para colocar um ponto final, mas a tendência é de que a animosidade fosse diminuindo. Só que, no geral, acho que as pessoas estão mais estressadas. Me parece que o copo está quase cheio e, com qualquer coisa, começa a derramar. Nosso nível de tolerância está muito comprometido. A incerteza, a insegurança sobre aonde a gente está indo, a mudança no estilo de vida em termos de poder e status, o ritmo acelerado... Também as mudanças tecnológicas têm mexido muito com as pessoas. "Recebi um WhatsApp e tenho que responder agora!" Mostrar-se presente, ativo, causa um desgaste bárbaro.

QUANTO ÀS BRIGAS, É BOM FAZER UMA FAXINA AFETIVA DE VEZ EM QUANDO? HÁ PESSOAS MUITO NEGATIVAS E SUGADORAS.

Sim, são as relações tóxicas. E, principalmente, quando você convive com a pessoa, seja companheiro ou companheira. Tem de olhar custo e benefício. Muitas vezes a pessoa diz: "Ah, mas tem a questão econômica". Mas aí você precisa ver quanto vale a sua saúde. Coloco tudo em balanças. Me envolvo com aquelas coisas que, para mim, têm importância. Se me incomodo com alguma coisa, imediatamente penso: "Você vai se lembrar disso daqui a uma semana? Não? Então rola". Aprendo batendo com a cara no chão. Queremos aprender a selecionar as coisas que vão nos incomodar. Tem aqueles que estão super-reagindo a tudo: ao trânsito, à fila, à pessoa que não os olhou. Temos que aprender a "surfar" pelas adversidades. 

A base da minha filosofia de vida é a expectativa. O que nos faz feliz ou infeliz não são as coisas que acontecem lá fora, é isso aqui (aponta para a própria cabeça). Só que uma pessoa sem expectativa não tem objetivo. Agora, quando a expectativa não se confirma, e a pessoa não tem flexibilidade e criatividade para criar opções, ela se mata. É um processo suicida. Desenvolver a criatividade e a flexibilidade é extremamente importante em qualquer fase da vida. Se uma pessoa fica focando naquilo que não tem, ela vai se sentir miserável o tempo inteiro. Então, tem de focar naquilo que ela tem. Claro que quero estar consciente daquilo que não quero, daquilo que não faço tão bem, daquilo que posso melhorar para poder progredir, mas, se eu focar, vou me sentir um lixo. Somos o resultado daquilo que pensamos.

O ESTRESSE É CUMULATIVO, AFETA O SISTEMA IMUNOLÓGICO E FAZ ADOECER. DE QUE FORMA?

Temos três níveis: sinais, sintomas e doença. Se tem alguma coisa que me incomoda e eu me tensiono, daqui a pouco meus músculos vão ficar doendo, mas daí relaxo e passa. Isso é um sinal. Mas, se eu ficar fazendo isso por períodos prolongados ou frequentes, eventualmente vou ter tensão muscular. Se a pessoa não se liga no sinal, ela desenvolve o sintoma. Aí talvez eu comece a ter um pouco de dor de cabeça... Infelizmente, a nossa sociedade ocidental - e, pior ainda, a oriental está entrando nesse modo -, em vez de parar, fazer um exame de consciência e mudar, o que faz? Comprimido. Tomo um relaxante muscular e "dê-lhe pau". Então, aquela dor, aquele desconforto eventual podem se tornar uma dor. Se eu não fizer algo a respeito, posso desenvolver uma fibromialgia ou algum outro problema. Mas o estresse não causa a doença, ele é um gatilho direto ou indireto para algumas doenças devido a dois fatores: se essas adaptações (a coisas negativas) são muito frequentes ou muito prolongadas. Das duas, a prolongada é a pior. Vou aceitando, me medicando, me medicando e perpetuando isso.

É POSSÍVEL SER FELIZ SEM SATISFAÇÃO NO TRABALHO? OU NA VIDA AMOROSA? OU SEJA, TENDO SATISFAÇÃO EM UMA ESFERA DA VIDA E NÃO EM OUTRA. É MUITO DIFÍCIL ESTAR TUDO BEM AO MESMO TEMPO.

Com certeza. Se o trabalho está bom e em casa está tudo bem, existe uma troca. Se em casa as coisas estão mal e no trabalho, estão bem, posso começar a compensar trabalhando ainda mais e virar uma workaholic. Chego em casa e, em vez de ouvir "que legal que você chegou", ouço: "Pô, está chegando tarde de novo! Por que já não fica no trabalho?". Aí, no dia seguinte, a pessoa chega um pouquinho mais tarde. E, um dia, ela chega em casa e não tem mais família. Um cliente chorou na minha frente: "Onde eu errei?". Ele estava tão imbuído no trabalho que não se deu conta de que o relacionamento dele já não existia. Uma pessoa assertiva diz: "Eu sei que tenho chegado em casa afobada, sem muita paciência, às vezes você quer me contar uma coisa e eu já dou uma solução, não o deixo falar". Se você fica apontando defeitos e botando a culpa no outro, aí já começou a conversa terminando. Tem de achar sempre o que há de positivo. E, se não houver nada de positivo, pede as contas e vai embora, porque aí o adoecimento é uma questão de tempo. No Brasil, 32% da população economicamente ativa sofrem de burnout, que é um nível exacerbado de estresse, sempre relacionado ao trabalho.

O burnout pode levar ao suicídio, é uma rua sem saída, se não tiver um tratamento adequado. Diversos fatores contribuem: sobrecarga de trabalho, ser exigido a realizar tarefas que não pode, notar que não é tratado com justiça, falta de reconhecimento. Essas pessoas, semanalmente, trabalham em média cinco horas a menos do que as outras. Na verdade, elas não têm nem condições de trabalhar, mas elas vão se arrastando, principalmente numa época de tanta instabilidade. Desses 32%, 96% praticam o presenteísmo: você vê a casca do ovo mas não tem nada dentro; as luzes estão acesas, mas não tem ninguém em casa. Num primeiro momento, os colegas se recrutam para ajudar, mas daí se sobrecarregam, porque trabalham mais. Isso vai virando ressentimento e raiva. Aí essa pessoa começa a ser alienada, e isso, para ela, é devastador.

BANALIZAMOS A PALAVRA ESTRESSE? TODO MUNDO SE DIZ ESTRESSADO. É QUE NEM CORRERIA: TODO MUNDO ESTÁ NA CORRERIA. TUDO BEM? NA CORRERIA!

Como se fosse bonito, né?

BANALIZAMOS PORQUE ESTAMOS ESTRESSADOS OU PORQUE NÃO SABEMOS USAR ESSE TERMO?

Acho que por tudo isso, mas principalmente porque temos usado o estresse como uma forma de verbalizar emoções. Por exemplo, estou chegando à parada e a lotação passou. Em vez de dizer "estou frustrada", o que eu digo? "Estou estressada!" Ouço crianças que vêm ao dentista aqui no prédio dizendo: "Ai, como estou estressado hoje". Às vezes pergunto por quê. "A professora só dizia não!" O que o piá vai saber de estresse? Ele deve ter ouvido alguém falar isso. O estresse ficou banalizado e prostituído. Ele significa todas as coisas. E, por significar todas as coisas, perdeu o sentido.

DEIXAR DE LADO O QUE PODE SER RESOLVIDO NO DIA SEGUINTE É MUITO DIFÍCIL. DEPENDE DE TREINO?

Claro. Disciplina mental. Não tenho nenhum dom, nada de sobrenatural. É bê-á-bá, é treino. Aprendi a conversar comigo. Estava com uma preocupação recentemente e resolvi deixar para o dia seguinte. Desliguei o computador e fui para casa fazer minhas coisas. Pensei naquilo. Acordei à noite. "Dorme, amanhã a gente vai lidar com isso."

OU SEJA, MESMO COM TODO O TREINO VOCÊ AINDA FALHA DE VEZ EM QUANDO.

Claro. Sou humana. E tem pensamentos que são mais obsessivos, que tenho mais dificuldade em afastar. Aí tenho duas maneiras de lidar com isso. Uma delas é fazer uma postura de equilíbrio da ioga. Se não foco na postura, com uma perna só, eu caio. Fico alguns segundos, um minuto. Quando o pensamento volta, faço de novo. Também funciona, para mim, pelo menos, a música. Mentalmente, tenho de cantar uma música inteira sem deixar aquele pensamento ocorrer. Se o pensamento ocorrer, tenho que voltar para o início da música. Daqui a pouco, já mudo o foco.


O QUE A ESTRESSA, GERALMENTE?


Não tem nada que me "estreeeeesse". É uma questão de expectativas. Estou selecionando melhor as minhas. Aprendi a avaliar as situações. O que tem de mais importante é minha paz de espírito. E, hoje em dia, é assim: não importa quem for o cliente, se não sinto uma energia positiva, indico outra pessoa. Adoro trabalhar com meus clientes. Não é que eu esteja buscando cliente fácil. Estou muito, muito light. Me sinto tão feliz. Às vezes me questiono: será que não estou tirando a felicidade de outra pessoa? (Risos.) Normalmente saio do consultório cantando, mentalmente. Às vezes, noto que não estou cantando. Aí penso no que está me incomodando e faço uma correção de percurso.

COMO É A SUA ROTINA, FORA O TRABALHO?

Faço meditação transcendental, aquela que usa um mantra, duas vezes por dia, 20 minutos cada sessão, sentada, sem encosto para a cabeça. Faço ioga todos os dias. Todos os dias, tenho alguma atividade física - academia, pilates, caminhada. Esse relaxamento, vou colocando na "poupança". Se tenho alguma situação de estresse, faço resgate automático. Confesso que não tenho me deparado com situações estressantes. E a respiração é a nossa âncora para lidar com o estresse.

COMO SE RESPIRA DIREITO? ME ENSINA?

A menos que a criança nasça com algum problema respiratório, nós nascemos respirando com grande eficiência. Barriguinha para cima, barriguinha para baixo, movimento abdominal. À medida que vamos nos tornando adultos, usamos a respiração para trancar nossas emoções. "Ai, tô com raiva dessa pessoa!" Essa respiração, chamada de abdominal, diafragmática, do bebê, profunda ou do ioga, quer dizer que estamos mexendo a parte inferior dos pulmões. 

Na idade adulta, e você pode observar, a maior parte das pessoas faz a respiração torácica, com a parte superior dos pulmões, que só mexe aqui (na altura do peito). Quando a pessoa está fazendo a respiração abdominal, normalmente ela mexe um pouquinho os ombros também. Se você se reeducar, quer fazer a respiração abdominal 24 horas por dia. A respiração torácica é limitante: pouco oxigênio, pouca vascularização na parte inferior. Pode resultar em câimbra, dormência, formigamento e aquela sensação de cansaço, de falta de energia.


A RESPIRAÇÃO ABDOMINAL É ÚTIL TAMBÉM EM SITUAÇÕES DE ESTRESSE, NÃO É?


Sim. Em qualquer situação. A respiração é a âncora. Não queremos respirar com eficiência apenas quando estamos relaxando. Queremos respirar dessa maneira 24 horas por dia. Quando estou fazendo para relaxar, estou focando na respiração. Estou conversando com você e fazendo a respiração abdominal. Fisiologicamente, a respiração é a mesma. Mentalmente é que ela muda. Se você a iniciar em um momento de alta tensão, provavelmente vai ser ineficiente, porque você já vai estar toda tensa. É que nem em uma prova: você não vai estudar no momento da prova, vai estudar antes. 

Uma pessoa muito tensa pode sentir desconforto, então tem que ir fazendo devagarinho. O ideal é conseguir fazer essa respiração diversas vezes ao dia, concentrada, e principalmente quando ela não precisa. Quando me dão uma cortada no trânsito, em vez de ficar toda tensa, respiro corretamente. Não requer nenhum esforço. Disciplina mental se começa com as pequenas coisas. Você vai começando a aprender as manhas e os atalhos que a mente usa e muitas vezes a gente não percebe.

O SEGREDO É ENTENDER A MENTE.

E ter sempre disponível o seu controle remoto. Se você está com um pensamento disfuncional, que o está prejudicando, use o controle remoto. Troque. Mas, se for alguma coisa que dependa de solução, não engavete para sempre, porque vai voltar no momento pior possível, de vulnerabilidade. Minha sugestão é: se há alguma situação que a pessoa não consiga resolver naquele momento, pegue um livro, converse com alguém, busque ajuda profissional e converse consigo mesmo: "Sei que você está aí e vou lidar com você, mas me dá um tempo". E daí procure se instrumentar para lidar com a situação. Aconteceu uma coisa interessante há pouco. Uma cliente tinha uma respiração artificial. Começamos a praticar, ela começou a chorar e desengavetou um segredo que nunca havia contado para ninguém. Pelo que ela disse, estava cheio de pó. A respiração, fisiologicamente, ajuda a oxigenar todo o organismo e também nos coloca em contato com as nossas emoções.

LARISSA ROSO

09 DE FEVEREIRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

CADEIAS E DEMAGOGIA

Políticos precisam ouvir quem estuda a questão e quem está em contato diário com detentos
O sistema prisional talvez seja a área da administração em que os políticos mais falam e fazem besteiras. Frases como "lugar de bandido é na cadeia", "tem que acabar com benefícios que encurtam penas", "vamos reduzir a maioridade penal" e, principalmente, "preso precisa trabalhar para pagar os custos da prisão" soam como música aos ouvidos da sociedade acuada pela violência.

É compreensível que a maioria esteja de acordo com essas propostas. Dos que se candidatam para governar os Estados e o país, entretanto, esperaríamos mais responsabilidade para não criar expectativas fantasiosas e evitar políticas inexequíveis num campo tão sensível.

Antes que os "idiotas da internet" tirem conclusões apressadas, deixo claro que não gosto nem sou defensor de bandidos, que também quero ver preso o assaltante que rouba e mata e que, em caso de conflito violento entre bandidos e policiais ou agentes penitenciários, só não fico do lado dos agentes da lei se estes também forem criminosos.

Em 1989, quando comecei a atender doentes nas cadeias, havia no Brasil cerca de 90 mil presos. Hoje, temos ao redor de 800 mil, a terceira maior população carcerária do mundo. Não é verdade que prendemos pouco. O problema é que mandamos para trás das grades pequenos contraventores e deixamos em liberdade facínoras com dezenas de mortes nas costas.

Como nos últimos 30 anos encarceramos quase nove vezes mais, e as cidades brasileiras se tornaram muito mais perigosas, não é preciso ser criminalista com pós-graduação na Sorbonne para concluir: prender tira o ladrão da rua, mas não reduz a violência urbana.

A pior consequência do aprisionamento em massa é a superpopulação. Os que não aceitam o argumento de que a pena de um condenado deve ser a privação da liberdade, não a imposição de condições desumanas, precisam entender que o castigo das celas apinhadas tem consequências graves para quem está do lado de fora.

Quando trancamos 30 homens num xadrez com capacidade para receber menos da metade, como acontece em quase a todos os presídios do país, os agentes penitenciários perdem a condição de garantir a segurança no interior das celas. Como o poder é um espaço arbitrário que jamais fica vazio, o crime organizado assume o controle e impõe suas leis.

Diante dessa realidade, uma autoridade vir a público para dizer que fará os presos trabalharem para compensar os gastos do Estado é piada de mau gosto. Primeiro, porque na construção das cadeias de hoje não foram projetados espaços para postos de trabalho; depois, porque é impossível trabalhar onde não existe emprego.

Desde o antigo Carandiru, ouço diretores de presídios reclamarem da falta de empresas dispostas a instalar oficinas nas dependências das cadeias, a despeito das vantagens financeiras e tributárias que o governo oferece. Quer dizer, negamos acesso ao trabalho e nos queixamos de que os vagabundos consomem nosso dinheiro na ociosidade.

Embora tenha conhecido detentos que se vangloriaram de nunca ter trabalhado, eles são exceções. O que a sociedade não sabe é que os presos são os principais interessados em cumprir pena trabalhando: ajuda a passar as horas que se arrastam em dias intermináveis, permite cobrir os gastos pessoais, enviar dinheiro para a família e usufruir o benefício da lei que reduz um dia de condenação para cada três dias trabalhados.

A questão prisional é muito grave para ficar nas mãos de aprendizes de feiticeiro sem noção da complexidade do sistema penitenciário, que repetem platitudes com ares de grande sabedoria e põem em prática medidas simplistas sem ouvir os que estão em contato diário com os encarcerados nem os estudiosos do problema.

A era das facções que comandam o crime de dentro dos presídios, capazes de dar ordens para vandalizar cidades, disseminar a violência pelo país inteiro e estabelecer conexões internacionais, requer dirigentes com experiência em segurança pública, que conheçam as condições de funcionamento das cadeias brasileiras.

O combate ao crime organizado exige inteligência, entrosamento entre as polícias, centralização das informações num cadastro nacional, simplificação da burocracia e, acima de tudo, coragem do Judiciário para criar penas alternativas que reduzam a população carcerária. Palpites demagógicos de políticos despreparados são dispensáveis.

DRAUZIO VARELLA

09 DE FEVEREIRO DE 2019
JJ CAMARGO

A VELHICE, EM NOVA VERSÃO


O AUMENTO DA EXPECTATIVA DE VIDA IMPLICA EM REPENSAR NOSSA TRAJETÓRIA
Confirmadas as previsões de que, de cada três nascidos nesta década, dois chegarão aos 120 anos, precisamos discutir algumas mudanças. Se teremos tanto tempo para curtir a velhice, podemos começar negociando um alongamento da infância, porque ela não poderá ser interrompida aos 8-10 anos e representar menos de 10% do tempo vivido. Uns 25 anos já estaria bem, e, claro, com a garantia de que ninguém seria considerado abobado só porque brinca o dia inteiro, e, de barba cerrada, ainda tenha medo do escuro. Seriam consideradas apenas "coisas da idade".

Como as pessoas deverão seguir trabalhando até, imagino, uns cem anos, não haverá necessidade de começar muito cedo, porque não faltará tempo de serviço para a aposentadoria. Sendo assim, a escolha profissional poderá ser empurrada por umas duas décadas, sem ansiedade. E, com tanto tempo para escolher a profissão, é pouco provável que erremos o caminho e tornemo-nos um armazém de ressentimentos, essa tragédia tão comum nos tempos atuais. 

Além disso, se não der certo na primeira tentativa, teremos tempo para recomeçar e, quando finalmente acertarmos o que fazer com paixão, ganharemos passe livre para a conquista de crescimento, notoriedade, respeito e gratidão, esses antídotos perfeitos para intolerância, inveja, despeito e depreciação, miudezas que dão aos nossos desafetos (é certo que eles continuarão existindo) a ilusão de também estarem vivendo.

Mais tempo disponível reduzirá a pressa de chegar e a compulsão de fazer logo, e viveremos sem cobranças nem remorsos. Bem adiante, talvez sejamos confrontados com algum sentimento de culpa, ingrediente que agora só incorporamos na maturidade, quando percebemos que poderíamos ter sido melhores, mas nos consolaremos com a justificativa de que não precisava ser tão difícil.

O que certamente nos pressionará para mantermos os prazos antigos será a biologia da mulher, pelo menos se ela exigir que sua prole seja gerada por ela mesma, mas é provável que só as antiquadas insistirão com essa prática arcaica, porque, com alguns óvulos congelados, elas poderão dar a eles o destino que quiserem.

Tenho dificuldade de imaginar que, com a chegada dos filhos, vá ser muito diferente do que é atualmente. Talvez com menos ansiedade quando eles repetirem os mesmo erros que cometemos, porque haverá mais tempo para consertá-los, mas provavelmente ser pai continuará significando apenas estar ao alcance se alguma coisa der errado, e então assumir, sem reclamar, a condição de reserva técnica qualificada, cumprindo um daqueles itens escritos em letra miúda no contrato amoroso de quem se dispôs a espalhar genes pelo mundo.

Algumas coisas deverão sinalizar a chegada da velhice, protelada, mas inevitável, como, por exemplo, a comissária de voo no aeroporto: "Atenção, passageiros, daremos início ao embarque dando atendimento preferencial aos portadores de dificuldade de locomoção, aos com mais de 110 anos e àqueles que estão neste salão mas não têm certeza do destino".

E, então, empilhados os invernos, chegará o momento da recapitulação, esse inventário da vida que será como fizemos por merecer. E, sem aviso, do nada, num dia como outro qualquer, nos descobriremos velhos, mesmo que esse diagnóstico possa ser muito subjetivo e cada um tenha lá o seu jeito de se sentir assim. 

Temo que o começo do fim se anunciará quando percebermos que não há mais tempo para mudar as coisas realmente importantes. O intervalo entre o dia dessa descoberta e a morte se chamará, como sempre, velhice. E não importa quantos anos tenhamos vivido. Só contará o que tenhamos por viver. E isso, para conservar o mistério, nunca saberemos.

JJ CAMARGO


09 DE FEVEREIRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Ai de ti, Brasil!

Rubem Braga morou em Porto Alegre. É um galardão da cidade. O Velho Braga, como chamava a si mesmo, é um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, talvez o maior, porque alcançou refinamento de estilo escrevendo apenas crônicas.

Quando se mudou para Porto Alegre, o Velho Braga não era velho: era um rapagão de 26 anos de idade. Veio fugido de um amor atormentado do Rio. Mais especificamente, de um marido atormentado do Rio.

Rubem Braga era um homem que se dedicava às mulheres. A uma mais do que todas: a atriz Tônia Carrero, considerada por seus contemporâneos como a mulher mais linda do Brasil, quiçá do planeta. Rubem a conheceu em Paris. Era casada, mas esses pormenores jamais o intimidaram. Ele gostava de lhe dizer: "Tenho muita amizade pelo seu joelho esquerdo". Brincadeiras neste tom, somadas a textos apaixonados, urdidos com sua delicadeza característica, foram seduzindo Tônia, até que ela cedeu.

O amor durou pelo resto da vida, mas eles jamais se casaram. Rubem Braga escreveu quilos de crônicas para Tônia. Escreveu para várias outras, também, mas mais para ela. Numa, de que gosto em especial, colocou-lhe o pseudônimo de Beatriz. Começa assim:

"Relembro hoje aquela a quem chamarei Beatriz, alegria de minha vista e de minha vida, saudade alegre, prazer de sempre, clarinada matinal, doçura".

Não é bonito? Uma mulher tem obrigação moral de se entregar a um homem que lhe dedica um presente desse quilate.

Rubem Braga era muitas vezes lírico e vez em quando cáustico. Foi perseguido pela primeira ditadura do Brasil, a de Vargas, e criticou a segunda, a dos militares. Nunca teve partido, sempre teve posição. Prova-o um dos diamantes que produziu em forma de crônica, intitulada O Conde e o Passarinho. Nela, Rubem Braga avisa:

"Devo confessar preliminarmente que, entre um conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho".

Hoje, Rubem Braga seria chamado de comunista e o mandariam para Cuba. Como será que Rubem Braga lidaria com as redes sociais?

Escrevo sobre ele por causa de uma crônica, acerca de uma cidade: o Rio de Janeiro. Getúlio Vargas dizia que o Rio "é o tambor do Brasil", e de fato é. O Rio, a cidade mais linda do mundo, a Tônia Carrero entre as cidades, é também uma reprodução de tudo o que há de bom e de ruim no Brasil. O Rio é belo e trágico, alegre e desesperado, grandioso e suburbano, desejável e insuportável. Do Rio o brasileiro sente medo e orgulho. O Rio continua sendo a central do Brasil.

A capital federal nunca deveria ter sido removida do Rio de Janeiro. Nunca. Mas foi. Um erro. Dois anos antes, em 1958, Rubem Braga escreveu uma crônica que antecipava a degeneração que enfrentariam a cidade e também o país. Chama-se, a crônica, Ai de ti, Copacabana. Rubem Braga era morador do bairro, vivia numa agradável cobertura de onde avistava a praia e a linha do horizonte. Em um pedaço desse texto, ele não escreve, grita:

"Antes de te perder eu agravarei tua demência - ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão".

Parece que Rubem Braga previa o que se sucederia no Brasil de Brasília: o país acossado por desgraças e o Rio mais desgraçado ainda, como se estivesse em eterna penitência pelas iniquidades cometidas por nós, ímpios cidadãos. Incêndio nos alojamentos do Flamengo, enchentes, desabamentos de encostas, tiroteios, Mariana, Brumadinho, boate Kiss, mortes, choro e ranger de dentes. Quando terminaremos de pagar por nossos pecados? Ai de ti, Copacabana! Ai de ti, Brasil! Ai de nós, brasileiros!

DAVID COIMBRA


09 DE FEVEREIRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Sociedade ponto com

As eleições recentes foram um choque para quem ainda não percebeu que a revolução digital penetrou em cada poro da sociedade. Se varreu tantas formas tradicionais de mídias, extinguiu e alterou radicalmente profissões, por que não faria o mesmo com a política?

Podemos reclamar de tudo do nosso tempo, menos de monotonia. Uma das razões da agitação são os avanços tecnológicos acelerados da era digital. E não adianta não usá-los. Aqui vale o mesmo que se dizia na Europa a quem não queria ver o mau tempo se aproximando: não importa se não estás interessado na guerra, a guerra está interessada em ti.

Frente a isso, ou entendemos o que está acontecendo, ou seremos engolfados. Afinal, podes não ser curioso do assunto, mas a revolução digital é curiosa de ti, já sabe o que pensas, consomes e quer te influenciar ainda mais. Quem não se preparar será atropelado, ludibriado e manipulado.

A maior parte das inovações melhorou significativamente nossa vida. É uma experiência e tanto viver durante uma revolução tecnológica abrindo fronteiras impensadas. Assistir a mundos que desmoronam e outros que se erguem do nada. O preço é uma readequação eterna, o que gera um cansaço e um fastio e por isso nos questionamos dos benefícios, ainda que inegáveis.

Existe uma desproporção entre essa vivência e o quanto paramos para pensá-la. Não se trata só de filosofar em abstrato, já te perguntaste se a profissão que tens ou para a qual estás te preparando vai seguir existindo?

Imagina quem economizou para comprar um táxi. Esse modelo de transporte ruma à extinção. Talvez sobrevivam se adquirirem algumas das vantagens dos aplicativos ao estilo Uber. A questão é qual será o próximo "táxi"? Que outros negócios vão ser substituí- dos ou terão que se reinventar para seguir?

A indústria fonográfica virou do avesso. Os bancos mudaram radicalmente. Os jornais estão em transformação constante. A propaganda flui por outros caminhos. Graças ao poder das redes sociais, uma pessoa, um produto ou uma corporação pode ser gravemente afetado por um erro ou descaso com a opinião pública.

Ou seja, é um assunto sério demais para ficar apenas com a opinião da comadre. Existem vários livros no mercado sobre o tema, mas ou são tecnorromânticos ou são tecnofóbicos. Os primeiros dizendo que a redenção da humanidade passa por essa nova tecnologia e os segundos anunciando a desagregação dos laços sociais pelo mesmo motivo. Ou, então, são para público iniciado.

Encontrei um livro interessante para leitores leigos: Sociedade.com, de Abel Reis (ed. Arquipélago). Não traz profecias nem flerta com o apocalipse. Usa casos que conhecemos e tira reflexões desapaixonadas e agudas. Como o autor é brasileiro, os exemplos são familiares. Recomendo como leitura de férias para quem sai por estes dias.

MÁRIO CORSO

09 DE FEVEREIRO DE 2019
DUAS VISÕES

O MAR NÃO ESTÁ PARA CACHORRO

Com a elevação do número de cães que afloram em nossa orla marítima, voltam as discussões sobre a permissão ou não da presença do nosso melhor amigo à beira-mar. São animais de várias raças, tamanhos e índoles, acompanhando seus donos nas ondas e nas brincadeiras na areia com bolas, discos e outros brinquedos.

Cachorreiro de nascença, confesso me contagiar pela alegria dos bichos, soltos e livres e em contato com o mar. Vê-los correr e brincar é um deleite para os olhos. Mas existe um denso aglomerado de pessoas por onde o cão brinca e passeia e existem leis municipais proibindo o acesso de cães na beira-mar.

Confrontados por alguns banhistas, os proprietários alegam que seus mascotes estão vacinados, vermifugados, contidos de forma segura e que a legislação municipal proibindo a presença dos bichos é retrógada e desatualizada. Alguns alegam até o direito de ir e vir dos seus amiguinhos.

Eu prefiro olhar de outro ângulo: o da segurança das pessoas e dos animais.

Num dia cheio de gente, com crianças correndo e gritando, o ruído do mar, cornetas e chamadas de vendedores, calor escaldante, música alta, tudo isso cria um ambiente excitante para os cães, que pode levá-los a um comportamento imprevisto, como um ataque a uma criança.

Pense, veranista: Quantos cães com guia e focinheira você viu neste ano no mar?

Além disso, há o risco de contágio de doenças causadas ao homem, transmitidas por fezes e urina dos animais, sem contar vetores como pulgas e carrapatos, fatos esses já debatidos e discutidos há décadas.

"Ah, mas meu pet é supervacinado", pode alguém argumentar. Ora, num país como o nosso, em que as condições sanitárias e a saúde das pessoas são comumente negligenciadas, difícil acreditar que com os cães isso será diferente, que todos estejam com vacinas e vermífugos em dia e que haverá fiscalização suficiente dos órgãos de vigilância sanitária.

Isso sem falar dos cachorros de praia, aqueles abandonados, que não possuem nenhuma cobertura sanitária e que transmitem doenças tanto aos homens quanto aos outros cães.

Além disso, o que observo é que os próprios animais estão em risco à beira-mar. Alguns passam correndo - quase arrastados - amarrados ao dono atleta, sob um sol escaldante, sedentos e, não raro, há relatos de morte súbita dos animais devido ao estresse físico.

Sem contar a falta de proteção contra os efeitos do sol, do vento, da areia (que penetra na boca, nos olhos e nas narinas dos cães), que acabam por provocar doenças no animal. Aliás, alguns donos, incautos, nem água dão aos bichinhos.

O cão, repito, é o melhor amigo do homem. Aquele acompanha este por séculos. Nas caçadas, em casa, nos passeios, em restaurantes, em hotéis. Para alegria dos amigões, criaram-se até cachorródromos. São vários ambientes que acolhem o cão e seu dono e que permitem a integração com o público sem maiores complicações.

Mas eu não levaria, por exemplo, meu gato para brincar no cachorródromo, apesar do direito dele de ir e vir. O ambiente não é propício a ele, assim como uma praia lotada não é ambiente propício a um cão.

MARCOS COSTA DA SILVA Administrador cocopoa@gmail.com


09 DE FEVEREIRO DE 2019
SEGURANÇA

SETE PASSOS DO INQUÉRITO DE ANTA GORDA

Para desvendar o sumiço do gerente do Sicredi, Jacir Potrich, 55 anos, a polícia se lançou a uma verdadeira trama de possibilidades. De sequestro, suicídio, até chegar a uma briga de vizinhos. Uma a uma, as hipóteses foram esmiuçadas. Algumas ganharam força. Outras, foram descartadas por falta de indícios. O caso - que na quarta-feira completa três meses - jogou holofotes em Anta Gorda, município no Vale do Taquari com pouco mais de 6 mil habitantes.

Após perder o caráter sigiloso, ZH teve acesso ao inquérito entregue à Justiça. Das 302 páginas, 48 são de operações bancárias suspeitas realizadas por clientes do Sicredi. As informações foram exigidas pela polícia e entregues no dia seguinte à solicitação, em 13 de dezembro. Consta também uma sequência de imagens de câmeras com os últimos passos de Potrich: a saída do banco, a passada rápida em casa à tarde, o retorno da pescaria às 19h7min. Foram obtidas gravações de pelo menos sete locais diferentes.

As imagens ajudaram a polícia a entender o que pode ter acontecido no condomínio, construído por Potrich com outros dois amigos - o dentista Carlos Alberto Weber Patussi, 52 anos, e um empresário.

Diferentes hipóteses estavam sendo investigadas. Patussi, que teria se desentendido com o bancário em razão de uma desavença financeira, não virou o alvo número um. Só em 17 de janeiro, o delegado Guilherme Pacífico pediu a prisão do dentista. O homem foi detido em Capão da Canoa, no Litoral Norte, em 23 de janeiro, e solto oito dias depois, após a defesa ingressar com pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça.

O caso saiu das mãos de Pacífico no dia 1º de fevereiro. O delegado deixou o caso para retornar ao Espírito Santo - sua terra natal - e assumir a subchefia da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social. No lugar dele, ficará o delegado Márcio Marodin.

Sequestro de gerente

Inicialmente, a polícia tratou o caso como sequestro com intuito de obter vantagem financeira. A Delegacia de Roubos do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) passou a atuar com a DP local. A hipótese ganhava força pelo fato de Potrich ser gerente de banco. No dia seguinte ao sumiço, era esperada a chegada de um carro-forte no Sicredi. Com o desaparecimento do bancário, a rota do veículo foi alterada e chegou à cidade duas horas mais tarde.

Além do banco, a polícia se ateve ao condomínio onde a família morava. Buscas foram feitas com cães farejadores. Até um açude do residencial foi esvaziado. Os investigadores cogitaram a possibilidade de criminosos terem acessado o terreno pelos fundos, onde não há monitoramento. Mas não foram localizados sinais de passagens recentes nem danos na cerca. Com o passar dos dias e sem pedido de resgate, a hipótese de sequestro foi descartada.

Suicídio

O sumiço repentino lançou luzes na hipótese de suicídio. As investigações apontaram que em 13 de novembro - dia do desaparecimento - Potrich seguiu a rotina. Chegou à agência no horário de sempre, almoçou em casa e foi a uma pescaria. Limpou peixes no quiosque do condomínio e tomou caipirinha. Mas objetos sujos fizeram a família desconfiar que os últimos momentos do bancário fugiram ao habitual. Um funcionário do condomínio constatou que Potrich pescou dois tipos de peixes. No freezer, o gerente guardou jundiás, já limpos. Na bancada de serviço, havia escamas de carpas. "Possivelmente, durante a limpeza das carpas, aconteceu o desaparecimento de Potrich", observa a polícia no inquérito. Além disso, facas e outros utensílios deixaram de ser limpos, o que fugiu à personalidade de Potrich, conhecido por "metódico e sistemático". Os investigadores ouviram pessoas que relataram que Potrich e a mulher, Adriane Balestreri Potrich, 53 anos, viviam "ótimo momento pessoal, profissional e financeiro".

"Jacir gozava de boa saúde e estava emocionalmente estável, não recaindo nenhuma suspeição ou motivação para possível suicídio", diz o inquérito. Para a polícia, o suspeito do crime tinha a intenção de mostrar que "Jacir seguiu a rotina e após terminar, decidiu sumir, cometer suicídio".

Vingança de cliente

Um homem que perdeu terras para o Sicredi acabou na mira da polícia. Preso diversas vezes por tráfico de drogas, o suspeito já havia ameaçado o bancário de morte - ele está em prisão domiciliar desde maio. Potrich ia pessoalmente fazer cobranças a devedores "nutrindo desafetos ao longo dessas práticas", analisa o relatório da polícia.

No dia do sumiço, funcionários do banco fizeram, pessoalmente, cobrança a dois fiadores do homem "sendo recebidos de forma agressiva", conforme consta no inquérito.

Devido à suspeita, os telefones do ex-cliente e de outras duas pessoas foram interceptados pela polícia em 19 de novembro, com autorização da Justiça. A intenção era identificar alguma possível extorsão. "Não apareceram elementos de suspeição sobre ele e envolvimento no caso".

A polícia também descobriu que o investigado não estava na cidade no dia do sumiço.

Quadrilha de estelionatários

As investigações apontaram para um grupo de estelionatários com base em Anta Gorda. A quadrilha, conforme o inquérito, abria empresas e não realizava todos os pagamentos que deveria,

"lesando numerosas vítimas".

O grupo quitou valores em uma máquina de pagamento de títulos instalada no escritório de contabilidade da mulher de Potrich e do filho do casal, Vinicíus Ballestreri Potrich.

"Potrich tomou conhecimento e aconselhou Adriane e Vinícius a não mais aceitar qualquer tipo de pagamento efetuado pelos suspeitos, enfatizando que tomaria providência para denunciar a quadrilha."

Oito números de membros do grupo foram interceptados. Nenhum indício que os ligasse ao sumiço de Potrich foi encontrado.

Envolvimento de família de conhecida

Nem mesmo uma mulher próxima à família de Potrich escapou do crivo da polícia. Segundo inquérito, os parentes dessa pessoa têm "envolvimento em crimes graves". Além disso, a abertura de duas franquias de café por um homem que mantém relacionamento com essa mulher foi apurada. O dinheiro para o negócio havia sido emprestado pelo bancário - R$ 600 mil para unidade em Passo Fundo e R$ 450 mil para Erechim. "Informações deram conta de que Potrich não estava satisfeito com a forma que o dinheiro seria restituído, nem com a sociedade da franquia de Erechim", no qual figuravam como sócios essa mulher, um irmão e a mãe dela. A polícia grampeou o telefone da família da jovem e, após 15 dias, foi descartado o envolvimento dos parentes dessa mulher no sumiço.

relação com caso de mato grosso do sul

A ida de um sobrinho do casal, Arthur Gonçalves Balestreri, 24 anos, de Mato Grosso do Sul a Anta Gorda intrigou a polícia. O jovem chegou à cidade em abril do ano passado. Recém-formado em Contabilidade, afirmou que recebeu convite de Adriane para trabalhar no escritório dela. Mudou-se e passou a morar na casa dos tios.

O pai dele, Valdir Balestreri, foi morto em 2004 em Campo Grande (MS). O caso nunca foi solucionado. Natural de Anta Gorda, foi para o Centro-Oeste trabalhar. Demitido, ingressou com ação trabalhista. Logo depois, foi assassinado. Em novembro, a Justiça determinou o pagamento de R$ 800 mil à família. "Informações deram conta de que Jacir interveio nas investigações da morte de Valdir, bem como na ação trabalhista, o que teria desagradado aos herdeiros", diz o inquérito. A polícia chegou a suspeitar que o desaparecimento pudesse ser uma vingança. No dia do sumiço, o sobrinho trabalhou e, depois, foi a um salão. Câmeras mostram Arthur chegando ao condomínio às 20h29min, quando nota a ausência de Potrich. Telefonou para a tia, que estava em Passo Fundo. Ela tranquilizou o sobrinho, dizendo que o bancário tinha ido pescar.

A hipótese de uma vingança acabou descartada, a partir de documentos aos quais a polícia teve acesso - não há detalhes sobre o conteúdo do material.

Briga de vizinhos

Um dia após o sumiço, os policiais já sabiam da desavença entre Potrich e o vizinho Carlos Alberto Weber Patussi. Com o passar dos dias, a desconfiança em relação ao homem foi crescendo. Havia resistência dele em ceder o computador no qual estavam imagens de câmeras de segurança. Outro morador, considerado o apaziguador da rivalidade entre os dois, ajudou os agentes a ter acesso ao material.

Horas depois, Patussi exigiu a devolução, alegando fragilidade na segurança do condomínio. Devido ao tempo limitado, os investigadores só conseguiram copiar as imagens do período das 19h à 0h1min. Uma testemunha afirmou que o equipamento foi trocado pelo suspeito. A polícia entendeu o gesto como uma forma de "eliminar provas contra si".

A partir das imagens, a apuração concluiu que Patussi foi a última pessoa a ver Potrich no quiosque, após chegar da pescaria. Estava no condomínio também a mulher do dentista, que entra em casa, toma banho e sai. Ela permanece no local por 37 minutos. As câmeras gravam o momento em que Patussi volta do quiosque, sobe no telhado, analisa o local, desce e mexe em duas câmeras. Uma delas é apontada para o alto e a outra é desligada.

Segundo a polícia, o dentista apresentou versões diferentes para a movimentação dos equipamentos. Falou em "limpeza das câmeras", citando teias de aranha e retirada de ninhos de pássaros. Para os investigadores, o motivo era outro: "alterar o foco, intencionalmente, impedindo que a parte dos fundos de sua casa fosse vigiada, permitindo assim a livre circulação, após aquela movimentação suspeita flagrada".

As imagens comprovam que o homem tentou agilizar a saída da mulher, manobrando o carro dela. À polícia, ela disse que o marido estava "nervoso, ansioso, insistindo para que ela fosse para Porto Alegre logo, pois teria um temporal".

O desinteresse de Patussi no sumiço do vizinho despertava a desconfiança da polícia. As interceptações telefônicas permitiram que a polícia identificasse "contradições, mudanças de comportamento e criação de álibis". Durante as buscas no condomínio, realizadas por dois dias, as ações policiais eram relatadas ao suspeito por um funcionário dele.

Ele disse à polícia que teria subido ao telhado para verificar o serviço realizado pelo pintor na caixa d?água. Os investigadores constataram que não houve preocupação em analisar o serviço, a ponto de ele encostar na parede da chaminé - que deveria estar com tinta fresca. "Não estava agindo normalmente."

Entre as razões apontadas para o dentista ser considerado suspeito está uma desavença decorrente da troca de endereço do Sicredi. O antigo imóvel fica em frente ao atual e é de propriedade do dentista. Segundo testemunhas, Patussi se sentiu "traído por não ter sido avisado da troca de endereço".

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